RESUMO: O crescimento acentuado da expectativa de vida dos brasileiros tornou atual e relevante o estudo sobre o tema abandono afetivo. O artigo presente tem como base o entendimento sobre uma variação do abandono afetivo, o que a doutrina chama de abandono afetivo inverso, que se caracteriza de forma geral pelo abandono do idoso por seus descendentes. Embora hodierno e significativo, é quase nula a presença de estudos, leis e ações que visem inibir o desamparo de idosos. Logo torna-se relevante para a sociedade a reflexão sobre os princípios que regem estas relações e sobre os direitos inerentes a estas pessoas.
Palavras-Chave: Abandono. Idoso. Direitos.
ABSTRACT: The sharp growth in life expectancy of Brazilians made the study on the topic of emotional abandonment current and relevant. The present article is based on the understanding of a variation in affective abandonment, what the doctrine calls reverse affective abandonment, which is generally characterized by the abandonment of the elderly by their descendants. Although modern and significant, the presence of studies, laws and actions that aim to inhibit the helplessness of the elderly is almost null. Soon it becomes relevant for society to reflect on the principles that govern these relationships and on the rights inherent to these people.
Keywords: Abandonment. Elderly. Rights.
SUMÀRIO: 1. Introdução – 2. O Idoso e o Abandono – 3. Relação Familiar: 3.1 Princípios do direito de família: 3.1.1 Principio da proteção da dignidade da pessoa humana; 3.1.2 Princípio da solidariedade; 3.1.3 Princípio da afetividade – 4. Proteção do Estado – 5. Projetos de lei acerca do abandono afetivo inverso – 6. O desamparo na pandemia – 7. Considerações finais.
1.INTRODUÇÃO
A relação familiar tem sido a base da sociedade. É evidente que hoje há novas formas de se relacionar e configurar-se em família, porém, mesmo com todas as inovações, o afeto, o cuidado, a convivência, ainda são primordiais e protegidos por lei para aqueles em situações de vulnerabilidade.
Vale ressaltar o que bem exemplificou Flávio Tartuce (2016, p.25) “... o afeto equivale à interação entre as pessoas, e não necessariamente ao amor, que é apenas uma de suas facetas”. Portanto o centro do debate sobre este tema, vai além da exigência de se amar seus genitores, uma vez que não há como exigir ou obrigar o amor. Abordaremos então o dever de cuidar, de zelar, de prover, de amparar, de planejar uma velhice digna para todos. Há diversas disposições legais que versam sobre a proteção do idoso, leis que serão examinadas.
Ademais a responsabilidade recíproca da família vem expressa na nossa Constituição em seu artigo 229 que estabelece que “os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores tem o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade”.
Especificamente sobre este comportamento observaremos que há uma necessidade de renovação das leis, buscando o aperfeiçoamento destas. Para o entendimento deste tema foram realizadas pesquisas bibliográficas, como intuito de se levantar o maior material possível a fim de elucidar e esclarecer a questão: Qual o papel da família e do estado diante deste fenômeno jurídico?
2. O IDOSO E O ABANDONO
O Estatuto do Idoso - Lei 10.471 de 2003 em seu 1º artigo define a quem a legislação protegerá como idoso: as pessoas com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos. Com a realidade do crescimento da população idosa no Brasil, algumas condutas moralmente reprováveis tornam-se mais evidentes, uma delas o abandono afetivo, que nos casos em que o prejudicado é um idoso, acrescenta-se ao nome o termo inverso uma vez que nestes casos os polos de responsabilidade são invertidos, não mais os pais responsáveis pelos filhos e sim os filhos pelos pais.
O desembargador Jones Figueiredo Alves, conceituou abandono afetivo inverso como:
“ A inação do afeto, ou mais precisamente, a não permanência do cuidar, dos filhos para com os genitores, de regra idosos, quando o cuidado tem o seu valor jurídico imaterial servindo de base fundante para o estabelecimento da solidariedade familiar e da segurança afetiva” (IBDFAM/2013).
Observa-se em todos os lugares e em todas as classes o desrespeito e a falta de amparo dos mais novos com os mais velhos.
O abandono afetivo produz um dano imaterial que tem relação ao psicológico e emocional do idosos, sendo difícil medir o grau de sofrimento causado. Estejam estes abandonados em asilos, sozinhos em suas casas ou em muitas vezes quando assistidos por um filho ou cuidador, vistos como um fardo e não como sujeitos de direito, ou sequer como um ser carente de afeto. A sobrevida ainda cresce, porém com qualidade de vida muito abaixo do digno para pessoas que somaram tanto, seja como país, avós, seja como profissionais, seja como cidadãos.
A Constituição Federal estabelece em seu artigo 230 que: A família, a sociedade e Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.
Portanto é garantia constitucional que todos possuem papel fundamental na proteção do idoso e que é dever dos mesmos garantir uma vida digna para estes. Sobre isso Natalia Carolina Verdi diz que:
Quando a legislação fala em proteção integral faz referência sim às necessidades materiais e econômicas de um idoso que precisam ser amparadas, mas igualmente abrange a assistência afetiva e psicológica que devem lhe ser prestada. E é aí que, incontáveis vezes, a conta não fecha” (Verdi, 2019).
É importante que se entenda que além de medicamentos, comida, assistência médica o ser humano necessita do sentimento de pertencer, de ser necessário. Porém diversas realidades vividas pelos idosos no Brasil diferem do ideal para uma velhice digna.
3. RELAÇÃO FAMILIAR
O artigo 3º do Estatuto do Idoso prevê que:
Art. 3º - É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público assegurar ao idoso, com absoluta propriedade, a efetivação do direito, à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.
Filhos ou netos com condições financeiras que enviam os idosos para asilos ou casas de repousos e entendem que sua única obrigação é meramente financeira ou meramente o bem-estar físico, sem qualquer convivência em família, sem oportunidade de viver entre amigos, que a história que o idoso escreveu o proporcionou. Casos de idosos que vivem sozinhos, a sua própria mercê, que são esquecidos, pois os filhos não conseguem conviver com suas limitações. Ou quando apenas um familiar assume essa responsabilidade e os outros fogem, garantindo apenas quem sabe um pequeno auxílio financeiro, acreditando assim que isso é o bastante (isso nos faz remeter ao abandono de filhos menores pelos seus genitores, o estrago psicológico e emocional não difere do dano causado as crianças). Sobre isso Natalia Carolina Verdi diz:
[...] Independentemente de qual seja a condição do idoso, há um irretocável abandono afetivo sofrido por ele, já que, como dito, afeto não se vende e ainda que vendesse não se saberia em muitos casos onde o “fornecedor” poderia ser encontrado para suprir a “demanda” (Verdi, 2019).
Um aspecto que tem papel fundamental para um bom envelhecimento é um ambiente familiar saudável, um ambiente com interação, onde o idoso se torna participativo, com afeto, e livre de qualquer exclusão, produz um idoso com estabilidade emocional, o que reflete inclusive em sua saúde física. Buscar uma vida social além da família também possui sua importância, porém possuímos o vício de culpar ou responsabilizar outros pelo nosso erro ou omissão, entretanto precisamos educar-nos de modo que possamos entender que cuidar do idosos hoje é cuidar do nosso futuro.
A família mais do que uma obrigação possui um dever moral de amparo e quando esta se omite deste dever, todo um sistema padece. Dito isto é importante mencionarmos alguns princípios do direito de família que reforçam o papel da família em um envelhecer saudável.
3.1 PRINCÍPIOS DO DIREITO DE FAMÍLIA
3.1.1 Princípio de proteção da dignidade da pessoa humana
A Constituição em seu 1º, inciso III declara como um dos fundamentos da nossa Republica a dignidade da pessoa humana. Este é o princípio máximo da nossa constituição segundo este princípio a pessoa humana é o centro das relações, estabelece o homem como pessoa de direito e merecedor de todo respeito e valorização colocando o direito patrimonial em segundo plano. Sua importância para a relação familiar se dá pelo fato de que a família tem um valor para estruturação e para o desenvolvimento de uma pessoa, o que promove dignidade para seus membros.
3.1.2 Princípio da solidariedade
O artigo 229 da Constituição Federal declara que os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores; e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade. Esta solidariedade expressa na lei, nos mostra que ambos os polos desta relação familiar são responsáveis reciprocamente pelo amparo, auxilio e cuidado entre si.
3.1.3 Princípio da afetividade
Embora não haja previsão legal deste termo, este princípio deriva do princípio da dignidade da pessoa humana, destacando que o afeto nas relações familiares tem valor jurídico, e a qualidade dos vínculos existentes nas relações familiares deve ser considerada. Percebe-se que a função meramente econômica já não faz sentido no contexto da sociedade atual. Neste aspecto Cleber Affonso Angeluci destaca:
A defesa da relevância do afeto, do valor do amor, torna-se, muito importante não somente para a vida social. Mas a compreensão desse valor, nas relações de direito de família, leva à conclusão de que o envolvimento familiar não pode ser pautado e observado apenas do ponto de vista patrimonial-individualista. Há necessidade da ruptura dos paradigmas até então existentes, para se proclamar sob a égide jurídica, que o afeto representa elemento de relevo e deve ser considerado para a concretização do princípio da dignidade da pessoa humana” (ANGELUCI, 2005).
4. PROTEÇÃO DO ESTADO
O estado ou Poder Público como corresponsável pelo bem-estar do idoso e por toda uma velhice saudável, também tem papel fundamental no combate ao abandono afetivo de idosos por suas famílias, seja de modo a punir quem assim proceder, seja de modo a tomar medidas que intimidem esta conduta, seja proporcionando aos seus idosos um meio de vida, que mesmo na falta da família encontre amparo efetivo no Estado.
No que tange responsabilizar pelo dano moral, de forma que o que pratica o abandono indenize o idoso, ainda não há decisão estabelecida pelo judiciário, verifica-se a atualidade da questão e por isso ainda é escasso de doutrina e parecer desta temática. Atualmente em casos de crianças que sofreram abandono afetivo é possível a indenização, podendo assim estendermos essas decisões ao caso de abandono afetivo inverso, pois, além dos polos invertidos, não se difere tanto assim o abandono afetivo inverso do abandono afetivo tradicional e possuem o mesmo padrão jurídico axiológico. Portanto, pode-se aplicar para entendimento de jurisprudência favorável ao caso concreto, estas decisões.
Conforme o voto proferido pela Ministra Relatora Nancy Andrighi em julgamento de Recurso Especial n. 1.159.242-SP:
[...] Aqui não se fala ou se discute o amar e, sim, a imposição biológica e legal de cuidar, que é dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerarem ou adotarem filhos. O amor diz respeito à motivação, questão que foge os lindes legais, situando-se, pela sua subjetividade e impossibilidade de precisa materialização, no universo meta-jurídico da filosofia, da psicologia ou da religião. O cuidado, distintamente, é tisnado por elementos objetivos, distinguindo-se do amar pela possibilidade de verificação e comprovação de seu cumprimento, que exsurge da avaliação de ações concretas: presença; contatos, mesmo que não presenciais; ações voluntárias em favor da prole; comparações entre o tratamento dado aos demais filhos – quando existirem –, entre outras fórmulas possíveis que serão trazidas à apreciação do julgador, pelas partes. Em suma, amar é faculdade, cuidar é dever [...].
Vale ressaltar que a ideia de indenização não busca valorar de forma pecuniária o dano sofrido pelo idoso, mas tem papel educativo principalmente.
No que diz respeito a dispositivos legais que punam o abandono afetivo inverso, ainda não há dispositivo especifico sobre o tema o mais próximo disso ainda são projetos de lei. Apesar de que em forma de analogia possamos utilizar outros dispositivos ´para punir esta conduta o ideal seria que houvesse dispositivos específicos o que tornaria esta punição mais efetiva.
Porém a questão de pagamento por dano moral deve ser bem estudada, uma vez que já restando em regra não muito tempo de vida aos idosos, situações como esta, poderiam apenas afastar as famílias, criando barreiras em relacionamentos já estremecidos. Causando assim um desconforto ainda maior naqueles que necessitam do afeto. Aqui o dano moral cabe mais como um inibidor da conduta como uma verdadeira solução para o problema.
5. PROJETOS DE LEI ACERCA DO ABANDONO AFETIVO INVERSO
Como já dito antes não há dispositivos hoje na lei específicos sobre abandono afetivo inverso o que deixa uma grande margem para que se pratique esta conduta sem receio de punição na esfera civil ou mesmo em esfera penal.
A pesquisa permitiu encontrarmos hoje tramitando Projetos de Lei como a PL3145/2015 com a autoria do Deputado Vicentinho Júnior, que pretende alterar o Código Civil de modo que possa acrescentar as causas de deserdação o abandono. Assim como a PL4562/2016 que propõe alteração ao art. 10 do Estatuto do Idoso, acrescentando a este mais um parágrafo, que possibilitaria a indenização por dano moral em casos de abandono de idosos por seus familiares. Foi apensado a este, outras duas propostas semelhantes, a PL 6125/2016 e a PL 9446/2017.
Ainda que um início tímido do Poder Público de se posicionar sobre este relevante fenômeno, é um começo, para que o respeito aos idosos possa ser verdadeiramente estabelecido. E estes não sejam visto apenas como uma obrigação, mas como um ato de inteligência protegendo inclusive a posteridade do Brasil.
6. O DESAMPARO NA PANDEMIA
Em 2020 uma surpresa desagradável chegou em todos os continentes, causando medo e insegurança. O COVID-19 chegou, e as informação que o mundo recebeu foi a de que os idosos estavam na categoria dos que mais seriam afetados pela pandemia. E de repente os olhos se voltaram para eles. Era o que todos achavam.
Porém em uma pesquisa rápida pela internet, surgem inúmeras histórias e reportagens, uma delas no Canadá, em um asilo 31 idosos foram abandonados à própria sorte, semanas depois foram encontrados mortos. E em vários outros países muitas mortes ocorreram em locais como estes. Aqui não buscamos desqualificar casas de apoio, asilos e locais semelhantes. Porém não resta duvidas que estamos falhando com os mais velhos, seja como família, seja como Estado.
A antropóloga Mirian Goldenberg em entrevista à BBC News declarou sobre o tratamento aos idosos na pandemia: ”Os velhos sempre foram vistos como um peso para a sociedade, ou seja, já experimentam o que chamo de 'morte simbólica'. O valor que se dá a essas pessoas mais velhas é quase nulo, socialmente e dentro de casa”.
O que diríamos então sobre distanciamento social e o abandono? Nas palavras da Psicóloga Guiliana Chiapin” Evitar contato presencial não significa abandono, desamparo. Assim como com as crianças, é preciso explicar a eles o que se passa, quais os riscos e o porquê das mudanças de rotina no convívio, temporariamente. São infinitas formas de continuar cuidando”.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dado o exposto, percebemos que embora na atual realidade pandêmica, e com as pessoas mais reclusas em casa com seus familiares, a importância de se falar em abandono afetivo de idosos é incontestável.
Como família, caberá a educação como base para a proteção da posteridade, entendendo assim o que é obrigação da família e respeitando o que diz a letra da lei. Com o termo obrigação vem a ideia de obrigar alguém a amar, cuidar, respeitar. Para que isso não seja visto desta forma deve-se buscar por relacionamentos sadios, entre estes. Há um ditado que diz “ aquilo que se planta é o que se colherá” diversas vezes para entender uma relação de abandono, deveremos buscar no histórico desta família as motivações para certas atitudes, por isso o fenômeno jurídico hora discutido, é observado não apenas materialmente, vez que o que se discute é imaterial, o dano causado é indiscutivelmente mais psicológico do que patrimonial.
Por isso as penalizações pecuniárias para atos deste tipo, devem ser minuciosamente estudadas, uma vez que podem causar efeito reverso, trazendo ainda mais distanciamento entre a família e o idoso. E este é um dos motivos pelos quais os idosos não pleiteia seu direito de ser cuidado, uma vez que a ideia de atrapalhar, incomodar é o que mais se apresenta a eles. Em cada caso, deve ser observado o contexto em que este abandono aconteceu, se há como restaurar o convívio familiar. E principalmente como a família, juntamente com o Estado poderá adotar medidas preventivas, que serão mais eficazes do que apenas políticas que visam a sanção do ato de desamparo em si.
Como Estado deve- se criar leis especificas que abranjam o tema, sem deixar rastro para dúvidas ou lacunas, e dar mais celeridade ao processo de aprovação destas leis, uma vez que, há uma grande necessidade de políticas públicas que garantam uma vida digna ao idoso.
Aqui não se intentou findar o assunto abandono afetivo inverso e sim aflorar um entendimento de que tratar o Idoso como prioridade, cobrar respeito, cuidado e proteção, não é privilegiar o passado é cuidar do nosso futuro.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
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Bacharelanda em Direito pelo Centro Luterano de Manaus .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MARTINS, Andressa Oliveira dos santos. O papel da família e do Estado diante do fenômeno jurídico “abandono afetivo inverso” Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 dez 2020, 04:44. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55993/o-papel-da-famlia-e-do-estado-diante-do-fenmeno-jurdico-abandono-afetivo-inverso. Acesso em: 23 dez 2024.
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