KELLY NOGUEIRA DA SILVA GONÇALVES
(Orientadora) [1]
RESUMO: O presente estudo possui o seguinte objetivo: Analisar o princípio da Boa-fé como parte do Ordenamento Jurídico Brasileiro da forma como foi estabelecido no Código Civil e sua contribuição para o mesmo princípio estabelecido no Código de Defesa do Consumidor. O estudo visa expor a ação ou omissão entre contratado e contratante medite a uma relação contratual, que por entre si e de comum e vontade das partes rege o princípio da boa-fé, norteado pelo Direito do Civil e o Código de Defesa do Consumidor. O estudo se justifica em virtude da repercussão e importância do tema. Isso porque os contratantes devem observar o princípio da boa-fé desde as negociações preliminares até a conclusão do contrato, tanto a boa-fé objetiva quanto a subjetiva. Para alcançar o problema proposto, foi feito um estudo bibliográfico, analisando as doutrinas, literaturas, julgadas e legislações referentes ao tema proposto. Em sede de conclusão, observou-se que a boa-fé impõe às partes de qualquer relação jurídica agir, umas em relação às outras, com total transparência.
Palavras-Chave: Boa fé. Contratos. Imóveis.
ABSTRACT: The present study has the following objective: to analyze the principle of Good Faith as part of the Brazilian Legal Order as established in the Civil Code and its contribution to the same principle established in the Consumer Protection Code. The study aims to expose the action or omission between contractor and contractor meditate on a contractual relationship, which between themselves and of common and will of the parties governs the principle of good faith, guided by Civil Law and the Consumer Protection Code. The study is justified due to the repercussion and importance of the theme. This is because contractors must observe the principle of good faith from preliminary negotiations until the conclusion of the contract, both objective and subjective good faith. In order to achieve the proposed problem, a bibliographic study was made, analyzing the doctrines, literature, judgments and legislation regarding the proposed theme. I n conclusion, it was observed that good faith is a basic principle of our legal system, which requires the parties of any legal relationship to act, in relation to each other, with total transparency, loyalty and respect, living up to trust that was deposited in them.
Keywords: Good faith. Contracts. Properties.
1.INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por objetivo a análise do princípio da Boa-fé com enfoque nos contratos de compra e venda de imóveis. Uma das grandes mudanças, se não a mais importante, trazida pelo novo Código Civil em relação aos princípios contratuais, foi que ao se celebrar um contrato, este deverá atender a uma função social.
No Estado Liberal, as partes envolvidas numa relação contratual eram livres para estabelecer, de acordo com suas respectivas vontades, o conteúdo do contrato. A liberdade contratual era quase ilimitada e as partes mais vulneráveis acabavam sendo prejudicadas e submetidas a situações de exploração, abuso e desvantagem. Como o contrato fazia-se lei entre as partes no liberalismo, o Estado não podia intervir na relação contratual, por mais que houvesse um explícito desequilíbrio contratual e uma posição de benefícios para um e onerosidade para o outro.
Ao inserir a norma do art. 421 no Código Civil de 2002, o legislador quis evitar que esse desequilíbrio continuasse prevalecendo. A função social do contrato existe exatamente para impor limites a liberdade contratual. O fato de um contrato ter que atender à uma função social não exclui a sua função individual. É preciso apenas que haja uma conciliação entre os interesses coletivos e dos envolvidos no contrato. A função social também não existe simplesmente para beneficiar sempre a parte mais fraca da relação contratual.
O legislador não quis estabelecer uma defesa peculiar ao mais vulnerável, e sim, que existisse somente uma forma de se manter e conservar um equilíbrio no contrato e que o interesse social nunca entrasse em contradição com os de alguma parte do negócio jurídico efetuado. Se caso isso acontecesse, a liberdade contratual praticada não teria sido plena.
O estudo visa expor a ação ou omissão entre contratado e contratante medite a uma relação contratual, que por entre si e de comum e vontade das partes rege o princípio da boa-fé, norteado pelo Direito do Civil e o Código de Defesa do Consumidor.
A metodologia se dará através do levantamento de bibliográfico, aparado por doutrinas, artigos, jurisprudência e legislações acerca do tema proposto
No Estado Liberal, o Código Civil de 1916 era demasiado rígido, em reflexo do Positivismo Jurídico que prevalecia na época. O sistema jurídico criado neste momento histórico tinha como objetivo dar à sociedade o máximo segurança jurídico e previsibilidade possível, portanto limitava a discricionariedade do magistrado no poder de condução e solução do litígio.
Segundo João Hora Neto (2016, p.39): “Trata-se da era da segurança, em que não se admitia lacunas na lei, e da qual o juiz era mero artífice, um instrumento emblemático da segurança jurídica, um aplicador autônomo do direito posto, do direito contido no Código[...]”
O Código de 1916 era extremamente patrimonialista, ele priorizava proteger os bens do indivíduo em detrimento dele próprio e o Estado possuía um poder mínimo de intervenção na vida dos indivíduos, tendo os mais vulneráveis que se submeter às condições impostas por aqueles que detinham uma vantagem econômica sobre os outros.
Com a Revolução Industrial, o iluminismo, a Revolução Francesa, entre outras influências, houve a passagem para o Estado social. Nele, o sistema jurídico passou a ser mais aberto, isto é, havia uma maior flexibilidade para o juiz decidir discricionariamente cada caso concreto da forma que considerasse mais justa “[...] podendo-se valer de conceitos extrajurídicos ou metajurídicos auferidos da economia, sociologia, biologia, engenharia, enfim, [...] ciências que de alguma forma venham a colaborar para uma decisão mais justa no caso concreto” (HORA NETO, 2016, p.42).
No Estado Social, a igualdade, inicialmente formal, passa a ser material. As diferenças e o desequilíbrio contratual presentes na vida da sociedade, passam a ser reconhecidos. O Estado – que antes não podia intervir nas relações contratuais – nesta fase começa a tutelar os direitos e os interesses daqueles que estão sendo prejudicados por uma relação contratual feita com a parte contrária menos suscetível de fragilidade, isto é, mais forte.
O caráter patrimonial do Código de 1916 foi substituído pelo caráter existencial do Código de 2002. A nova codificação, não leva mais em consideração o patrimônio da pessoa em relação a ela mesma. As coisas que antes não eram suficientemente valorizadas – honra, moral, respeito – ganham maior proteção e importância do que um bem. O Código Civil de 2002, segundo Paulo Luiz Netto Lôbo (2018, p.12):
[...] tem como paradigma a funcionalização do contrato a fins sociais, equilibrando os interesses individuais e sociais, sendo os fundamentos ditados pelas Constituições do Estado social [...]. Este Estado social [...] deve ser entendido como aquele que acrescentou à dimensão política do Estado Liberal [...] a dimensão econômica e social, mediante limitação e controle dos poderes econômicos e sociais privados a tutela dos mais fracos.
Com essa nova técnica legislativa os juízes podem julgar de forma mais discricionária cada caso. Apesar dessa generalidade e abstração causar uma certa insegurança jurídica, em contrapartida um sistema jurídico fechado, como no Estado Liberal, não atenderia as mudanças constantes da sociedade. Esta viveria sob julgamentos estritamente formais, os quais embora mantivessem a sensação de se ter um ordenamento estável e seguro, não davam margem a possibilidade do surgimento de novos direitos e de diferentes interpretações das normas a depender de cada situação.
É plausível citar algumas mudanças que o CC/02 trouxe para demonstrar como alguns abusos aos direitos dos mais vulneráveis puderam ser evitados, são exemplos de tais modificações: a função social do contrato que impõe limites à liberdade contratual; a lesão que passa a ser motivo de anulabilidade dos negócios jurídicos e ainda se “[...] admite a resolução ou revisão do contrato por excessiva onerosidade [...]” (WALD, 2016, p.5).
Desde as transformações econômicas ocorridas na década de 80, e da crise que incidiu sob o Estado social, muitas pessoas refletem sobre uma possível transição para um Estado pós-social. Em meio a diversos policiamentos, destaca-se a visão do jurista Lôbo (2018, p.13), o qual acredita que essa transição não ocorreu pelo menos no prisma jurídico. O autor, afirma que:
A crise do Estado social foi aguçada pela constatação dos limites das receitas públicas para atendimento das demandas sociais, cada vez mais crescentes [...] a crise situa-se na dimensão da ordem social insatisfeita (garantia universal de saúde, educação, segurança, previdência social, assistência aos desamparados, sobretudo), ou do Estado providência. No que respeita à ordem econômica [...] a crise é muito mais ideológica que real [...]
No contexto social atual, observa-se com maior frequência que a função empreendedora outrora exercida pelo Estado foi substituída pela condição daquele que vem regular atividade econômica. Em vista disso, a intervenção estatal reguladora torna o poder jurisdicional, legislativo e administrativo cada vez mais coeso e forte em relação a ordem econômica. É dessa regulação que surge a função social dos contratos.
A Constituição Federal não traz explicitamente a previsão sobre a função social do contrato, porém “[...]assim o fez de maneira obliqua, [...] quando em diversas ocasiões se referiu à função social da propriedade (arts. 5°, XXIII, 186, 182, §2, e 170, III), o que faz atestar [...] que a função social do contrato tem matiz constitucional” (NETO, 2016, p.44). É importante saber que o direito como um todo sofreu uma grande mudança coma vigência da Constituição de 1988. Muitos códigos tiveram suas modificações baseadas na influência Constitucional e o Código Civil foi um deles.
A discussão no tópico 2 deste trabalho abona sobre a contrariedade existente entre dois princípios contidos no artigo 421: liberdade de contratar e a função social.
Segundo João Hora Neto (2016, p. 45): “[...] a liberdade de contratar deriva do princípio clássico da autonomia da vontade, típico do liberalismo do século XIX, a expressão função social decorre do ideal de Justiça Social, consectária do Estado social”.
Na realidade, estes princípios concorrem, não são incompatíveis. É absolutamente praticável o exercício dos dois simultaneamente. Porém, a função social limita a liberdade de contratar até mesmo em relação ao conteúdo do contrato.
Paulo Lôbo (2018, p.17) em relação a esses princípios afirma que:
A função social surge relacionada à liberdade de contratar, como seu limite fundamental. A Liberdade de contratar [...] consistiu na expressão mais aguda do individualismo jurídico, entendida [...] como o toque de especificidade do direito privado. São dois princípios antagônicos que exigem aplicação harmônica. No Código a função social não é simples limite externo ou negativo mas limite positivo, além de determinação do conteúdo da liberdade de contratar.
A função social do contrato não busca apenas satisfazer as partes nele envolvidas como na função tradicional contratual. Como afirma Fernando de Paula Gomes (2018, p. 109): “[...]a função econômica não é mais o único fim do contrato [...]”. Agora, a autonomia da vontade está restringida se não estiver em consonância com as condições e padrões sociais.
Os princípios que regulam a relação contratual, após a mudança para o Estado social, foram relativizados por motivos de interesse geral da sociedade. Gomes (2018, p. 109) diz que a “[...] função social consiste na proteção de certos interesses que estão fora do âmbito de disposição das partes, mas que podem ser afetados pelo contrato, chamados interesses sociais”.
Segundo Afonso da Silva (2013, p.257) em relação a esses interesses sociais: “são prestações positivas estatais, enunciados e normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualdade de situações sociais desiguais”. Em suma, o que se busca é um contrato baseado em preceitos constitucionais, um contrato que “[...] além de desenvolver uma função translativa- circulatória de riquezas, também realiza um papel social atinente à dignidade da pessoa humana e à redução das desigualdades culturais e materiais [...]” (NETO, 2016, p.46)
O ser humano tem que ser o fundamento de tudo, por isso nos contratos deve estar inserido o princípio da função social. Como a sociedade será o lugar aonde o contrato se executará, é imprescindível que estejam não só de acordo com os interesses de quem o cria, mas também de quem de forma indireta ou direta também sofrerá seus efeitos.
3. PRINCÍPIO Da Boa Fé Nos Contratos de Compra e Venda de Imóveis
O conceito de autonomia consiste em autorregular-se entre iguais. Nessa concepção e com embasamento na teoria liberal, entende-se que autonomia da vontade seria o poder que os indivíduos possuem de dispor livremente dos seus interesses mediante o auto regramento das relações privadas, as quais obtém maior expressão no âmbito contratual.
Como destaca Gonçalves (2018, p.20):
O princípio da autonomia da vontade se alicerça exatamente na ampla liberdade contratual, no poder dos contratantes de disciplinar os seus interesses mediante acordo de vontades, suscitando efeitos tutelados pela ordem jurídica. Têm as partes a faculdade de celebrar ou não contratos, sem qualquer interferência do Estado. Podem celebrar contratos nominados ou fazer combinações, dando origem a contratos inominados.
Sob esse prisma, observa-se que do consenso entre as partes ao estabelecer as regras do contrato e da posterior celebração emergia o vínculo obrigacional, o qual expressava a autodeterminação individual.
Nesse sentido, o liberalismo exaltava o contrato como o propagador de relações socialmente justas as quais se alicerçavam no equilíbrio, na paridade, na igualdade formal entre as partes. Como destaca Borges (2016), ao pleitear a igualdade formal dos indivíduos, a classe burguesa pretendia diluir as barreiras jurídicas que dificultassem o seu crescimento e a sua consolidação e promover a liberdade contratual regida pela determinação da vontade dos pactuantes.
Com relação à justiça contratual, Borges (2016, p. 22) afirma ser:
[...] consequência lógica da soma da igualdade (formal) com a liberdade de contratar, pois se as partes eram iguais e livres para contratar ou não contratar, sendo à vontade um poder jurígeno, o que as partes contratassem seria necessariamente, justo: ‘quem diz contrato diz justo’, em expressão da época.
Nesse desiderato, o princípio da autonomia se legitimava. A justiça, proveniente da celebração dos contratos, também era apregoada como a soma dos interesses individuais resultando na realização do interesse geral. Com essa colocação, a teoria liberal expressava a vontade da coletividade nas relações contratuais estabelecidas. Frisa-se, neste contexto, que outro ponto importante é o desdobramento desse princípio em: liberdade de contratar e liberdade contratual. Liberdade de contratar pode ser entendida como a faculdade de contratar ou não é a livre escolha dos cocontratantes. A liberdade contratual, por sua vez, está relacionada à estrutura interna do contrato, ao que vai ser pactuado, as regras estabelecidas, ao tipo contratual.
No entanto, vale lembrar que a teoria liberal foi superada. Para que a palavra contrato tenha sentido de justo é necessário que a autônima da vontade também esteja conjugada com a igualdade material, que pode ser alcançada através da função social dos contratos ou até mesmo de microssistemas jurídicos como o do Código de Defesa do Consumidor. Em todo caso é evidente que a liberdade contratual esta afetada a estes mecanismos de peso e contrapesos.
De acordo com esse princípio, os contratos celebrados produziam efeitos apenas para as partes pactuantes, geravam vínculo obrigacional somente para estas e não influenciava a esfera de terceiros.
Nesse sentido, entende-se que as partes ao firmarem o contrato já tinham expressado as suas vontades, delineado o consenso dos interesses, estabelecido às regras e o conteúdo a ser seguido por ambas para satisfação de suas necessidades, sendo por isso imperceptível pela concepção clássica à projeção dos efeitos contratuais para terceiros, ou seja, para os indivíduos que não mantinham vínculo com a obrigação constituída.
Nesse intuito, O Código Civil brasileiro de 1916 assegurava no art. 928: “A obrigação, não sendo personalíssima, opera, assim entre as partes, como entre os seus herdeiros”. Absorve-se que se as obrigações não fossem personalíssimas vincularia as partes como também se transmitiria aos seus sucessores enquanto as personalíssimas operavam-se somente entre as partes. Outro artigo do Código Civil de 1916 que merece destaque é o art. 929: “Aquele que tiver prometido fato de terceiro responderá por perdas e danos, quando este o não executar”. Em suma: promessa é dívida e gera responsabilidade, nos termos dos princípios e cláusulas do contrato.
Com esses exemplos dá para notar que não fosse a lei prevendo a extensão dos efeitos contratuais de forma expressa, as suas consequências ficariam adstritas as partes pactuantes. Atualmente vê-se que essa regra, que diz respeito à concepção de que o contrato só vem a trazer obrigações diante àqueles que o assinaram, deve ser revista. Isso porque o ordenamento jurídico brasileiro atual, em especial por intermédio do advento do Código Civil de 2002, que por sua vez cresceu com a energia captada da constituição de 88, estabelece hipóteses que vinculam terceiros aos contratos, como no caso do fiador, avalista e, em especial, função social dos contratos.
Os princípios da obrigatoriedade mantem relação intrínseca com os outros princípios já mencionados, influenciando-os e sendo influenciado. Segundo esse princípio, o contrato celebrado gera vínculo obrigacional entre as partes, as quais cabe o cumprimento do que foi ajustado. As regras contratuais deveriam ser obedecidas como lei, ficando as partes que a elas aderiram o dever de adimplir a obrigação assumida. Caso elas não honrassem com a obrigação estabelecida, ensejaria “ao prejudicado a execução forçada pelo Poder Judiciário, quando possível, ou o equivalente em perdas e danos”, conforme denota Lôbo (2018, p. 62).
Acrescenta Lôbo (2018, p. 12) que o pactuado seria realizado independentemente do arbítrio dos pactuantes ou das transformações externas, ainda que fossem modificações legislativas.
Além da estabilidade, Lôbo observa a previsibilidade como outro resultado almejado pelos pactuantes. Nesse sentido, refletia que “a previsibilidade decorre do fato de o contrato projetar-se para o futuro – futuro antecipado -, devendo suas cláusulas e condições regular as condutas dos contratantes, na presunção de que permaneceriam previsíveis” (Lôbo 2018,p..63).
Observa-se correlacionado a previsibilidade contratual a influência dos efeitos da intangibilidade. Em decorrência desses efeitos os contratos só poderiam ser alterados ou modificados mediante a vontade das partes, não podendo ser revisado pelo Estado.
Assim, observa-se a segurança jurídica que esse princípio concedia as partes contratantes, as quais firmavam uma relação estável, confiável cujas cláusulas estabelecidas iriam ser cumpridas voluntariamente ou mediante a intervenção Estatal, quando necessário.
Como princípio evidenciado no Estado liberal é o da boa-fé, o qual também está em interação com os outros princípios apresentados. Tal princípio se relaciona com o estabelecimento de um padrão ético quanto à conduta das partes envolvidas no contrato.
Para saber se o sujeito agiu de boa-fé, necessário verificar se o seu comportamento foi em conformidade com a ética e com os pressupostos do direito.
O princípio da boa-fé teve sua origem no direito romano. A depender do momento histórico, este princípio já gozou de diferentes definições tanto na própria Roma como em outros lugares.
Já no direito germânico, a definição de boa-fé não era no sentido de se garantir o adimplemento da obrigação ao se dar a palavra, “[...] mas no sentido de lealdade e crença. E [...] devido ao caráter social que era conferido à boa-fé, esta era consagrada como regra de comportamento social na regulação dos negócios obrigacionais” (GOMES, 2018, p.126).
Com relação ao direito canônico, não agir de acordo com a boa-fé significava dizer que se agiu como pecador. No Brasil, o Código Civil de 1916 não disciplinou a boa-fé como cláusula geral. O Estado Liberal, positivista, prezava a formalidade, segurança e estabilidade acima de tudo. Portanto, a boa-fé subjetiva não estava ligada a deveres externos que a parte deveria seguir, e sim, a um estado psicológico do indivíduo. A boa-fé subjetiva seria o aspecto interno, a consciência da pessoa em ter que “[...] agir em conformidade com o Direito posto, ou seja, o estado psicológico do agente frente à relação jurídica” (GOMES, 2018, p. 129).
Em contraposição a este conceito está a má-fé, que ocorre quando uma das partes do contrato tem o intuito de lesionar a outra. O Código Civil, em seu artigo 422 prevê explicitamente a boa-fé: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.
A probidade está relacionada com a boa-fé neste artigo, porque na Administração Pública, exercer uma função de forma proba, significa que se está de acordo com a moralidade, com a honestidade. O princípio da probidade submete as condutas de todos os agentes públicos ao padrão do que é moral. Para Lôbo (2018, p. 74): “No direito contratual privado [...] a probidade é qualidade exigível sempre à conduta da boa-fé. Quando muito seria princípio complementar da boa-fé objetiva. [...] Pode-se dizer que não há boa-fé sem probidade [...]’’.
Diferente do Código Civil (CC) de 1916, a boa-fé aqui discutida não mais se resume sob a óptica subjetiva, isto é, sob o aspecto interno do indivíduo. A boa-fé regulada no artigo 422 do CC/02 passa a ser observada sob o ponto de vista objetivo, tornando-se também cláusula geral, sendo assim, mais flexível, podendo sua interpretação acompanhar as mudanças sociais. Não é essa a única atribuição trazida neste princípio.
Segundo Fernando De Paula Gomes (2018, p.130), em relação à boa-fé objetiva:
[...] É um modelo de conduta social a que cada pessoa deve ajustar sua própria conduta, segundo a honestidade, lealdade e probidade, considerando fatores do caso concreto como a condição pessoal das partes, nível cultural etc. Tem-se [...] a preocupação maior de verificar os interesses de frente ao outro, e não de um sobre o outro.
Expondo essas funções de maneira resumida nas palavras do mesmo autor, há pouco mencionado, teremos uma ideia geral sobre elas:
Função hermenêutico-integradora: [...] para a produção dos efeitos do contrato, é necessária a submissão das partes a certos comportamentos que não resultem nem do dispositivo legal tampouco de cláusulas contratuais, atuando o cânon hermenêutico integrativo como classificador desse comportamento não previsto para o escopo da finalidade do contrato. [...]* Função criadora de deveres: nas obrigações oriundas dos contratos, surgem deveres, divididos em principais e primários de prestação. Mario Júlio de Almeida Costa apresenta classificação exemplificativa [...] do qual destacam: os deveres de cuidado, previdência e segurança; os deveres de aviso esclarecimento; os deveres de informação; os deveres de colaboração e cooperação, os deveres de proteção e cuidado com a pessoa e o patrimônio da contraparte; e os deveres de omissão e segredo [...] * Função limitadora de direito subjetivo: [...] a boa-fé objetiva limita o exercício do direito subjetivo de a parte resolver o contrato ante seu inadimplemento parcial pouco vulto, chamado de adimplemento substancial da obrigação. (GOMES, 2018, p. 137)
Há posicionamento diverso sobre as funções da boa-fé, as quais são definidas por outros autores como: função interpretativa, de controle e integrativa. A incidência da boa-fé no contrato significa dizer que as partes ao o celebrar aceitarão uma eventual interferência de fatos ou acontecimentos externos à relação contratual, limitando, dessa forma, o princípio da autonomia. O princípio da boa-fé vincula os contratantes de forma implícita ou explícita a determinados deveres, sendo irrelevante se alguns destes deveres fizeram ou não parte do conteúdo do contrato ou se irão de acordo com a vontade das partes.
Segundo Olney Assis (2018, p.55): “A relação contratual fundada no princípio da boa-fé irradia uma série de efeitos jurídicos antes, durante e depois da sua realização [...] o contrato faz nascer outros direitos e deveres, e não apenas o da obrigação principal”.
Não basta que os envolvidos prestem as obrigações firmadas pelo instituto contratual. É preciso que haja um comportamento, uma conduta moral e honesta a ser seguida em nome da confiança que cada parte atribuiu uma a outra. No momento em que um dos contratantes não conduz suas ações de forma adequada a ética e ao respeito, independentemente de já ter adimplido ou não sua obrigação com a outra parte, ela estará agindo de má-fé, tornando-se, sua atitude, desleal e abusiva perante o indivíduo que com ele contratou. De acordo com Assis (2018, p.56):
Boa-fé significa, portanto, ação refletida que visa não apenas o próprio bem, mas o bem do parceiro contratual [...] significa respeitar as expectativas razoáveis do parceiro, agir com lealdade, não causar lesão ou desvantagem e cooperar para atingir o bem das obrigações. [...] O princípio da boa-fé revela como fonte de novos deveres ou obrigações especiais, os [...] deveres de conduta, tais como: deveres de esclarecimentos (incide sobre a obrigação de prestar todas as informações que se façam necessárias, deveres de proteção (incide sobre a obrigação de evitar danos), deveres de lealdade (incide sobre a obrigação de comportar-se com lealdade e evitar desequilíbrios), deveres de transparência (incide sobre a obrigação de , na publicidade e marketing, prestar boa, clara e correta informação).
Existem vários artigos que se relacionam com o princípio da boa-fé no Código Civil, entre eles o artigo 422 já foi discutido. É de importante destaque também os artigos 113 e 187 do Código Civil:
Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. [...]
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Quanto ao artigo 113, a boa-fé terá que ser utilizada como uma ajuda na interpretação dos contratos. Em relação ao artigo 187, a boa-fé deverá ser usada como uma forma de impor limites e impedir que uma das partes envolvidas no contrato ultrapasse seus direitos, prejudicando, assim, a outra pessoa participante do contrato. O Código de Defesa do Consumidor também se refere à boa-fé em alguns de seus artigos, ressalta-se o seu artigo 51:
Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: [...] IV– estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade; No inciso IV, há uma alternância ou associação entre a boa-fé e a equidade. Esta “[...] não se concebe autonomamente, mas como critério de heterointegração tanto do princípio da boa-fé quanto do princípio da equivalência material [...] é modelo aberto do julgador, porém limitado à decisão do conflito determinado” (LÔBO, 2018, p.74).
A boa-fé objetiva é um princípio que não se aplica apenas ao comportamento dos indivíduos envolvidos no mesmo contrato diante da prestação que nele foi estabelecida. Tanto depois do contrato se extinguir como antes de se assumir um compromisso através da relação contratual, é imprescindível a incidência da boa-fé. O CDC foi bastante preciso em seus artigos 30, 32, 46 e 48 os quais direcionam suas previsões a essa aplicação do princípio da boa-fé.
A retrovenda é uma cláusula especial da que pode constar no contrato de compra e venda, é a cláusula em que da o direito ao vendedor de reaver o imóvel alienado no prazo de no máximo três anos, devendo o vendedor restituir o comprador o preço ou valor recebido e mais o valor de possíveis despesas gastas no prazo da restituição, desde que autorizadas por escrito, sendo benfeitorias necessárias do imóvel (LÕBO, 2017).
Esta cláusula da retrovenda é admissível apenas nas vendas de imóveis, já que tem como objetivo reconduzir as partes contratantes ao ponto inicial do contrato, retornando o imóvel ao alienante, que restituirá ao comprador o valor recebido no momento da inicio do contrato. No entanto, não haverá devolução de possíveis lucros adquiridos no momento em que corre o prazo da retrovenda, pois a aquisição do imóvel é condicional.
Deverá o devedor restituir integralmente o comprador para fazer exercer o direito de resgate do imóvel, em caso de insuficiência na quitação o vendedor não será restituído à posse do imóvel. Se caso for o comprado quem se recusar a receber, sem justa causa o montante da restituição e devolver o imóvel, caberá ao vendedor exigir de acordo com o artigo 505 do Código Civil, podendo até usar ação reivindicatória para obter restituição do imóvel.
Em casos de vencimento do prazo decadencial dos três anos, sem o devedor manifeste sua vontade em retratar a coisa, a venda se tornará definitiva, sem possibilidade de retratação após o prazo. Caso o haja o perecimento da coisa em virtude de caso fortuito ou de força maior, impossibilitando o resgate do imóvel extingue-se o direito, e nos casos em que de deteriorações do bem advindas do prazo para o resgate, não poderá o vendedor exigir abatimento proporcional no preço.
Portanto, a cláusula especial de retrovenda é o que garante ao vendedor o resgate da coisa alienada, dentro de um determinado prazo estipulado no Código Civil, devendo o vendedor restituir o comprador de acordo com o estipulado no contrato. Matéria esta que é tratada nos artigos 505 ao 508, do Código Civil.
Da venda a contento e da sujeita a prova está prevista no Código Civil do art. 509 ao 512. A venda a contento consiste em uma cláusula contratual de condição suspensiva, que sujeita o negócioa tornar-se válido somente após o comprador declarar sua satisfação. Ou seja, a venda será desfeita caso o comprador não se agrade. Já no caso da venda sujeita a prova, também se trata de uma condição suspensiva, porém, para o negócio se consumar não depende do agrado do comprador, mas sim que a coisa satisfaça as qualidades asseguradas e a finalidade a qual se destina.
A diferença entre a venda a contento e a venda sujeita a prova é que na primeira o negócio se realiza através dos critérios do comprador, que tem que gostar da coisa, ou seja, tem um caráter subjetivo. Ao contrário da venda sujeita a prova, em que o critério a ser analisado é objetivo já que depende das características da coisa.
Em ambas situações, para o negócio se efetivar depende de uma condição suspensiva, sendo esta a aceitação da coisa pelo comprador que deve manifestar-se satisfeito. Enquanto ele não declara que aceita a coisa, as obrigações do comprador são de mero comodatário. Não havendo prazo estipulado para a declaração de aceitação do comprador, pode o vendedor intimá-lo judicial ou extrajudicialmente para que o faça em prazo improrrogável.
Segundo a doutrina, a preferência é o direito de ser preferido em igualdade de condições com terceiros. Preempção "significa direito a ser preferido como comprador".
Advém do direito romano, sob adenominação de "pactum protimiseos", que a trouxe do direito grego "protimesis". Importante ressaltar que não se deve confundir preferência com preempção, sendo assim necessário diferenciá-las: a preferência envolve uma maior amplitude de conceito, pois pode ser definida em lei, quando, preenchidos seus pressupostos, independentemente de qualquer declaração de vontade, surge o direito; já a segunda, preempção é espécie de preferência, sendo a primeira cláusula adjeta ao contrato de compra e venda que pode criar, para o comprador, a obrigação de quando se decidir a vender a coisa, notificar ao vendedor o seu preço e condições, para que este, em igualdade de condições, possa adquiri-la de volta (GOMES, 2018).
O direito de preferência tem como pressupostos básicos e fundamentais ser intransferível, indivisível e com prazo de caducidade, sendo assim o direito de preempção caducará se a coisa for móvel em 3 (três) dias e se for imóvel nos 60 (sessenta) dias subsequentes à data em que o vendedor tiver sido notificado pelo comprador. Para o exercício desse tipo de direito é preciso que duas condições sejam preenchidas, a primeira, que o comprador queira vender a coisa e a segunda, que o vendedor queira exercer o direito de preferência, ou seja, na compra e venda, a preempção decorre da vontade das partes, podendo constar do próprio instrumento de alienação ou do documento à parte. (GONÇALVES, 2014)
A venda com reserva de domínio está prevista nos artigos 521 a 528 do Código Civil e constitui modalidade especial do contrato de compra e venda de coisa móvel, na qual o alienante tem a própria coisa vendida como garantia do recebimento do preço. Esta clausula não havia previsão anterior ao CC/02, então era reconhecido como um contrato atípico ou inominado, só havendo previsão processual (GOMES, 2018).
A atipicidade ocorreu com o novo Código Civil nos artigos 521 a 528.
Desta clausula, advêm duas correntes. Para a primeira corrente, entende-se por venda com reserva de domínio toda aquela venda que fica suspensa até o pagamento total do preço, ou seja, o vendedor se reserva do domínio da coisa, tomando posse somente quando o preço integral pago. Aqui, o comprador é um comodatário especial porque pode se tornar dono e responderá ilimitadamente pela coisa, nunca se considerando um depositário. Já para a segunda corrente, a reserva de domínio é uma locação cumulada com a venda.
4. CONCLUSÃO
No estudo em questão se verificou que a boa-fé, é princípio basilar de nosso ordenamento jurídico, que impõe às partes de qualquer relação jurídica agirem, umas em relação às outras, com total transparência, lealdade e respeito, fazendo jus à confiança que nelas foi depositada (AFONSO, 2013).
O princípio da boa-fé deve ser adotado em toda relação contratual como imposição de uma conduta. É com base na honestidade, lealdade que ela será exercida. A observação deste princípio, em regra, não cabe apenas ao devedor, e sim, a ambas as partes que celebrarem um contrato. Porém, quando se diz respeito a uma relação de consumo, cabe a parte mais forte sofrer a aplicação da boa-fé (COELHO, 2017).
A função deste princípio, se analisarmos o artigo o qual está previsto, será apenas interpretativa, mas há doutrinadores que discordam e elegem três outras funções, destacando-se as definidas por Gomes (2018, p.133): função hermenêutico-integrativa; função criadora de deveres e função limitadora de direito subjetivo.
O compromisso de compra e venda imóveis, é uma espécie de contrato preliminar o qual tem com objetivo que as partes contrantes venham a celebrar um novo contrato de cunho definitivo que respeitados os requisitos legais gerará direito real a propriedade, resguardando direitos e deveres respectivos a cada uma das partes (GONÇALVES, 2014).
A parte promitente comprador se dispõe a pagar a quantia estipulada nas negociações preliminares, enquanto a parte promissário vendedor se compromete a transferir a propriedade através do registro em cartório. Para que a promessa confira efeitos reais e oponíveis a terceiros é necessário que esta seja registrada assegurando as partes a validade do contrato preliminar.
REFERÊNCIAS
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, volume 5: direito das coisas. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
AFONSO, Ana Isabel da Costa. Os contratos de instalação de lojistas em centros comerciais. Porto: Publicações Universidade Católica, 2013.
ASSIS, Olney Queiroz. Princípio da autonomia da vontade X Princípio da boa-fé (objetiva): uma investigação filosófica com repercussão na teoria dos contratos. Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil. Porto Alegre: Magister S/A, v.5, mar/abr, 2018.
BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Reconstrução do conceito de contrato: do clássico ao atual. In: TARTUCE, Flávio e HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes (Org.). Direito Contratual – Temas Atuais. Método, 2016.
COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de Direito Comercial. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2017
GOMES, Fernando de Paula. Do contrato: interpretação e boa-fé.Revista de Direito Privado. São Paulo, v.7, n. 27, jul/set, 2018.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro: Contratos e atos unilaterais. 2ed. rev. e atual. v.3. São Paulo: Saraiva, 2018.
HORA NETO, JOÃO. O princípio da função social do contrato no Código Civil de 2002. Revista de Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, n° 14, abr/jun, 2016, p. 38-48.
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito Civil: Contratos. São Paulo: Saraiva, 2018.
SILVA, Virgílio Afonso da Silva. Princípios e Regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção. Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais I. Belo Horizonte: Del Rey Ltda, v. 5, jul/dez, 2013, p. 607-630.
WALD, Arnold. O contrato Civil de 2002. Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil. 2016
[1] Advogada. Especialista em Direito Civil. Professora de Direito pela Faculdade Serra do Carmo (FASEC)
Bacharelando em Direito pela Faculdade Serra do Carmo (FASEC).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALMEIDA, Bruno Simas. Princípio da boa fé nos contratos de compra e venda de imóveis Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 dez 2020, 04:39. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55848/princpio-da-boa-f-nos-contratos-de-compra-e-venda-de-imveis. Acesso em: 23 dez 2024.
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