Uma celeuma bastante atual na seara da Administração Pública – abarrotando o Poder Judiciário – é a que discute a possibilidade de recebimento de adicionais de insalubridade ou periculosidade por servidores públicos remunerados pelo regime de subsídios.
A contenda central envolve a interpretação do texto constitucional, o qual prescreve no artigo 39, 4º, ser o subsídio fixado em parcela única, vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória.
Assim, muitos servidores públicos que possuem o regime jurídico administrativo vinculado ao sistema de subsídios passaram a sofrer uma negativa da Administração Pública quanto à percepção de adicionais de insalubridade ou periculosidade.
A título de exemplo, profissionais da área de saúde – técnicos de enfermagem, enfermeiros, médicos, fisioterapeutas, psicólogos, entre outros – tiveram que suportar a não-percepção de adicional de insalubridade previsto no artigo 7º, inciso XXIII, da Carta Política, apenas porque as suas remunerações eram regradas pelo sistema de subsídios e não de vencimentos.
Fazendo um esclarecimento sobre esse tema, já havia afirmado com bastante categoria a doutrina administrativista brasileira:
[...] No entanto, embora o dispositivo fale em parcela única, a intenção do legislador fica parcialmente frustrada em decorrência de outros dispositivos da própria Constituição, que não foram atingidos pela Emenda. Com efeito, mantém-se, no artigo 39, § 3º, a norma manda aplicar aos ocupantes de cargo público o disposto no art. 7º, IV, VII, VIII, IX, XIII, XVI, XVII, XVIII, XIX, XX, XXII e XXX. Com isto, o servidor que ocupe cargo público (o que exclui os que exercem mandato eletivo e os que ocupam emprego público, já abrangido pelo art. 7º) fará jus a: décimo terceiro salário, adicional noturno, salário-família, remuneração do serviço extraordinário superior, no mínimo a 50% à do normal, adicional de férias, licença gestante, sem prejuízo do emprego e salário, com duração de cento e vinte dias. Poder-se-ia argumentar que o § 4º do art. 39 exclui essas vantagens ao falar em parcela única, ocorre que o § 3º refere-se genericamente aos ocupantes de cargo público, sem fazer qualquer distinção quanto ao regime de retribuição pecuniária. Quando há duas normas constitucionais aparentemente contraditórias, tem-se que adotar interposição conciliatória, para tirar de cada uma delas o máximo de aplicação possível. No caso, tem-se que conciliar os § §3º e 4º do artigo 39, de modo a entender que, embora o segundo fale em parcela única, isto não impede a aplicação do outro, que assegura o direito a determinadas vantagens, portanto, igualmente com fundamento constitucional [..][1]
Ainda no mesmo sentido, o doutrinador Celso Antônio Bandeira de Mello também advertia:
Na vedação estabelecida [no art. 39, § 4º, da Constituição da República] só não se incluem as verbas indenizatórias (…). Ao se tratar do limite remuneratório dos servidores públicos, o disposto no art. 39, § 4º, tem que ser entendido com certos com temperamentos, não se podendo admitir que os remunerados por subsídio, isto é, por parcela única, fiquem privados de certas garantias constitucionais que lhes resultam do § 3º do mesmo artigo, combinado com diversos incisos do art. 7º, a que ele se reporta. Por esta razão, quando for o caso, haverão de lhes ser aditados tais acréscimos, deixando, em tais hipóteses, de ser única a parcela que os retribuirá.[2]
Sob a mesma ótica, o eminente Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes em sua obra clássica discorria sobre essa possibilidade:
Não obstante essa vedação [do art. 39, § 4º, da Constituição da República], é importante salientar que o servidor público remunerado por subsídio único faz jus às seguintes verbas: - em face do § 3º, do art. 39: décimo terceiro salário, adicional noturno, salário-família, remuneração do serviço extraordinário superior, no mínimo, a 50% à normal, adicional de férias (1/3); em face do caráter indenizatório: diárias, ajudas de custo e transporte (...); - parcelas de caráter indenizatório: para efeitos dos limites estabelecidos, a EC n. 47/05 (CF, art. 37, § 11), expressamente, excluiu as parcelas de caráter indenizatório previstas em lei. Determinou, ainda, como regra de transição (art. 4º, EC n. 47/05), a aplicação de toda legislação em vigor definidora de parcelas de caráter indenizatório, enquanto o Congresso Nacional não editar lei específica sobre o assunto. Aos congressistas, porém, em face da EC n. 50, de 14- 2-2006, está vedado o recebimento de pagamento de parcela indenizatória em razão de convocação extraordinária (CF, art. 57, § 7º)[3]
O mesmo entendimento ainda era perfilhado por ninguém menos que José dos Santos Carvalho Filho:
Não custa lembrar que o próprio art. 39, § 4º, da CF, não pode ser interpretado de forma literal, mas sim em conjugação com o § 3º do mesmo artigo, que manda aplicar aos servidores vários direitos concedidos aos trabalhadores da iniciativa privada, entre eles o adicional de férias, o décimo terceiro salário, o acréscimo de horas extraordinárias, o adicional de trabalho noturno etc. São direitos sociais que não podem ser postergados pela Administração. Por conseguinte, é induvidoso que algumas situações ensejarão acréscimo pecuniário à dita ‘parcela única’.[4]
Nesse contexto, já era bastante consagrada na doutrina administrativista a tese da possibilidade de percepção simultânea de adicional de insalubridade ou periculosidade mesmo para os servidores públicos remunerados por subsídio.
Ocorre, porém, que a Fazenda Pública de um modo geral resistia a essa situação, negando esses direitos aos servidores públicos, haja vista que, ao invés de proceder com uma interpretação sistemática do texto constitucional, preferia realizar um esforço hercúleo para sustentar uma interpretação meramente literal e restritiva.
A título de exemplo, no âmbito do Tribunal de Justiça de Alagoas (TJ/AL) vários casos chegaram ao conhecimento do Poder Judiciário, que assim se pronunciou:
INCIDENTE DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA. DISSONÂNCIA DOS ENTENDIMENTOS DAS CÂMARAS CÍVEIS SOBRE A DEFINIÇÃO DA BASE DE CÁLCULO DO ADICIONAL DE INSALUBRIDADE. INCIDÊNCIA DO PERCENTUAL SOBRE O VALOR DO SUBSÍDIO MÍNIMO DA CATEGORIA A QUE PERTENCE O SERVIDOR PÚBLICO. 01- Não há de se falar na incompatibilidade da concessão do subsídio com o adicional de insalubridade, tendo em vista sua natureza constitucional. 02- Ao dispor através do art. 2º da Lei Estadual nº 6.772/2006, que "O percentual pelo exercício de atividades insalubres, devido aos ocupantes de cargos efetivos da Administração Estadual, corresponderá a 20% (vinte por cento), 30% (trinta por cento) ou 40% (quarenta por cento) da retribuição pecuniária mínima, paga sob a forma de subsídio pelo Poder Executivo, conforme se trate da insalubridade de grau mínimo, médio ou máximo respectivamente", não há como dizer que a intenção do Chefe do Poder Executivo foi de estabelecer como base de cálculo do adicional o menor subsídio pago pelo Estado, já que a inserção do aposto explicativo "paga sob a forma de subsídio pelo Poder Executivo" apenas explicita como o adicional correspondente seria pago, não tendo a intenção de vincular o pagamento ao menor subsídio do Estado de Alagoas. 03- É plenamente possível o reconhecimento da compatibilidade do pagamento do adicional de insalubridade com o regime constitucional de subsídios, considerando como base de cálculo o menor subsídio da categoria a que pertence o servidor público, aplicando-se a mesma ratio decidendi para os processos que tratam do adicional de periculosidade preconizado no art. 3º da mencionada Lei nº 6.772/2006, por se encontrarem apoiados no mesmo fundamento. INCIDENTE ADMITIDO À UNANIMIDADE DE VOTOS E UNIFORMIZADO O POSICIONAMENTO, POR MAIORIA. (TJAL. Incidente de Uniformização de Jurisprudência nº:0500356-82.2015.8.02.0000. Relator: Des. Fernando Tourinho de Omena Souza. Órgão julgador: Tribunal Pleno. Data do julgamento: 5/4/2016. Data de registro: 19/4/2016) (grifou-se)
A par disso, mesmo com os reiterados posicionamentos do referido Tribunal Estadual, a Fazenda Pública persistia na referida tese, o que causava ainda mais litígios perante o Poder Judiciário, além de condenações elevadas em relação a juros de mora, a correção monetária, ao ressarcimento de custas processuais e ao pagamento de honorários de sucumbência.
Além do mais, uma movimentação gigantesca e onerosa da máquina administrativa de várias instituições do Poder Executivo e do Poder Judiciário, bem como das Funções Essenciais à Justiça, para se debruçarem sobre um problema jurídico que poderia ser resolvido com uma interpretação constitucional razoável e sistemática.
Isto, obviamente, sem mencionar as grandes dificuldades por que passavam os servidores públicos a espera de uma solução definitiva para sua vida profissional, privando-se de verbas de natureza constitucional, que são os adicionais de insalubridade ou periculosidade.
Evoluiu, pois, a Fazenda Pública Estadual de Alagoas em seu posicionamento.
Através da Súmula Administrativa nº 45/2018, de 4 de junho de 2018, a Procuradoria Geral do Estado de Alagoas (PGE/AL) se manifestou no sentido de que é juridicamente possível a percepção de adicionais de insalubridade ou periculosidade para servidores públicos remunerados pelo regime de subsídio, nos casos em que a lei concomitante ou posterior àquela que fixou o sistema de subsídio, de forma expressa, preveja o pagamento dos referidos adicionais, nos seguintes termos:
Súmula Administrativa nº 45/2018, de 4 de junho de 2018
O PROCURADOR-GERAL DO ESTADO, no uso das atribuições que lhe conferem os arts. 4º, inciso X, 7º, inciso XIII, e 11, incisos I, XII e XV, todos da Lei Complementar nº 07, de 18 de julho de 1991, combinado com o art. 50 do Decreto Estadual nº 4.804, de 24 de fevereiro de 2010, edita a presente Súmula Administrativa, de caráter obrigatório a todos os órgãos da Administração Pública Direta e Indireta do Estado de Alagoas, a ser publicada no órgão oficial de imprensa do Estado, por duas vezes sucessivas:
SUBSÍDIO E ADICIONAIS DE INSALUBRIDADE E PERICULOSIDADE A lei que instituiu o regime de subsídio para certa categoria de servidores públicos engloba e põe fim a todas as vantagens pecuniárias previstas no anterior regime de vencimentos. Excepcionalmente, é juridicamente possível a percepção de adicionais de insalubridade ou periculosidade para servidores remunerados pelo regime de subsídio, nos casos em que a lei concomitante ou posterior àquela que fixou o sistema de subsídio, de forma expressa, preveja o pagamento dos referidos adicionais.
Referência: Processo administrativo nº 1204-003833/2016.
PROCURADORIA GERAL DO ESTADO DE ALAGOAS, Gabinete do Procurador-Geral, em Maceió, 4 de junho de 2018.
FRANCISCO MALAQUIAS DE ALMEIDA JUNIOR
Procurador-Geral do Estado (grifou-se)[5]
Frente a essas considerações, é importante pontuar a evolução do tratamento deste tema no campo da Administração Pública Estadual de Alagoas, como forma de redução da litigiosidade. Trazendo benefícios ao Poder Judiciário, à Fazenda Pública, às Funções Essenciais à Justiça e, principalmente, aos servidores públicos.
Em tempos de elevada judicialização, medidas como essas devem ser comemoradas, divulgadas e replicadas em todo o Brasil, em busca da efetiva solução extrajudicial de conflitos, notadamente aqueles que envolvem demandas de massa de servidores públicos em face da Administração Pública.
[1] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 25. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 607-608.
[2] In Curso de direito administrativo. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 277-278.
[3] In Direito constitucional administrativo. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 169.
[4] In Manual de Direito Administrativo. 26. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 741.
[5] BRASIL. Procuradoria Geral do Estado de Alagoas. Disponível em: <http://www.procuradoria.al.gov.br/jurisprudencia-administrativa/sumulas>. Acesso em 26 dez 2020.
Procurador do Estado de Alagoas. Advogado. Consultor Jurídico. Ex-Conselheiro do Conselho Estadual de Segurança Pública de Alagoas. Ex-Membro de Comissões e Cursos de Formação de Concursos Públicos em Alagoas. Ex-Membro do Grupo Estadual de Fomento, Formulação, Articulação e Monitoramento de Políticas Públicas em Alagoas. Ex-Técnico Judiciário do Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Ex-Estagiário da Justiça Federal em Alagoas. Ex-Estagiário da Procuradoria Regional do Trabalho em Alagoas. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CALHEIROS, Elder Soares da Silva. A constitucionalidade do recebimento de adicionais de insalubridade ou periculosidade por servidores públicos remunerados pelo regime de subsídios: estudo de caso da Súmula nº 45/2018 da PGE/AL Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 31 dez 2020, 04:20. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56003/a-constitucionalidade-do-recebimento-de-adicionais-de-insalubridade-ou-periculosidade-por-servidores-pblicos-remunerados-pelo-regime-de-subsdios-estudo-de-caso-da-smula-n-45-2018-da-pge-al. Acesso em: 23 dez 2024.
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