WENAS SILVA SANTOS
(orientadores)
RESUMO: A Lei de Abuso de Autoridade (Lei nº 13.869/2019) tem como objetivo tornar crime, uma série de condutas por parte, por exemplo, de policiais, juízes e promotores. A presente norma passou a prever punição de multa ou até mesmo prisão para condutas como negar habeas corpus quando manifestamente cabível (um a quatro anos de prisão, mais multa) e negar o acesso aos autos do processo ao interessado ou seu defensor (seis meses a dois anos de prisão, mais multa). Além de penas de prisão e multa, diversos pontos preveem ainda sanções administrativas, como a perda ou afastamento do cargo, e cíveis, como indenização. Para incorrer em crime, a lei prevê que as condutas sejam praticadas com a finalidade de beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou com o objetivo de prejudicar alguém, ou ainda “por mero capricho ou satisfação pessoal”. Diante disso, esse estudo tem como finalidade discorrer a respeito das inovações da Lei de Abuso de Autoridade e trazer a discussão sobre a sua eficácia e o impacto causado pela sua promulgação aos servidores públicos e as autoridades. Como procedimento metodológico, foi utilizado a metodologia dedutiva, visto que será embasada nas ideias apresentadas com o procedimento de pesquisa bibliográfica documental.
Palavras-chave: Autoridade. Abuso. Impacto. Legislação brasileira.
ABSTRACT: The Law on Abuse of Authority (Law No. 13.869 / 2019) aims to make a series of conduct on the part of, for example, police, judges and prosecutors a crime. This rule now provides for punishment of a fine or even imprisonment for conduct such as denying habeas corpus when clearly applicable (one to four years in prison, plus a fine) and denying access to the case file to the interested party or its defender (six months from now). two years in prison, plus fine). In addition to prison sentences and a fine, several points also provide for administrative sanctions, such as loss or removal from office, and civil, as compensation. To incur a crime, the law stipulates that the conduct is carried out with the purpose of benefiting oneself or a third party, or with the objective of harming someone, or even “by mere caprice or personal satisfaction”. Therefore, this study aims to discuss the innovations of the Law of Abuse of Authority and bring the discussion about its effectiveness and the impact caused by its promulgation to public servants and the authorities. As a methodological procedure, the deductive methodology was used, since it will be based on the ideas presented with the documentary bibliographic research procedure.
Keywords: Authority. Abuse. Impact. Brazilian legislation.
INTRODUÇÃO
Em 2017 surgiu no cenário jurídico o Projeto de Lei nº 7.596 que tinha como foco regulamentar o abuso de autoridade. Desde o seu surgimento já fora motivo de inúmeros debates por parte da área política, jurídica e social. De todo modo, esse projeto foi transformado em Lei.
Em 2019 foi editada, com base no projeto de lei acima citado, a Lei nº 13.869, que dispõe sobre os crimes de abuso de autoridade. O texto especifica condutas que devem ser consideradas abuso de autoridade e prevê punições. O objetivo é punir o responsável pelas violações (PEREIRA, 2020).
Dentre as novidades trazidas por essa norma, está a determinação de que sejam consideradas crime as interceptações telefônicas e as quebras de segredo de Justiça sem autorização judicial. Para tornar as condutas criminosas, é necessário que o ato seja praticado com a finalidade de prejudicar alguém, beneficiar a si mesmo ou a outra pessoa ou que seja motivado por satisfação pessoal ou capricho (ANGELO, 2020).
Desde que fora promulgada, esta Lei foi amplamente discutida, tendo posicionamentos contrários e favoráveis a respeito do seu texto. Para uns considera-se alguns artigos inconstitucionais; para outros essa lei traz o rigor necessário para que ações dos órgãos públicos sejam corretos e eficazes, evitando um comportamento inadequado e para além de sua limitação.
Diante disso, o presente estudo tem como objetivo discorrer a respeito dos impactos que a Lei de Abuso de Autoridade trouxe para a seara jurídica, política e social. Com isso, avaliam-se quais foram as suas inovações, a mudança no Direito Penal e Processual Penal e de que forma as suas medidas afetaram as autoridades.
Desse modo, procura-se no decorrer do trabalho responder: qual a eficácia e as consequências que ocorrem devido a entrada em vigor da Lei do Abuso de Autoridade?
Insta salientar que não é foco dessa pesquisa sanar todos os pontos normativos e as consequências da respectiva norma, haja vista que ela só começou a entrar em vigor em Fevereiro de 2020, portanto ainda não há como medir o seu real impacto na prática. O que se busca é analisar essa lei e apresentar os pontos que podem ser importantes no exercício laboral das autoridades desde a sua entrada em vigor.
Para a realização da pesquisa foi feita uma revisão de literatura, constituído de estudo bibliográfico e documental. A pesquisa bibliográfica foi realizada por meio de leituras das leis, da Constituição Federal, de revistas jurídicas, de livros e artigos vinculados à análise das consequências da nova lei de abuso de autoridade e de outras doutrinas disponíveis relacionadas ao tema.
A presente pesquisa foi realizada mediante o levantamento de documentos. Assim, a coleta de dados é resultado de uma busca feita em bases de dados, tais como: Scielo; Google, dentre outros, entre os dias 01 a 18 de outubro de 2020.
1 ABUSO DE AUTORIDADE: ASPECTOS GERAIS
Para entender o que seja um “abuso de autoridade” é importante que se faça uma análise sobre o significado de autoridade, ou poder, que no caso presente podem ser utilizados como sinônimos. Feito essa observação, nas linhas abaixo serão descritos, de modo geral, os conceitos sobre abuso de poder e seu processo histórico.
Segundo explica Lima; Molossi (2020) o termo poder significaria a força, seja ela física ou mental, e que tem a capacidade de influenciar ou em alguns casos, comandar, por meio da força ou da moral, da dialética.
Esse termo, na concepção do filósofo francês Michel Foucault (1926-1984) se remete a um elemento que é independente do Estado ou até mesmo do homem sobre sim mesmo, “já que o homem é apenas um objeto de transmissão de ideias, poder tem sua maior expressividade no meio das ideias, dessa forma, retificando o homem como sujeito em um Estado o poder dá credito ao homem” (FOUCAULT, 1972 apud LIMA; MOLOSSI, 2020, p. 02).
Para o filósofo francês, o poder não é feito por meio das relações homem-estado, pelo contrário, é o próprio criador delas. Com isso, acredita-se que existam “teias de poder” ao qual há uma ramificação do mesmo, contrário à ideia de poder concentrado em uma figura líder ou de um Estado. É nessas “teias” que se situa e se origina o homem como elemento transmissor e usuário desse poder, assim, o poder não pode ser possuído, apenas utilizado (MOREIRA FILHO, 2012).
Por outro lado, a pensadora alemã Hannah Arendt (1906-1975) entende que o poder está diretamente ligado à política. Essa pensadora analisa o poder como uma maneira de consenso social que afunila e credita o Estado ou um líder, se aproximando na realidade social encontrada atualmente.
Nota-se até aqui que o poder possui duas vertentes, a de independência e dependência a um único líder ou Estado. Essa última é a que mais se aproxima do modelo adotado no Brasil, ao qual, se possui um líder e demais subordinados, em especial na esfera política.
Na história da humanidade, vários são os exemplos de nações que tiveram ferrenhas disputas de poder, e principalmente o seu abuso. Cita-se como exemplo, a denominada Revolução Francesa. Como explicam Cogan; Silva (2019), entre os anos 1789 e 1799 a França se viu contra sua própria população devido ao abuso de regalias e benefícios que a corte e nobres detinham, em contraponto ao restante da população que vivia praticamente na miséria.
É em função disso que o abuso de autoridade possui uma maior importância no âmbito legislativo do país, tendo, diferentemente do Código Penal brasileiro, uma sessão exclusiva para sua manutenção e prescrição tratando sobre modalidades, um tanto quanto diversas, o que evidencia novamente a preocupação para com esse crime (LIMA; MOLOSSI, 2020).
Em outro exemplo, tem-se a Alemanha que no decorrer da sua história viveu o apogeu do autoritarismo e o que o poder em demasia tem potencial para causar. Nesse caso, o que configurou esse fato, foi a implantação do nazismo e o início da segunda guerra mundial e todas as suas trágicas consequências. Depois desse episódio, adentrou em seu ordenamento jurídico o crime de abuso de autoridade.
Com tais exemplos, é possível notar que o crime de abuso de autoridade é implantado em decorrência de flagrantes casos onde o detentor do poder extrapola os seus limites, em alguns casos, indo contra a própria sociedade. De todo modo, existem diversas razões e fatores que contribuem para devida preocupação com esse tipo penal, sejam fatores históricos como regimes absolutistas, sejam a proximidade com movimentos filosóficos que à sua forma se opuseram às autoridades (LIMA; MOLOSSI, 2020).
A exemplo desses países, o Brasil também passou por períodos de turbulências e de abusos cometidos por aqueles que deveriam garantir a “paz” social e o equilíbrio. E da mesma forma que nesses países acima citados, colocou em seu ordenamento jurídico, normas que regulam esse crime. Sobre esse aspecto, apresenta-se o tópico a seguir.
1.1 DA REGULAMENTAÇÃO JURÍDICA NO BRASIL
Historicamente, o Brasil sempre viveu diversos conflitos de toda ordem. Em se tratando ao tema por ora em análise, no Brasil, os dois maiores exemplos e períodos de abuso de poder político ocorreram na Era Vargas (mais precisamente no Estado Novo) e no período de governo militar; períodos de extrema importância histórica no país e que são deveras recentes, ambos ocorrendo no século XX (COGAN; SILVA, 2019).
Em 1965 entrou em vigor no ordenamento jurídico brasileiro a Lei nº 4.898 ao qual regulava o Direito de Representação e o processo de Responsabilidade Administrativa Civil e Penal, nos casos de abuso de autoridade. Naquele período a presente norma era inovadora e buscava penalizar e limitar aqueles agentes que ultrapassassem os limites da sua função pública.
Sobre o período de criação dessa lei, importante citar:
Cabe salientar que a época da criação da lei de abuso de autoridade, o país vivia umas das situações mais tristes da história brasileira, o golpe militar, no âmbito político nacional, havia correntes ideológicas, movimentos populares de ambas correntes, de esquerda e de direita que eram financiados com capital externo; no âmbito econômico, foi um grande momento de expansão da indústria nacional. A criação dessa lei foi única e exclusivamente para punir o abuso, os exageros praticados por militares, que por causa da situação a qual vivia o país, por vezes se desencadeava graves conflitos sociais, assim, por diversas vezes esses confrontos acabavam por conter atos de grande violência (SANTANA, 2016, p. 01).
O artigo 5º da lei em destaque trouxe a definição do que seria autoridade; a saber: “considera-se autoridade, para os efeitos desta lei, quem exerce cargo, emprego ou função pública, de natureza civil, ou militar, ainda que transitoriamente e sem remuneração” (BRASIL, 1965). Assim, pode ser considerada autoridade qualquer funcionário público.
Ainda nessa Lei, tinha-se como conceito a ação de abuso de autoridade, qualquer forma de atentado a uma série de direitos do cidadão, tais como a liberdade de locomoção, a inviolabilidade do domicílio, o sigilo da correspondência, a liberdade de consciência e de crença, o livre exercício do culto religioso, dentre várias outras (BRASIL, 1965).
A ação era pública incondicionada, com pena máxima prevista de seis meses de detenção, além de multa, perda do cargo e inabilitação para o exercício de qualquer outra função pública por prazo de até três anos. Nos dizeres de Santana (2016, p. 01) “a criação dessa lei é garantir que ninguém, nenhum cidadão, venha ser vítima de abuso de autoridade e, caso seja vítima, garante-lhe o direito de levar ao conhecimento de autoridade competente para defender seus direitos”.
O sujeito ativo do crime de abuso de autoridade – ou seja, quem comete o crime – era unicamente o indivíduo durante a execução do seu serviço, cargo ou função, independentemente que seja contratado para trabalho temporário e sem remuneração (BRASIL, 1965).
Apesar desses regramentos, a sociedade se modificou e esta lei começara a ser vista como ineficaz. Buscando mudanças nesse tema, desde 2009, o Senado vinha discutindo a necessidade de atualização da legislação acerca dessa temática. De acordo com Silveira; Blume (2016) a Lei de 1965 trata somente genericamente desses crimes, não havendo detalhes sobre suas diferentes formas, nem sobre quais penas devem ser aplicadas a cada caso.
De outro modo, na prática a Lei nº 4.898/65 possuía pouca força e não era aplicada adequadamente. Em razão disso, foi editado o Projeto de Lei nº 280/2016 ao qual promovia mudanças na Lei em vigor. Buscando sanar esse problema de aplicabilidade, esse projeto, especifica, em 30 artigos, diversos casos de abuso de autoridade. As penas para esses crimes variam de três meses a cinco anos de prisão e multas (SILVEIRA; BLUME, 2016).
Todavia, esse projeto sofreu alguns anulamentos, sendo reformulado e editado com um novo Projeto de Lei (PL 7.596/2017). Nesse período, o texto novamente teve resistência. A título de exemplo, encontra-se abaixo o posicionamento do Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ):
O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ) manifesta preocupação com o projeto de lei de abuso de autoridade (PL 7596/17), aprovado na quarta-feira (14/08) pela Câmara dos Deputados. A pretexto de punir eventuais abusos, o projeto restringe a autoridade e prejudica a atuação independente do Ministério Público brasileiro, do Poder Judiciário e dos agentes policiais, se opondo ao trabalho de combate à corrupção, às organizações criminosas e a outros crimes, uma vez que torna promotores, procuradores e juízes vulneráveis a processos e outras penalizações pelo exercício legítimo de suas atribuições (BRASIL, 2017).
Da mesma forma que esse projeto fora cenário de correntes contrárias ao seu texto, durante o seu percurso também foi alvo de vetos. No dia 14 de agosto de 2019, a Câmara dos Deputados pautou, em regime de urgência e com votação simbólica, com o aval dos líderes partidários, o tema do Abuso de Autoridade. O projeto foi aprovado e encaminhado à sanção presidencial, ato que depende da avaliação do Ministro da Justiça para verificar se existem pontos a serem vetados e suas respectivas justificativas. A Presidência da República vetou 19 dispositivos. O Congresso Nacional derrubou 10 vetos, permanecendo apenas 9 artigos vetados (MARQUES; MARQUES, 2019).
Depois de inúmeras discussões, em 5 de setembro de 2019 foi promulgada a nova Lei nº 13.869 de alcunha Lei de Abuso de Autoridade, que substituiu a antiga Lei nº 4.898/65, dentre outras, e que trouxe significativas mudanças nesse tema, que será explanado no tópico seguinte.
2 AS MUDANÇAS TRAZIDAS PELA LEI Nº 13.869/2019
A Lei nº 13.869 de 5 de setembro de 2019 é a mais nova norma a regular o tema sobre abuso de autoridade. Nos primeiros artigos do seu texto, traz a seguinte informação:
Art. 1º Esta Lei define os crimes de abuso de autoridade, cometidos por agente público, servidor ou não, que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído.
§ 1º As condutas descritas nesta Lei constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal.
§ 2º A divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade.
(BRASIL, 2019)
Portanto já no primeiro artigo traz os destinatários da norma e o conceito sobre o abuso de autoridade, onde é entendido como sendo ações feitas pelo agente, no exercício de sua função, com o intuito específico de: prejudicar terceiro, benefício próprio ou de outrem ou que ainda o faça apenas por mero capricho ou satisfação pessoal (BRASIL, 2019).
Esse trecho do § 1º é importante porque alterou o texto da lei anterior. Desse modo, se antes se exigia somente o dolo genérico, agora com essa nova lei, passou-se a exigir dolo específico, ou seja, se consagra a finalidade de “prejudicar outrem” ou “beneficiar a si mesmo ou a terceiro”, ou agir por “mero capricho” ou por “satisfação pessoal” (BRASIL, 2019).
É o que também assenta a jurisprudência; a saber:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. FASE DE CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. PENHORA DE ATIVOS EM NOME DO DEVEDOR VIA BACENJUD. POSSIBILIDADE. NÃO CONFIGURAÇÃO DE CRIME DE ABUSO DE AUTORIDADE. O sistema BACENJUD é uma ferramenta que possibilita a rápida comunicação entre o Poder Judiciário e as instituições financeiras, facilitando o bloqueio de valores do devedor e a requisição de informações entre os participantes. É, assim, imprescindível para que a execução chegue a seu termo, com a satisfação do crédito mediante a entrega do dinheiro ao credor. A utilização desse mecanismo, portanto, não pode configurar crime de abuso de autoridade. De acordo com o art. 1º, § 1º, da Lei 13.869/2019, para a configuração das condutas enquadráveis como crime de abuso de autoridade, exige que a sua prática tenha se dado com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal, não sendo, pois, o caso dos autos. Outrossim, para configurar crime de abuso de autoridade, faz-se necessário que a indisponibilidade de ativos financeiros seja decretada em quantia que extrapole exacerbadamente o valor estimado para a satisfação da dívida, não constituindo qualquer infração, portanto, a indisponibilidade dos valores indicados pelo credor como necessários para a satisfação do crédito, como dessume da interpretação literal da Lei 13.869/2019. Reforma da decisão agravada para permitir a penhora de ativos em nome do devedor via BACENJUD.AGRAVO PROVIDO. UNÂNIME. (TJ-RS - AI: 70083977306 RS, Relator: Dilso Domingos Pereira, Data de Julgamento: 02/09/2020, Vigésima Câmara Cível, Data de Publicação: 08/09/2020). (grifo meu)
Ainda com base nesse texto, Nucci (2019) explica com base na seguinte situação: se o agente público prender uma pessoa apenas para prejudicá-la; somente para se beneficiar disso; exclusivamente por capricho (vontade arbitrária ou birrenta) ou unicamente para satisfação pessoal (regozijo), indiscutivelmente estão abusando do seu poder.
Seguindo, no § 2º especifica que havendo divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas, isso não configura abuso de autoridade. Novamente Nucci (2019) nos explica que noutros termos, duas autoridades judiciárias podem pensar em situações diametralmente opostas, como prender ou soltar alguém, pois interpretam a lei de maneira divergente. Não há abuso de autoridade por parte de quem prendeu e, portanto, também não se fala em prevaricação por quem soltou.
Outros pontos também são importantes mencionar. A priori, buscando aprimorar a lei processual penal, a nova legislação preceitua que cabe indenização à vítima, a ser fixada na sentença penal, desde que o ofendido assim tenha requerido. Sob esse viés, Leite (2019) entende ser correto e assertivo essa norma, mostrando uma vantagem da nova lei de abuso de autoridade.
Ainda no texto da presente lei, cabe destacar que o sentenciado por abuso de autoridade pode tornar-se inabilitado para o exercício de cargo, mandato ou função pública, pelo período de 1 (um) a 5 (cinco) anos, além de perder o cargo, mandato ou função pública. Por esse texto, alguns doutrinadores entendem que ela foi benéfica ao sentenciado; vejamos:
De modo benevolente, a lei prevê a recuperação do direito de se tornar, outra vez, autoridade. No âmbito do Código Penal, a perda do cargo, mandato ou função é definitiva. Aliás, quem age abusivamente e é por isso condenado não deveria mesmo voltar ao poder. A lei atual é favorável ao agente público (NUCCI, 2019, p. 01).
Outra mudança trazida de destaque foi o art. 30 ao qual diz que “dar início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente” (BRASIL, 2019). Essa questão mostra uma maior preocupação jurídica contra aqueles que tencionam entrar com ação penal sem fundamentação ou contra um inocente. Esse artigo é cabível, principalmente porque a legislação brasileira está sob a ordem do Estado Democrático de Direito, ao qual não permite qualquer condenação injusta ou sem justa causa.
Também se menciona, ademais, o art. 38 que diz “antecipar o responsável pelas investigações, por meio de comunicação, inclusive rede social, atribuição de culpa, antes de concluídas as apurações e formalizada a acusação” (BRASIL, 2019). Novamente aqui se verifica um avanço na proteção contra abuso de autoridade. No contexto desse artigo, ao invés de colocar no palco da mídia quem é culpado, deve-se guardar sigilo, respeitando-se a figura de todo réu.
Para Nucci (2019, p. 01) “é preciso responsabilidade e absoluta honestidade para ser autoridade, exercendo o poder de suas atribuições. Não se pode banalizar a reputação alheia e jamais se deve eleger um alvo para perseguir, por mais culpado que ele possa parecer”.
Diante das mudanças acima descritas, nota-se que em determinados artigos, o legislador evidenciou uma maior proteção aos cidadãos diante de uma configuração de abuso de autoridade.
Com essa nova Lei, algumas práticas que se tornaram comuns passam a ser passíveis de punição. Além das já citadas anteriormente, tem-se: decretar condução coercitiva de testemunhas ou investigados antes de intimação judicial; realizar interceptação de comunicações telefônicas, informáticas e telemáticas ou quebrar segredo de Justiça, sem autorização judicial (ANGELO, 2020).
Cabe destacar que parte das ações já era considerada proibida, mas de modo genérico e com punição branda. Além disso, a legislação anterior visava exclusivamente o poder Executivo. Agora, membros do Legislativo e Judiciário, do Ministério Público, de tribunais ou conselhos de contas também podem ser alvos de penalidades (BRASIL, 2019).
Desde que fora promulgada, a doutrina jurídica brasileira vem discutindo sobre as inovações e a eficácia da Lei. Por um lado entende-se que a mesma trará benefícios e maior segurança para a população. Nessa corrente, para Angelo (2020, p. 03) ao criminalizar e estabelecer a pena correspondente, a lei “preencheu uma lacuna no ordenamento jurídico brasileiro, que antes vedava determinadas condutas, mas não previa uma penalidade específica para o caso de violação, esvaziando assim o sentido da norma proibitiva”.
Para Pereira (2020, p. 05) “todo poder carece de justificação e de controle. Nenhum exercício de poder deve extrapolar os limites legais. O abuso de autoridade, nesse sentido, constitui útil e motivado controle da atividade estatal, em proteção ao cidadão e as instituições”.
Por outro lado, contudo, aponta-se que essa nova norma não impedirá o cometimento de crimes de abuso de autoridade. Nos dizeres do criminalista Thiago Turbay (2019 apud ANGELO, 2020, p. 03) a lei contra o abuso de autoridade não “servirá para tornar impunes crimes cometidos por autoridades, sendo, na verdade, uma forma de controlar excessos que ficaram evidentes nos últimos anos”.
Nessa linha de pensamento, há os que entendem que essa Lei não é eficaz e nem respeita os preceitos constitucionais. No que tange a sua ineficácia, muitos acusam a respectiva lei de ter seu texto técnico vago e sem sentido. Justificando essa visão, cita-se como exemplo o art. 36, ao qual se explica nas seguintes palavras:
Tão peculiar é o crime do artigo 36, que exige, cumulativamente, atos comissivos e omissivos. Ademais, o termo “parte” em seu primeiro uso refere-se a “credor” e no segundo a “devedor”. Mais: tudo indica que a consumação dê-se com o indeferimento injustificado de retificação do ativo financeiro feito indisponível, todavia a lei fala simplesmente em deixar de corrigir; e se deve lembrar que a inobservância dos prazos legais já é praxe no Brasil, portanto usá-los como elemento normativo do tipo será inócuo. Criticar a vagueza do termo “exacerbadamente” faz-se desnecessário (COGAN; SILVA, 2019, p. 03).
O entendimento acima é corroborado com a jurisprudência, como se mostra abaixo:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. PENHORA ONLINE. SISTEMA BACENJUD. LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE. IMPOSSIBILIDADE DE DETERMINAÇÃO ATÉ POSIÇÃO DO E. STF ACERCA DA MATÉRIA. ADIs Nº 6238 E Nº 6239.1. A Lei de Abuso de Autoridade, no seu art. 36, criminaliza a seguinte conduta: Decretar, em processo judicial, a indisponibilidade de ativos financeiros em quantia que extrapole exacerbadamente o valor estimado para a satisfação da dívida da parte e, ante a demonstração, pela parte, da excessividade da medida, deixar de corrigi-la? .2. A lei não esclarece qual o alcance das expressões exacerbadamente e excessividade da medida. Também não refere qual o prazo para que reste configurada a omissão do julgador disposta na parte final do tipo penal. 3. A norma, portanto, contrariando a técnica legislativa penal, é aberta, admitindo interpretação nos mais variados sentidos. Criminaliza conduta atrelada à atividade-fim do julgador, responsável pela condução dos processos e pela determinação do bloqueio online. 4. Até que haja posicionamento da Corte Suprema nas ADIs 6238 e 6239, considerando os termos da Lei de Abuso de Autoridade, recentemente aprovada, não se mostra possível, por ora, a determinação de Bacenjud. AGRAVO DE INSTRUMENTO DESPROVIDO, EM DECISÃO MONOCRÁTICA. (TJ-RS - AI: 70084640226 RS, Relator: Luiz Felipe Silveira Difini, Data de Julgamento: 07/10/2020, Vigésima Segunda Câmara Cível, Data de Publicação: 15/10/2020). (grifo meu)
No que se refere a sua constitucionalidade, a presente lei já é alvo de cinco ações diretas de inconstitucionalidade. A mais recente (ADI 6.240) foi ajuizada no Supremo pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais da receita Federal (SOUZA; VASCONCELOS, 2020).
Já tinham sido movidas ações similares pela Associação dos Juízes Federais do Brasil (ADI 6.239); Associação Nacional de Auditores Fiscais (6.234); e Associação dos Magistrados Brasileiros (6.236).
A Associação Nacional dos Membros do Ministério Público, Associação Nacional dos Procuradores da República e Associação Nacional dos Procuradores do trabalho, todas ligadas ao Ministério Público Federal, ajuizaram a ADI 6.238.
De modo geral, são inconstitucionais (material e formalmente) os seguintes dispositivos da lei:
Art. 9º - Decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais;
Art. 10º - Decretar a condução coercitiva de testemunha ou investigado manifestamente descabida ou sem prévia intimação de comparecimento ao juízo;
Art. 20º - Impedir, sem justa causa, a entrevista pessoal e reservada do preso com seu advogado;
Art. 25º - Proceder à obtenção de prova, em procedimento de investigação ou fiscalização, por meio manifestamente ilícito;
Art. 36º - Decretar, em processo judicial, a indisponibilidade de ativos financeiros em quantia que extrapole exacerbadamente o valor estimado para a satisfação da dívida da parte e, ante a demonstração, pela parte, da excessividade da medida, deixar de corrigi-la;
Art. 43 - Altera a Lei Federal 8.906/94, Estatuto da Advocacia e da OAB, estabelecendo como crime a violação das prerrogativas profissionais do advogado.
(LEITE, 2019, p. 03)
Há de se mencionar o parecer jurídico de Ayres Britto que aponta inconstitucionalidades na lei de abuso de autoridade. Afirma o renomado jurista que a lei inibe a prestação jurisdicional e independência do magistrado que se vê visceralmente criminalizado. E, para ele, “nenhum diploma infraconstitucional pode ter a pretensão de ditar as coordenadas mentais do juiz, ou instância judicante colegiada, para conhecer do descritor e do prescritor dessa ou daquela norma geral a aplicar por forma tipicamente jurisdicional” (BRITTO, 2019, p. 02).
Por fim, apresenta-se o entendimento de Cerioni (2020, p. 01) ao afirmar que após um balanço geral, pode-se afirmar que “a nova lei chega repleta de boas intenções para proteger as pessoas contra o abuso de algumas autoridades, porém, sob o prisma técnico, terá pouca efetividade”.
Essa ideia é repartida com Nucci (2019) ao entender que mesmo com os avanços trazidos e que são necessários, todo o conjunto da nova lei de abuso de autoridade é favorável ao agente público. Em sua essência técnica, trata-se de uma lei absolutamente normal, inclusive sem nenhum vício de inconstitucionalidade.
Essas últimas posições doutrinárias são compartilhadas com essa pesquisa, que entende, finalmente, que a Lei de Abuso de Autoridade trouxe um avanço significativo no que tange a determinadas situações que não se encontrava na legislação anterior, como o art. 38 que se adequou à realidade social trazida pelas redes sociais.
Mas apesar disso, este estudo também sobrepõe o entendimento de que na prática, se a intenção da lei era de “atemorizar” os agentes policiais, os membros do Ministério Público, integrantes da Magistratura e outras carreiras de Estado, o tiro saiu pela culatra. Sendo assim, o ideal seria que houvesse um maior rigor da lei na questão do aumento de penas para os agentes abusadores a fim de causar ‘medo’ para aqueles que usam o poder para outros fins diversos do seu cargo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Depois de dez anos de debates no Congresso Nacional, em agosto de 2019 foi aprovado a Lei do Abuso de Autoridade (Lei nº 13.869), começando a valer em janeiro de 2020. O texto especifica condutas que devem ser consideradas abuso de autoridade e prevê punições. O seu foco é punir o responsável pelas violações.
A presente lei veio buscar penalizar aqueles agentes que de algum modo tenha cometido determinada ação considerada uma violação, tais como manter presos de ambos os sexos numa mesma cela ou deixar adolescente detido na mesma cela que adultos; dar início a processo ou investigação sem justa causa e contra quem se sabe inocente, dentre outras.
A priori, nota-se que a mesma possui um importante passo para que autoridades não cometam abusos no exercício de suas funções, gerando assim maior segurança pública para o Estado e sociedade. No entanto, desde a sua promulgação, esta lei fora tema de diversos debates.
Esta lei trouxe importantes renovações no que diz respeito aos abusos de autoridades praticados por servidores públicos e autoridades. Dentre as inovações apresentadas, têm-se as medidas administrativas (perda ou afastamento do cargo), cíveis (indenização) e penais (detenção, prestação de serviços ou penas restritivas de direitos). As penas podem chegar até quatro anos de reclusão.
Diante de sua promulgação diversos efeitos são encontrados. Cita-se, por exemplo, que ao tornar puníveis condutas que antes não eram, a lei forçará o Estado a rever os seus protocolos de ação de modo a evitar abusos e desvios de poder.
De todo modo, corroborando com os autores citados no decorrer desse texto, a nova lei possui boas intenções para proteger as pessoas contra o abuso de algumas autoridades. Todavia sob o prisma técnico, terá pouca efetividade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Acadêmico do curso de Direito.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LEAL, Rycardo Pereira. Os impactos da nova lei de abuso de autoridade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 dez 2020, 04:03. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55826/os-impactos-da-nova-lei-de-abuso-de-autoridade. Acesso em: 23 dez 2024.
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