Ao se tratar de concurso público é consagrado no meio jurídico o pensamento segundo o qual o edital do certame faz lei entre as partes. Com isto se quer dizer algo bastante objetivo, ou seja, as normas jurídicas veiculadas no instrumento convocatório vinculam tanto a Administração Pública quanto os candidatos.
Esse princípio da vinculação ao instrumento convocatório se traduz numa forma de garantir a segurança jurídica. Os candidatos precisam entender previamente como se dará o comportamento da Administração Pública no decorrer do certame.
E esse modo de atuar – ao se gerir a coisa pública de que trata o concurso público – desperta uma confiança legítima nos atos administrativos que serão praticados, em outras palavras, uma justa expectativa de coerência estatal em relação aos cidadãos destinatários das normas jurídicas do certame.
O poder confiar na Administração Pública se traduz em postulado inquebrantável. Não se pode admitir, sob qualquer ótica, a ilusão, a desfaçatez, a simulação, a má-fé ou o descompromisso com o pactuado. Principalmente se a Administração Pública suscitou no outro (cidadão-candidato) o sentimento real de que este poderia nela confiar.
A promessa traz consigo a consequência. Se o ato administrativo cria a trilha do esperado, não pode a Administração Pública caminhar pela floresta da contradição. É dizer que a participação democrática dos cidadãos nos processos se admissão no serviço público precisa de elevada previsibilidade.
Quem presta concurso público não merece – nem espera – ter surpresas indesejadas.
Sob essas premissas, é comum na praxe forense e na jurisprudência a acepção segundo a qual o sistema jurídico se funda exatamente na base da confiabilidade:
Porque o que é combinado não é caro nem barato e porque o prévio orçamento da ré, entidade hospitalar, tal qual a proposta, vincula, no seu valor e nas circunstâncias fixa-se o da dívida da autora, cuja consignatória julga-se procedente na íntegra. Mantém-se, porém, a rejeição à pretendida indenização moral. (TJSP; Apelação Cível 0135987-82.2012.8.26.0100; Relator (a): Celso Pimentel; Órgão Julgador: 28ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 38ª Vara Cível; Data do Julgamento: 17/11/2014; Data de Registro: 17/11/2014) (grifou-se)
Sendo essa a dimensão que se extrai da relevante vinculação que há no edital do concurso público entre a Administração Pública e os candidatos, vale pontuar um tema pouco explorado no campo jurisprudencial e doutrinário, qual seja a extensão da vinculação às resoluções e aos regulamentos prévios ao efetivo edital.
Tem se tornado bastante comum, notadamente em concursos públicos de maior complexidade em sua execução, a elaboração preliminar de resoluções e regulamentos prévios ao edital. Às vezes, com vários meses antes da publicação deste último. São atos administrativos que veiculam verdadeiros comandos para os administrados (candidatos), impondo normas jurídicas, prevendo comportamentos e suscitando, assim, a confiança na manutenção de determinadas situações administrativas.
Essa realidade é bastante sentida, por exemplo, nos concursos públicos de ingresso em carreiras jurídicas de Estado como a Advocacia Pública, a Defensoria Pública, o Ministério Público e a Magistratura, haja vista o elevado número de fases e a própria complexidade da função pública a ser exercida, a qual exige um modo rigoroso de seleção.
Como ignorar que esses regulamentos e resoluções acabam por despertar nos candidatos uma previsibilidade de comportamentos da Administração Pública? Como dizer, por exemplo, que seria possível o regulamento prever um cadastro de reserva além do número de cargos públicos a serem ofertados no futuro edital, suscitando essa justa expectativa na preparação para o certame, vindo, ao final, a frustrar os candidatos com a exclusão do referido cadastro na elaboração do edital?
Outros exemplos também podem ser dados, como a alteração abrupta no edital quanto ao conteúdo programático divulgado previamente na resolução ou regulamento do certame. A aplicação de prova oral não prevista inicialmente. A mudança do quantitativo máximo de candidatos no balizador da cláusula de barreira de uma etapa para outra do certame. A alteração dos títulos passíveis de pontuação. Entre outras diversas situações que poderiam ocorrer.
A par disso, seria adequado dizer que apenas o edital cria vínculos? Poderia, então, a Administração Pública praticar atos completamente contraditórios apenas porque só o edital poderia vinculá-la a se manter coerente, íntegra e estável?
Sem embargo das posições divergentes, entende-se que quaisquer atos administrativos são aptos a gerar a confiança legítima nos administrados, inclusive e principalmente as resoluções e os regulamentos prévios ao edital. Até porque não se pode presumir a existência de atos administrativos inócuos, sem finalidade e desprovidos de responsabilidade por parte da Administração Pública.
Nesse sentido, já se posicionou a jurisprudência:
CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO. REVISÃO DA PROVA DISCURSIVA PELA COMISSÃO EXAMINADORA. CABIMENTO. VINCULAÇÃO AO EDITAL E À RESOLUÇÃO DO REGULAMENTO DO CONCURSO. SEGURANÇA CONCEDIDA. I - A prática de atos relacionados a certame público deve ser materializada de acordo com as normas constantes do edital, sendo vedado interpretação extensiva. II - A competência para receber e decidir os recursos administrativos das correções das provas discursivas do Concurso Público para provimento de cargo de Juiz de Direito substituto do Estado do Maranhão, regulado pelo Edital n. 02/2008 e pela Resolução n. 22/2008-TJMA, é da Comissão Examinadora do Concurso. Segurança concedida. (TJ/AM, MS 0091632009, Rel. Desembargador (a) CLEONICE SILVA FREIRE, TRIBUNAL PLENO, julgado em 22/07/2009, DJe 30/09/2009) (grifou-se)
Frente a essas ideias é necessário que a Administração Pública analise o princípio da vinculação ao instrumento convocatório de modo mais amplo, consentâneo com os seus deveres de coerência comportamental, garantindo aos administrados (candidatos) a segurança jurídica. Porque independentemente de resoluções, regulamentos ou editais, o sistema jurídico visa a proteger a confiança.
O poder confiar vai além da mera nomenclatura edital. A confiança é elemento de conduta. Ao se portar de dado modo a Administração Pública conduz o cidadão a crer nesse viés. E é impossível, assim, abandonar os rumos do comportamento anterior num giro contraditório baseado na acepção superficial de que apenas o edital vincularia. O vínculo, na realidade, advém da essência da mensagem e do conteúdo emanado dos atos administrativos (inclusive pretéritos ao edital), e não da mera chancela do ato administrativo ser caracterizado como edital.
NOTAS:
COUTINHO, Alessandro, FONTENELE, Francisco. Concurso Público: os direitos fundamentais dos candidatos. São Paulo: Editora Método, 2014.
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