RESUMO: O artigo em apreço, elaborado por meio do método hipotético-dedutivo, versa sobre a responsabilidade civil, com enfoque na atuação do médico. Analisa-se a conduta do profissional tanto a partir do descumprimento de um dever contratual, quanto a advinda de um dever extracontratual, como o de prestar assistência, e a dificuldade de se comprovar a culpa do médico independentemente de a obrigação ser de meio ou de fim. Conclui-se que, malgrado a complexidade da temática, a responsabilidade do médico deve ser aferida e, se for o caso, atuando com dolo ou culpa, ele deve reparar o dano a que deu causa.
PALAVRAS-CHAVE: Responsabilidade Civil. Médico. Culpa. Obrigação. Dever.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Responsabilidade Civil – Panorama Geral do Instituto; 2.1 Pressupostos. 3. A Responsabilidade do Médico: Obrigação de Meio e Obrigação de Fim. 4. Deveres do Médico; 4.1 Medicina Coletiva; 4.2 A Culpa e sua Prova. 5. Considerações Finais. 6. Referências
1. INTRODUÇÃO
Nos tempos hodiernos, a responsabilidade civil médica ganha destaque no cenário jurídico em razão do crescente número de processos por erro médico que assolam as varas judiciárias e os tribunais. Analisar-se-á a temática do ponto de vista do Direito Constitucional, do Direito do Consumidor e do Direito Civil, sobretudo a partir das manifestações dos tribunais pátrios, enfatizando-se os deveres do médico.
Com relação aos métodos que serão empregados, o método de abordagem será o hipotético dedutivo e a natureza da pesquisa será dogmática-instrumental, fundamentada no estudo do direito positivo, tanto legal quanto jurisprudencial, e a explicitação das teorias e princípios que embasam o tema configurar-se como atividade de cunho nitidamente científico. A técnica de coleta de dados utilizada será a de documentação indireta, por meio da revisão bibliográfica que se fará do referencial teórico, composto de livros e mediante incursões aos sítios virtuais de interesse e à legislação e jurisprudência correlata ao assunto.
O primeiro tópico fará um panorama geral do instituto da responsabilidade civil no direito pátrio, a partir de uma abordagem histórica, destacando seus requisitos fundamentais. Num segundo momento, a responsabilização do médico será analisada sob o viés da obrigação de fim e de meio. Por fim, no terceiro tópico serão discutidos os deveres do médico, com ênfase na atividade probatória e a sua dificuldade.
2. RESPONSABILIDADE CIVIL – PANORAMA GERAL DO INSTITUTO
O bem jurídico, consoante conceito de Jorge de Figueiredo Dias (1999), aduz um interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou integridade de um certo estado, objeto ou bem em si mesmo socialmente relevante e, por isso, juridicamente reconhecido como valioso. Dessa forma, o Direito vai tutelá-lo de forma a implementá-lo e resguardá-lo e a responsabilidade é concebida, nesse sentido, como meio de concretização dos valores constitucionais postos e diretamente relacionados aos direitos fundamentais.
De início, cumpre conceituar que a ideia de responsabilidade vem do descumprimento obrigacional, seja pela desobediência a regras contratuais ou pela inobservância a preceitos normativos que regulam a vida em comum. A responsabilidade, dessa forma, é um dever jurídico secundário que apenas emerge ao mundo jurídico quando do inadimplemento de um dever jurídico originário – a obrigação.
Desse modo, a responsabilidade civil pode ser classificada quanto ao modo como se origina. Considera-se negocial ou contratual, a que se origina do universo dos contratos, dos acordos de vontade; e extracontratual ou aquiliana, a que tem por fonte o descumprimento de deveres jurídicos impostos pelo ordenamento jurídico, obrigações imprescindíveis para a convivência social.
A diferença fundamental entre essas duas modalidades de responsabilidade está na carga da prova atribuída às partes; na responsabilidade contratual, ao autor da ação, lesado pelo descumprimento, basta provar a existência do contrato, o inadimplemento e o dano, com o nexo de causalidade, incumbindo ao réu se desincumbir de sua responsabilidade, demonstrando que o dano decorreu de uma causa estranha a ele; na responsabilidade extracontratual, o autor da ação deve provar, além do dano e do nexo causal, que o réu agiu com dolo ou culpa, seja na modalidade da imprudência, negligência ou imperícia – vínculo subjetivo.
Historicamente, as raízes da responsabilidade civil remetem ao Direito Romano. Na Lei das XII Tábuas, via-se a vingança privada a partir da Lei de Talião como expressão da responsabilidade civil no seu perfil objetivo, retratando a literal vingança privada do “olho por olho e dente por dente”.
Contudo, o verdadeiro marco evolutivo de tal instituto foi o advento da Lex Aquilia, no final do século III a.C, que fixou parâmetros quanto à reparação do dano, se filiando à ideais de reparação proporcionais, por meio de pecúnia. Rompia-se, desse modo, com a concepção de vingança como justa indenização.
Hodiernamente, a doutrina e jurisprudência pátrias relacionadas ao tema têm se consolidado cada vez mais e caminhado para concepções que, acima de tudo, norteiam-se pela razoabilidade e justeza, imprescindíveis à matéria versada. Nesse sentido, surgiram novas concepções de responsabilidade e de dano, a exemplo dos danos sociais.
Ademais, é interessante ressaltar que a responsabilidade civil não se limita apenas ao universo civilista do direito. Ela vai mais além, englobando todos os âmbitos do saber jurídico. Dessarte, Maria Helena Diniz (2018, p. 4) apregoa dessa maneira:
Toda manifestação da atividade que provoca prejuízo traz em seu bojo o problema da responsabilidade, que não é fenômeno exclusivo da vida jurídica, mas de todos os domínios da vida social. (...) (A responsabilidade civil) absorve não só todos os ramos do direito – pertencendo à seara da Teoria Geral do Direito, sofrendo as naturais adaptações conforme aplicável ao direito público e privado, mas os princípios estruturais, o fundamento e o regime jurídico são os mesmos, comprovando a tese da unidade jurídica quanto aos institutos basilares [...]. (DINIZ, 2018, p. 4)
Nessa perspectiva, o presente estudo se digna a explanar a responsabilidade civil do médico de natureza contratual, derivada de um contrato estabelecido livremente entre paciente e profissional, a maioria das vezes de forma tácita, e decorrente das relações restritas ao âmbito da medicina privada, isto é, ao profissional que é livremente escolhido, contratado e pago pelo cliente. Ainda, pode a responsabilidade civil ser de natureza extracontratual, quando não existindo contrato, circunstâncias da vida colocam frente a frente médico e paciente, incumbindo àquele o dever de prestar assistência. Consoante assevera Ruy Rosado De Aguiar Júnior (2000):
A diferença fundamental entre essas duas modalidades de responsabilidade está na carga da prova atribuída às partes; na responsabilidade contratual, ao autor da ação, lesado pelo descumprimento, basta provar a existência do contrato, o fato do inadimplemento e o dano, com o nexo de causalidade, incumbindo ao réu demonstrar que o dano decorreu de uma causa estranha a ele; na responsabilidade extracontratual ou delitual, o autor da ação deve provar, ainda, a imprudência, negligência ou imperícia do causador do dano (culpa), isentando-se o réu de responder pela indenização se o autor não se desincumbir desse ônus. (AGUIAR JÚNIOR, 2000)
Será igualmente extracontratual a relação da qual participa o médico servidor público, que atende em instituição obrigada a receber os segurados dos institutos de saúde pública, e o médico contratado pela empresa para prestar assistência a seus empregados. Nestes casos, o atendimento é obrigatório, pressupondo uma relação primária de Direito Administrativo ou de Direito Civil entre o médico e a empresa ou o hospital público, e outra entre o empregado e a empresa, ou entre o segurado e a instituição de seguridade, mas não há contrato entre o médico e o paciente.
2.1 PRESSUPOSTOS
Analisando o instituto, é perceptível que para a caracterização da responsabilidade civil é necessário que exista uma conduta voluntária, o dano injusto sofrido por outrem (vítima), que pode ser patrimonial ou extrapatrimonial; a relação de causalidade entre o dano e a ação do agente; o fator de atribuição da responsabilidade pelo dano ao agente, de natureza subjetiva (culpa ou dolo), ou objetiva (risco, equidade, entre outros).
Nesse ínterim, para ser imputada ao médico a responsabilidade civil, deve existir como pressuposto, o ato médico, praticado com violação a um dever médico, imposto pela lei, pelo costume ou pelo contrato, imputável a título de culpa em sentido amplo, causador de um dano injusto, patrimonial ou extrapatrimonial.
Malgrado não haja erro médico sem dano, poderá haver dano na relação médico-paciente sem caracterizar erro. Nesse sentido, assevera Fernando Gomes Correia-Lima (2012):
(...) as lesões previsíveis e esperadas, decorrentes do próprio procedimento, como as cicatrizes cirúrgicas, as amputações de membros gangrenados e a retirada de órgãos internos afetados por neoplasia, por exemplo, são legitimadas pelo próprio exercício regular da profissão médica, no qual a lesão seria a única forma de intervir para a cura ou melhora do paciente. A lesão previsível, mas inesperada, decorrente do risco de qualquer procedimento, como a anafilaxia determinada por um anestésico, que caracteriza uma reação idiossincrásica e, portanto, individual, própria do paciente, podendo, inclusive, provocar o óbito, não poderá ser imputada a erro médico”. (CORREIA-LIMA, 2012)
Ainda, convém ressaltar a culpa latu sensu do paciente ao não tomar a medicação ou não respeitar as dosagens e os horários prescritos, omitir informações ou até mesmo mentir, bem como ocultar comportamentos nocivos, a exemplo da ingestão de bebidas alcoólicas ou o consumo de drogas ilícitas. Por conseguinte, nesses casos, o nexo de causalidade é rompido e não sobrepuja qualquer responsabilização ao médico, restando configurada a excludente de ilicitude da culpa exclusiva da vítima.
3. A RESPONSABILIDADE DO MÉDICO: OBRIGAÇÃO DE MEIO E OBRIGAÇÃO DE FIM
A obrigação pode ser classificada quanto ao fim a que se destina, podendo ser de meio ou de resultado. Configura-se de meio a obrigação quando o profissional assume prestar um serviço ao qual dedicará a atenção, o cuidado e a diligência exigida pelas circunstâncias, de acordo com o seu título, com os recursos de que dispõe e com o nível atual da ciência, sem se comprometer em obter certo resultado específico. O médico em seu labor, em geral, assume uma obrigação de meio.
Ademais, será de resultado quando o profissional se comprometer a realizar certo fim, o médico a assume quando se compromete a efetuar uma transfusão de sangue ou em uma cirurgia meramente estética, por exemplo.
Sendo a obrigação de resultado, basta ao lesado demonstrar, além da existência do contrato, a não-obtenção do resultado prometido, que restará caracterizado o descumprimento do contrato, independentemente das suas razões, cabendo ao devedor provar as excludentes de ilicitude para se exonerar da responsabilidade. A jurisprudência dos tribunais pátrios assevera esse entendimento, consoante julgado do Superior Tribunal de Justiça (STJ, 2015):
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. CONSUMIDOR. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E ESTÉTICOS. CIRURGIA PLÁSTICA. OBRIGAÇÃO DE RESULTADO. DANO ESTÉTICO COMPROVADO. RECURSO NÃO PROVIDO.
1. A jurisprudência desta Corte entende que "A cirurgia estética é uma obrigação de resultado, pois o contratado se compromete a alcançar um resultado específico, que constitui o cerne da própria obrigação, sem o que haverá a inexecução desta" (REsp 1.395.254/SC, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 15/10/2013, DJe de 29/11/2013) 2. No caso, o eg. Tribunal de origem, além de afastar a existência de qualquer excludente de responsabilidade, entendeu que o dano estético ficou devidamente comprovado nos autos. 3. Rever o entendimento do acórdão recorrido demandaria o revolvimento de suporte fático-probatório dos autos, o que encontra óbice na Súmula 7/STJ. 4. Agravo regimental não provido. (STJ, 2015)
Já na obrigação de meio, o credor (lesado, paciente) deverá provar a conduta ilícita do obrigado, isto é, que o agente (médico) não atuou com atenção, diligência e cuidados adequados na execução do contrato.
Logo, tanto na responsabilidade delitual como na responsabilidade contratual derivada de uma obrigação de meio, o paciente deve provar a culpa do médico, seja porque agiu com dolo, imprudência, negligência ou imperícia e causou um ilícito, seja porque descumpriu sua obrigação de atenção e diligência, contratualmente estabelecida. Por isso, o médico só será responsabilizado em se provando que ele não usou dos meios certos e necessários para alcançar o seu objetivo maior: a cura do paciente. Convém ressaltar que o médico não obrigatoriamente tem o dever-fim de curar o paciente, mas deve empreender todos os esforços e meios de que dispõe nesse intento, ainda que só consiga aliviar o seu sofrimento. Essa acepção subsiste da noção de que a Medicina, embora desenvolvida, possui suas próprias limitações.
Dessarte, preconiza o parágrafo 4º do artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor: “A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante verificação de culpa.”
Ainda, cumpre ressaltar, o disposto no artigo 951 do Código Civil: “O disposto nos artigos 948, 949 e 950 aplica-se ainda no caso de indenização devida por aquele que, no exercício de atividade profissional, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho.”
Amparado nesse assenso, estando a responsabilidade do profissional médico embasada no Código de Defesa do Consumidor, é permitido ao juiz inverter o ônus da prova. Trata-se de uma opção válida, uma vez que ajuda a dirimir possíveis dúvidas, pois o médico pode provar que agiu com atenção e zelo, conforme lhe cabia, de maneira mais fácil, haja vista o seu maior conhecimento técnico.
O médico ainda pode ser responsabilizado quando nega socorro a alguém, dá um atestado falso, quando por sua culpa o seu paciente venha a contagiar outra pessoa, e ainda, quando um terceiro, cumprindo suas ordens, causa dano ao paciente.
Vale lembrar que o dano não necessariamente precisa ser grande para ser auferida ao médico a responsabilidade, o menor dos danos já pode ser causa para a responsabilização.
4. DEVERES DO MÉDICO
Além do tratamento e da cura das enfermidades, a Medicina abarca um amplo espectro de finalidades diretamente relacionadas com o estado de bem estar físico e psíquico dos pacientes.
Durante muitos séculos, a função do médico esteve revestida de caráter religioso e mágico, atribuindo-se aos desígnios de Deus a vida e a morte. Nesse contexto, era desarrazoado se pensar em responsabilizar o médico, que apenas participava de um ritual, talvez útil, mas dependente exclusivamente da vontade divina, por qualquer resultado.
A exemplo disso, no Egito antigo, as regras do Livro Sagrado deveriam ser seguidas pelos médicos e, assim procedendo, mesmo com a morte do paciente não cabia a eles qualquer punição (CORREIA-LIMA, 2012, p. 20).
Mais recentemente, no final do século passado e primórdios deste, o médico passou a ser visto como um profissional cujo título lhe garantia a onisciência, ou seja, não se admitia dúvida sobre a qualidade de seus serviços, e, menos ainda, a litigância sobre eles. O ato médico se resumia na relação entre uma confiança (a do cliente) e uma consciência (a do médico).
As circunstâncias se alteraram com o passar do tempo. As relações sociais massificaram-se, distanciando o médico do seu paciente. A própria denominação da relação foi alterada, passando o paciente a ser chamado usuário, e o médico, prestador de serviços, tudo visto sob a ótica de uma relação de consumo, em que os indivíduos se tornaram mais consciente de seus direitos, reais ou fictícios, e mais exigentes quanto aos resultados. Desapareceu a figura cordial do “médico da família”, amigo e camarada – em que se depositava confiança irrestrita e contra quem jamais se cogitaria intentar uma demanda.
Acrescente-se a isso a disposição da mídia em transformar em escândalo o infortúnio e facilmente encontra-se explicação para o incremento no número de demandas no Judiciário pleiteando indenizações de médicos pela não obtenção do resultado almejado, conjuntura facilitada pela ausência de uma relação anterior de respeito e afeto que existia em relação ao “médico de família”, pois não são raras as vezes em que o reclamante não teve qualquer relação com o médico ou a teve de maneira muito superficial.
Em uma análise acerca da obrigação do médico, vê-se que não pode ser imposto a ele o ônus de curar o paciente, tendo em vista que não possui poderes para garantir a cura, em que pese deva empreender esforços para isso. Dessarte, dele é exigida uma conduta de zelo para com o paciente e que haja de acordo com as regras consagradas pela prática médica, visto que ainda que não consiga alcançar a cura, possibilite um alívio ao sofrimento do paciente.
Ademais, o médico tem o dever da informação, de prestar esclarecimentos ao seu paciente acerca da sua doença, prescrições a seguir, possíveis riscos, cuidados especiais com o seu tratamento, e ainda, deve aconselhar a ele e aos seus familiares acerca da realidade de seu estado (AGUIR JÚNIOR, 2000).
Convém destacar que a falta de informação por si só não causa dano. É mister distinguir que se a intervenção era indispensável e veia a ocasionar um dano, a falta de informação adequada não pode ser levada em conta para responsabilização, a não ser a título de dano moral em casos bem específicos; se dispensável, é cabível a responsabilização, porque o paciente poderia ter decidido não correr o risco. Por conseguinte, a conclusão sobre o âmbito da informação e da existência do consentimento deve ser extraída, pelo juiz, do conjunto dos fatos provados.
Em certas circunstâncias, a inexistência do assentimento é evidente, como no caso do surgimento de um fato novo, no desenrolar de uma cirurgia. Se possível suspender o ato, sem risco, para submeter à decisão ao paciente em vista de novos exames do material encontrado, essa é a providência recomendada.
Como exemplo de como a falta do assentimento deve ser valorado pelo magistrado na responsabilização dos médicos, tem-se o caso das pessoas que são testemunhas de Jeová, uma religião cristã na qual seus adeptos acreditam em um único Deus chamado Jeová e seguem estritamente o que está escrito na Bíblia, dentre outras coisas, se recusando por convicção religiosa a receber transfusão de sangue em tratamentos médicos. Apesar de controvertida essa questão, os tribunais pátrios têm decidido que em casos em que não é possível consultar o paciente, seja porque corre risco de vida ou outra medida de caráter urgente, o médico que determina a transfusão de sangue não pode ser responsabilizado:
CAUTELAR. TRANSFUSÃO DE SANGUE. TESTEMUNHAS DE JEOVÁ. NÃO CABE AO PODER JUDICIÁRIO, NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO, AUTORIZAR OU ORDENAR TRATAMENTO MÉDICO-CIRÚRGICOS E/OU HOSPITALARES, SALVO CASOS EXCEPCIONALÍSSIMOS E SALVO QUANDO ENVOLVIDOS OS INTERESSES DE MENORES. SE IMINENTE O PERIGO DE VIDA, É DIREITO E DEVER DO MÉDICO EMPREGAR TODOS OS TRATAMENTOS, INCLUSIVE CIRÚRGICOS, PARA SALVAR O PACIENTE, MESMO CONTRA A VONTADE DESTE, E DE SEUS FAMILIARES E DE QUEM QUER QUE SEJA, AINDA QUE A OPOSIÇÃO SEJA DITADA POR MOTIVOS RELIGIOSOS. IMPORTA AO MÉDICO E AO HOSPITAL E DEMONSTRAR QUE UTILIZARAM A CIÊNCIA E A TÉCNICA APOIADAS EM SÉRIA LITERATURA MÉDICA, MESMO QUE HAJA DIVERGÊNCIAS QUANTO AO MELHOR TRATAMENTO. O JUDICIÁRIO NÃO SERVE PARA DIMINUIR OS RISCOS DA PROFISSÃO MÉDICA OU DA ATIVIDADE HOSPITALAR. SE TRANSFUSÃO DE SANGUE FOR TIDA COMO IMPRESCINDÍVEL, CONFORME SÓLIDA LITERATURA MÉDICO-CIENTÍFICA (NÃO IMPORTANDO NATURAIS DIVERGÊNCIAS), DEVE SER CONCRETIZADA, SE PARA SALVAR A VIDA DO PACIENTE, MESMO CONTRA A VONTADE DAS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ, MAS DESDE QUE HAJA URGÊNCIA E PERIGO IMINENTE DE VIDA (ART. 146, § 3º, INC. I, DO CÓDIGO PENAL). (...) (Apelação Cível Nº 595000373, Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Gischkow Pereira, Julgado em 28/03/1995) (Grifo Nosso)
Nesse sentido, considerando que a Constituição Federal no seu artigo 5º, VI, protege a liberdade de crença, apesar de haver controvérsias, resta resguardado o direito do paciente se recusar a um tratamento médico que viole sua fé, ainda que essa escolha, desde que livre e consciente, venha ocasionar a sua morte.
O profissional médico deve atender ainda aos cuidados requeridos pela profissão, no diagnóstico, na indicação terapêutica, na intervenção cirúrgica e no prognóstico.
O diagnóstico consiste na determinação da doença do paciente, seus caracteres e suas causas. O erro no diagnóstico não gera responsabilidade, salvo se este for realizado sem atenção, apresentando-se como erro manifesto e grosseiro.
Na indicação terapêutica, o médico é livre para a escolha do tratamento, decisão a que chega fazendo um balanço entre os riscos e a eficácia das medidas preconizadas, não podendo se abster de informar ao paciente as contra-indicações do tratamento escolhido.
O prognóstico dificilmente acarretará prejuízo, mas caso se dê em perícia médica, poderá acarretar dano moral a quem sofra os efeitos de errôneo juízo sobre o desdobramento futuro da doença.
Além disso, o médico ainda deve obediência às regras de higiene, sigilo (disposto no artigo 102 do Código de Ética), não pode abusar do seu poder submetendo o paciente a experiências, vexames ou tratamento incompatíveis com a situação, não pode abandonar o paciente sob seus cuidados, salvo caso de renúncia ao atendimento, por motivos justificáveis, assegurada a continuidade do tratamento (artigo 61 do Código de Ética). Em caso de impedimento eventual, deve garantir sua substituição por profissional habilitado e não pode, de maneira alguma, recusar o atendimento de paciente que procure seus cuidados em caso de urgência, quando não haja outro em condições de fazê-lo.
4.1. MEDICINA COLETIVA
O médico no exercício de seu labor estabelece contato com muitas pessoas e entidades, existindo relação entre ele e o hospital, os demais funcionários do hospital, a exemplo de enfermeiros, maqueiros, entre outros, e, ainda, com outros médicos, generalistas e especialistas, de forma que cada um desses vínculos se mostra relevante do ponto de vista da responsabilização jurídica. Desse modo, como bem aduz Ruy Rosado de Aguiar Júnior (2000):
Em primeiro lugar, é preciso distinguir entre (1) o ato médico propriamente dito, que somente pode ser realizado por médico (diagnóstico, indicação terapêutica, cirurgia, prognóstico), e pelo qual ele responde, (2) e os atos realizados por pessoal auxiliar mediante a sua direta supervisão, ou por pessoal qualificado que segue suas instruções, pelos quais também responde, (3) dos atos derivados do contrato de hospedagem, ligados à administração hospitalar, como o dever de guarda do doente, e (4) dos atos de tratamento, realizados em hospital ou em farmácia, de que são exemplos a administração de remédio errado, injeção mal feita, compressas excessivamente quentes etc., pelos quais o médico não responde. (AGUIAR JÚNIOR, 2000)
Dessarte, o hospital é uma universalidade de fato vinculado a uma pessoa jurídica, sua mantenedora, e sobre ele incide o artigo 1.545 do Código Civil, sendo-lhe aplicado os ditames da responsabilidade civil. Assim, uma relação hospitalar envolve uma relação jurídica complexa, o hospital firma com o paciente internado um contrato hospitalar, assumindo obrigações de meio, como hospedagem, alimentação e a prestação de serviços paramédicos (medicamentos, instalações, instrumentos, entre outros), possivelmente se incumbindo da prestação de serviços médicos propriamente ditos. Numa leitura contratualista, esta relação engloba um contrato de prestação de serviços médicos e paramédicos conjuntamente com um contrato de internamento, que nada mais é do que um contrato de locação e, eventualmente, de compra e venda (no caso de fornecimento de medicamentos ou dispositivos médicos) e de empreitada (a confecção de alimentos) (DIAS PEREIRA, 2009).
Nesse ínterim, responde o hospital também pelo dano causado pelo médico ou qualquer auxiliar que, no caso, atuam como empregados, consoante dispõe o artigo 1.521, III, do Código Civil: “São também responsáveis pela reparação civil: (...) III – o patrão, amo ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou por ocasião dele”.
Ademais, essa culpa é presumida, conforme entendimento exarado na súmula 341 do Supremo Tribunal Federal: “É presumida a culpa do patrão ou comitente pelo ato culposo do empregado ou preposto”. Contudo, isso não é um permissivo para a responsabilização do hospital a todo custo, pois não dispensa a prova da culpa do obreiro na prática do ato danoso. Isto é, o hospital não responde objetivamente, mesmo depois da vigência do Código de Defesa do Consumidor, quando se trata de indenizar dano produzido por médico integrante de seus quadros é preciso provar a culpa deste, para somente depois se ter como presumida a culpa do hospital.
O hospital também pode ser responsabilizado não apenas pelos atos comissivos, mas também por sua omissão, como pelo não atendimento do doente. Convém asseverar, no entanto, que nem sempre esse não atendimento configurará um dano cuja responsabilidade recairá sobre o hospital, uma vez que ele pode expressar-se tanto através de simples recusa, quanto pelo encaminhamento a outro hospital. No primeiro caso, a falta de assistência por defeito da organização, não mantendo o plantão ou os serviços necessários para atender a uma emergência previsível, é fator determinante da responsabilização do hospital. No segundo caso, a remessa justificada do doente a um hospital de referência não constitui motivo para a atribuição da responsabilidade.
4.2 A CULPA E SUA PROVA
A apuração da culpa do médico obedece aos mesmos procedimentos adotados para a definição da culpa comum: diante das circunstâncias do caso, o juiz deve estabelecer quais os cuidados possíveis que ao profissional cabia dispensar ao paciente, de acordo com os padrões determinados pela literatura médica, e confrontar essa norma concreta, fixada para o caso, com o comportamento efetivamente adotado pelo médico. Se ele não a observou, agiu com culpa.
A medida da indenização é a extensão dos danos. A culpa, ainda que levíssima, obriga a indenizar. Em se tratando de vida humana, não há lugar para “pequenas” culpas.
Contudo, não basta a culpa. Deve-se evidenciar também o vínculo causal, que liga o dano à conduta do agente. Nem sempre, porém, nos domínios da responsabilidade médica, o reconhecimento do nexo de causalidade é fácil (NETO, 2003).
Ademais, a produção probatória da culpa é dificultada, principalmente porque os fatos se desenrolam normalmente em ambientes reservados, seja no consultório ou na sala cirúrgica, e o paciente, além das dificuldades acarretadas pela própria enfermidade, não possui conhecimento para avaliar causa e efeito, é um leigo, nem sequer compreendendo na maioria das vezes o significado dos termos técnicos. A perícia, quase sempre efetuada por quem é colega do imputado causador do dano, impede a isenção e a imparcialidade, o que dificulta também a produção da prova da culpa do médico.
A experiência forense demonstra que processos visando à apuração da responsabilidade médica têm tramitação demasiadamente longa. É recomendável que os juízes imprimam especial celeridade a esses feitos, colhendo as provas ainda na flagrância dos acontecimentos - e, portanto, menos sujeitas à contaminação e influências. O juiz, ainda, deve socorrer-se de todos os meios válidos de prova: testemunhas, registros sobre o paciente existentes no consultório ou no hospital, laudos fornecidos e entre outros.
Quando a obrigação é de resultado, cabe ao autor da ação demonstrar o descumprimento do contrato por parte do prestador dos serviços médicos, mediante a prova de que o objetivo proposto não foi alcançado.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente artigo se dignou não só ao estudo da responsabilidade civil dos discípulos de Hipócrates, mas também a uma análise dos deveres do médico no exercício de sua profissão e as dificuldades na aferição da culpa e, principalmente, na produção de provas.
A par desse tema, ainda existe a inafastável realidade de ampliação crescente do número de reclamações administrativas ou judiciais fundadas em culpa atribuída à ação médica. Assevera-se que as pessoas vêm se tornando mais conscientes de seus direitos e, aliado a essa conjuntura, o distanciamento do médico, cada vez mais visto como prestador de serviços, e do paciente como usuário, tudo sob a ótica de uma relação de consumo, tornando-se rara a figura do médico “amigo da família”.
Em meio a essas mudanças, a doutrina civilista estabeleceu parâmetros para imputar ao profissional médico responsabilidade no cumprimento do seu dever se ele atua de maneira negligente, imprudente ou com imperícia – no caso de ter estabelecido com o paciente uma obrigação de meio – ou se não alcança um resultado determinado quando avençado em um contrato - assumindo assim, uma obrigação de fim.
Dessarte, na apreciação concreta da atuação profissional médica, devem os magistrados observar detidamente o contexto em que se desenvolveu a intervenção: condições gerais do hospital, meios colocados à disposição do médico, possibilidade de obtenção de exames complementares, de forma a se estabelecer, com razoável grau de certeza, a conduta recomendável, naquelas circunstâncias, e o eventual desvio, por imperícia, imprudência ou negligência, atribuível ao médico.
Vale ressaltar que provar que o médico agiu com culpa não é tarefa simples, devendo assim o juiz socorrer-se de todos os meios válidos de prova: testemunhas, registros sobre o paciente existentes no consultório ou no hospital, laudos fornecidos, entre outros.
O dever de indenização pressupõe nexo causal entre o dano e o ato que o originou. São indenizáveis os danos que sejam consequência direta desse fato. Além disso, em se tratando de vida humana, não há lugar para “pequenas” culpas. A culpa, ainda que levíssima, obriga a indenizar.
Assim, no exercício profissional da Medicina, uma falha pode ter consequências irremediáveis, porque a vida que se perde é irrecuperável. Por respeito à dignidade do ser humano, a relação contratual que se estabelece entre o médico e o paciente deverá estar sempre impregnada de cuidado, zelo e consideração pelo semelhante, pois o médico desemprenha função essencial, tornando mais suportáveis a dor e a morte.
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Formada pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB, tendo cursado um período da graduação na Universidade de Coimbra, Portugal. Pós-graduada em Direito Público pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Pós-graduada em Direito Civil pelo Faculdade Venda Nova do Imigrante - FAVENI. Analista Judiciária do Tribunal de Justiça de Pernambuco - TJPE.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MOREIRA, Camilla Gambarra. Compromisso de Hipócrates: um breve panorama acerca da responsabilidade civil dos médicos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 dez 2020, 04:20. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55938/compromisso-de-hipcrates-um-breve-panorama-acerca-da-responsabilidade-civil-dos-mdicos. Acesso em: 23 dez 2024.
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