FLÁVIO AUGUSTUS DA MOTA PACHECO[1]
WELLINGTON GOMES MIRANDA[2]
(orientadores)
RESUMO: Trata-se de escrito resultado de pesquisa exploratória, bibliográfica e descritiva que, tem a finalidade de discorrer sobre a legalidade e constitucionalidade da autuação ao recusar o teste do bafômetro. Valendo-se de abordagem quantiqualitativa, analisando pontos imprescindíveis, como a violação aos direitos e garantias individuais relativos à liberdade de ir e vir, a presunção de inocência e a individualização da pena. A pesquisa que serve como base para este trabalho possibilita uma articulação entre o Direito Constitucional, que é o ramo das ciências jurídicas que estuda a lei suprema do Estado Brasileiro e o Direito Penal que é utilizado como seu último recurso (última ratio), havendo extrema necessidade para as resoluções quando são afetados os bens jurídicos mais importantes em questão.
PALAVRAS-CHAVE: Liberdade de ir e vir. Presunção de inocência. Auto de infração. Etilômetro. Individualização da pena.
ABSTRACT: This is a written result of exploratory, bibliographic and descriptive research that aims to discuss the legality and constitutionality of the assessment when refusing the breathalyzer test. Using a quantitative and qualitative approach, analyzing essential points, such as the violation of individual rights and guarantees regarding the freedom to come and go, the presumption of innocence and the individualization of the penalty. The research that serves as the basis for this work allows an articulation between Constitutional Law, which is the branch of legal sciences that studies the supreme law of the Brazilian State and Criminal Law that is used as its last resort (ultimate ratio), with extreme need for resolutions when the most important legal assets in question are affected.
KEYWORDS: Freedom to come and go. Presumption of innocence. Infraction notice. Ethometer. Individualization of the penalty.
Sumário: Introdução – 1. O direito de não produzir prova contra si mesmo e o direito de permanecer em silêncio; 1.1. O princípio da presunção de inocência e a questão do ônus da prova; Considerações finais. Referências.
INTRODUÇÃO
Em 1997 foi sancionado o novo CTB que determinava o limite de gramas de álcool por litro (g/l) medido por etilômetro. Já em 2008 foi criada a Lei nº 11.705, a famosa Lei Seca, que após muitas discussões foi aprovada buscando diminuir os acidentes de trânsito, já que boa parte tem o envolvimento de condutores alcoolizados. De lá pra cá essa Lei sofreu diversas mudanças, tornando-se cada vez mais rígida.
No ano de 2016 foi incluído na Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997 (BRASIL,1997) nosso Código de Trânsito Brasileiro o artigo 165-A, pela Lei nº 13.281, gerando uma acirrada controvérsia, questionamentos e dúvidas, pois estipula severas punições para quem se recusa fazer o teste do bafômetro. A maior discussão então seria sobre à constitucionalidade do dispositivo, posto que pode ferir direitos fundamentais como o da liberdade, da presunção de inocência e da não auto incriminação.
Com o passar dos anos começou a se formar um entendimento judicial em alguns estados, considerando a simples recusa ao teste como sendo insuficiente para a aplicação das sanções, iniciando uma corrente pela inaplicabilidade, por inconstitucionalidade, do artigo aludido.
Com isso, é bastante discutido sobre o acusado não ser obrigado a ceder o sangue para exame, soprar o etilômetro, até porque esse tipo de prova envolve a violabilidade do corpo humano do suspeito. Ocorrendo a recusa, existe o meio de prova testemunhal também.
Sendo assim, quando alguém usufrui do direito de não se autoincriminar, não estar submetido a qualquer sanção. Até porque o que está autorizado por uma norma, não deve estar proibido por outra. Portanto, será isso que será tratado com mais clareza no presente trabalho.
1 O DIREITO DE NÃO PRODUZIR PROVA CONTRA SI MESMO E O DIREITO DE PERMANECER EM SILÊNCIO
Vale destacar que, embora sempre mencionado pela doutrina e jurisprudência, o direito de não produzir prova contra si mesmo não está manifestado explicitamente em nosso ordenamento jurídico.
No art. 5º. LXIII, a Constituição da República Federativa do Brasil garante o direito ao silêncio, ao antecipar que "o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado” (BRASIL, 1988).
E complementando nessa mesma lógica, o Pacto De San José Da Costa Rica ou Convenção Americana De Direitos Humanos, que foi integrado no direito brasileiro através do Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992 (PLANALTO.GOV.BR, 1992, Art. 8) antevê no artigo 8º que
2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:
g) direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada; e […]
O objetivo é tentar entender se este direito abarca apenas o impedimento de arrancar obrigatoriamente do incriminado subsídios verbais que possam prejudica-lo, ou se é totalmente inaceitável que o Estado constranja o indivíduo a produzir provas contra si mesmo.
Segundo explica Moro (2006, p. 434) não se verifica com facilidade contextos que expliquem o aumento do direito ao silêncio para proteger as comunicações dos signos visuais. Pois isso, conforme ele, compelir, através do processo legal, o incriminado a contribuir com o processo em determinados casos específicos não atinge, com exceção dos casos de confissões, a confiabilidade da prova. O autor ainda elucida que em nenhuma hipótese pode ser legitimada a tortura ou qualquer outro meio de coação proibidos pelo Direito.
Finaliza que, nos dias de hoje, o direito de permanecer em silêncio possui o objetivo de tentar prevenir ao máximo, mesmo que não seja de forma absoluta, a realização de confissões obrigadas, independente de ser ameaça física ou moral, e evitar que o incriminado seja submetido a ter que confessar o crime.
Pacelli (2018, p. 45) seguindo o mesmo raciocínio, entende que o direito de permanecer em silêncio envolve não só a possibilidade que o incriminado ou o encarcerado continue em silêncio no percorrer de toda a investigação e mesmo em juízo, mas também evita que ele seja forçado a produzir ou a cooperar com a concepção da prova contrária ao seu interesse. O autor destaca ainda que nesta última conjectura a participação do réu é permitida em casos extravagantíssimos, que não só estejam expressamente previstos pela lei, mas que também não afete a integridade do agente.
As hipóteses legalmente previstas no ordenamento jurídico brasileiro são o fornecimento pelo acusado da sua escrita de próprio punho, para o reconhecimento de escritos por meio da comparação da letra e a realização do teste do etilômetro (bafômetro), a qual está prevista no art. 306, §2 do Código de Trânsito Brasileiro - com redação dada pela Lei nº 12.971, de 2014. (PLANALTO.GOV.BR, 2014, Art. 306, §2). Acresça-se que a Lei nº 13.281, de 4 de maio de 2016 (BRASIL, 2016) alterou o CTB para expressamente tipificar a sanção a quem se recusa a se submeter a teste, exame clínico, perícia ou outro procedimento que permita certificar influência de álcool ou outra substância psicoativa.
Em sentido contrário, grande parte da jurisprudência, incluindo o Superior Tribunal de Justiça, atualmente entende que nessas hipóteses há uma violação ao suposto direito de não produzir prova contra si mesmo.
No julgamento do HC 166.377 - SP (Superior Tribunal de Justiça, 2010) de relatoria do Ministro Og Fernandes, o Denunciado dirigia o veículo automotor pela contramão de direção, momento em que foi interceptado por uma viatura policial. Na abordagem realizada pelos policiais militares, foi constatado o visível estado de embriaguez alcoólica do denunciado, que se recusou a se submeter a qualquer exame de alcoolemia, inclusive o bafômetro. Por esse motivo, a defesa sustentava a falta de justa causa para a ação penal em razão da ausência de provas, apontando que o acusado foi submetido apenas a exame clínico, "o qual não é apto para constatar a concentração de álcool por litro de sangue”.
Em seu voto, o Min. Fernandes (2010, p. 06) argumentou que
[…] o indivíduo não é obrigado a se autoincriminar (produzir prova contra si mesmo) e, em razão disso, não ser obrigado a se submeter ao teste de bafômetro ou a exame de sangue e, também, que o crime previsto no art. 306 do CTN exige a realização de prova técnica específica […].
No Acórdão (Superior Tribunal de Justiça, 2010), os eminentes Ministros foram unânimes em conceder a ordem de habeas corpus, por entenderem que, com o advento da Lei nº 11.705/08, a figura típica só se perfaz com a quantificação objetiva da concentração de álcool no sangue na dosagem etílica superior a 6 (seis) decigramas, a qual não pode ser presumida, tornando-se indispensável a prova técnica consubstanciada no teste do bafômetro ou no exame de sangue.
Insta mencionar que a Lei nº 12.971, de 9 maio de 2014 (BRASIL, 2014), alterou o art. 306 do CTB, admitindo no §2 deste dispositivo outros meios de prova, tais como "teste de alcoolemia ou toxicológico, exame clínico, perícia, vídeo, prova testemunhal ou outros meios de prova em direito admitidos, observado o direito à contraprova.”
No mesmo sentido do entendimento do STJ, recentemente o Ministério Público Federal manifestou-se em parecer no recurso especial nº 1.720.065/RJ (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2018), defendendo que a recusa em submeter-se ao teste do etilômetro não implica, por si só, em implacável reconhecimento de estado de embriaguez, sob pena de violação da vedação à autoincriminação, do direito ao silêncio, da ampla defesa e do princípio da presunção de inocência.
E ainda, o Santos (2018, p. 2682) argumentou que
[…] se o indivíduo não pode ser compelido a se autoincriminar, nemo tenetur se detegere, não pode ser obrigado a efetuar o teste do bafômetro, competindo à autoridade fiscalizadora provar a embriaguez a fim de aplicar as sanções previstas pelo art. 165 do Código de Trânsito Brasileiro através dos mecanismos dispostos pelo artigo 277 do mesmo diploma […]
Dessa forma, o MPF concluiu que na inexistência do teste de alcoolemia, cabe à autoridade de trânsito a produção de outras provas do suposto estado de embriaguez do ora recorrido por meios diversos, tais como o exame pericial, a comprovação testemunhal ou, até mesmo, a descrição do estado físico e mental do abordado.
Na Súmula HC: 93916 a Min. (Lúcia, 2008) já se posicionou sobre o assunto:
“Habeas corpus. constitucional. impossiblidade de se extrair qualquer conclusão desfavorável ao suspeito ou acusado de praticar crime que não se submete a exame de dosagem alcoólica. direito de não produzir prova contra si mesmo: nemo tenetur se detegere. indicação de outros elementos juridicamente válidos, no sentido de que o paciente estaria embriagado: Possibilidade. lesões corporais e homicídio culposo no trânsito. descrição de fatos que, em tese, configuram crime. inviabilidade do trancamento da ação penal.
1. Não se pode presumir que a embriaguez de quem não se submete a exame de dosagem alcoólica: a Constituição da República impede que se extraia qualquer conclusão desfavorável àquele que, suspeito ou acusado de praticar alguma infração penal, exerce o direito de não produzir prova contra si mesmo: Precedentes.
(...).
3. Ordem denegada”.
Assim, percebe-se que a Suprema Corte Brasileira também defende a existência do direito de não produzir prova contra si mesmo. Entretanto, concordamos com o posicionamento de Pacelli (2018, p. 391), isso porque, o objetivo do direito ao silêncio é proteger a integridade física, psíquica e moral do acusado. Ou seja, o direito ao silêncio busca proteger o réu de medidas realizadas pelo o Estado que afetem a integridade ou a dignidade do acusado. Nesse sentido, compelir alguém a soprar o aparelho do etilômetro não nos parece atingir a sua integridade.
De mesmo modo, assim como concluiu Moro (2006, p. 441), acreditamos que não há argumentos jurídicos ou históricos que autorizem a dilatação do direito ao silêncio para um direito genérico de produzir prova contra si mesmo. Conforme bem expõe o autor, “A invocação de pretenso direito da espécie pela doutrina e jurisprudência brasileiras é mais fruto do poder de um slogan do que de robusta argumentação jurídica.” Ainda, no direito comparado, não se tem notícia de limitação do teste do bafômetro.
Enquanto o legislador brasileiro optou por tratar a questão da recusa ao teste de alcoolemia no Código de Trânsito Brasileiro (PLANALTO.GOV.BR, 2020) ou seja, fora da lei penal, no Direito Comparado, a Espanha, por exemplo, optou por tratar esse tema no próprio Código Penal. In verbis:
Artículo 383. El conductor que, requerido por un agente de la autoridad, se negare a someterse a las pruebas legalmente establecidas para la comprobación de las tasas de alcoholemia y la presencia de las drogas tóxicas, estupefacientes y sustancias psicotrópicas a que se refieren los artículos anteriores, será castigado con la penas de prisión de seis meses a un año y privación del derecho a conducir vehículos a motor y ciclomotores por tiempo superior a uno y hasta cuatro años.
Em outras palavras, a lei espanhola estipulou a pena de prisão de seis meses a um ano e a suspensão do direito de dirigir veículos automotores e ciclomotores por período superior a um e até quatro anos para o condutor que, requerido por uma autoridade, se negue a se submeter às provas legalmente previstas para a comprovação das taxas de alcoolemia e a presença de outras substâncias psicotrópicas.
Já em Portugal, o Código da Estrada prevê, no artigo 152, inciso 3, (DRE.PT, 2020, Art. 152, 3) que os condutores, peões (pedestres) intervenientes em acidentes de trânsito e pessoas que se propuserem iniciar a condução que recusem a se submeter às provas estabelecidas para a detecção do estado de influência pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas são punidas por crime de desobediência.
Interessante lembrar que no ordenamento jurídico brasileiro, a realização do teste do bafômetro é obrigatória, uma vez que o artigo 165-A da Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997 prevê sanção (multa, suspensão do direito de dirigir, recolhimento do documento de habilitação e retenção do veículo) em caso da recusa à realização ao teste. (PLANALTO.GOV.BR, 2020, Art. 165-A). Ocorre que, um alto número de pessoas, sabendo do “slogan" adotado pelo Poder Judiciário Brasileiro de que ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo, ingressam com ação para afastar os efeitos previstos na lei, e na maioria dos casos consegue decisão favorável do juiz.
Quanto a aplicação do princípio do nemo tenetur se detegere na questão da obrigatoriedade de o acusado ser submetido ao teste de etilômetro, de DNA ou outros exames, Queijo aduz (2003, p. 432) que com relação às provas produzidas com a cooperação do acusado, mas sem intervenção corporal
[…] poderão ser determinadas pela autoridade policial ou pela autoridade judiciária, mesmo sem o consentimento do acusado, desde que impliquem apenas a colaboração passiva deste; - se a prova for determinada pela autoridade policial, ficará sujeita, obrigatoriamente, ao controle jurisdicional, feito a posteriori; se necessitarem, para a sua produção, de colaboração ativa do acusado, imprescindível será o seu consentimento, precedido de advertência com relação ao nemo tenetur se detegere, exteriorizado previamente à realização da prova, livre e conscientemente de modo expresso; - para atender ao princípio da proporcionalidade, poderão ser determinadas quando houver indícios de autoria ou participação em infração penal, seja ela contravenção ou crime apenado com detenção ou reclusão.
Em síntese, conforme explicam Bedê Júnior e Senna (2009, p. 42-43), sobre a aplicação do direito ao silêncio na questão da obrigatoriedade de o acusado ser submetido ao teste de etilômetro, há duas correntes bem marcadas: a primeira defende ser impossível a submissão do réu a qualquer perícia contra a sua vontade, não se podendo extrair da recusa nenhuma presunção de culpa. Já a segunda corrente defende a possibilidade de sujeição do réu a exames compulsórios.
A primeira corrente fundamenta-se na não obrigatoriedade de o indivíduo submeter-se ao teste do bafômetro, pois mostra-se como um direito público subjetivo a não realização de provas contra si.
Já a segunda corrente, a qual nos filiamos, juntamente com Pacelli, Moro, Bedê e Senna, fundamenta-se no fato de que não há base normativa que sustenta o direito genérico de não produzir prova contra si mesmo. O que há, na realidade, é o expresso direito ao silêncio, que compreende a possibilidade do acusado ou réu permanecer em silêncio sem que seja usado em seu prejuízo e abrange a impossibilidade de forçar o sujeito a realizações de exames que afetem a integridade ou dignidade do acusado, o que não é o caso do bafômetro.
Portanto, defende-se a possibilidade legal e constitucional da sujeição do acusado ao teste do etilômetro ou outro teste de alcoolemia de forma obrigatória, com a consequente sanção em caso da negativa de sua realização.
Portanto, demonstra-se aqui outro posicionamento doutrinário no qual os autores defendem a possiblidade legal e constitucional das consequências caso o acusado negue ao teste do bafômetro ou qualquer outro similar de forma obrigatória, com as devidas sanções no caso de recusa.
1.1 O PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E A QUESTÃO DO ÔNUS DA PROVA.
Tendo em vista que o tema em análise envolve a questão da produção de prova, não há como deixar de falar sobre o princípio da presunção de inocência e sobre o ônus da prova.
Primeiramente, é importante definir o que é prova. Conforme Dinamarco (2001, v. 3, p. 43.), “prova é um conjunto de atividades de verificação e demonstração, mediante as quais se procura chegar à verdade dos fatos relevantes para julgamento”. Já para Echandia (1972, p. 34), “prova é todo motivo ou razão levado ao processo pelos meios e procedimentos aceitos pela lei, para levar ao juiz o convencimento ou a certeza sobre os fatos”.
Para Lopes Jr. (2017, p. 344.), “[…] o conceito de prova está vinculado ao de atividade encaminhada a conseguir o convencimento psicológico do juiz.” O autor acrescenta que
Em suma, o processo penal tem uma finalidade retrospectiva, em que, através das provas, pretende-se criar condições para a atividade cognitiva do juiz acerca de um fato passado, sendo que o saber decorrente do conhecimento desse fato legitimar o poder contido na sentença.
Com isso, compreende-se que o objeto da prova é sempre a alegação de um fato e não o fato em si mesmo. Isso porque
Os fatos, em si mesmos, são acontecimentos que têm existência no mundo real. O fato aconteceu ou não, existiu ou não, não comportando adjetivações ou valorações. Aquilo que existe na realidade não pode ser verdadeiro ou falso; simplesmente existe. Verdadeiros ou falsos só podem ser nossos conhecimentos, nossas percepções, nossas opiniões, nossos conceitos ou nossos juízos a respeito de um objeto. Os 'fatos' debatidos no processo são enunciados sobre os fatos do mundo real, isto é, aquilo que se diz em torno de um fato: é a enunciação de um fato e não o próprio fato. Em consequência, o objeto da prova não é o próprio fato. O que se prova são as alegações dos fatos feitas pelas partes como fundamento da acusação e da defesa. O que pode ser verdadeiro ou falso, verídico ou inverídico, ou ‘probo’, são as alegações sobre o fato.
No caso do presente estudo, ou a pessoa está embriagada, ou seja, ingeriu substâncias que alteram sua capacidade psicomotora; ou está sóbria. A questão é compreender, em primeiro lugar, se o acusado que possui interesse em demonstrar a sua inocência, ao se negar a efetuar o teste do etilômetro, denota com a sua atitude uma provável existência de culpa, ou seja, de estar embriagado. Em segundo lugar, busca-se verificar se a opção adotada pelo legislador de tornar obrigatória a realização do teste do etilômetro, ao tipificar a própria conduta de recusar-se a ser submetido a procedimento que permita certificar influência de álcool ou outra substância psicoativa, está de acordo com as garantias processuais penais e com a Constituição Federal.
Quanto à primeira indagação, não se vislumbram motivos plausíveis/razoáveis para alguém que não tenha ingerido bebida alcoólica ou outra substância psicoativa se recusar a soprar o aparelho do etilômetro. Isso porque, a alegação de que o aparelho de bafômetro pode estar “descalibrado" pode ser contra argumentada pela possibilidade de se efetuar um segundo teste (de etilômetro em outro aparelho ou exame de sangue ou exame clínico) no momento do flagrante.
Ainda, a Portaria nº 202, de 4 de junho de 2010, do INMETRO, em seu item 7.2.2 determina que o aparelho do etilômetro deve passar por uma calibração a cada 12 (doze) meses. Nesse sentido, quando essa determinação não é cumprida, certamente a prova deve ser desconsiderada. Já há admirável entendimento do Superior Tribunal de Justiça sobre essa questão:
Penal e processual penal. embriaguez ao volante. art. 306 da lei n.º 9.503/1997. dosagem alcóolica. aferição. lei n.º
11.705/08. fato anterior à alteração normativa cristalizada na lei n.º 12.760/12. ausência de exame de sangue. sujeição ao bafômetro. aparelho sem aferição há quase dois anos. imprestabilidade da prova. tipicidade. inexistência. ação penal. trancamento. recurso provido.
1. Com a redação conferida ao artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro pela Lei n.º 11.705/08, tornou-se imperioso, para o reconhecimento de tipicidade do comportamento de embriaguez ao volante, a aferição da concentração de álcool no sangue de maneira precisa.
2. A Lei n.º n.º 12.760/12 modificou a norma mencionada, a fim de dispor ser despicienda a avaliação realizada para atestar a gradação alcóolica, acrescentando ser viável a verificação da embriaguez mediante vídeo, prova testemunhal ou outros meios de prova em direito admitidos, observado o direito à contraprova, de modo a corroborar a alteração da capacidade psicomotora.
3. Contudo, no caso em apreço, praticado o delito com a redação primeva da legislação e ausente exame de sangue, a sujeição do recorrente a etilômetro sem aferição pelo INMETRO, há quase dois anos, torna imprestável a demonstração da embriaguez, denotando ser desarrazoado validar a persecução penal fundada naquela prova, cuja precisão não se tem no caso concreto. Ausência de justa causa demonstrada.
4. Recurso ordinário provido para trancar a ação penal no tocante ao crime do art. 306 do CTB.
Por essa razão, não há porque temer o aparelho descalibrado, pois caso isso se confirme a prova não poderá ser utilizada.
Em relação à segunda indagação, vimos que não há argumentos jurídicos ou históricos que autorizem a dilatação do direito ao silêncio para um direito genérico de produzir prova contra si mesmo, uma vez que não há menção expressa a este direito no nosso ordenamento jurídico, nem nos tratados internacionais os quais o Brasil é signatário. Ademais, o objetivo do direito ao silêncio é proteger o réu de medidas realizadas pelo o Estado que afetem a sua integridade física, psíquica ou a dignidade humana. Sendo assim, assoprar o aparelho do etilômetro por alguns segundos não lesionar a integridade física do ser humano.
Quanto ao princípio da presunção de inocência, o art. 5º (CRFB, 1988. Art. 5. LVII) garante que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". Para Lopes Jr, (2017, p. 349) “a presunção de inocência é uma barreira de contenção que, somente superada, pode legitimar uma condenação.” Nesse sentido, para que o réu seja condenado, é necessário que existem provas capazes de demonstrar que ele praticou um ato típico, ilícito e culpável. Com isso, o juiz se utilizará das provas para confirmar ou negar a enunciação da existência de um fato.
Sobre o ônus da prova, Badaró (2003, p. 196.) entende que inclusive nos processos regidos pelo princípio inquisitivo, compreendido esta como livre investigação da prova, ainda que os poderes instrutórios sejam utilizados pelo juiz, poderá permanecer a dúvida sobre fato relevante no momento de decidir. Acrescenta que por mais amplos que sejam os poderes concedidos ao juiz no campo probatório, e por melhores que sejam os meios de investigação, não se pode excluir a dúvida com resultado da atividade instrutória. Conclui que é fundamental que exista uma regra determinando ao juiz como decidir sobre aquele fato que se mostrou incerto ao final da instrução. Essa regra de julgamento a determinar a solução para a hipótese de dúvida judicial é denominada como ônus objetivo da prova, o qual o autor entende que deve existir sempre, independentemente de tratar-se de processo “dispositivo" ou “inquisitório”, ou seja, de um processo em que o juiz seja inerte ou tenha poderes probatórios.
Portanto, a afirmação de que o ônus da prova é incompatível com a “busca da verdade material” e com os poderes probatórios de que é atribuído o juiz para cumprir tal intuito é fruto de uma concepção parcial e incompleta do conceito de ônus. É possível que a parte não se desincumba do ônus da prova, mas que dessa inércia não decorra um prejuízo, pois o juiz determinou a produção de provas ex officio, que comprovaram a existência do fato favorável ao onerado. Nesta hipótese, haverá ônus da prova, embora se trate de ônus relativo ou imperfeito. Vejamos o que dispõe o Código de Processo Penal:
Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício: (Redação dada pela Lei nº 11.690, de 2008)
I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida; (Incluído pela Lei nº 11.690, de 2008)
II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante. (Incluído pela Lei nº 11.690, de 2008)
Por essas razões, concorda-se com Badaró ao afirmar que os poderes instrutórios do juiz no processo penal não são incompatíveis com a noção de ônus. Dito isso, é evidente que o acusado possui interesse na atividade probatória em buscar provas que confirmem a sua inocência.
Dessa forma, apesar de o ônus da prova da culpa do acusado recair sobre a acusação, todo acusado tem direito à prova, ou seja, a possibilidade de se levarem ao processo todos os elementos necessários à demonstração de sua inocência. Isso significa dizer que mesmo não recaindo sobre o acusado o ônus de provar a sua inocência, cabendo à acusação o esforço de provar a culpabilidade do acusado, é evidente que existe um interesse dele em demonstrar a sua inocência.
Ainda que o ônus da prova seja da acusação e apesar do fato de o réu possuir o direito ao silêncio, isto é, ele pode permanecer em silêncio e não ser considerado culpado, defende-se, no mesmo raciocínio de Bedê e Senna (2009, p. 38.), que esse direito não impede o acusado de colaborar nas investigações e na elucidação do fato criminoso, visto que o acusado tem interesse em provar sua inocência. Ademais, o princípio do nemu tenetur se detegere não acoberta medidas dos que pretendem dificultar ou destruir os meios de prova da prática do crime.
Portanto, em que pese o ônus da prova ser da acusação, defende-se a compatibilidade da obrigatoriedade do teste do etilômetro com o princípio da presunção de inocência e com o ônus da prova.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Procurou a pesquisa em questão tratar sobre qual é a legalidade e constitucionalidade da autuação ao recusar o teste do bafômetro. É sabido que o policial assim como qualquer outro servidor público é dotado de fé pública, e tem competência para lavrar um auto de constatação de embriaguez nos casos de recusa e quando existirem os indícios suficientes para tal.
Porém, quando não há a lavratura do auto, a hipotética infração carece de provas, assim como determina a Resolução do Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN) 432/2013, que versa sobre a obrigatoriedade do preenchimento do termo específico para a comprovação da infração, no caso de recusa à realização dos testes pelo condutor.
É importante rever a obrigação dessa constatação em caso de blitz por exemplo, independentemente dos conceitos morais, não podemos deixar de lado os princípios constitucionais. Apesar do Policial ter a fé pública, ele não exerce competência funcional para dar diagnósticos, visto que ele poderia até testemunhar odor etílico, descoordenação, mas muitas vezes esses sintomas podem ser de outras substâncias ou até decorrentes do estado de saúde. As vezes a previsão da lei pode ser justa aos olhos do leigo, mas não é de direito.
Esse entendimento busca resguardar o cidadão de bem, que por direito opta em não se submeter ao exame, e quando os Agentes não constam o conjunto de sinais necessários para validar o auto de infração.
Por fim, é um conteúdo que gera muitas discussões, com argumentos fortes e fundamentados para os dois lados, tanto para quem entende ser correta a sanção para quem recusa soprar o bafômetro, como também para quem entende ser totalmente constitucional.
REFERÊNCIAS
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[1] Administrador, Mestre em Administração e Doutor em Administração. Professor da universidade federal do Tocantins e do centro universitário Católica do Tocantins.
[2] Professor da Unicatólica do Tocantins, Mestre em Direitos Humanos e Prestação Jurisdicional pela ESMAT/UFT, especialista em Estado de Direito e Combate à Corrupção pela ESMAT/UFT, especialista em Direito do Trabalho pelo Instituto Processus Brasília/DF, analista jurídico do Ministério Público do Estado do Tocantins, Médico Veterinário e bacharel em Direito.
Bacharelando em Direito pelo Centro Universitário Católica do Tocantins (UniCatólica).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VIETH, Maurício. Aspectos jurídicos da recusa da realização do teste de etilômetro. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 dez 2020, 04:27. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55947/aspectos-jurdicos-da-recusa-da-realizao-do-teste-de-etilmetro. Acesso em: 23 dez 2024.
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