RESUMO: O presente artigo tratará de julgado do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em que foi analisada uma compra, no site do Decolar, de duas passagens aéreas para Holanda com custo total de cerca de mil reais. Dois dias após, os consumidores foram informados que a compra no valor abaixo do mercado seria cancelada por ter sido um erro de sistema. Judicializada a lide, o pedido foi julgado parcialmente procedente, para condenação em danos morais e improcedência em relação à emissão de passagens, com base na mitigação do princípio da oferta vinculada em caso de erro grosseiro, na boa-fé e na harmonia que deve haver na relação de consumo entre consumidor e fornecedor. A decisão foi mantida pela segunda instância e pelo STJ. No presente artigo, será analisado o caso à luz do princípio da oferta vinculada e de sua mitigação em caso de erro grosseiro por parte do forncedor. Concluir-se-á pelo acerto das decisões proferidas, na medida em que o princípio da vinculação da oferta deve ser aplicado em consonância com o da boa-fé e o da harmonia da relação de consumo.
PALAVRAS-CHAVE: princípio da oferta vinculada; erro grosseiro; boa-fé; harmonia na relação de consumo.
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo analisará julgado do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no qual foi analisada a compra, no site Decolar, de duas passagens aéreas para Amsterdã por cerca de mil reais ao todo.
A compra não foi faturada no cartão informado para pagamento e não houve a emissão dos tickets aéreos. Dois dias após a compra, os consumidores, um casal de namorados, foram informados que a compra foi cancelada, já que aquele preço anunciado se tratava de erro do sistema do site Decolar.
Inconformados, os consumidores judicializaram a questão, pedindo a emissão dos bilhetes aéreos, com base no princípio da vinculação da oferta, e a condenação da Decolar e da Companhia Aérea por danos morais.
No presente trabalho, será apresentado o caso concreto com mais detalhes, bem como seu trâmite judicial. Em seguida, será analisado o princípio da vinculação da oferta, sua mitigação em caso de erro grosseiro e, por fim, será verificado se a conduta do Decolar encontra respaldo no ordenamento jurídico brasileiro.
2. CASO CONCRETO: COMPRA DE DUAS PASSAGENS À EUROPA POR MIL REAIS EM RAZÃO DE ERRO GROSSEIRO DO SITE DECOLAR
Um casal de namorados comprou passagem aérea de Brasília a Amsterdã por cerca de mil reais, no site decolar, para que pudessem comemorar aniversário de namoro na Europa. A confirmação da compra foi enviada ao e-mail, mas não houve emissão do ticket aéreo e a compra não foi faturada no cartão dado como pagamento.
Dois dias após a compra, foram informados, por e-mail, que a compra das passagens pelo valor abaixo do normal se deu em função de um erro grosseiro no sistema do site Decolar e que, em função disso, a compra seria cancelada.
Incorfomados, os consumidores judicializaram a questão em face do Decolar e da Companhia Aérea responsável pelo voo, pedindo, com base no princípio da vinculação da oferta, emissão dos bilhetes aéreos e condenação por danos morais.
Em primeira instância, o pedido foi julgado parcialmente procedente, para condenar o Decolar e a Companhia Aérea, solidariamente, ao pagamento de R$ 2.000,00 (dois mil reais) – R$ 1.000,00 (mil reais) a cada autor – a título de danos morais.
Interposta apelação da sentença, o Tribunal de Justiça manteve a decisão de primeiro grau, negando provimento ao recurso interposto. O caso chegou até o STJ, que também manteve a decisão, com a improcedência do pedido para emissão dos bilhetes aéreos e a manutenção do valor de dois mil reais fixados a título de danos morais, alegando que o princípio da oferta vinculada pode ser mitigado em caso de erro grosseiro, como foi o caso analisado, nos termos da ementa a seguir.
DIREITO CIVIL E DO CONSUMIDOR. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER CUMULADA COM COMPENSAÇÃO DE DANOS MORAIS. (...).
1. Ação de obrigação de fazer cumulada com compensação de danos morais, em virtude de cancelamento de reserva de bilhetes aéreos.
(...)
3. O propósito recursal, a par de analisar acerca da ocorrência de negativa de prestação jurisdicional, é definir, dado o cancelamento dois dias após a reserva de passagens aéreas para a Europa a preços baixíssimos por alegado erro no sistema de carregamento de preços, i) se as recorridas devem ser condenadas à emissão de novas passagens aéreas aos recorrentes sob os mesmos termos e valores previamente ofertados; e ii) se o valor arbitrado a título de danos morais deve ser majorado.
(...)
6. Na espécie, os consumidores promoveram a reserva de bilhetes aéreos com destino internacional (Amsterdã), a preço muito aquém do praticado por outras empresas aéreas, não tendo sequer havido a emissão dos bilhetes eletrônicos (e-tickets) que pudessem, finalmente, formalizar a compra. Agrega-se a isto o fato de que os valores sequer foram debitados do cartão de crédito do primeiro recorrente e, em curto período de tempo, os consumidores receberam e-mail informando a não conclusão da operação.
7. Diante da particularidade dos fatos, em que se constatou inegável erro sistêmico grosseiro no carregamento de preços, não há como se admitir que houve falha na prestação de serviços por parte das fornecedoras, sendo inviável a condenação das recorridas à obrigação de fazer pleiteada na inicial, relativa à emissão de passagens aéreas em nome dos recorrentes nos mesmos termos e valores previamente disponibilizados.
8. Com efeito, deve-se enfatizar o real escopo da legislação consumerista que, reitera-se, não tem sua razão de ser na proteção ilimitada do consumidor – ainda que reconheça a sua vulnerabilidade –, mas sim na promoção da harmonia e equilíbrio das relações de consumo.
9. Quanto ao pleito de majoração do valor a título de danos morais, tem-se que a alteração do valor somente é possível, em recurso especial, nas hipóteses em que a quantia estipulada pelo Tribunal de origem revela-se irrisória ou exagerada, o que não ocorreu na espécie, tendo em vista que foi fixado em R$ 2.000,00 (dois mil reais) – R$ 1.000,00 (mil reais) para cada autor.
10. Recurso especial conhecido e não provido.
(STJ – Recurso Especial Nº 1.794.991 – SE, Relatora: MINISTRA NANCY ANDRIGHI, julgamento em 05/05/2020)
Apresentado o caso concreto, passa-se a analisar o princípio da oferta vinculada, alegado pelos autores como fundamento para o pedido de emissão dos bilhetes aéreos, bem como sua mitigação em caso de erro grosseiro, tese usada para afastar a pretensão dos consumidores.
3. PRINCÍPIO DA OFERTA VINCULADA E MITIGAÇÃO EM CASO DE ERRO GROSSEIRO
Na relação de consumo, toda oferta, suficientemente precisa, como é o caso de anúncio de passagem aérea com destino e valor estabelecidos, obriga o fornecedor a cumpri-la nos termos de como anunciou. Trata-se do princípio da oferta vinculada, previsto no artigo 30 do Código de Defesa do Consumidor (CDC).
Art. 30. Toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado.
(BRASIL, 1990).
Nesse sentido, é a doutrina de Flávio Tartuce, indicando que a oferta obriga o forncedor a cumpri-la na exata medida de como foi anunciada, sob pena de ter que responder pelos danos causados.
Entre todos os comandos, destaque-se de imediato o art. 30 do CDC, segundo o qual o meio de oferta vincula o conteúdo do contrato. Dessa forma, o produto ou serviço deverá estar na exata medida como previsto no meio de oferta, sob pena de o fornecedor ou prestador responder pelos vícios ou danos causados, devendo também, se for o caso, substituir o produto ou executar novamente o serviço. Eventualmente, repise-se, cabe ainda o cumprimento forçado do meio de oferta, por meio de tutela processual específica, nos termos dos arts. 35 e 84 da Lei Consumerista.
(FLÁVIO TARTUCE, DANIEL NEVES, 2018, p. 59).
Por outro lado, a doutrina chama atenção para o fato de a força vinculativa da oferta ser afastada quando se trata de erro grosseiro. Trata-se, na verdade, de uma exceção ao princípio, conforme lição de Leonardo Medeiros.
Em respeito ao princípio da boa-fé objetiva, segundo o qual as partes (forncedor e consumidor) deverão agir com base na lealdade e confiança, tem-se admitido o chamado “erro grosseiro” como forma de não responsabilizar o fornecedor. Erro grosseiro é aquele erro latente, que facilmente o consumidor tem condições de verificar o equivoco, por fugir ao padrão do que usualmente ocorre.
(GARCIA, 2017, p. 239 – 240)
Nesse sentido, é acórdão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), em que o consumidor comprou, no Ponto Frio, um kit com notebook e câmera fotográfica por cerca de quinhentos reais, preço sabidamente abaixo do valor de mercado.
No caso, o Tribunal de Minas Gerais entendeu que se tratava de erro grosseiro, perceptível pelo homem médio, e, portanto, apto a afastar o princípio da oferta vinculada.
EMENTA: PRETENSÃO À INDENIZAÇÃO - ANÚNCIO DE OFERTA - SITE DE INTERNET - PREÇO DESPROPORCIONAL - ERRO GROSSEIRO - BOA-FÉ - DEVOLUÇÃO DO VALOR - MORA INJUSTIFICADA DO COMERCIANTE - DANOS MORAIS MANTIDOS.
Com vistas ao princípio da boa-fé objetiva, inexiste propaganda enganosa quando o preço de produto divulgado em anúncio for muito inferior ao praticado no mercado, incompatível com o seu preço à vista. Constitui erro material escusável facilmente perceptível pelo homem médio e que não obriga o fornecedor.
A mora injustificada do comerciante em proceder a devolução do valor desembolsado pelo consumidor é passível de danos morais. (TJMG - Apelação Cível 1.0145.11.001114-8/001, Relator(a): Des.(a) Fernando Caldeira Brant , 11ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 29/06/2012, publicação da súmula em 09/07/2012)
Assim, verifica-se que o princípio da oferta vinculada não é absoluto no ordenamento jurídico brasileiro, podendo ser afastado quando se tratar de erro grosseiro, caracterizado como aquele facilmente perceptível pelo homem médio.
4. INAPLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA OFERTA VINCULADA AO CASO CONCRETO
No caso concreto, foram adquiridas duas passagens para Holanda pelo valor total de cerca de mil reais. Isso se deu em função de um erro no sistema do site Decolar, que poderia ser percebido, considerando que o preço está muito abaixo da média para esse tipo de serviço.
Soma-se a isso o fato de não ter havido a emissão dos bilhetes aéreos e, principalmente, não ter sido a compra faturada no cartão fornecido para pagamento. Ainda, o equívoco foi comunicado rapidamente aos consumidores, dois dias após a compra.
O Código de Defesa do Consumidor (CDC) foi editado considerando a vulnerabilidade do consumidor nas relações de consumo, mas nem tem o escopo de protegê-lo em todas as relações de consumo de forma ampla e irrestrita.
É necessário observar a relação de consumo como um todo, garantindo que haja harmonia entre os interesses entre do consumidor e os do fornecedor. Além dessa harmonia, é necessário observar, ainda, o princípio da boa-fé, que impõe aos integrantes da relação de consumo, inclusive o consumidor, o dever de comportar-se com lealdade.
Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:
III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores;
(BRASIL, 1990, grifos nossos).
Exigir o cumprimento de oferta, sabidamente abaixo do preço médio, que nem sequer chegou a ser faturada do cartão para pagamento vai de encontro a essa harmonia na relação entre consumidor e fornecedor, além de violar a própria boa-fé objetiva.
Nesses termos, foi o voto da Ministra Relatora Nancy Andrighi
(...) o CDC não é somente um conjunto de artigos que protegem o consumidor a qualquer custo: antes de tudo, ele é um instrumento legal que pretende harmonizar as relações entre fornecedores e consumidores, sempre com base nos princípios da boa-fé e do equilíbrio contratual. Isso quer dizer que referida legislação é principiológica, não sendo sua principal função resolver todos os problemas que afetam os consumidores, numa fúria disciplinadora. Nela, em verdade, fez-se constar princípios fundamentais básicos, como a harmonia entre consumidor e fornecedor, a boa-fé e o equilíbrio nas relações negociais, a interpretação mais favorável do contrato, dentre outros (...).
(STJ – Recurso Especial Nº 1.794.991 – SE, Relatora: MINISTRA NANCY ANDRIGHI, julgamento em 05/05/2020)
Assim, com base na mitigação do princípio da oferta vinculada em caso de erro grosseiro, na harmonia da relação de consumo e na boa-fé, agiu com acerto o STJ ao manter a decisão de primeira instância que julgou improcedente o pedido de emissão dos bilhetes aéreos.
5. CONCLUSÃO
Diante do exposto, verifica-se que o princípio da oferta vinculada não é absoluto no ordenamento jurídico brasileiro. Ele é excepcionado quando a oferta por valor muito abaixo do mercado decorre de erro grosseiro, facilmente perceptível pelo homem médio, caso contrário haveria violação da boa-fé e da harmonia que deve existir na relação entre fornecedor e consumidor.
Considerando que o preço das passagens aéreas foi anunciado por preço muito abaixo do mercado e que a compra não foi faturada no cartão dado como pagamento, vislumbra-se erro grosseiro, apto a afastar a aplicação do princípio da oferta vinculada.
Assim, com base em tais fundamentos, conclui-se que o Decolar agiu com acerto ao cancelar a compra e não emitir os bilhetes aéreos; agiu também, de forma acertada, o STJ ao negar provimento ao Recurso Especial interposto pelos consumidores.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Código de Defesa do Consumidor de 1990. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm. Acesso em: 13 de out. 2020.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (3. Turma). Recurso Especial. Relator: Nancy Andrighi, 05 mai. 2020. Brasília: STJ. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1936335&num_registro=201803446849&data=20200511&formato=PDF. Acesso em: 13 de out. 2020.
Erro grosseiro de sistema não obriga empresas a emitir passagens compradas a preços muitos baixos. Dizer o Direito, 2020. Disponível em: https://www.dizerodireito.com.br/2020/08/erro-grosseiro-de-sistema-nao-obriga.html#:~:text=O%20erro%20grosseiro%20%C3%A9%20aquele,.%E2%80%9D%20(Direito%20do%20Consumidor. Acesso em: 13 de out. 2020.
GARCIA, Leonardo de Medeiros. Direito do Consumidor: coleção leis especiais para concursos. 11 ed – Salvador: Editora Juspodivm, 2017.
MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça de Minas Gerais (11. Câmara Cível). Apelação Cível. Relator: Fernando Caldeira Brant, 09 jul. 2012. Belo Horizonte: TJMG. Disponível em: http://www8.tjmg.jus.br/themis/verificaAssinatura.do?tipo=1&numVerificador=101451100111480012012320824 Acesso em: 13 de out. 2020.
TARTUCE, Flávio; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito do consumidor: direito material e processual. 7. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2018.
Pós-graduada em Ciências Criminais pela Faculdade Damásio, pós-graduanda em Direitos Humanos pela Faculdade UniAmérica, graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), advogada.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUZA, IZABELA SEDLMAIER. Decolar não é obrigada a emitir passagens compradas a preço muito baixo em caso de erro grosseiro de sistema Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 dez 2020, 04:18. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55872/decolar-no-obrigada-a-emitir-passagens-compradas-a-preo-muito-baixo-em-caso-de-erro-grosseiro-de-sistema. Acesso em: 23 dez 2024.
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