HELINE VALÉRIA DA SILVA: Bacharelanda em Direito pelo Centro Universitário FAMETRO.
RESUMO: A presente pesquisa busca analisar as famílias simultâneas enquanto instituto jurídico, tendo como foco demonstrar a possibilidade do seu reconhecimento jurídico em face do atual ordenamento legal. Para isso, utiliza pesquisas bibliográficas a fim de realizar uma análise comparativa entre os dispositivos legais vigentes no atual ordenamento jurídico, os conceitos trabalhados pela doutrina familiarista brasileira, e o entendimento dos Tribunais pátrios a respeito da matéria. Assim, descreve a possibilidade do reconhecimento jurídico das famílias paralelas como uma necessidade de promover a dignidade da pessoa humana em diversos casos já existentes hoje no Brasil, pois tal arranjo familiar é uma realidade, e negar sua existência seria vedar os olhos para os direitos fundamentais de indivíduos frutos dessas relações familiares.
PALAVRAS-CHAVE: Direito das Famílias. Reconhecimento Jurídico. Famílias Paralelas. Dignidade.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Da Origem do Direito da Família; 2.1 Da evolução histórica do Direito da Família no Brasil; 3. Do Direito das Famílias no atual Ordenamento Jurídico; 3.1 Dos Conceitos de família; 3.2 Das formas atuais de família: 3.2.1 Da família matrimonial; 3.2.2 Da família informal; 3.2.3 Da família homoafetiva; 3.2.4 Da família poliafetiva; 3.2.5 Da família monoparental; 3.2.6 Da família parental; 3.2.7 Da família mosaico; 3.2.8 Da família natural; 3.2.9 Da família substituta; 3.2.10 Da família eudemonista; 4. Das Famílias Simultâneas; 4.1 Da discriminação social; 4.2 Da necessidade do reconhecimento jurídico; 4.3 Da partilha dos bens; 5. Conclusão. 6. Referências.
INTRODUÇÃO
A existência de famílias simultâneas, onde um homem constitui mais de uma família ao mesmo tempo, é uma realidade presente na sociedade brasileira há muito. Porém ainda hoje estas famílias são negligenciadas pelo ordenamento jurídico brasileiro, motivo pelo qual enfrentam grandes dificuldades quando necessitam da tutela do estado para preservar ou assegurar seus direitos familiares.
Nesse sentido, a presente pesquisa demonstra de forma didática a necessidade de se dar reconhecimento jurídico às famílias simultâneas. Assim, no primeiro capítulo se inicia uma explanação sobre a origem da família, a fim de que se possa compreender com ela surgiu, bem como este capítulo também aborda sua evolução na sociedade brasileira ao longo da história.
Tão logo, o segundo capítulo faz uma abordagem sobre o direito das famílias no atual ordenamento jurídico brasileiro, a fim de se demonstrar como se entende o conceito de família atualmente, quais os seus fundamentos, bem como faz uma breve abordagem sobre os principais arranjos familiares existentes atualmente na sociedade brasileira e reconhecidos pela doutrina.
Superadas as questões gerais, parte-se para o terceiro capítulo, onde a pesquisa se aprofunda nos conceitos de família simultânea, bem como explora os desafios enfrentados por este arranjo familiar em face à discriminação social, aborda os principais aspectos que demonstram a necessidade do seu reconhecimento jurídico como um objeto garantidor de dignidade, e por fim enfrenta as questões relativas à partilha de bens quando este arranjo familiar se desfaz, suas dificuldades e possibilidades de partilha já existentes no ordenamento jurídico.
Por fim, parte-se para a conclusão onde se busca alinhar todo o exposto no desenvolvimento para uma única direção: a de que é inevitável o reconhecimento das famílias simultâneas em face dos anseios e necessidades dos participes dessas relações.
1.DA ORIGEM DO DIREITO DE FAMÍLIA
A família enquanto instituto jurídico é um dos mais antigos, senão o mais antigo, mecanismo jurídico presente na sociedade, pois a família é o primeiro agente socializador do ser humano (PEREIRA, 2003, p. 151).
Ou seja, antes mesmo do homem se estruturar em sociedade surgem as famílias, por este motivo, considerando que a lei sempre vem depois do fato, a própria organização da sociedade se dá em torno da estrutura familiar (DIAS, 2016, p.21).
Ocorre que o Direito, enquanto fato social é um objeto dinâmico, pois a sociedade sempre estará na sua frente, e este sempre sofrerá modificações para acompanhar a sociedade (VIEIRA, 1998).
Dessa forma, o legislador sempre estará atrasado em relação à sociedade, pois para que uma conduta humana seja positivada em lei, primeiro é necessário que ela se torne um fato social, e então o legislador passa a “carimbar” os fatos da vida, criando direitos e obrigações (PONTES DE MIRANDA, 1983).
Nessa vereda, sabendo-se que a família é um dos institutos jurídicos mais antigos da sociedade, bem como sabendo que o direito é extremamente dinâmico, o direito de família é um dos ramos que mais sofreu modificações ao longo do tempo, e continua em constante evolução. Assim, faz-se necessário conhecer um pouco desta evolução no ordenamento jurídico brasileiro.
1.1 Da evolução histórica do Direito de Família no Brasil
O Brasil é um país muito jovem e consequentemente seu ordenamento jurídico é tão jovial quanto, em verdade, antes da declaração de independência em 1822 o Brasil era uma colônia do Reino de Portugal, dependendo de ordens diretas do Rei, logo, seu sistema jurídico era diretamente vinculado ao ordenamento português (CEZARIO, 2010).
Nessa vereda, considerando que o ordenamento jurídico português caminhava próximo aos princípios e dogmas religiosos, nesta época somente era possível a composição de um arranjo familiar, qual seja: a família matrimonial: união entre homem e mulher, indissolvível e baseada em estritos padrões de moralidade. Ressalta-se que neste modelo ao casar a mulher se tornava relativamente incapaz, não podendo trabalhar nem sequer administrar os próprios bens, cabendo ao homem o protagonismo dessa relação (DIAS, 2016, p. 207-209).
Essa cultura conservadora criada pela Igreja influenciou a concepção de família durante boa parte da história do Brasil, levando inclusive o legislador a positivar o arranjo matrimonial no Código Civil de 1916. Ou seja, até pouco tempo atrás a família no Brasil era matrimonializada, patriarcal, hierarquizada, patrimonializada e heterossexual excluindo-se da proteção legal qualquer arranjo familiar que não se encaixasse nesse padrão (DIAS, 2016, p. 208).
Todavia, como o direito é extremamente dinâmico, em 1988 surge uma nova Constituição Federal, que agora dá novos horizontes ao Direito de Família trazendo mudanças significativas como o fato de igualar homens e mulheres na relação conjugal, além de reconhecer juridicamente a união estável e a família monoparental como arranjos familiares.
Esta renovação constitucional produziu seus efeitos também na legislação cível, uma vez que em 2002 foi aprovado um novo Código Civil, que passou a incorporar muito dos princípios e valores trazidos pela ordem constitucional vigente, adotando uma postura menos rígida em relação a família, apesar de que pouca coisa mudou, algumas regras importantes foram impostas, como a proteção à família ‒ de modo que nenhuma pessoa de direito público ou privado poderá interferir na comunhão de vida, o que já foi um grande avanço.
Ressalta-se que mesmo com todo este dinamismo e com a evolução ocorrida ao longo da história, o direito das famílias no Brasil ainda reconhece um número muito restrito de famílias na legislação, conforme dispõe o Art. 226 da Constituição Federal de 1988, bem como o Código Civil que reconhecem apenas o casamento entre homem e mulher, a união estável e a família monoparental. Além dessas, o ordenamento jurídico brasileiro também reconhece a família homoafetiva por meio da jurisprudência nacional, o que foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI nº 4.277/DF e da ADPF º 132/RJ.
Assim, percebe-se que ainda há uma gama gigantesca de arranjos familiares não reconhecidos pelo direito, pessoas que hoje vivem à margem da legalidade e em uma condição juridicamente vulnerável por não serem legalmente reconhecidas.
2.DO DIREITO DAS FAMÍLIAS NO ATUAL ORDENAMENTO JURÍDICO
Atualmente a família dispõe de uma formação bastante diversificada, fazendo-se necessária uma conceituação cada vez mais ampla a fim de abranger os diversos arranjos familiares existentes na sociedade ligados por vínculos de sangue, afinidade ou afetividade (MONTEIRO, 2012, p. 8).
Nesse sentindo, apesar de muitos pregarem a ideia de que a família está em decadência, em verdade, o que há é uma repersonalização das relações familiares, que hoje estão muito mais voltadas a questões como: afeto, solidariedade, lealdade, confiança, respeito e amor (DIAS, 2016, p.28).
2.1 Dos conceitos de família
Desde o afrouxamento das relações entre Estado e Igreja, o conceito de família passou a sofrer grandes modificações, pois a família deixou de ter aquela visão hierarquizada onde o homem representava o centro de tudo, e a mulher passou a ter mais protagonismo dentro da relação familiar, inclusive a partir da participação da mulher no mercado de trabalho foi exigido cada vez mais uma divisão igualitária das tarefas domesticas a fim de prover a manutenção do lar (DIAS, 2016, P. 205).
Nesse sentido, a lei nunca se preocupou em conceituar família, em verdade para o Estado família era somente aquele ente formado pelo casamento, ou seja, todas aquelas relações que não eram chanceladas pela formalidade do casamento eram privadas de qualquer proteção, vivendo a margem da sociedade.
A primeira definição legal de família surge com a Lei Maria da Penha (Lei Federal nº 11.340 de 07 de agosto de 2006) que dispôs família como sendo qualquer relação íntima de afeto. Ou seja, a partir deste momento, faz-se desnecessária a existência de um casamento para se reconhecer uma entidade familiar. Ressalta-se que apesar de este não ser o objetivo da legislação em questão, esta acabou reverberando seus efeitos no direito familiar.
Nesse sentido, por muito tempo se entendeu que a família possuía natureza jurídica de direito obrigacional, porém com a evolução dos conceitos, percebeu-se que o Direito das Obrigações tem sua manifestação apenas por meio da vontade dos indivíduos envolvidos, já a família vai muito além disso, pois para sua configuração é necessário que haja um elemento imprescindível, qual seja o afeto (DIAS, 2016, p.206). Ou seja, a família é um grupo social fundado essencialmente em laços de afetividade (LÔBO, 2002, p. 96).
A doutrina traz ainda alguns conceitos interessantes baseados na formação da família moderna, veja-se:
Braga (2012, p. 115) leciona sobre o conceito de família potestativa, onde o indivíduo possui o direito de escolher livremente a formação de sua família, tendo como norte a aproximação pelo afeto.
Serejo (2014, p. 267) trabalha no conceito de família virtual que é formada por usuários em ambientes virtuais, a fim de satisfazer a carência de afeto ou a solidão do dia-dia, projetando em um ambiente virtual (Second Life) uma família com cônjuges e filhos a fim de exercer sua vocação familiar.
Chaves (2014, p. 348) empreende esforços em consolidar o conceito de família multiespécie que em seu entendimento se trata de um arranjo constituído por pessoas e seus animais de estimação, seres não humanos, reconhecidos pelo ordenamento jurídico como coisas sensíveis. O que recebe amparo legal por meio do Enunciado nº 14 do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) que prevê a possibilidade de guarda compartilhada destes seres.
Nesse sentido, percebe-se que o conceito atual de família possui como pilares a afetividade, a pluralidade e o eudemonismo, imprimindo uma nova roupagem no ordenamento jurídico brasileiro (ALBUQUERQUE, 2004, p. 162).
Ou seja, percebe-se que a família enquanto instituição foi substituída por uma família-instrumento que existe para contribuir com o desenvolvimento da personalidade dos seus integrantes, bem como para o crescimento da própria sociedade, o que justifica a proteção especial pelo Estado disposta na Constituição Federal (GUAZZELLI, 2004, p. 331).
Por fim, percebe-se que a família atualmente trabalha em cima de um único propósito: dar e receber amor (VILLELA, 1994, 645).
Assim, buscando a concretização do direito fundamental a busca pela felicidade, não sendo mais obrigatório manter uma família infeliz, hoje ela só sobrevive quando vale a pena (RIBEIRO, 2000, p. 23).
2.2 Das formas atuais de família
Antes de se aprofundar no estudo das famílias simultâneas, é importante fazer um breve apanhado sobre os arranjos familiares que atualmente existem no Brasil, a fim de se compreender a dimensão da família na sociedade. Ressalta-se que nem todos os arranjos citados gozam de reconhecimento jurídico, porém isso não os impede de existir.
2.2.1 Da família matrimonial
Conforme já exposto é aquele arranjo composto por um homem e uma mulher sob o prisma de um casamento, sendo um arranjo hierarquizado onde a mulher possui um papel passivo na relação. Este arranjo é comumente chamado de família tradicional brasileira (DIAS, 2016, p.207).
2.2.2 Da família informal
São arranjos familiares não consagrados pelo casamento, atualmente também chamados de união estável, onde os conviventes vivem como companheiros, mas não são casados (DIAS, 2016, p.210). Ressalta-se que a União Estável pode ser convertida em casamento, o que ao ver de Giselda Hironaka (2014, p.8) é a mais inútil de todas as inutilidades legislativas.
2.2.3 Da família homoafetiva
É o arranjo familiar constituído por pessoas do mesmo sexo, fundado no afeto entre as partes, e apesar de o ordenamento jurídico brasileiro não prever expressamente proteção jurídica a este arranjo, o Supremo Tribunal Federal reconheceu por meio da ADI nº 4.277/DF e da ADPF º 132/RJ que a união estável prevista na Constituição Federal se aplicava a este tipo de relação, nesse sentido, considerando que a união estável pode ser convertida em casamento, o Conselho Nacional de Justiça por meio da Resolução nº 175 de 2013 determinou que os cartório brasileiro celebrassem o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, dessa forma consagrando a união homoafetiva como uma entidade familiar.
2.2.4 Da família poliafetiva
É um arranjo familiar moderno que tem por base o respeito às liberdades individuais de cada indivíduo, o afeto e a dignidade. Sua diferença para um arranjo familiar tradicional é o número de participantes, pois neste modelo são necessárias pelo menos três pessoas envolvidas na relação afetiva. Nas palavras de Maria Berenice Dias (2016, p. 215) a traição e a infidelidade estão perdendo espaço na atual sociedade, e estão cedendo espaço a arranjos mais modernos e atrativos.
2.2.5 Da família monoparental
Este arranjo é caracterizado pela presença de somente um dos genitores na titularidade do vínculo familiar (Dias, 2016. P. 2015). São os clássicos casos de mães ou pais solteiros que sozinhos se empenham pela criação dos seus filhos, distingue-se dos casos em que um casal se separa e o vínculo familiar ainda é mantido pelos dois com os filhos, neste caso, apenas um dos genitores participa da família da criança. Esta possibilidade é reconhecida pela Constituição Federal de 1988 conforme disposto no Art. 226, §4º.
2.2.6 Da família parental
A família parental é configurada pela convivência de pessoas, parentes ou não, sob o mesmo teto com identidade de propósito, pessoas que convivem juntas como uma família mesmo sem qualquer relação de natureza conjugal ou sexual. Por exemplo irmãos que moram juntos por longos anos com o ânimo de construir patrimônio e viver confortavelmente (BARROS, 2003, p. 151).
2.2.7 Da família mosaico
A família mosaico, também conhecida como composta ou pluralista, é aquela formada por pessoas vindas de outros relacionamentos que já possuem uma família e filhos. Nesse sentido, o novo arranjo familiar passa a juntar a prole dos participantes na formação de um novo arranjo familiar (DIAS, 2016, p. 217). Por exemplo, duas pessoas divorciadas que possuem filhos decidem se casar, e no novo lar irão morar com os filhos vindo do outro relacionamento, por isso o mosaico, pois é um arranjo formado por partes do que um dia já foi outra família.
2.2.8 Da família natural
Este arranjo familiar está ligado à ideia de família biológica, conceituado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente como a comunidade formada pelos pais ou qualquer um deles e seus descendentes, ou seja, denota a ideia direta de uma família biológica independente dos laços de afeto (DIAS, 2016, p. 219).
2.2.9 Da família substituta
São famílias cadastradas nos programas de adoção que podem receber crianças em caráter temporário, acolhendo os menores em um período de necessidade até que possam ser devidamente devolvidos ao seio familiar natural (DIAS, 2016, p. 222).
2.2.10 Da família eudemonista
A família eudemonista tem por base a comunhão de vida, o afeto no plano da igualdade a liberdade e a responsabilidade recíproca (LÔBO, 2002, p. 138). Neste arranjo os membros são livres e o que importa é a busca pela felicidade, é um arranjo onde a hierarquia familiar cede espaço a igualdade para que todos se apoiem mutuamente a fim de atingir suas realizações pessoais (DIAS, 2016, p. 222).
3. DAS FAMÍLIAS SIMULTÂNEAS
Pablo Stolze (2008) questiona se um indivíduo é capaz de amar mais de duas pessoas ao mesmo tempo, a resposta obvia é que sim, afinal conforme leciona Maria Berenice Dias (2016, p. 212) um indivíduo ama diversas pessoas na vida, a exemplo disso seus pais, amigos, irmãos. Porém quando se questiona a possibilidade de um vínculo afetivo e sexual a resposta na maioria das vezes é negativa, e isso reflete na forma como a sociedade se organiza, no direito, e nas imposições estatais.
Ocorre que independente do estigma propagado pela sociedade aos indivíduos que se relacionam com mais de duas pessoas, isso continua a ocorrer. Pois em uma sociedade com uma cultura machista muito forte, o homem se envolver com mais de uma mulher é visto como sinal de status, de virilidade, desperta a admiração de outros homens (DIAS, 2016, p.449).
Assim, é comum na sociedade brasileira que indivíduos, principalmente homens, se desdobrem em dois relacionamentos simultâneos, possuindo duas casas, duas mulheres e até prole com as duas, ocorrendo um fenômeno jurídico que se chama de famílias paralelas, tendo em vista que geralmente uma sequer sabe da existência da outra. Ou seja, para melhor elucidar, famílias paralelas existem quando um indivíduo possui uma mais de uma relação familiar ao mesmo tempo, pode ser um casamento e uma união estável, duas uniões estáveis, duas famílias informais, mas de qualquer forma duas famílias (DIAS, 2016, p.213).
3.1 Da discriminação social
Impende destacar que estes arranjos familiares frequentemente sofrem uma grande discriminação da sociedade, que os vê com maus olhos, julgando como algo impróprio, impuro, imoral, dentre outras coisas. Taxando sua existência como concubinato (DIAS, 2016, p. 449) a fim de negar direitos a quem destes arranjos faz parte.
Ocorre que a família paralela não é família inventada, ela de fato existe em diversos casos. Tampouco é uma família amoral ou imoral, nem aética, nem ilícita. É família, e como tal, também procura o seu reconhecimento social e jurídico, assim como os consequentes direitos advindos dessa sua visibilidade na vida social e no sistema de direito brasileiro (HIRONAKA, 2014, p. 61-62).
Enfim, argumentos para descriminar as famílias paralelas na tentativa de expurga-las da ordem jurídica é o que não faltam. Nesse sentido, alguns alegam que a união estável deve se manter em harmonia com o preceito da monogamia, ocorre que a monogamia não é um princípio do direito das famílias positivado pelo Estado, e sim uma obrigação nos casamentos (RUZYK, 2005, p. 221), não podendo ser invocada para negligenciar o direito daqueles que já possuem uma necessidade jurídica constituída.
3.2 Da necessidade de reconhecimento jurídico
Nesse caso específico, a inércia do poder judiciário em regular a matéria para garantir direitos aos partícipes destes arranjos, tem dando causa a um grande ativismo do poder judiciário que precisa decidir a matéria considerando a legislação, mas garantindo dignidade aos membros desses arranjos (HIRONAKA, 2014, p. 57).
Ressalta-se que atualmente em alguns casos as uniões paralelas são tratadas como sociedade fato e não de afeto, logo, se aplicado o direito das obrigações e não o direito das famílias (DIAS, 2016, p. 452). Porém, ainda nesses casos, a mulher geralmente é inquirida se tinha ou não conhecimento do outro relacionamento do homem, pois tecnicamente apenas se reconhece a sociedade de fato se a mulher comprovar que não possuía nenhum conhecimento.
Ocorre que essa postura, apesar de privilegiar a boa-fé a primeira vista, pune mulheres, pois a boa-fé apenas é exigida de uma das companheiras, e o homem que foi infiel e desleal com duas mulheres é “absolvido”, nada lhe é imputado, permanecendo na titularidade do seu patrimônio e sendo desonerado da obrigação de fornecer sustento a quem muitas vezes lhe dedica a vida (DIAS, 2016, p. 452). É justo fechar os olhos para essas situações e lhe negar reconhecimento jurídico?
Nesse sentido, atualmente nem o Supremo Tribunal Federal (RE 397.762-8/BA, Relator Ministro Marco Aurélio, julgamento em 03/06/2008.) e nem o Superior Tribunal de Justiça (REsp 1.348.458/MG, 3ª Turma, Relatora Ministra. Nancy Andrighi, julgamento em 08/05/2014) admitem a existência de uniões paralelas para a seara do direito de família. Porém, há uma luz no fim do túnel quando o STF começa a reconhecer a possibilidade de reconhecimento de uniões concomitantes para fins previdenciários, vislumbra-se:
Previdenciário. União estável homoafetiva. Uniões estáveis concomitantes. Presença da repercussão geral das questões constitucionais discutidas. Possuem repercussão geral as questões constitucionais alusivas à possibilidade de reconhecimento jurídico de união estável homoafetiva e à possibilidade de reconhecimento jurídico de uniões estáveis concomitantes.
(STF, ARE 656.298/RG, Rel. Min. Ayres Britto, j. 08/03/2012).
Assim, percebe-se que as pessoas que buscam a tutela do poder judiciário para buscarem pelo reconhecimento das famílias paralelas estão apenas tentando buscar sua dignidade, de terem seu arranjo familiar reconhecido como família e não serem desassistidos pela tutela estatal por mera discriminação social. Nesse sentido, negar a existência das famílias paralelas é simplesmente tentar fazer com que elas desapareçam (DIAS, 2016, p. 454), e com isso a justiça acaba cometendo enormes injustiças (TJAL - AC 2010.000284-7, 2ª Câmara Cível, Relatora Desembargadora Maria Valéria Lins Calheiros, julgamento em 28/07/2014).
3.3 Da partilha de bens
Atualmente, considerando o cenário legal já demonstrado, o ordenamento jurídico brasileiro chancela o enriquecimento injustificado do homem que depois de anos de convívio deixa a relação sem qualquer responsabilidade pelo fato de ter sido infiel à duas companheiras (DIAS, 2016, p. 456).
Nesse sentido, considerando que a Constituição Federal de 1988 não admite tratamento diferenciado entre os filhos, excluir o direito sucessório da prole comum é violar a dignidade humana e dar tratamento diferenciado aos filhos, o que a justiça não pode chancelar (DIAS, 2016, p. 457).
Impende ainda destacar que quando há a dissolução das uniões e o Poder Judiciário não consegue estabelecer uma sobreposição entre as uniões, ocorre o que o Desembargador Rui Portanova do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul chama de “triação”, que é a partilha do patrimônio adquirido durante as uniões em três partes iguais (TJRS - AC 70039284542, 8ª Câmara Cível, julgamento em 23/12/2010). Ressalta-se que esta teoria já reverbera seus efeitos na jurisprudência, veja-se:
Uniões estáveis simultâneas. Reconhecimento. Partilha de bens. Triação. 1. Estando demonstrada, no plano dos fatos, a coexistência de duas relações afetivas públicas, duradouras e contínuas, mantidas com a finalidade de constituir família, é devido o seu reconhecimento jurídico à conta de uniões estáveis, sob pena de negar a ambas a proteção do direito. 2. Ausentes os impedimentos previstos no art. 1.521 do Código Civil, a caracterização da união estável paralela como concubinato somente decorreria da aplicação analógica do art. 1.727 da mesma lei, o que implicaria ofensa ao postulado hermenêutico que veda o emprego da analogia para a restrição de direitos. 3. Os princípios do moderno direito de família, alicerçados na Constituição de 1988, consagram uma noção ampliativa e inclusiva da entidade familiar, que se caracteriza, diante do arcabouço normativo constitucional, como o lócus institucional para a concretização de direitos fundamentais. Entendimento do STF na análise das uniões homoafetivas (ADI 4.277/DF e ADPF 132/RJ). 4. Numa democracia pluralista, o sistema jurídico-positivo deve acolher as multifárias manifestações familiares cultivadas no meio social, abstendo-se de, pela defesa de um conceito restritivo de família, pretender controlar a conduta dos indivíduos no campo afetivo. 5. Os bens adquiridos na constância da união dúplice são partilhados entre as companheiras e o companheiro. Meação que se transmuda em "triação", pela simultaneidade das relações. 6. Precedentes do TJDF e do TJRS. (TJPE, AC 296862-5 0007024-48.2011.8.17.0001, 5ª Câmara Cível, Relator Desembargador José Fernandes, julgamento em 13/11/ 2013).
Assim, apesar do número de decisões que reconhece os direitos da mulher nesse tipo de situação ainda ser baixo (DIAS, 2016, p. 459), percebe-se que aos poucos o poder judiciário vem criando coragem de enfrentar a matéria e a passos lentos vem sendo obrigado a reconhecer a existência das uniões paralelas, o que hoje já é mais comum na Justiça Federal em processos onde a esposa e a companheira dividem a pensão por morte do falecido marido ou companheiro baixo (TRF da 2ª Região, AC e ReEx Nec. 2004.51.10.000395-6, 2ª Turma Especializada, Relatora Desembargadora Liliane Roriz, julgamento em 31/05/2012).
CONCLUSÃO
Diante do exposto, percebe-se que a família brasileira passou por significativas mudanças ao longo da história, evoluindo, mudando seus fundamentos e sua forma de se organizar, prova disso é o fato de que hoje toda estrutura familiar se organiza em torno do afeto, de modo que este sentimento passou a ganhar valor jurídico inclusive como princípio norteador do direito das famílias.
Nessa vereda, com a família se estruturando em torno do afeto, passou-se a questionar se o indivíduo realmente dispõe de afeto por uma única pessoa. Nesse sentido, restou demonstrado que o Estado não tem como controlar os anseios do coração humano, pois conforme dito pelo ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Ayres Britto, em decisão já mencionada, “o coração é terra sem lei”. Na mesma linha Victor & Leo transformaram esta realidade em arte por meio da canção Borboletas quando citam “dividido entre dois mundos [...] sei que estou amando, mas ainda não sei quem [...]”.
Ou seja, as famílias simultâneas enquanto uma realidade existente no Brasil, demonstram que é possível para um indivíduo dispor de afeto por mais de uma pessoa, e este fato precisa começar a ser reconhecido pelo poder judiciário a fim de garantir dignidade aos participes dessas relações, e principalmente aos filhos advindos desses relacionamentos, pois são pessoas que não tem qualquer responsabilidade pela infidelidade de um dos genitores, de modo que precisam ter seus direitos assegurados.
Assim, percebe-se pelo exposto na presente pesquisa, que diante da inércia do poder legislativo em dar efetivo conhecimento às famílias simultâneas, o Poder Judiciário tem começado a se posicionar sobre o seu reconhecimento, ainda que de forma tímida, algumas decisões já reconhecem a existência das famílias simultâneas no Brasil, principalmente no âmbito previdenciário em se tratando de pensão por morte onde o entendimento é completamente pacífico.
Dessa forma, faz-se necessário que o poder judiciário comece a enfrentar esta realidade de forma mais concreta, a fim de dar o devido reconhecimento a este arranjo familiar como o fez no caso das famílias homoafetivas. Afinal, em qualquer arranjo familiar as partes só buscam este reconhecimento para terem garantida sua dignidade, seu direito a busca pela felicidade, cabendo ao poder judiciário zelar pela justiça e não negar a realidade.
REFERÊNCIAS
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Bacharelanda em Direito pelo Centro Universitário FAMETRO.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, HELINE VALERIA DA. O reconhecimento das famílias simultâneas no atual ordenamento jurídico brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 dez 2020, 04:18. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55836/o-reconhecimento-das-famlias-simultneas-no-atual-ordenamento-jurdico-brasileiro. Acesso em: 23 dez 2024.
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