IVAN GUIMARÃES GÓIS[1]
(coautor)
JOÃO SANTOS DA COSTA[2]
(orientador)
RESUMO: Este estudo objetiva analisar na doutrina e na legislação pátria se há inconstitucionalidade na vedação de escolha de regime de bens para maiores de 70 (setenta) anos. Aqui se analisou o artigo 1.641, II, do Código Civil, que traz tal vedação, e se investigou se tal preceito é proibição infundada, ainda, verificou-se na doutrina se é inconstitucional tal vedação e, se for, se ela é total ou parcial. Adotou-se, como metodologia, a pesquisa bibliográfica, descritiva e de natureza qualitativa e concluiu-se que o aludido artigo é inconstitucional, pois se constatou, na pesquisa bibliográfica, que a doutrina majoritária opina neste sentido, além de, pelos dispositivos constitucionais, deduzir-se que tal presunção absoluta é logicamente infundada.
PALAVRAS-CHAVE: Regime de Bens. Maiores de 70 anos. Inconstitucionalidade.
1. INTRODUÇÃO:
O envelhecimento é um processo degenerativo que atinge todos os seres vivos e que pode ser entendido como uma grande vitória da pessoa quando ela chega a essa etapa da vida. Ocorre que essa parcela da população sofre muito com a violação de seus direitos, fato que fere sua dignidade e os coloca, muitas vezes, à margem da sociedade. Na atualidade verifica-se o culto aos aspectos negativos da velhice e isso contribui para que haja um preconceito velado e mesmo exposto sobre a pessoa idosa que passa a ser vista como inútil e incapaz de realizar ações civis.
Acredita-se que o fato de uma pessoa ser idosa não quer dizer que ela seja também senil e que não possa de realizar escolhas referentes a direitos civis, como o do regime de bens em que pretende casar. Observa-se que a visão do legislador brasileiro, no entanto, é oposta, porque o mesmo instituiu, através da Lei nº 12.344/2010, nova redação ao artigo 1.641 do Código Civil brasileiro, que trata da separação obrigatória de bens, preconizando em seu inciso II que à pessoa maior de 70 (setenta) anos é obrigatório o regime de separação absoluta de bens no casamento.
Apesar do zelo do legislador em considerar o idoso supostamente vulnerável e tutelá-lo no sentido de pô-lo a salvo de possível realização de casamento exclusivamente por interesse econômico, é possível perceber subjacentemente que o referido artigo coloca a pessoa maior de 70 (setenta) anos em suposta incapacidade civil, pois se percebe que ele cerceia sua liberdade e restringe sua autodeterminação impondo-lhe limite no direito de escolher em que regime de bens pretende casar.
Essa restrição tolhe a capacidade civil do maior de 70 (setenta) anos, indicando que ele não é capaz de certos atos civis, sobretudo de escolher o regime de bens quando for casar. Sobre o assunto, é possível dizer que a capacidade civil é uma aptidão que tem toda pessoa de adquirir direitos e praticar atos da vida civil e realizar negócios jurídicos, sendo ela a medida da personalidade. Daí se considerar que a essa capacidade é o bastião jurídico em que se assenta a possibilidade de exercer direitos e atos civis, sendo que a pessoa maior de 70 (setenta) anos (em geral) não necessariamente a perde apenas por se tornar idosa.
Aqui, não se põe de lado o fato de que existem pessoas que não possuem capacidade civil, como se encontra estabelecida no Código Civil brasileiro, no art. 3º (pessoas com incapacidade absoluta), e art. 4º (pessoas com capacidade relativa). Ocorre que mesmo estabelecido que nem todas são capazes de exercer seus direitos e atos civis isso não quer dizer que a pessoa maior de 70 (setenta) anos seja incapaz, porque o próprio o Código Civil brasileiro não coloca no rol de seus artigos 3º e 4º a pessoa como maior de 70 (setenta) anos, o que se depreende daí é que, a princípio, se presume que o indivíduo possui plena capacidade civil e que o inciso II, do art. 1.641 do Código Civil está infundado juridicamente.
Diante dessa observação, este estudo tem como objetivo fazer uma análise à luz da doutrina e da legislação se há inconstitucionalidade na vedação de escolha de regime de bens para maiores de 70 (setenta) anos. São seus objetivos específicos: conhecer o regime de separação de bens obrigatória elencado pelo artigo 1.641, II, do Código Civil brasileiro; investigar se a separação de escolha de regime de bens para maiores de 70 (setenta) anos torna essas pessoas relativamente incapazes para atos da vida civil; verificar na doutrina e legislação pátria se a vedação de escolha de regime de bens para maiores de 70 (setenta) anos pode ser considerada inconstitucional.
O estudo conta com o aporte teórico de autores como: Gasparini (2019), Gonçalves, (2017), Tartuce (2016), dentre outros, bem como do Código Civil brasileiro (2002), da Constituição Federal brasileira (1988) e do Estatuto do idoso (2003).
Nessa perspectiva, procura-se responder ao seguinte questionamento: “por que a vedação de escolha de regime de bens para maiores de 70 (setenta) anos deve ser considerada inconstitucional?”. Para atender a esse questionamento adotou-se a pesquisa bibliográfica, descritiva, com abordagem de natureza qualitativa.
2. VEDAÇÃO DE ESCOLHA DE REGIME DE BENS PARA MAIORES DE 70 (SETENTA) ANOS:
O processo de envelhecimento destaca-se como um dos fenômenos de maior impacto no inicio deste novo século, uma vez que no século passado consolidou-se uma tendência que vem se mostrando ininterrupta e que se constitui por meio da melhoria da qualidade de vida alcançada pelas novas tecnologias da saúde e modos de vida que contribuem para ampliar a longevidade das pessoas.
Assim, o envelhecimento deve ser interpretado como uma grande conquista humana. No entanto, há algumas pessoas que não compreendem dessa forma e passam estigmatizar e rotular as pessoas idosas como decrépitas e incapazes violando os direitos e a dignidade dos idosos colocando-os, muitas vezes, a margem da sociedade, contrariando o inciso III, do art. 3º da Lei nº 8.842/94 - Lei de Políticas Públicas do Idoso – o qual preconiza que o idoso não deve sofrer discriminação de qualquer natureza (BRASIL, 1994).
É que na sociedade contemporânea, onde se cultua aspectos negativos em relação à velhice, acaba-se criando um preconceito diante do idoso, vendo-o como inútil e incapaz, olhando apenas para as suas limitações advindas do processo natural da vida, que é a velhice, e esquecendo-se que existem legislações que cuidam da proteção da pessoa idosa, como a Lei de Políticas Públicas do Idoso - Lei nº 8.842/94, e o Estatuto do Idoso - Lei nº 10.741/03.
A instituição de legislações como essas se dão em maior medida, porque, com o aumento do envelhecimento em todo o mundo, o Brasil também ostenta um crescente número de idosos, e estes requerem proteção jurídica. Informações disponibilizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística afirmam que em solo brasileiro “[...] há mais de 28 milhões de pessoas nessa faixa etária, número que representa 13% da população do país” (IBGE, 2020, p. 1). Esses dados ao indicar o número e percentual de pessoas idosas no Brasil também denotam o quanto as políticas públicas e a legislação devem amparar essa parcela da sociedade.
Nesse contexto, cabe ressaltar que o marco etário que define o ingresso de uma pessoa na velhice é a idade de 60 (sessenta) anos, é que o se observa no artigo 2º da Lei de Políticas Públicas do Idoso - Lei nº 8.842/94, cuja redação traz in verbis que: “Art. 2º Considera-se idoso, para os efeitos desta lei, a pessoa maior de sessenta anos de idade” (BRASIL, 1994, p. 1).
Também preceitua a idade de 60 (sessenta) anos para o ingresso na terceira idade, isto é, a velhice, o Estatuto do Idoso – Lei nº 10.741/03, que traz no seu art. 1º o seguinte texto: “É instituído o Estatuto do Idoso, destinado a regular os direitos assegurados às pessoas com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos” (BRASIL, 2003, p. 1).
Como se verifica, é a partir da idade de 60 (sessenta) anos que a pessoa é definida como idosa na legislação brasileira. Assim, convém explicitar, que as duas leis, tanto a Lei nº 8.842/94, quanto a Lei nº. 10.741/03 buscam assegurar direitos e garantias ao idoso. É o que se verifica no art. 2º da Lei nº 10.741/03 (Estatuto do Idoso), que traz a seguinte previsão:
Art. 2º - O idoso goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhe, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, para preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade (BRASIL, 2003, p. 1).
Nesses termos, resulta observar que, quando o legislador erige leis voltadas para o idoso, significa que ele se preocupa em resguardar seus direitos e garantias constitucionais. É a previsão do artigo 10 caput e inciso VI, da Lei nº. 8.842/94, o qual preceitua que:
Art. 10. Na implementação da política nacional do idoso, são competências dos órgãos e entidades públicos: [...] VI - na área de justiça: a) promover e defender os direitos da pessoa idosa; b) zelar pela aplicação das normas sobre o idoso determinando ações para evitar abusos e lesões a seus direitos (BRASIL, 1994, p. 1).
Contudo, existe discussão acirrada no meio doutrinário questionando a atitude do legislador pátrio no que tange ao regime obrigatório de bens no casamento para a pessoa maior de 70 (setenta) anos. Pois se observa que a Lei nº 12.344/2010, que dá nova redação ao inciso II, do artigo 1.641 do Código Civil brasileiro obriga a pessoa maior de 70 (setenta) anos ao regime de separação de bens quando se casar, denotando que há um entendimento diferenciado quando se trata de pessoa idosa.
Anote-se que o referido artigo diz que: “Art. 1.641 - É obrigatório o regime da separação de bens no casamento: [...] II – da pessoa maior de 70 (setenta) anos” (BRASIL, 2002, p. 1). Nesses termos, entende-se aqui que tal decisão do legislador gera certa insegurança jurídica e leva o intérprete a cogitar se a velhice leva necessariamente à incapacidade jurídica, não sendo, por causa dela, o idoso capaz de decidir sob qual regime de bens pretende se casar.
A restrição obviamente tem intenção de proteger e visa impedir que o idoso maior de 70 (setenta) anos e sua família sejam prejudicados por um casamento de interesse econômico, como afirma o doutrinador Flávio Tartuce lembrando que: “O inciso II do art. 1.641 do CC visa, supostamente, à tutela do idoso, potencial vítima de um golpe do baú, em geral praticado por pessoa mais jovem, com más intenções” (TARTUCE, 2016, p. 142). No entanto, não concorda com esse entendimento Carlos Roberto Gonçalves, ao salientar que:
Tem a jurisprudência proclamado, porém, que a referida restrição é incompatível com as cláusulas constitucionais de tutela da dignidade da pessoa humana, da igualdade jurídica e da intimidade, bem como com a garantia do justo processo da lei, tomado na acepção substantiva (CF, arts. 1º, III, e 5º, I, X e LIV) 324 (GONÇALVES, 2017, p. 610).
Isso porque não há justificativa lógica plausível para que o idoso maior de 70 (setenta) anos seja tratado como absolutamente incapaz apenas para definir o regime de bens do seu próprio casamento, sendo, portanto, uma restrição imprópria, equivocada e inconstitucional.
2.1. O INSTITUTO DO CASAMENTO EM SOLO BRASILEIRO:
Para entender o instituto do casamento é bom ter em mente que ele remonta à Antiguidade e seus primeiros contornos possuíam nuances de sacralidade em civilizações como Romana. Historiadores do direito romano têm atribuído ao casamento um status de associação social, renegando uma condição natural do ser humano. Nem uma nem outra deve ser considerada como origem do casamento, pois desde os primórdios da antiguidade esse instituto calcou-se no sentimento religioso que envolvia os povos antigos. A religião fazia com que a família, instituída pelo casamento, se sentisse um só corpo nessa e na outra vida (COSTA, 2010).
É nesse sentido que se pode destacar que o casamento foi em tempos antigos, a primeira instituição estabelecida pela religião doméstica. Seu caráter sagrado foi cultuado de modo muito sério pelos povos antigos. Duas famílias, com deuses diferentes, ao resolverem casar seus filhos, admitiam que esses passassem a adorar os deuses lares, uns dos outros, agora em comum. Tratava-se de que eles passariam a pronunciar novos ritos e outras adorações. O motivo da união era o afeto mútuo dos nubentes. Assim, verifica-se que o casamento em tempos remotos foi de fato um télos, isto é, uma cerimônia sagrada por excelência (COULANGES, 2002).
Com o passar dos séculos a instituição casamento ganhou novas feições, mas ainda na Idade Média sua constituição se dava por meio do laço religioso doméstico. Porém, durante esse período, nas classes nobres, o casamento esteve longe de qualquer conotação afetiva. Incentivava-se o casamento com o parente mais próximo para manter o culto doméstico e o poder feudal no próprio seio familiar bem como legitimar a própria família (VENOSA, 2003).
Com a Igreja Católica o casamento manteve seu aspecto sacral, mas não circunscrito ao âmbito domestico e familiar. O período pagão foi deixado para trás e uma nova característica do casamento assomou-se. Observe-se que em sua evolução:
O modelo conjugal cristão instituiu a liberdade e a igualdade no consentimento, mas não concedeu espaço para o desejo. O conceito de casal foi sobreposto pelo de família, estabelecendo que a relação sexual no casamento, única permitida, não podia visar ao prazer, mas apenas à procriação. Manteve-se dominante a indissolubilidade do casamento, instituída para refletir a imagem de pureza da união de José com Maria e evitar a manipulação dos interesses econômicos, tão comuns naquela época (COSTA, 2020, p. 22).
Conforme se verifica, o casamento não possui origem natural ou social, mas religiosa. Além disso, pode-se frisar que: “Cada sociedade esculpiu um ou mais modelos institucionais para operacionalização de ações relativas à familiaridade e a conjugalidade” (COLARES, 2001, p. 1).
O que se deve ter em consideração aqui é que o casamento no decorrer dos tempos perdeu muito das suas características de instituição religiosa (temporal), passando a ser considerado de caráter secular. Em solo brasileiro, durante alguns séculos, o casamento também possuiu envergadura religiosa, basta ver que:
A Constituição de 1824 fez vigorar no Brasil, como religião oficial, o catolicismo, logo, continuando-se a aplicar as regras outrora instituídas com relação ao casamento. Por outro lado, diante dos problemas causados pelo aumento do fluxo migratório e das relações afetivas entre praticantes de religiões diversas do catolicismo, a Lei nº 1.144, de 11.09.1861 e o Decreto de 17.04.1863 passaram a regular a possibilidade de casamentos válidos entre católicos e não católicos. Somente com a Constituição de 1891 foi instituído no Brasil o casamento laico, que passou a ser único reconhecido como válido (art. 72, § 4º). Com a Lei nº 1.110/50 o casamento religioso passou a equivaler ao civil, se observadas as prescrições legais quanto ao rito do matrimônio secular (art. 163, §§ 1º e 2º, da Constituição de 1946; art. 175, §§ 2º e 3º, da Constituição de 1967; art. 226, § 2º, da Constituição de 1988) (COLARES, 2001, p. 1).
Nesses termos, verifica-se que no Brasil da atualidade o casamento é uma instituição secular, e que: “Sob o prisma de direito, o casamento estabelece uma conexão jurídica entre o casal, a fim de configurar a convivência de assistência e de integridade físico-psíquica, além da concepção, educação e amparo dos filhos advindos desta união” (DRESCH, 2016, p. 1).
Revela a induvidosa matéria que o casamento em solo brasileiro é um ato civil realizado por duas pessoas que celebram a união conjugal como o objetivo de constituir uma família. É caracterizado pela livre vontade dos cônjuges em fazer e manifestar seus desejos seguindo os ditames legais, sobretudo para decidir qual regime de bens adotará no casamento (PEREIRA; FERREIRA; CARVALHO, 2017). Reconhecido pela Constituição Federal brasileira de 1988, o casamento encontra-se previsto no art. 226, cuja redação diz que:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 1º O casamento é civil e gratuita a celebração. § 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei. § 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento (BRASIL, 1988, p. 1).
Não há qualquer dúvida de que o casamento é um instituto jurídico amparado legalmente pela Constituição Federal de 1988. Segue nesse passo a lei infraconstitucional de nº 10.406/2002 (Código Civil), que traz a previsão legal do instituto nos seus arts. 1.511 e 1.512:
Art. 1.511. O casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges. Art. 1.512. O casamento é civil e gratuita a sua celebração. Parágrafo único. A habilitação para o casamento, o registro e a primeira certidão serão isentos de selos, emolumentos e custas, para as pessoas cuja pobreza for declarada, sob as penas da lei (BRASIL, 2002, p. 1).
Bem se vê que o casamento é reconhecido pelo ordenamento pátrio, que inclusive facilita a sua celebração fazendo-a ser gratuita. No entanto, deve-se destacar que ainda não há consenso sobre a sua natureza jurídica, isto é, se ele é um contrato, uma instituição, ou um ato complexo, de caráter híbrido, misto ou eclético:
Para a corrente contratualista, o casamento é um negócio jurídico que depende da livre manifestação de vontade das partes para sua realização, de modo a produzir seus efeitos patrimoniais regulados pelo regime de bens. Para os institucionalistas, nada mais é que uma instituição, pois o mesmo é regido por normas de ordem pública, que define de forma pormenorizada seus efeitos jurídicos, impondo deveres e estabelecendo os direitos dos cônjuges, não podendo ser mitigados pela livre vontade das partes. Para os ecléticos, a autonomia da vontade das partes se resume apenas à liberdade de escolher o parceiro, o regime de bens e a permanência ou não da relação familiar (JATOBÁ, 2014, p. 1).
Diante dessa observação, cabe salientar que no Brasil a doutrina majoritária inclina-se para a terceira corrente, que defende o casamento como contrato na sua formação, e uma instituição no seu desdobramento, sendo ele, portanto, de natureza mista, híbrida e eclética. Clóvis Beviláqua que, nas mesmas palavras, leciona:
O casamento é um contrato bilateral e solene, pelo qual um homem e uma mulher se unem indissoluvelmente, legalizando por ele suas relações sexuais, estabelecendo a mais estreita comunhão de vida e de interesses, e comprometendo-se a criar e a educar a prole, que de ambos nascer (BEVILÁQUA, 1976, p. 46).
Nesses termos, percebe-se que o matrimônio pode ser interpretado como um contrato bilateral, porque é contraído pelas partes de espontânea vontade, possui validade e eficácia, e também produz efeitos regulados pelo regime de bens. Dessa forma, convém lembrar que enquanto nubentes o casal já poderá escolher desde logo a situação que regerá o regime de bens durante a vigência da união patrimonial.
Desse modo, sendo da própria natureza do casamento a bilateralidade, ou seja, a livre vontade de ambos os nubentes de casar-se, é lógico que, também, está incluída nesta autonomia a escolha do regime de bens a que ambos os nubentes se submeterão, devendo ser esta plena, da mesma maneira que a escolha de casar, pois essa escolha também “[...] determinará como o casamento se resolverá se ocorrer dissolução, seja através da morte de um dos nubentes ou através de sentença judicial transitada em julgado decretando anulação ou divórcio” (GASPARINI, 2019, p. 1). Assim, é mister conhecer como se dá o regime de bens no casamento.
2.2. A PREVISÃO LEGAL DO REGIME DE BENS NO CASAMENTO:
Antes de adentrar a previsão legal do regime de bens no casamento em solo brasileiro deve-se entender que os bens a que se referem o artigo 1.641, do Código Civil de 2002, quando obriga a pessoa maior de 70 (setenta) ao regime de separação de bens quando pretender casar, são os bens patrimoniais que o idoso já possuía antes do casamento, como carro, fazenda, sítio, prédio residencial urbano ou rural, dentre outros.
Desse modo, convém notar que o regime da separação de bens preconizado pelo Art. artigo 1.641, do CC/2002, importa na incomunicabilidade dos bens que o idoso e sua noiva possuíam ao se casar. Além disso, dos bens que irão adquirir na constância do casamento, havendo por isso mesmo, dois patrimônios distintos: o do marido (maior de 70 (setenta) anos) e o da mulher. Mas não é só isso, porque o ativo de cada também é separado, assim como o passivo, que são as dívidas (FERRIANE, 2012). Investido dessa compreensão, destaca-se que por regime de bens entende-se o:
Regime de bens é o conjunto de regras que disciplina as relações econômicas dos cônjuges, quer entre si, quer no tocante a terceiros, durante o casamento. Regula especialmente o domínio e a administração de ambos ou de cada um sobre os bens anteriores e os adquiridos na constância da união conjugal. (GONÇAVES, 2017, p. 570).
Como se verifica, são regras que disciplinarão as relações patrimoniais entre os cônjuges e entre estes e terceiros. Nesses termos, deve-se frisar que há cinco opções de escolha de regime de bens, sendo elas:
1. Comunhão universal de bens: Todos os bens dos cônjuges se comunicam, quer sejam eles adquiridos antes ou após o casamento, além de suas dívidas passivas, salvo as exceções previstas nos incisos I a V do art. 1.668; 2. Comunhão parcial de bens: o regime que vigora no casamento se os consortes não fizerem pacto antenupcial, ou, se o fizeram, for ele nulo ou ineficaz (art. 1.640); 3. Separação obrigatória de bens: Art. 1641 – a) Pessoas que o celebrarem com infração ao artigo 1.523, I, II, III e IV; b) Da pessoa maior de 60 anos (Obs.: art. 45, Lei 6.515/77): c) De todos os que dependem, para casar, de autorização judicial (artigos 1.517, 1.519, 1.634, III, 1.747, I e 1.774, CC); 4. Separação Total de bens: Cada cônjuge conserva, com exclusividade, o domínio, posse e administração de seus bens presentes e futuros [...] (ANDRADE, 2018, p. 3).
Diante da citação supra, verifica-se que há uma variedade de regimes de bens que a lei coloca à disposição dos nubentes, podendo, inclusive, combiná-los entre si, formando um regime misto. Além disso, de acordo com o caput do art. 1.639 do Código Civil, há a livre estipulação sendo lícito aos noivos que (antes mesmo do casamento) estipulem o que lhes aprouver quanto aos seus bens (É lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver.).
Por esse dispositivo (artigo 1.639, CC), novamente, a lei assegura, quanto ao regime de bens, a livre estipulação pelos nubentes, daí surgir o conflito com a regra apontada pelo artigo 1.641, inciso II, que determina o regime obrigatório de separação de bens, para maior de 70 (setenta) anos. Essa vedação da escolha do regime de bens pelos maiores de 70 (setenta) anos suscita o questionamento se há aí inconstitucionalidade, uma vez que o art. 1º do Código Civil brasileiro impera que: “Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil” (BRASIL, 2002, p. 1).
No entanto existem ressalvas que se encontram prescritas no art. 3º (da capacidade absoluta) e art. 4º (da capacidade relativa) do referido código (Lei nº. 10.406/2002), como se verifica:
Art. 3º - São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos; Art. 4° São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer: I - os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos;II - os ébrios habituais e os viciados em tóxico; III - aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade; IV - os pródigos. [...] (BRASIL, 2002, p. 1).
Tendo em vista que o art. 3º se detém apenas nos menores de 16 (dezesseis) anos e que o art. 4º do Código Civil elenca um rol taxativo, no qual não se encontra os idosos, questiona-se se é certo interpretar que eles são incapazes. Observe-se que o legislador civilista escolheu o ser humano como aquele que é detentor potencial de titular relações jurídicas, e deu-lhe aptidão para a prática dos atos civis. Dessa escolha surge a capacidade jurídica a qual tem como eixo a aptidão para adquirir direitos e admitir deveres.
Nessa perspectiva, há de ressaltar que existe a capacidade de direito e a capacidade de fato. Para que a primeira seja efetivada, basta só o nascimento com vida, já a segunda requer o agir, o querer e o entendimento do indivíduo perante as situações, mas isso não exaure a questão da capacidade porque, como já se observou a legislação não se negou em apontar os tipos de incapacidade que abrangem certos indivíduos, assim tem-se:
A incapacidade absoluta: elencada no art. 3º do Código Civil, onde o legislador continuou a entender que o menor de 16 anos de idade não tem discernimento necessário para praticar por si só os atos da vida civil, não tendo, portanto, capacidade de fato. Entretanto, como tem capacidade de direito - adquirida do nascimento com vida – a lei indica pessoas que agem em nome do incapaz para suprir esta incapacidade: os representantes legais (CIELO, 2013, p. 1).
Com base na citação supra, interpreta-se que a pessoa idosa não se encontra inserida em nenhuma dessas modalidades de incapacidades. Em vista disso é imprescindível compreender porque o legislador traz a obrigação explicita do regime de separação de bens no casamento quando se tratar de pessoas maiores de 70 (setenta) anos, tratando-as como incapazes. Não há qualquer dúvida que:
A capacidade é a medida da personalidade, a forma de exercitar a personalidade, exercer os atributos através das relações jurídicas em que a pessoa é sujeito das relações jurídicas, exercendo seus direitos através do seu regime de capacidade (GASPARINI, 2019, p. 1).
É nesse sentido, que o legislador erigiu o art. 1º do Código Civil brasileiro, o qual destaca que toda pessoa tem capacidade de direitos e deveres na ordem civil (BRASIL, 2002). Agora, se ela pode exercer a capacidade por si própria, é o que o legislador vai demarcar quando elenca no Código Civil o art. 3º, que trata da capacidade absoluta, e o art. 4º respeitante à capacidade relativa.
Nesses termos, é de se notar que, implicitamente, o legislador pátrio trata os maiores de 70 (setenta) anos como absolutamente incapazes quando tolhe sua capacidade civil indicando que eles não são capazes de escolher o regime de bens quando for casar e lhe impõe o regime da separação de bens. Entende-se que a razão pela qual o legislador tomou essa atitude tem como eixo a preocupação em por a salvo essas pessoas de golpes envolvendo casamento exclusivamente por interesse estritamente econômico.
No entanto, segue-se o entendimento de que o inciso II, do art. 1.641 do Código Civil modificado pela Lei nº 12.344/2010 “[...] impede aos maiores de 70 anos a liberdade de escolha do regime de bens e cria, indiretamente, uma incapacidade, de exercício de direito, sem o devido processo legal” (MACHADO, 2017, p. 1).
Compreende-se que a capacidade é o bastião jurídico em que se assenta a possibilidade de exercer direitos e atos civis, e que a retirada da capacidade dos maiores de 70 (setenta) anos de escolher em que regime de bens deseja casar tira sua liberdade de expressão, vontade e dignidade e viola os seus direitos e garantias fundamentais, como o princípio da dignidade humana elencado no inciso III, do art. 1º da Constituição Federal brasileira de 1988, bem como o princípio da isonomia, imperativo constitucional erigido no caput do art. 5º da Carta Maior.
Nesse contexto, cabe salientar que já existe uma evolução no entendimento de magistrados acerca do tema, decidindo que a separação de bens não é obrigatória para idoso quando o casamento for precedido de união estável. É a decisão unânime da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, no ano de 2016, em um processo que corre em segredo de justiça e que traz o seguinte conteúdo:
O regime de separação de bens deixa de ser obrigatório no casamento de idosos se o casal já vivia um relacionamento em união estável, iniciado quando os cônjuges não tinham restrição legal à escolha do regime de bens. De acordo com o entendimento dos ministros, não há necessidade de proteger o idoso de “relacionamentos fugazes por interesse exclusivamente econômico”, interpretação que “melhor compatibiliza” com o sentido da Constituição Federal, segundo o qual a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento (STJ, 2016, p. 1).
Não há qualquer dúvida que essa decisão abre precedentes para o reconhecimento da capacidade da pessoa maior de 70 (setenta) anos de escolher em que regime de bens deseja casar. Por outro lado, não cabe se descuidar do entendimento do legislador em defender o patrimônio dos maiores de 70 (setenta) anos, que podem ser induzidos a casamento, onde o outro nubente busca apenas acercar-se de seus bens patrimoniais. Entende-se que essa é uma concepção descabida do legislar, uma vez que:
Casamentos por interesses patrimoniais podem existir em todas as idades. Deslumbramentos e paixões descontroladas podem atingir a todos. Porém, a vulnerabilidade emocional decorre muito mais do temperamento, da personalidade e da história de vida da pessoa do que propriamente da idade. Por isso, o Código Civil precisa ser modificado quanto a esse aspecto (FERRIANE, 2012, p. 1).
Essa concepção decorre do fato de se não reconhecer frente à legislação vigente que o maior de 70 (setenta) anos é pessoa incapaz de contrair direitos e assumir deveres. Por outro lado, traz a presunção (praticamente absoluta) de que a noiva, seja ela quem for, pode estar cobiçando o patrimônio do idoso. Em vista disso, entende-se que a complexidade da matéria justifica essa estrita análise sobre a invalidez, sob o aspecto constitucional e infraconstitucional, na vedação de escolha de regime de bens para maiores de 70 (setenta) anos.
Bem por isso, a necessidade de um estudo na doutrina e na legislação pátria para verificar se a vedação de escolha de regime de bens para maiores de 70 (setenta) anos pode ser considerada inconstitucional.
3. INCONSTITUCIONALIDADE DA VEDAÇÃO DE ESCOLHA DE REGIME DE BENS PARA MAIORES DE 70 (SETENTA) ANOS:
Já se disse algures que o casamento é instituição jurídica prevista no ordenamento jurídico brasileiro, constante nos arts. 1.511 e 1.512 da Lei nº 10.406/2002, que estabelece o Código Civil (CC) brasileiro. Cabe adicionar, que a previsão legal do casamento no Brasil remonta ao Período Colonial e decorre ainda das “[...] Ordenações Filipinas (publicada sob o reinado de Philipe III) o qual apenas deixou de ser efetivamente utilizado no Brasil com a publicação do Código Civil Brasileiro de 1916” (VIEIRA; SILVA, 2015, p. 3).
Vale observar desde logo, que nessas Ordenações já havia a previsão legal patrimonial decorrente do casamento, no Livro IV, Titulo XLVI, denominado Como o marido e mulher são meeiros em seus bens. É o que se observa in verbes: “Todos os casamentos feitos em nossos Reinos e senhorios se entendem serem feitos per carta de a metade: salvo quando entre as partes outra cousa for acordada e contractada, porque então se guardará o que entre elles for contractado” (ALMEIDA, 1870, p. 832).
Note-se que a previsão do regime de bens apontado pelas Ordenações Filipinas em seu Titulo XLVI é a carta a metade, isto é, a “[...] comunhão universal de bens, de modo que todos os bens do casal pertencem igualmente a ambos os cônjuges” (VIEIRA; SILVA, 2015, p. 3). Vale notar, que em sua evolução o instituto do casamento no Brasil mantém no Código Civil de 1916 o regime da comunhão universal de bens, mas já cria uma exceção prevendo a separação de bens no caso do maior de sessenta anos e da maior de cinquenta nos, como se constata na redação do art. 258, parágrafo único, inciso II:
Art. 258. Não havendo convenção, ou sendo nula, vigorará, quanto aos bens, entre os cônjuges, o regime da comunhão universal. Parágrafo único. É, porém, obrigatório o da separação de bens no casamento: [...] II. Do maior de sessenta e da maior de cinquenta anos (BRASIL. 1916, p. 1).
Isso era assim porque no início do século XX a expectativa de vida média do brasileiro osculava entre 50 e 60 anos de idade. Observando de modo atento o art. 258 do Código Civil de 1916 infere-se que já havia previsão legal da separação de bens no casamento quando o homem tivesse idade maior que sessenta anos e a mulher fosse maior que cinquenta anos de idade. Nesse passo, é possível presumir que a previsão legal da referida legislação visava proteger a pessoa com mais idade do famoso golpe do baú dispensando especial atenção aos seus bens.
Com as novas tecnologias, maiores avanços na área da saúde e da genética, a expectativa de vida avançou, de modo que na atualidade fala-se em velhice ou terceira idade quando o indivíduo já possui a idade de 60 (sessenta) anos, como insculpe o Estatuto do Idoso – Lei nº 10.741/03 (BRASIL, 2003). É nessa perspectiva que foi apresentado em fevereiro de 2007, na Câmara dos Deputados Federais, em Brasília, o Projeto de Lei de nº 108/2007 de autoria da Deputada Solange Amaral (PFL) com vistas a alterar o inciso II do Art. 1.641 da Lei n° 10.406, de 10 de janeiro de 2002. A justificativa do referido PL assentou-se nas seguintes considerações:
[...] Tal alteração estipulou que homens e mulheres, quando maiores de 60 anos, teriam, obrigatoriamente, de casar-se segundo o Regime de Separação de Bens. Hoje, no entanto, em pleno Século XXI, essa exigência não mais se justifica [...] graças aos investimentos realizados em projetos de saúde, saneamento básico, educação, eletrificação e telefonia. [...] Em virtude dessa realidade, impõe-se seja alterado o inciso II do Artigo 1.641 do Código Civil Brasileiro, com o objetivo de adequá-lo a uma nova realidade, para que o Regime Obrigatório de Separação de Bens só seja exigível para pessoa maior de 70 anos (BRASIL, 2007, p. 2).
É certo e incontroverso, que a legislação brasileira já cuidava da proteção patrimonial da pessoa com idade maior de sessenta anos, e que o Projeto de Lei 108/2007 acima citado pede a ampliação da idade para 70 anos, por meio da modificação do inciso II do Art. 1.641 da Lei n° 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
Esse projeto foi aceito e referendado pela Lei nº 12.344/2010, que deu nova redação ao artigo 1.641 do Código Civil brasileiro, o qual preconizando em seu inciso II que à pessoa maior de 70 (setenta) anos é obrigatório o regime de separação de bens no casamento (BRASIL, 2010). Pela evolução que teve o entendimento no ordenamento jurídico pátrio sobre o regime de separação de bens da pessoa maior de 70 anos é de se observar que o legislador não encontrou óbices para instituí-lo, apenas “[...] equiparou o homem à mulher no que tange à idade, convencionado 70 anos para ambos os sexos para fins de imposição do regime patrimonial da separação obrigatória de bens” (FIGUEIREDO; CABRAL, 2012, p. 11).
No entanto, a mudança legal perdura em erro, pois, em que pese tenha sido assim, a discussão acerca da constitucionalidade ou não da separação de bens da pessoa maior de 70 que contrai casamento pode ser posta face a doutrina e a legislação na tentativa de se encontrar dispositivos e/ou argumentos que confirmem a inconstitucionalidade na vedação de escolha de regime de bens para maiores de 70 (setenta) anos prevista no artigo 1.641, II, do Código Civil brasileiro, de forma que a sua alteração de 60 (sessenta) para 70 (setenta) anos, baseando-se apenas na ilusória presunção absoluta de incapacidade da pessoa que se encontra nesta faixa de idade não trouxe absolutamente nenhuma mudança relevante, no caso, pois, ainda assim, faltam critérios objetivos para provar a incapacidade da parte para praticar o ato civil do casamento e a respectiva escolha do regime de bens, de forma que continua a haver pura discriminação legal.
É bom ter em mente que, ao se falar em inconstitucionalidade, se esta fazendo referência à legislação que não se enquadra nos princípios constitucionais. Isso é assim por que: “A Constituição Federal - CF/88 é suprema no ordenamento jurídico brasileiro, impondo princípios que devem ser observados para a elaboração de outras leis de inferior hierarquia e dela decorrentes” (FIGUEIREDO; CABRAL, 2012, p. 2). Nesse passo, segue-se destacando a percepção de Tainara Gasparini, lembrando que:
A norma prevista no artigo 1641, II, do Código Civil de 2002, que estabelece o regime de separação absoluta de bens para os casamentos realizados por pessoas maiores de 70 anos, é objeto de severas críticas não apenas pelos doutrinadores brasileiros, mas também pelos poderes Judiciário e Legislativo (GASPARINI, 2019, p. 1).
Com efeito, isso é assim porque a referida norma atenta contra a capacidade da pessoa idosa, imputando-lhe incapacidade que pode não possuir (e, na maioria das vezes, realmente, não tem). Não obstante, muitos projetos de lei foram interpostos na Câmara Federal com vistas a revogar o dispositivo instituído no art. 1.641 do Código Civil, inciso II, que trata da obrigatoriedade do regime de separação de bens no casamento quando se tratar de pessoa maior de 70 (setenta) anos de idade, dada a sua inconstitucionalidade já que fere o princípio basilar da isonomia previsto no art. 5º da Constituição Federal (FIGUEIREDO; CABRAL, 2012). É o que se depreende do referido dispositivo quando confrontado com o art. 5º da CF/88:
Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; [...] LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal (BRASIL, 1988, p. 1).
Diante do artigo supramencionado, constata-se flagrante a inconstitucionalidade da vedação do inciso II, do art. 1.641 do Código Civil a escolha de regime de bens para maiores de 70 (setenta) anos.
Contrapondo-se à Constituição Federal, o referido dispositivo vai de encontro até mesmo ao próprio Código Civil onde também se encontra redigido o art. 1.639, no qual está insculpido que: “É lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver” (BRASIL, 2002, p. 1). E não apenas ele como também no art. 1640, cuja redação diz que:
Art. 1.640. Não havendo convenção, ou sendo ela nula ou ineficaz, vigorará, quanto aos bens entre os cônjuges, o regime da comunhão parcial. Parágrafo único. Poderão os nubentes, no processo de habilitação, optar por qualquer dos regimes que este código regula. Quanto à forma, reduzir-se-á a termo a opção pela comunhão parcial, fazendo-se o pacto antenupcial por escritura pública, nas demais escolhas (BRASIL, 2002, p. 1).
Os referidos artigos nada dizem sobre a idade deixando aberto aos nubentes a escolha de regime sem qualquer óbice. Bem por isso, Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald se posicionarem apontando a inconstitucionalidade do inciso II do art. 1641 do Código Civil, dizendo que é:
[...] nítida violação aos princípios constitucionais. Efetivamente, trata-se de dispositivo legal inconstitucional, às escâncaras, ferindo frontalmente o fundamental princípio da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III) por reduzir a sua autonomia como pessoa e constrangê-lo pessoal e socialmente, impondo uma restrição que a norma constitucional não previu (FARIAS; ROSENVALD, 2010, p. 244).
Infere-se da citação acima que os doutrinadores se posicionam contra a vedação de escolha de regime de bens para maiores de 70 (setenta) anos por considera-la inconstitucional. Trilha nesse mesmo caminho, Jovina d'Avila Bordoni ao frisar que:
A regra do artigo 1.641, II, do Código Civil estabelece restrições na esfera volitiva e patrimonial dos septuagenários, em clara afronta aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, igualdade e liberdade (BORDONI, 2016, p. 2).
Concorda-se com a posição acima, adicionando que a inconstitucionalidade do inciso III ostentado no art. 1641 do Código Civil pode ser apontada salientando-se que a Constituição Federal de 1988, veda a discriminação pela idade e, além disso, se preocupa em garantir proteção especial a pessoa idosa, pelo que não é possível concordar quando seus direitos são tolhidos de modo frontal, como no caso da vedação da escolha de regime de bens para maiores de 70 (setenta) anos.
Para Flávio Tartuce a vedação em epígrafe representa verdadeiro preconceito contra o idoso introduzido pela lei infraconstitucional, como se a pessoa que tem 70 (setenta) anos ou mais não fosse capaz de gozar da presunção absoluta de sua capacidade (sem direito a contraditório), e não pudesse contrair casamento com comunhão de bens (TARTUCE, 2016, p. 143). Reportando-se sobre a temática Maria Helena Diniz faz verdadeira crítica sobre a vedação do inciso II, do art. 1.641 do Código Civil a escolha de regime de bens para maiores de 70 (setenta) anos, assinalando que:
Tal restrição, convenhamos, é manifestamente inconstitucional, pois fere o princípio da dignidade da pessoa humana, na medida em que comporta uma intervenção na vida íntima do indivíduo, limitando a sua autonomia privada – o que não condiz com a principiologia do Estado Democrático de Direito (DINIZ, 2011, p.132).
Concorda-se com a citação acima adicionando que não há qualquer dúvida que a vedação de escolha de regime de bens para maiores de 70 (setenta) anos é manifestamente inconstitucional. Pois instituído o inciso II, no art. 1.641 do Código Civil, o mesmo entrou em conflito com alguns princípios constitucionais, como o principio da isonomia (art. 5º, caput), da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), dentre outros.
3.1. INCONSTITUCIONALIDADE DE NATUREZA PARCIAL:
É certo que, apesar de ser certo que não se pode imputar, mesmo que por lei, a uma pessoa uma presunção absoluta de incapacidade, apenas fundamentando-se em critérios esdrúxulos, sob pena de inferir-se em verdadeiro preconceito infundado sob aquele indivíduo, de forma que se cria uma opinião preconcebida e sem qualquer fundamento lógico, baseada apenas no senso comum, como faz o artigo 1.641, II, do Código Civil brasileiro, ao exigir que as pessoas maiores de 70 (setenta) anos estabeleçam o regime de separação absoluta de bens no casamento, tem-se, ainda que tal regra pode vir a ter aplicação produtiva e fundada no caso concreto, afetando justamente aquele a quem ela se dirige: o maior de 70 (setenta) anos que seja realmente incapaz, em virtude da sua idade, doença ou qualquer outra causa, de escolher, por livre vontade, o regime de bens do seu casamento e esteja prestes a sofrer algum tipo de golpe de natureza econômica.
Por isso, tem-se que a remoção total do artigo 1.641, II, do Código Civil brasileiro do ordenamento jurídico, sob o argumento de total inconstitucionalidade seria infundada, vez que, em realidade o dispositivo é incompleto, pois, como dito, a proibição de escolha de regime de bens para absolutamente incapazes mostra-se plenamente cabível face a possível abuso, de forma que faltam apenas critérios objetivos para constatar ou não a incapacidade (absoluta ou relativa) da parte, pois a incapacidade, e, ainda, a possibilidade de sofrer um golpe de natureza econômica não atinge apenas os idosos incapazes, mas qualquer pessoa que esteja em estado de vulnerabilidade psicológica, independentemente da sua idade.
É necessário que tais critérios objetivos que possam comprovar a incapacidade, como laudo de médico psicólogo ou até mesmo uma avaliação da capacidade da parte nubente pelo próprio juiz, estejam previsto na lei, de forma que a incapacidade não se restrinja exclusivamente ao maior de 70 (setenta) anos de idade, mas ao verdadeiro incapaz, que é quem realmente necessita da tutela jurídica.
Portanto, defende-se aqui a inconstitucionalidade do artigo 1.641, II, do Código Civil brasileiro, no sentido de haver a falta de critérios reais que comprovem ou não a incapacidade da parte nubente e não no sentido de ser inconstitucional a proibição da prática de certos atos civis por pessoas incapazes (até, em verdade, porque não é), de forma que enquanto continuar a exigir que as pessoas maiores de 70 (setenta) anos estabeleçam o regime de separação absoluta de bens no casamento, sem maiores critérios que permitam especificar a situação de cada indivíduo, no caso concreto, o artigo 1.641, II, do Código Civil brasileiro gozará de inequívoca inconstitucionalidade, com fundamento em todos dos argumentos já expostos neste artigo.
4. CONCLUSÃO:
É certo pensar que, ao instituir o inciso II, do art. 1.641 do Código Civil de 2002, via redação dada pela Lei nº 12.344/2010, o legislador pátrio se preocupou com a pessoa maior de 70 (setenta) anos, procurando pô-la a salvo de golpes envolvendo casamento exclusivamente por interesse econômico. Por outro lado, não se exclui o entendimento de que esse dispositivo pode colocar essa pessoa de direito como absolutamente incapaz quando lhe veda a escolha do regime de bens que lhe aprouver e lhe impõe obrigatoriamente o regime de separação de bens no casamento.
Diante dessas observações é possível dizer que o presente estudo atingiu seus objetivos, uma vez que permitiu concluir que a vedação de escolha de regime de bens para maiores de 70 (setenta) anos pode ser considerada inconstitucional, pois se constatou na pesquisa bibliográfica que a doutrina majoritária integrada por Maria Helena Diniz, Flávio Tartuce, Jovina d'Avila Bordoni, Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald, Ramon Gama Figueiredo, Hildeliza Lacerda Cabral, entre vários, se posicionam pela inconstitucionalidade da vedação da escolha de regime de bens para maiores de 70 (setenta) anos, instituída pelo inciso II, do art. 1.641 do Código Civil de 2002.
Diante dos resultados encontrados sugere-se ao legislador pátrio e aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) que revejam o dispositivo ostentado no artigo 1.641 Código Civil de 2002 que veda a escolha de regime de bens para maiores de 70 (setenta) anos, uma vez que é notória sua inconstitucionalidade assinalada tanto pela majoritária corrente doutrinária, quanto pelo conflito que causa com alguns princípios constitucionais.
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Bacharelando em Direito pela UNIFSA - Universidade Santo Agostinho (antiga FSA)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RODRIGUES, Júlio D'lucca Pereira. A vedação de escolha de regime de bens para maiores de 70 (setenta) anos e sua inconstitucionalidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 dez 2020, 04:09. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55841/a-vedao-de-escolha-de-regime-de-bens-para-maiores-de-70-setenta-anos-e-sua-inconstitucionalidade. Acesso em: 23 dez 2024.
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