RESUMO: O tráfico de drogas privilegiado, previsto no artigo 33, §4º, da Lei de Drogas, trata-se de uma redução de pena de 1/6 a 2/3 ao agente que seja primário, possua bons antecedentes, não se dedique a atividades criminosas nem integre organização criminosa. Aplica-se para o tráfico de drogas (artigo 33, caput), bem como para as condutas assemelhadas, previstas no artigo 33, §1º. Há embate entre STF e STJ sobre o afastamento do instituto quando há inquérito ou ação penal em curso. O STF entende que não se pode afastar, porque violaria a presunção de inocência. Por outro lado, o STJ sustenta que o afastamento é cabível, já que inquérito ou ação penal em curso demonstra dedicação à atividade criminosa. Este trabalho, após conceituar o instituto e trazer as principais interpretações jurisprudenciais, analisará as posições do STF e do STJ. Em seguida, irá concluir que, por meio de uma interpretação sistemática que leva em conta a presunção de inocência e de uma interpretação teleológica que considera a intenção do legislador de abrandar a sanção penal àquele que traficou pela primeira vez, a posição do STF é a que mais coaduna com o ordenamento jurídico brasileiro.
PALAVRAS-CHAVE: tráfico de drogas privilegiado; afastamento; inquérito ou ação penal em curso; presunção de inocência.
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo discutirá se é possível afastar o tráfico privilegiado quando há inquérito ou ação penal em curso. Discute-se se isso configura dedicação à atividade criminosa, um dos elementos que não autoriza o reconhecimento do tráfico privilegiado.
Para isso, será apresentado o tráfico privilegiado, com seu conceito legal, requisitos, entre eles o de não se dedicar à atividade criminosa, e principais interpretações da jurisprudência a seu respeito.
Por fim, será trabalhada a possibilidade de afastamento em caso de inquérito ou ação em curso, contrapondo-se o posicionamento do STF com o do STJ, para analisar se referido afastamento encontra respaldo no ordenamento jurídico brasileiro.
2. TRÁFICO PRIVILEGIADO
A Lei de Drogas prevê o instituto do tráfico privilegiado em seu artigo 33, §4º. Trata-se de uma redução de pena de um sexto (1/6) a dois terços (2/3) para o agente que seja primário, possua bons antecedentes, não se dedique a atividades criminosas nem integre organização criminosa.
Artigo 33 (...).
§ 4º Nos delitos definidos no caput e no § 1º deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos , desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa.
(BRASIL, 2006)
O instituto se aplica para o delito de tráfico de drogas (artigo 33, caput) e também para os descritos no artigo 33, §1º, transcritos abaixo, desde preenchidos, de forma cumulativa, os requisitos acima.
Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.
§ 1º Nas mesmas penas incorre quem:
I - importa, exporta, remete, produz, fabrica, adquire, vende, expõe à venda, oferece, fornece, tem em depósito, transporta, traz consigo ou guarda, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas;
II - semeia, cultiva ou faz a colheita, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, de plantas que se constituam em matéria-prima para a preparação de drogas;
III - utiliza local ou bem de qualquer natureza de que tem a propriedade, posse, administração, guarda ou vigilância, ou consente que outrem dele se utilize, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, para o tráfico ilícito de drogas.
IV - vende ou entrega drogas ou matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas, sem autorização ou em desacordo com a determinação legal ou regulamentar, a agente policial disfarçado, quando presentes elementos probatórios razoáveis de conduta criminal preexistente.
(BRASIL, 2006).
De acordo com STF, o tráfico privilegiado, diferentente do tráfico de drogas, não possui caráter hediondo, justamente por sua finalidade, que é a de abrandar a sanção penal para aquele que praticou o delito pela primeira vez. Não sendo hediondo, a progressão de regime e o livramento condicional possuem requisitos mais brandos do que os estabelecidos para o traáfico de drogas.
EMENTA: HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL, PENAL E PROCESSUAL PENAL. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. APLICAÇÃO DA LEI N. 8.072/90 AO TRÁFICO DE ENTORPECENTES PRIVILEGIADO: INVIABILIDADE. HEDIONDEZ NÃO CARACTERIZADA. ORDEM CONCEDIDA.
1. O tráfico de entorpecentes privilegiado (art. 33, § 4º, da Lei n. 11.313/2006) não se harmoniza com a hediondez do tráfico de entorpecentes definido no caput e § 1º do art. 33 da Lei de Tóxicos.
2. O tratamento penal dirigido ao delito cometido sob o manto do privilégio apresenta contornos mais benignos, menos gravosos, notadamente porque são relevados o envolvimento ocasional do agente com o delito, a não reincidência, a ausência de maus antecedentes e a inexistência de vínculo com organização criminosa.
3. Há evidente constrangimento ilegal ao se estipular ao tráfico de entorpecentes privilegiado os rigores da Lei n. 8.072/90.
4. Ordem concedida.
(HC 118533, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 23/06/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-199 DIVULG 16-09-2016 PUBLIC 19-09-2016, grifos nossos)
Inclusive, o entendimento do STF foi positivado na Lei de Execução Penal (LEP) pelo Pacote Anticrime, passando a ser previsto, no artigo 112, §5º, que não se considera hediondo ou equiparado, para os fins deste artigo, o crime de tráfico de drogas previsto no § 4º do art. 33 da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006 (BRASIL, 1984).
3. (IM)POSSIBILIDADE DE SE AFASTAR O TRÁFICO PRIVILEGIADO EM CASO DE AÇÃO PENAL EM CURSO
Este trabalho irá se ater a um dos requisitos para configuração do tráfico privilegiado: o de não se dedicar a atividades criminosas. Discute-se se o fato de haver inquérito policial ou ação penal em curso pode impedir o reconhecimento do instituto por demonstrar que o agente se dedique à atividade criminosa. O STF e o STJ possuem entendimentos diferentes em relação a isso.
O STJ entende que inquérito e ação penal em curso configuram dedicação à atividade criminosa, o que afasta o tráfico privilegiado. Sustenta o Tribunal que há um mandado constitucional para maior reprimenda ao tráfico, o que deve ser feito, em atendimento ao princípio da vedação de proteção deficiente.
PROCESSUAL PENAL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA NO AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. CAUSA DE DIMINUIÇÃO DE PENA. ARTIGO 33, §4°, DA LEI 11.343/06. REQUISITOS CUMULATIVOS. DEDICAÇÃO ATIVIDADE CRIMINOSA. UTILIZAÇÃO INQUÉRITOS E/OU AÇÕES PENAIS. POSSIBILIDADE. PROVIMENTO DO RECURSO.
I – (...).
II - O crime de tráfico de drogas deve ser analisado sempre com observância ao mandamento constitucional de criminalização previsto no artigo 5°, XLIII, da Constituição Federal, uma vez que se trata de determinação do constituinte originário para maior reprimenda ao delito, atendendo, assim, ao princípio da vedação de proteção deficiente.
III - Assim, é possível a utilização de inquéritos policiais e/ou ações penais em curso para formação da convicção de que o Réu se dedica à atividades criminosas, de modo a afastar o beneficio legal previsto no artigo 33, §4°, da Lei 11.343/06
IV - In casu, o Tribunal de Justiça afastou a causa de diminuição de pena mencionada em virtude de o Réu ostentar condenação por tráfico de drogas não transitada em julgado, considerando que ele se dedica à atividade criminosa por não desempenhar atividade lícita, bem como porque 'assim que saiu da cadeia, voltou a praticar o mesmo delito'.
Embargos de divergência providos para prevalecer o entendimento firmado no acórdão paradigma, restabelecendo o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça.
(EREsp 1431091/SP, Rel. Ministro FELIX FISCHER, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 14/12/2016, DJe 01/02/2017, grifos nossos)
AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES. REDUTOR DO ART. 33, § 4º, DA LEI N. 11.343/2006. NÃO APLICAÇÃO. AÇÕES PENAIS EM CURSO. DEDICAÇÃO A ATIVIDADES CRIMINOSAS.
CONFIGURAÇÃO. REGIME MAIS GRAVOSO. DECISÃO FUNDAMENTADA. NÃO CARACTERIZAÇÃO DE BIS IN IDEM. QUANTIDADE E VARIEDADE DE DROGAS.
EXASPERAÇÃO DA PENA-BASE E AFASTAMENTO DO REDUTOR. AGRAVO DESPROVIDO.
1. (...).
2. Inquéritos policiais ou ações penais em andamento, embora não possam ser considerados como maus antecedentes para fins de exasperação da pena-base (Súmula n. 444 do STJ), podem ser utilizados para afastar o redutor previsto no art. 33, § 4º, da Lei n. 11.343/2006, pois indicam que o agente se dedica a atividades criminosas.
3. (...).
4. (...).
5. Agravo regimental desprovido.
(AgRg no HC 577.807/SP, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, QUINTA TURMA, julgado em 06/10/2020, DJe 15/10/2020, grifos nossos)
Por outro lado, o STF entende que inquérito ou ação penal em curso não podem afastar o tráfico privilegiado. Para o Tribunal, entender que isso se trata de dedicação à atividade criminosa e que, por isso, deve afastar o privilégio contraria a presunção de inocência, prevista na Constituição.
PENA – FIXAÇÃO – ANTECEDENTES – INQUÉRITOS E PROCESSOS EM CURSO – DESINFLUÊNCIA.
O Pleno do Supremo, por ocasião do julgamento do recurso extraordinário nº 591.054, de minha relatoria, assentou a neutralidade, na definição dos antecedentes, de inquéritos ou processos em tramitação, considerado o princípio constitucional da não culpabilidade.
PENA – CAUSA DE DIMINUIÇÃO – ARTIGO 33, § 4º, DA LEI Nº 11.343/2006 – CONDENAÇÕES NÃO DEFINITIVAS.
Não cabe afastar a causa de diminuição prevista no artigo 33, § 4º, da Lei de Drogas
com base em condenações não alcançadas pela preclusão maior.
(HC 166385, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, julgado em 14/04/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-118 DIVULG 12-05-2020 PUBLIC 13-05-2020)
Com acerto, é o posicionamento do STF. A Constituição prevê em seu artigo 5º, inciso LVII, que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória (BRASIL, 1988). Trata-se da presunção da inocência.
Afastar o privilégio por haver inquérito ou ação penal ainda em andamento representam violação a essa presunção, fazendo-se necessário que haja uma interpretação sistemática da norma do tráfico privilegiado, para que seja lida em conjunto com a regra constitucional.
Ainda, em relação argumento utilizado pelo STJ no sentido de que há mandamento constitucional para maior reprimenda ao tráfico, não há dúvida da previsão contida no artigo 5º, inciso XLIII, no sentido de que a lei considerará o tráfico inafiançável e insuscetível de graça ou anistia.
Artigo 5º (...).
XLIII – a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura , o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;
(BRASIL, 1988)
Ocorre que a norma se dirige ao tráfico de drogas, previsto no artigo 33, caput, da Lei de Drogas. O tráfico privilegiado está previsto separadamente, justamente por se diferenciar do tráfico.
Por meio de uma interpretação teleológica, verifica-se que a finalidade do legislador, ao abrandar a punição no tráfico privilegiado, pretendeu levar em consideração que aquele que praticou o tráfico pela primeira vez merece uma punição mais branda, tendo em vista sua condição. Foi nesse sentido que se reconheceu que a proibição de substituir por restriva de direitoviola a constituição, por não respoeitar a individualização da pena.
4. CONCLUSÃO
Diante do exposto, verifica-se que o tráfico privilegiado se trata de redutor de pena para o agente que pratique o tráfico de drogas ou as condutas assemelhadas, previstas no artigo 33, §1, da Lei de Drogas, desde que seja primário, possua bons antecedentes, não se dedique a atividades criminosas nem integre organização criminosa.
Percebe-se que, em relação ao afastamento do instituto em caso de inquérito ou ação penal em curso por configurar dedicação à atividade criminosa, a posição do STF de não aceitar tal entendimento, contrário ao do STJ, é a que mais se adequa ao ordenamento jurídico brasileiro.
Conclui-se, conforme posicionamento do STF, que referido afastamento viola a regra constitucional da presunção de inocência, além de ir ao encontro da vontade do legislador que foi a de conferir um tratamento penal mais brando àquele que praticou o tráfico de drogas pela primeira vez.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em: 15 de out. 2020.
BRASIL. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm. Acesso em: 15 de out. 2020.
BRASIL. Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm. Acesso em: 15 de out. 2020.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental. Relator: João Otávio de Noronha, 15 out. 2020. Brasília: STJ. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202001010707&dt_publicacao=15/10/2020. Acesso em: 15 de out. 2020.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus. Relator: Marco Aurélio, 13 mai. 2020. Brasília: STF. Disponível em:
http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5607336. Acesso em: 15 de out. 2020.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus. Relatora: Cármem Lúcia, 23 jun. 2016. Brasília: STF. Disponível em:
http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4432320. Acesso em: 15 de out. 2020.
É possível que o juiz negue o benefício do § 4º do art. 33 da Lei de Drogas pelo simples fato de o acusado ser investigado em inquérito policial ou réu em outra ação penal que ainda não transitou em julgado? Dizer o Direito, 2020. Disponível em: https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/5301c4d888f5204274439e6dcf5fdb54?categoria=11. Acesso em: 15 de out. 2020.
Embargos de Divergência em Recurso Especial 1431091/SP. Jusbrasil, 2017. Disponível em: https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/425874923/embargos-de-divergencia-em-recurso-especial-eresp-1431091-sp-2014-0015576-0/inteiro-teor-425874925 . Acesso em: 15 de out. 2020.
Pós-graduada em Ciências Criminais pela Faculdade Damásio, pós-graduanda em Direitos Humanos pela Faculdade UniAmérica, graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), advogada.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUZA, IZABELA SEDLMAIER. (Im)possibilidade de afastamento do tráfico de drogas privilegiado em caso de inquérito policial ou ação penal em curso Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 dez 2020, 04:22. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55880/im-possibilidade-de-afastamento-do-trfico-de-drogas-privilegiado-em-caso-de-inqurito-policial-ou-ao-penal-em-curso. Acesso em: 23 dez 2024.
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