SILVIO GABRIEL SERRANO NUNES (coautor): Doutor em Filosofia pela FFLCH-USP. Estágio de Doutorado na Université Paris 1 Panthéon - Sorbonne (Bolsa Capes). Advogado. Professor na Escola Superior do TCMSP.
RESUMO: O presente artigo pretende desenvolver um estudo do positivismo jurídico do século XX a partir, principalmente, do pensamento de Hans Kelsen e Herbert Hart. Com base em Kelsen, analisaremos o conceito de norma jurídica, a ideia de ordem escalonada, ou seja, a perspectiva hierárquica do direito que é a base do conceito de validade das normas jurídicas, tratando, por fim, da interpretação e da política do Direito. Considerando Hart, serão abordados os conceitos de regras primárias e secundárias bem como o problema da textura aberta da regra e o tema da discricionariedade judicial. Apresentadas as principais ideias do positivismo analítico, pontuaremos o moderno debate acerca do pensamento do professor Wilfrid Waluchow sobre os conceitos de positivismo excludente e positivismo includente, contrapondo-se então as ideias de Waluchow, Hart e Ronald Dworkin. Concluiremos o estudo com nossas ideias a respeito das críticas dessas importantes escolas de pensamento jurídico, discutidas nas principais universidades do país e do mundo.
Palavras-chave: Positivismo Includente. Positivismo Excludente. Moral. Norma. Regra.
ABSTRACT: This article aims to study the legal positivism on the 20th century, mostly based on Hans Kelsen and Herbert Hart thoughts. In Kelsen, we will analyse the concept of legal norm, the idea of staggered order, or the hierarchical perspective of law, which is the foundation for the concept of validity of legal norms; lastly approaching the interpretation and policy of Law. Based on Hart, the concepts of primary and secondary rules will be examined, as well as the problem of the open texture of the rules and the subject of judicial discretion. Once presented the main ideas of analytical positivism, we will highlight the modern debate about Professor Wilfrid Waluchow's thinking related to the concepts of exclusive and inclusive positivism, contrasting then the ideas of Waluchow, Hart and Ronald Dworkin. The study will be concluded with our view about the criticism of these important schools of legal thought, discussed in the main universities of the country and the world.
Keywords: Inclusive Positivism. Exclusive Positivism. Moral. Standard. Rule.
INTRODUÇÃO
O esforço dos estudiosos em traduzir o direito enquanto ciência marcou profundamente os estudos dos fenômenos jurídicos no século XX. Determinadas questões – o que é o direito? Qual a sua natureza? O direito pode admitir “injustiças”? – protagonizaram o debate acerca de um possível conceito científico do que possa ser considerado “direito”.
A clássica separação entre direito e moral, o formalismo que o caracteriza, a validade das normas jurídicas e o direito enquanto ciência autônoma foram e continuam sendo objeto de importantes obras e serão tratados neste artigo.
Esses temas foram amplamente desenvolvidos pelo positivismo jurídico do século passado, denominado positivismo analítico ou descritivo, sob a ótica de Hans Kelsen e Herbert Hart principalmente. Aqui, este tipo de positivismo será chamado de “positivismo excludente”.
Antes do positivismo excludente, preponderava, se é que assim podemos dizer, o pensamento do direito natural ou jusnaturalismo. Analisaremos o denominado “positivismo includente” a partir do pensamento filosófico contemporâneo de Wilfrid Waluchow, para quem o positivismo jurídico includente representa uma forma viável e mais esclarecedora de teoria jurídica do que seu antagonista, o positivismo excludente.
A respeito do limite entre direito natural e direito positivo, destaca Norberto Bobbio:
[...] pode-se, então, assinalar com toda evidência o limite entre direito natural e direito positivo dizendo: a esfera do direito natural limita-se àquilo que se demonstra a priori; aquela do direito positivo começa, ao contrário, onde a decisão sobre se uma coisa constitui, ou não, direito depende da vontade do legislador. (BOBBIO, 1995, p. 22)
Com efeito, no século XVI, fim do período medievo, com a formação dos Estados Nacionais, o direito começou a ser identificado com a lei. Tal concepção teve um impacto significativo, pois, com essa identificação entre direito e lei, isto é, entre o conceito de direito válido e a lei posta pelo legislador, o direito passou a ser caracterizado pelo formalismo, deixando de relacionar-se à ideia de um controle socialmente eficaz para ser reconhecido como a vontade heterônoma do legislador, o que possibilitava afirmar, portanto, que “o direito é a lei”.
Hans Kelsen, o grande expoente do pensamento positivista do século passado, em “Teoria Pura do Direito”, apresenta um conceito de direito cuja estrutura consiste na composição de um repertório de normas jurídicas dinâmicas e organizadas de forma hierárquica, sendo a validade dessa estrutura conferida pelo pressuposto da norma hipotética fundamental.
Para o positivismo jurídico excludente, o direito constitui uma ciência meramente descritiva do fenômeno jurídico, sem a pretensão de explicá-lo e tampouco de realizar julgamentos de valor a seu respeito. Nesse âmbito, o direito não se coloca à mercê de conceitos da moral, política, teologia, metafísica, psicologia, sociologia, entre outras. Para a defesa de uma “ciência do direito”, o positivista “purifica” o direito, afastando-o da relação com outras ciências, do contrário o direito acabaria por tornar-se “impuro”, não-científico.
Por fim, é nosso objetivo desmistificar um verdadeiro truísmo jurídico no que tange a uma suposta relação entre positivismo jurídico e “aplicação do direito”. Veremos no decorrer deste artigo que isto não só não é verdade como causa para a teoria jurídica um grande e grave problema: o subjetivismo nas decisões judiciais, polêmica inaugurada por Kelsen e Hart e que para o positivismo jurídico includente de Waluchow significa que o positivismo jurídico excludente tanto não é a melhor escolha de teoria jurídica a ser adotada como é a que mais pode gerar inseguranças produzidas por subjetivismos injustificados.
1. O POSITIVISMO SEGUNDO HANS KELSEN E HERBERT HART
Sob a perspectiva do positivismo jurídico baseado no pensamento de Hans Kelsen, iremos tematizar seu conceito normativo de direito, especificamente quanto à estrutura da ordem normativa e à validade da norma jurídica, finalizando esta abordagem com o estudo do capítulo oitavo da “Teoria Pura do Direito”, a respeito da polêmica ideia de “aplicação do direito” e a política jurídica.
Em Herbert Hart, abordaremos o conceito de regras primárias e secundárias, bem como o chamado problema da textura aberta e da discricionariedade.
Hans Kelsen é, sem exagero, um dos mais importantes juristas do século XX para o positivismo jurídico. Em “Teoria Pura do Direito”, sua obra mais conhecida e debatida, no quinto capítulo intitulado “Dinâmica Jurídica”, o autor aponta uma das questões mais controvertidas do positivismo jurídico: a validade da norma jurídica.
Admitindo-se o pressuposto de que o direito seja uma ordem normativa, Kelsen preceitua que as normas jurídicas estabelecem um padrão de comportamento que regulam o comportamento humano. Dizer que uma norma jurídica “vale” equivale a dizer que o padrão por ela estabelecido é vinculativo, ou seja, o indivíduo submetido a essa norma jurídica deve se conduzir pelo modo prescrito pela mesma. Segundo Kelsen, a norma jurídica vale e é vinculativa, ou seja, determina o comportamento do indivíduo, porque extrai sua condição de validade de outra norma válida.
Conforme se extrai da “Teoria Pura do Direito”:
Se o Direito é concebido como uma ordem normativa, como um sistema de normas que regulam a conduta de homens, surge a questão: O que é que fundamenta a unidade de uma pluralidade de normas, por que é que uma norma determinada pertence a uma determinada ordem? E esta questão está intimamente relacionada a esta outra: Por que é que uma norma vale, o que é que constitui o seu fundamento de validade? Dizer que uma norma que se refere à conduta de um indivíduo “vale” (é “vigente”), significa que ela é vinculativa, que o indivíduo se deve conduzir do modo prescrito pela norma. [...] O fundamento de validade de uma norma apenas pode ser a validade de outra norma. (KELSEN, 1999, p. 135)
Se a norma jurídica extrai a sua condição de validade de outra norma jurídica, indaga-se então: quem pode editar normas jurídicas? A resposta desta pergunta central para o positivismo jurídico kelseniano conduz à ideia de autoridade competente. Uma norma jurídica só é válida porque uma autoridade competente a produziu. Assim, toda norma jurídica produzida pela autoridade competente é, a princípio, válida e confere validade a outras normas jurídicas.
Conforme leciona o jurista, quem define a autoridade competente é a própria norma jurídica: “Apenas uma autoridade competente pode estabelecer normas válidas; e uma tal competência somente se pode apoiar sobre uma norma que confira poder para fixar normas” (KELSEN, 1999, p. 136).
A respeito da validade da norma jurídica e da estrutura escalonada da ordem jurídica, Kelsen assim se manifesta:
Já nas páginas precedentes por várias vezes se fez notar a particularidade que possui o Direito de regular a sua própria criação. Isso pode operar-se de forma a que uma norma apenas determine o processo por que outra norma é produzida. Mas também é possível que seja determinado ainda – em certa medida – o conteúdo da norma a produzir e na medida em que foi produzida por uma determinada maneira, isto é, pela maneira determinada por outra norma, esta outra norma representa o fundamento imediato de validade daquela. [...] A norma que regula a produção é a norma superior, a norma produzida segundo as determinações daquela é a norma inferior. A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. (KELSEN, 1999, p. 155)
Luis Fernando Barzotto, analisando as ideias de Kelsen sobre o direito, pontua um dos mais relevantes problemas do positivismo jurídico: a sua pretensão meramente descritiva do fenômeno normativo, o que aponta que tal teoria não tem uma preocupação de justificar axiologicamente o seu conteúdo:
O positivista não se preocupa com a justificação axiológica das normas, do fundamento entendido como problema do valor das normas. [...] E então se torna perfeitamente compatível com a lógica do sistema, que uma norma seja considerada válida se, e somente se, foi posta por uma autoridade que recebeu o poder de emanar normas obrigatórias por uma autoridade superior, a qual por sua vez foi autorizada por uma autoridade ainda superior. (BARZOTTO, 2007, p. 22)
Portanto, a ordem jurídica, segundo Kelsen, corresponde a uma estrutura escalonada e hierárquica de normas jurídicas, cuja validade é verificada de acordo com a seguinte lógica: a norma inferior extrai a sua validade da norma superior, ambas as normas jurídicas foram postas por uma autoridade competente, assim reconhecida também por norma jurídica. Toda ordem jurídica é validada materialmente por uma Constituição que, sendo a “lei maior”, confere validade a todas as normas jurídicas inferiores a ela, isto é, a todas as demais normas jurídicas.
No que diz respeito ao capítulo oitavo da Teoria Pura kelseniana – “A interpretação” –, desvela-se um dos principais problemas do positivismo jurídico, a interpretação e “aplicação” do direito.
Kelsen preleciona que interpretar uma norma jurídica é realizar uma operação mental que acompanha o processo de aplicação do direito. Conforme aponta Kelsen, há duas espécies de interpretação: a que é feita por um órgão que aplica o direito e a que advém de uma pessoa privada, que podemos dizer ser a perspectiva do observador externo. A operação mental de interpretar a norma jurídica fornece ao intérprete molduras que devem ser preenchidas pelo aplicador do direito.
Kelsen explica que essa operação mental de interpretar a norma jurídica, pela própria linguagem da norma, pode ser cercada de indeterminação de sentido, por vezes intencional, por vezes não intencional, o que leva a concluir que, dentro dessa moldura a ser preenchida pelo processo de aplicação do direito, o intérprete irá se deparar com várias opções de interpretação: “o sentido verbal da norma não é unívoco, o órgão que tem de aplicar a norma encontra-se perante várias significações possíveis” (KELSEN, 1999, p. 246).
Conforme a “Teoria Pura do Direito”:
Se por “interpretação” se entende a fixação por via cognoscitiva do sentido do objeto a interpretar, o resultado de uma interpretação jurídica somente pode ser a fixação da moldura que representa o Direito a interpretar e, consequentemente, o conhecimento das várias possibilidades que dentro desta moldura existem. Sendo assim, a interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma única solução como sendo a única correta, mas possivelmente a várias soluções que – na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar – têm igual valor, se bem que apenas uma delas se torne Direito positivo no ato do órgão aplicador do Direito – no ato do tribunal, especialmente. (KELSEN, 1999, p. 247)
Admitindo-se os pressupostos kelsenianos, como já exposto, a interpretação fornece várias possibilidades para o intérprete da norma jurídica, especialmente, ao órgão aplicador do direito. Nesse contexto, em face da jurisprudência se extrai a seguinte preocupação: se várias são as possibilidades de aplicação do direito e todas elas decorrem da norma jurídica, existiria apenas uma dessas possibilidades como sendo a opção “correta” ou “justa”? Kelsen responde a esse questionamento criticando-o, pois, em sua visão, o ato de interpretar a norma jurídica não é apenas um ato meramente intelectual, mas de vontade.
Com isso marca-se o início de uma discussão substancial que circunda a teoria positivista do direito: a aplicação da norma jurídica, para o positivismo, é um ato de escolha? A resposta é sim. E disto decorrem muitos enfrentamentos acerca da subjetividade da aplicação do direito, do suposto descontrole das decisões judiciais, entre outros aspectos.
De acordo com Kelsen:
A teoria usual da interpretação quer fazer crer que a lei, aplicada ao caso concreto, poderia fornecer, em todas as hipóteses, apenas uma única solução correta (ajustada), e que a “justeza” (correção) jurídico-positiva desta decisão é fundada na própria lei. Configura o processo desta interpretação como se se tratasse tão-somente de um ato intelectual de clarificação e de compreensão, como se o órgão aplicador do Direito apenas tivesse que pôr em ação seu entendimento (razão), mas não a sua vontade, e como se, através de uma pura atividade de intelecção, pudesse realizar-se, entre as possibilidades que se apresentam, uma escolha que correspondesse ao Direito positivo, uma escolha correta (justa) no sentido do Direito positivo. (KELSEN, 1999, p. 247-248)
Por fim, Kelsen articula o argumento de que não importa ao aplicador do direito saber qual das possibilidades ofertadas pela interpretação para o preenchimento da moldura é a “correta” ou “justa”, tratando-se esta de uma questão da “política do Direito”, de modo que a escolha da norma a ser aplicada não constitui objeto da ciência descritiva do direito postulada pelo positivismo jurídico:
A questão de saber qual é, entre as possibilidades que se apresentam nos quadros do Direito a aplicar, a “correta”, não é sequer – segundo o próprio pressuposto de que se parte – uma questão de conhecimento dirigido ao Direito positivo, não é um problema da teoria do Direito, mas um problema de política do Direito. [...] Na medida em que, na aplicação da lei, para além da necessária fixação da moldura dentro da qual se tem de manter o ato a pôr, possa ter ainda lugar uma atividade cognoscitiva do órgão aplicador do Direito, não se tratará de um conhecimento do Direito positivo, mas de outras normas que, aqui, no processo de criação jurídica, podem ter a sua incidência: normas de Moral, normas de Justiça, juízos de valor sociais que costumamos designar expressões correntes como bem comum, interesse do Estado, progresso, etc. (KELSEN, 1999, p. 252)
Desfaz-se, assim, um truísmo jurídico amplamente proferido em muitos debates e escolas jurídicas quanto a considerar a escola positivista do direito como uma teoria da “aplicação do direito”, não é incomum ler ou ouvir argumentações que associam a aplicação do direito ao positivismo jurídico. Na expressão do professor Pedro Serrano, a aplicação da norma, para a ciência do direito, sob a perspectiva desse positivismo jurídico descritivo e analítico de Kelsen, constitui um “indiferente jurídico”.
Tanto quanto Kelsen, fundamental para a compreensão dessa escola do positivismo jurídico é o pensamento de Herbert Hart.
Herbert L. Hart, professor de Teoria do Direito na Universidade de Oxford durante o período de 1952 a 1968, influenciou de forma decisiva a teoria positivista do direito. Referido jurista, cuja obra é bastante aclamada ainda hoje, foi ainda advogado e funcionário público, prestando serviços à inteligência da marinha britânica.
Com o rico repertório de vida, desenvolveu sua conhecida obra “O Conceito de Direito”, em que apresenta uma crítica ao positivismo de John Austin, seu professor. O conceito de direito de Hart expõe a preocupação de considerar a prática jurídica, bem como o conhecimento filosófico e da linguagem na formulação de sua teoria.
No quinto capítulo da obra em referência, intitulado “O Direito Como União de Regras Primárias e Secundárias”, Hart desenvolve a tese de que o sistema jurídico é composto por regras primárias e secundárias.
Regras primárias são aquelas regras que criam uma obrigação, que impõem ao indivíduo alguma conduta ou proíbem certas ações. Envolvem ações relacionadas a movimentos ou mudanças que a conduta pode gerar no mundo físico.
Hart aponta três defeitos no que concerne à estrutura das regras primárias: (i) a incerteza e a indecisão do intérprete acerca da aplicabilidade de uma regra em dado caso concreto ou quanto ao âmbito de sua aplicação, sendo que esse quadro, segundo o autor, gera angústia; (ii) sua condição estática, pois tanto a estrutura como o conteúdo desse tipo de regra acompanham a marcha lenta e gradual da sociedade; (iii) a ineficácia da pressão social difusa das regras primárias que, delegando a sanção, transfere o ato de punir ao ofendido ou a um grupo social.
Devido a esses defeitos, as regras primárias demandam um remédio, o qual se efetiva com as regras secundárias. De acordo com Hart, as regras secundárias configuram uma espécie diferente das regras primárias, notadamente porque são relativas a estas, cuidando de sua criação, alteração ou eliminação.
Segundo Herbert Hart:
O remédio para cada um destes três defeitos principais, nesta forma mais simples de estrutura social, consiste em complementar as regras primárias de obrigação com regras secundárias, as quais são regras de diferente espécie. [...] Consideraremos sucessivamente cada um desses remédios e mostraremos por que razão o direito pode ser caracterizado de modo mais esclarecedor como uma união de regras primárias de obrigação com tais regras secundárias. [...] Por isso, pode dizer-se de todas elas que estão num plano diferente das regras primárias, porque são relativas a tais regras; isto no sentido de que, enquanto as regras primárias dizem respeito às ações que os indivíduos devem ou não fazer, essas regras secundárias respeitam todas às próprias regras primárias. Especificam os modos pelos quais as regras primárias podem ser determinadas de forma concludente, ou ser criadas, eliminadas e alteradas, bem como o fato de que a respectiva violação seja determinada de forma indubitável. (HART, 1996, p. 103-104)
Ronald Dworkin explica o conceito hartiano de regras primárias e secundárias nos seguintes termos:
As regras primárias são aquelas que concedem direitos ou impõem obrigações aos membros da comunidade. As regras do direito penal que nos impedem de roubar, assassinar ou dirigir em velocidade excessiva são bons exemplos de regras primárias. As regras secundárias são aquelas que estipulam como e por quem tais regras podem ser estabelecidas, declaradas legais, modificadas ou abolidas. As regras que determinam como o Congresso é composto e como ele promulga leis são exemplos de regras secundárias. Regras sobre a constituição de contratos e a execução de testamentos são também regras secundárias, pois estipulam como regras muito particulares, que governam obrigações legais específicas (por exemplo, os termos de um contrato ou as disposições de um testamento), surgem e são alteradas. (DWORKIN, 2002, p. 31)
Hart pondera que o direito não tem a capacidade de, pelo seu sistema de regras primárias e secundárias, prever toda e qualquer conduta individual, tese já enfrentada por Kelsen de igual forma. Vale dizer, o direito posto, ainda que se esforce em prever uma ampla variação de situações jurídicas, jamais será capaz de esgotá-las. Nesse contexto, Hart introduz o tema da “textura aberta” da linguagem, o que também se dá no âmbito do direito, pois que se utiliza da linguagem e igualmente fica à mercê desse tipo de dificuldade teórica.
Um dado sistema jurídico é identificado pelo fato de que as regras utilizam a linguagem da legislação ou do precedente, tendo em vista que “em todos os campos de experiência, e não só no das regras, há um limite, inerente à natureza da linguagem, quanto à orientação que a linguagem geral pode oferecer” (HART, 1996, p. 139). Essa natureza da linguagem, que não oferece a forma da previsibilidade de todas as condutas e atos, é a premissa de Hart quanto à textura aberta do direito.
Como observou Hart, em função desse aspecto da linguagem no geral, atesta-se a impossibilidade de que a legislação e, assim, as regras de um determinado sistema jurídico prevejam todas as hipóteses, em todas as sociedades, de maneira universal e sem falhas, bem como a inviabilidade de que o intérprete da norma encontre uma solução imediata e acabada em face de toda e qualquer regra.
Hart atribui à textura aberta do direito e, portanto, das regras que ele produz, a questão da aplicação do direito, no exato sentido positivista, pois, assim como no capítulo oitavo da “Teoria Pura do Direito”, Hart, a exemplo de Kelsen, “resolve” a textura aberta atribuindo aos magistrados o poder discricionário de “preencher” a indeterminação ou a vagueza de sentido da linguagem de uma determinada regra.
Considerando que o problema da aplicação do direito, segundo Kelsen, se resolve com a política do Direito e, para Hart, na forma de discricionariedade, resta claro que a aplicação do direito não é uma mera tarefa intelectual pronta e determinada. O processo de interpretação, segundo o positivismo jurídico, constitui um ato de vontade do aplicador do direito, que recorre a outras “fontes” para preencher a moldura e resolver o caso concreto criando o direito.
Tendo em vista que, em face do positivismo jurídico, a aplicação do direito é indiferente e constitui antes uma questão para a política do direito ou de discricionariedade, conferida certa liberdade ao órgão aplicador, torna-se evidente que para aplicar o direito outros conceitos e fontes de fundamentação devem ser levados em contas, a contradizer, portanto, a assertiva de que o positivismo jurídico se restringe a uma ciência descritiva do direito, que não leva em conta conceitos de moral, política, etc.
Conforme anota Tércio Sampaio Ferraz Junior, marcar a diferença entre direito e moral constitui uma das grandes dificuldades e simultaneamente um dos maiores desafios da filosofia do direito:
Primeiramente, é preciso reconhecer a similaridade entre normas jurídicas e preceitos morais. Ambos têm caráter prescritivo, vinculam e estabelecem obrigações numa forma objetiva, isto é, independentemente do consentimento subjetivo individual. Ambos são elementos inextirpáveis da convivência, pois, se não há sociedade sem direito, também não há sociedade sem moral. Não obstante a isso, ambos não se confundem, e marcar a diferença entre eles é uma das grandes dificuldades da filosofia do direito. (FERRAZ JUNIOR, 2003, p. 356)
O autor aponta, ainda, que o direito pressupõe normas e princípios morais, segundo seus próprios termos, “a justiça é o princípio e o problema do direito. Ora, certamente, aquele que lida com as regras do direito, alguma vez em sua vida deve já ter se deparado com a questão acerca da suposta vinculação ou não de preceitos morais ao direito”.
O debate acerca da conexão ou da separação entre direito e moral remonta a outro problema da teoria jurídica que, de modo indireto, relaciona-se à tese da vinculação entre direito e moral: a aparente dicotomia entre direito natural e direito positivo.
Hart afirma que a crítica dos pensadores do direito natural aos positivistas jurídicos é que, segundo aqueles, o direito positivo cuida de indagar questões banais, superficiais e que, ao fim e ao cabo, ignoram outros problemas de maior profundidade.
Embora Hart rechace completamente a tese da vinculação entre direito e moral, admite que o direito positivo deve conter um “mínimo do direito natural”, ilustrado na cooperação que o homem deve ter para voluntariamente construir uma sociedade em que se possa conviver:
Ao considerar os truísmos simples que apresentamos aqui e a sua conexão com o direito e a moral, é importante observar que em cada caso os fatos mencionados fornecem uma razão pela qual, uma vez admitida a sobrevivência como uma finalidade, o direito e a moral deveriam incluir um conteúdo específico. A forma geral do argumento consiste simplesmente em dizer que, sem um tal conteúdo, o direito e a moral não poderiam apoiar o desenvolvimento do propósito mínimo da sobrevivência que os homens têm, ao associar-se uns com os outros. Na ausência deste conteúdo os homens, tais como são, não teriam razão para obedecerem voluntariamente a quaisquer regras; e sem um mínimo de cooperação dada voluntariamente por aqueles que consideram ser seu interesse submeter-se às regras, e mantê-las, seria impossível a coerção dos outros que não se conformassem voluntariamente com tais. É importante acentuar a conexão especificamente racional entre fatos naturais e o conteúdo de regras jurídicas ou morais nesta abordagem do problema, porque é simultaneamente possível e importante fazer averiguações sobre formas relativamente diferentes de conexão entre fatos naturais e regras jurídicas ou morais. (HART, 1996, p. 209-210)
Com essa reflexão realizada por Hart, concluímos este tópico sobre o seu pensamento jurídico no contexto do positivismo jurídico do século XX, sobretudo, as questões da textura aberta do direito e da sua suposta vinculação com preceitos morais. Passamos à análise do moderno pensamento jurídico de Wilfrid Waluchow.
2.O POSITIVISMO INCLUDENTE SEGUNDO WILFRID WALLUCHOW
Wilfrid J. Waluchow é doutor pela Universidade de Oxford, professor do departamento de filosofia do direito da McMaster University e um dos juristas modernos que tem tratado sobre teoria jurídica, especificamente, sobre o positivismo jurídico inclusivo ou includente em alternativa ao positivismo jurídico exclusivo ou excludente, aqui referido como o positivismo jurídico do século XX.
Em “Positivismo Jurídico Incluyente”, o jurista realiza uma defesa desta teoria como sendo viável e melhor que o positivismo analítico ou descritivo (positivismo excludente). Na introdução da obra, Waluchow manifesta perplexidade quanto ao estado em que se encontra a teoria jurídica, apontando que as rivalidades, os pontos de vista conflitantes, enfim, os debates entre os positivistas, vêm se tornando infrutíferos a tal ponto de parecer não falarem a mesma língua.
O positivismo jurídico, que pode ser considerado a teoria jurídica “dominante” durante o século passado e ainda neste, sucedeu a corrente jurídica do direito natural ou jusnaturalismo, com expoentes como John Finnis, Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino entre outros, que adequadamente defenderiam: “o direito injusto não parece ser direito em absoluto”.
O jusnaturalismo reivindicava uma forte conexão entre direito e moral. O positivismo jurídico includente foi assim denominado por Waluchow por considerar que direito e moral têm uma conexão que se não é necessária ou forte, por assim dizer, está igualmente longe de ser meramente incidental ou contingente.
A causa da perplexidade que Waluchow transparece em seu texto decorre de o positivismo jurídico admitir, ao menos em tese e como possibilidade teórica, a existência de sistemas jurídicos “perversos” ou “injustos”, em função da posição teórica adotada pelo positivismo jurídico analítico ou descritivo segundo a qual o direito não possui necessariamente um valor moral.
O estudo desenvolvido por Waluchow acerca do positivismo jurídico o leva a questionar:
[...] se o positivismo jurídico não adota um ponto de vista segundo o qual o direito não possui necessariamente valor moral, e os sistemas jurídicos perversos, absolutamente desprovidos de todo valor moral que possa resgatá-los são conceitualmente possíveis, então, o que é o positivismo jurídico?
[...] se a teoria jusnaturalista não é um ponto de vista segundo o qual há um “direito superior” que define uma pauta fundamental e objetiva de justiça que o direito humano só pode violar ao custo de negar o status de direito válido, então, o que os jusnaturalistas vem nos dizendo? (WALUCHOW, 2007, p. 16)
Por oportuno, convém destacar o texto de Jorge Luis Fabra Zamora intitulado “Wilfrid J. Waluchow: el positivismo incluyente y el constitucionalismo del “arbol vivo””, em que se explica a defesa de Waluchow no tocante à possibilidade de uma conexão entre direito e a moral política nos moldes formulados pelo mesmo:
O positivismo jurídico includente defende a tese da separação “débil”, na qual a moral pode fazer parte dos critérios de validade estabelecidos na regra de reconhecimento, mas isso não ocorre em todos os casos (Waluchow, 1989). Em uma formulação mais técnica, o positivismo jurídico includente afirma que é conceitualmente possível, mas não necessário, que uma regra de reconhecimento inclua critérios morais para a validade das normas. Deste modo, o positivismo jurídico pode dar resposta ao desafio de Dworkin sobre as duas teses positivistas: para o positivismo includente os exemplos de Dworkin mostram que a moral figura nos critérios de validez em certos sistemas jurídicos contemporâneos, mas o argumento não demonstra que isso ocorra em todos os casos nem destrói a tese social. De acordo com o modelo desenvolvido por Hart, sustenta Waluchow que uma regra de reconhecimento pode ser tão simples como “tudo aquilo que está escrito nas doze tábuas” ou “aquele que reina promulgue no Parlamento”. Entretanto não há nada nas teses do positivismo nem mesmo na natureza do direito que proíba a possibilidade de condições morais de validade jurídica. Assim, as regras de reconhecimento podem incluir diretamente princípios morais como “igualdade” ou “devido processo legal” entre os critérios de validade. De fato, afirma Waluchow, isso é o que ocorre em muitas constituições liberais contemporâneas. Nesses casos, os critérios de moralidade e legalidade andam de mãos dadas, mas não se confundem, como sugere Dworkin, senão que sua união é contingente e depende de sua manifestação na regra de reconhecimento. O positivismo jurídico includente, então, captura a intuição dworkiniana sobre o papel da moral nos sistemas jurídicos contemporâneos, mas a apresenta em uma formulação institucional adequada, que é consistente com as teses centrais do positivismo. (ZAMORA, 2018, p. 27-28)[1] [tradução livre]
Vale, ainda, a transcrição de trecho do estudo realizado por Vincent A. Wellman em “Dworkin and the Legal Process Tradition: The Legacy of Hart & Sacks”, em que é ressaltado o desafio positivista, especialmente as provocações de Dworkin, a respeito da importância do tema para a teoria jurídica: “Seus desafios ao positivismo têm consistentemente enfatizado que certos valores os quais [Dworkin] tem descrito como detentores de características morais são importantes para a teoria do Direito” (WELLMAN, 1987, p. 469)[2] [tradução livre].
Diante dessas inquietações, o jurista apresenta a teoria do positivismo jurídico includente e justifica a denominação porque inclui na concepção do direito e sua validade regras de cunho moral e político, argumentando que a teoria situa-se entre o positivismo jurídico de Joseph Raz (positivismo excludente) e a teoria da integridade de Ronald Dworkin (positivismo includente) e destacando que, embora sejam teorias rivais, cada qual tem o seu valor e serve à teoria jurídica à sua própria maneira.
Conforme a versão traduzida para o espanhol de “Inclusive Legal Positivism” (Positivismo Jurídico Incluyente):
Em resumo, então, este livro foi elaborado para mostrar que existe uma teoria positivista que fica a meio caminho entre o positivismo excludente de RAZ e a teoria do direito (natural) como a integridade de DWORKIN (que será designada a seguir mais tarde, como <teoria da integridade> [...] Creio que em algum lugar entre as visões opostas de RAZ e DWORKIN está o positivismo legal inclusivo, uma teoria do direito viável e esclarecedora. (WALUCHOW, 2007, p. 18)[3] [tradução livre]
Waluchow aponta que para o positivista excludente não há óbice em admitir que o direito tenha alguma conexão com a moral. Todavia, esta conexão é apenas contingencial, isto é, temporária, momentânea. Portanto, o direito não prescinde da moral, ou seja, não há, segundo o positivismo excludente, uma conexão necessária ou forte entre direito e moral.
Com efeito, aponta o jurista:
Qualquer conexão entre o direito e a moral é só contingente, dependente de se, na realidade, as classes corretas de leis foram criadas de modo correto. Esse ponto de vista é que intentam expressar os positivistas quando afirmam a separação entre o direito e a moral. (WALUCHOW, 2007, p. 96)[4] [tradução livre]
Já o positivismo includente, segundo aponta Waluchow, admite uma conexão entre direito e moral quando a identificação de uma regra de um dado sistema jurídico, assim como a interpretação do conteúdo de determinada norma jurídica ou o modo como a norma jurídica influencia em um caso concreto, podem depender de fatores morais.
O positivista jurídico da escola de Raz, argumenta Waluchow, confunde a validade com a própria existência da norma jurídica, de tal maneira que se a norma existe, logo, ela é válida. Com isso, retornamos a outro conhecido debate jurídico acerca do conceito e da validade do direito: é possível que uma norma viole um direito e mesmo assim permaneça válida? Segundo o positivismo excludente a resposta é sim, pois, para a validade da norma jurídica basta que ela tenha sido posta por uma autoridade competente, conforme visto em Kelsen.
Conforme Waluchow:
O simples feito do que tenha sido ditado por parte de uma legislatura soberana, por exemplo, seria insuficiente para determinar a validade jurídica da regra. Seria-nos demandado decidir se ela viola uma condição moral, por exemplo, a cláusula do devido processo do Ato de Direitos [Bill of Rights] estadunidense, que é interpretada por muitos como especificação de equidade, como uma condição (moral) para a validade nos Estados Unidos. (WALUCHOW, 2007, p. 97)[5] [tradução livre]
O autor ora estudado procura defender a tese do positivismo jurídico includente utilizando-se de duas supostas sociedades, sendo a primeira, como o Canadá, regida por uma Constituição rígida que reconhece e outorga aos cidadãos direitos de moral política. Na segunda sociedade, todo o aparato normativo estaria a cargo dos legisladores infraconstitucionais e da atividade jurisdicional.
Assim, considerando-se uma eventual violação de direitos em uma sociedade do segundo tipo – isto é, aquela em que prepondera a atividade dos legisladores e juízes na produção e na prática judiciária e que não possui uma Constituição rígida que reconheça e garanta direitos de moral política –, é mais provável que esse tipo de sociedade caia em um formalismo jurídico do tipo “o direito é o que o direito é”.
Vale uma vez mais fazer menção ao professor Luis Fernando Barzotto que, relembrando uma das principais ideias do positivismo jurídico enquanto um sistema autopoiético de normas jurídicas, manifesta: “Na expressão precisa de Kelsen: “no sentido jurídico-positivo, fonte do direito só pode ser o direito”” (BARZOTTO, 2007, p. 20).
Certamente, uma das principais características do positivismo jurídico excludente é o formalismo, do qual decorre a ideia de uma validade jurídica autopoiética, trata-se da exata sentença kelseniana novamente: “fonte do direito só pode ser o direito”. O direito é posto ou positivo porque é a expressão da vontade de um terceiro, isto é, a vontade heterônoma do legislador, detentor de legitimidade e autoridade competente para produzir leis.
A adoção do positivismo jurídico excludente, segundo defende Waluchow, é perniciosa, pois o direito, sendo meramente descritivo, sem realizar uma certa análise de valores, sem exigir um compromisso axiológico com determinada moral, fatalmente estará à mercê de manipuladores que nem sempre irão guardar esses compromissos.
Nesse sentido, Luis Fernando Barzotto, sobre a concepção jurídica de “lei” preponderante no período do Estado Moderno ou Absolutista, em que se verifica a predominância jurídica da tese do direito separado da moral, aponta:
A principal função do Estado Moderno, na sua versão absolutista, foi precisamente esta: fornecer um padrão objetivo de resolução de conflitos, a lei, a uma sociedade cujo pluralismo poderia levar à dissolução. A lei é simplesmente um comando do soberano. Ela é identificada como jurídica pela sua origem, e não pelo conteúdo. Ou seja, ela pode ser “justa” ou “injusta” sem que isso afete a sua qualificação jurídica. O jus deixa de identificar-se com o justum, e passa a ser identificado com o jussum (comando) do soberano. Não é necessário recordar que Hobbes é o autor de referência dessa problemática. (BARZOTTO, 2007, p. 14)
Barzotto explica que o positivismo jurídico do século passado, a fim de garantir a segurança das relações sociais pela lei – cuja produção goza de presunção de legitimidade e, por isso, seu conteúdo é apto a requerer a obrigatoriedade de sua observância de forma objetiva e impessoal –, se traduz num sistema de normas jurídicas e não estaria, ao menos em tese, à mercê de subjetivismos ou da política e do poder, reclamando, dessa forma, uma autonomia necessária da moral.
De acordo com Barzotto:
[...] a segurança não fica comprometida somente pelo recurso ao subjetivismo dos juízos de valor (justiça), mas também pela imponderabilidade da normatividade oriunda da simples atuação do poder (eficácia). A segurança depende, assim, da objetividade e da previsibilidade na identificação do direito, autônomo em relação à moral (valores) e em relação à política (poder). (BARZOTTO, 2007, p. 18)
Destaca-se a leitura realizada por David Dyzenhaus em “The Rule of Law as the Rule of Liberal Principle”, que sintetiza bem a tensão existente entre o pensamento positivista excludente e o positivismo includente, ao tratar da disputa entre liberais e democratas no que tange à relação entre direito e moral política:
Por um lado, temos liberais determinados a preservar os padrões substantivos de moralidade das usurpações estatutárias de legislaturas democráticas. Eles apoiam, portanto, o judiciário como o guardião legal da constituição política. O sistema ideal, para muitos liberais, especialmente nos Estados Unidos da América, entrincheira a moralidade política liberal na constituição escrita – a qual confere aos juízes autoridade para fulminar estatutos jurídicos como inválidos quando esses não podem ser interpretados de forma consistente sob aquela moralidade. De outro lado, temos democratas populistas, referidos anteriormente, que exigem que a lei não seja mais do que a expressão sobre o que o povo de fato quer, ilimitada, na medida do possível, pelos requisitos legais formais e completamente ilimitada por princípios interpretados judicialmente.
Curiosamente, o que esses liberais e democratas compartilham é uma instrumental, basicamente positivista, consideração da lei. A lei é apenas instrumento de valores substantivos estabelecidos pela moralidade política, a divergência consiste somente em se é a filosofia político-liberal ou “o povo” que deve decidir sobre o conteúdo da moralidade. E se parece antiquado sugerir que Dworkin seja um positivista neste sentido muito limitado, vale recordar que uma constante crítica dessa teoria tem sido que ela se resume a uma versão do constitucionalismo americano – a uma teoria política que aclama ter se estabelecido numa ordem legal particular. (DYZENHAUS, 2007, p. 73-74)[6] [tradução livre]
Segundo Waluchow, um sistema positivista includente admitiria que as instituições são falhas e que podem errar. Para o positivismo excludente, não haveria como se opor eventual “injustiça” cometida pelo legislador, juiz ou tribunal, pois em se tratando de direito válido e na ausência de um compromisso moral, não há que se falar em injustiça. Para o positivismo includente, o ato lesivo, seja a lei ou algum julgado, já é inválido e, por isso, o tribunal tem o dever adjudicativo de assim o declarar.
Conforme o referido autor:
Um sistema que formalmente reconhece suas próprias limitações, que reconhece que seus legisladores e juízes podem equivocar-se juridicamente violando importantes direitos de moral política, parece ser um sistema que imporá o respeito de uma cidadania moralmente iluminada e sensível. (WALUCHOW, 2007, p. 112) [7] [tradução livre]
Waluchow colaciona em seu trabalho outro interessante exemplo para defender o positivismo jurídico includente. Diante do caso concreto, determinado juiz questiona: o que realmente demanda a justiça aqui? Longe de qualquer solipsismo, Waluchow argumenta que aquele juiz, investido no dever de decidir imposto pela lei, sem recorrer à pergunta que o direito faz a si mesmo, não oferece a resposta.
Waluchow desenvolve sua teoria adotando como paradigmas o positivismo jurídico excludente sob a perspectiva de Joseph Raz e o positivismo includente de Herbert Hart e Ronald Dworkin, sendo este último um autor muito mais inclinado às ideias do jusnaturalismo do que propriamente do positivismo jurídico analítico ou descritivo.
Segundo aponta Waluchow, com base nos argumentos de Hart, o jusnaturalismo parte da premissa de que certos aspectos muito básicos da humanidade, como, por exemplo, o desejo pela sobrevivência da espécie, ligados a outros fatos contingentes sobre o meio que nos cerca, resultam na sugestão de que direito e moral estão conectados de forma mais ampla do que meramente contingencial ou acidental. Os próprios preceitos de proteção das pessoas e da propriedade indicam que o direito e a moral compartilham uma necessidade natural que reclama um conteúdo mínimo de direito natural.
Conforme o texto em estudo:
Estou de acordo com os partidários do direito natural de que em certos aspectos o direito e a moral se encontram mais do que apenas contingente ou incidentalmente conectados. Certos aspectos muito básicos sobre os seres humanos, em particular o quase universal desejo de sobrevivência, em que a conjunção com certos outros aspectos contingentes sobre o meio em que nos encontramos, implicam uma “necessidade natural” de que a moral e o direito compartilhem um certo “conteúdo mínimo”. Por exemplo cada um deve incluir “formas mínimas de proteção às pessoas, à propriedade e às avenças”. (WALUCHOW, 2007, p. 100)[8] [tradução livre]
De forma concisa, o debate proposto por Waluchow (ponto crucial também para outros juristas) se propõe a responder a seguinte pergunta: a teoria do direito admite que uma lei “injusta” ou “iníqua” possa ser considerada válida? Em outras palavras, uma lei injusta pode ser válida?
O positivismo analítico, precipuamente segundo a Teoria Pura de Kelsen, argumenta que a ciência jurídica é meramente descritiva do fenômeno jurídico e assim o é para permitir que o direito seja “purificado”. Todavia, conforme aponta Waluchow, tal argumento não subsiste para rechaçar a proposta do positivismo includente, pois como pode a ciência jurídica nascer e permanecer “pura” se o próprio objeto de sua análise é totalmente “impuro” (WALUCHOW, 2007, p. 120)?
O último capítulo da obra em comento aborda o pós-escrito de Hart, nele Waluchow aborda o que aparenta ser uma flexibilização da teoria hartiana quanto à separação total entre direito e moral, ou melhor, entre estandartes do positivismo jurídico excludente, com a proposta do positivismo jurídico includente como alternativa mais esclarecida da teoria do direito.
O positivismo jurídico excludente representaria uma boa teoria para os casos “fáceis”, pois permite a significação “óbvia” da norma aplicada, sendo rechaçada pelo jurista (WALUCHOW, 2007, p. 286-287). Nos casos “difíceis”, e não somente nesses, é evidente que o positivismo analítico não oferece melhor solução a não ser a discricionariedade ou a da política do direito. Waluchow, portanto, defende a teoria do positivismo jurídico includente como a melhor teoria não somente para explicar o direito e descrevê-lo, como também para considerar os preceitos de moral política no próprio conteúdo das normas jurídicas.
A adoção do positivismo jurídico includente, como defende Waluchow, resultaria num verdadeiro ato de sabedoria para a prática e para a teoria jurídica.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Torna-se praticamente impossível exaurir em tão poucas palavras a grande controvérsia acerca do positivismo jurídico. Muito longe também de lançar mão das valorosas contribuições de Hans Kelsen e Herbert Hart, expoentes insuperáveis da teoria jurídica, a oferta do positivismo includente de Wilfrid Waluchow, certamente pode enriquecer ainda mais a boa técnica jurídica.
A estrutura e o repertório desenvolvidos por Kelsen na “Teoria Pura do Direito” não só marcaram toda uma geração de juristas como a riqueza de sua obra perdura na contemporaneidade. A ciência do direito jamais poderia ser assim chamada sem o aporte da teoria kelseniana. Porém, o afã pelo rigor técnico, a busca pela “pureza” e formalismo transformaram a teoria positivista do século passado em um foco de polêmicas, sobretudo em decorrência do controverso capítulo oitavo da obra em apreço.
Com efeito, vemos com olhos ressabiados a política do Direito. Kelsen, na incessante busca por um direito supostamente “puro” delegou seu rigor científico às subjetividades do aplicador da norma jurídica. Hart, por seu turno, não seguiu caminho diverso com sua ideia de textura aberta do direito, tornando a discricionariedade conceito análogo à política do direito.
O debate acerca da conexão contingente ou não entre direito e moral talvez seja a principal preocupação do filósofo do direito. Um sistema jurídico cuja validade seja “o próprio direito” tem, no nosso sentir, um grande potencial de deturpação da prática jurídica. Oxalá tivéssemos uma forma mais simples, sem prejuízo da qualidade intelectual, para explicar, afinal, o que é o direito.
Jamais foi nossa pretensão responder a esse questionamento. Entretanto, no esforço de desenvolver este artigo, pareceu-nos que, de fato, o positivismo jurídico includente consubstancia a melhor base teórica para explicar o direito e assumir suas dificuldades conceituais e práticas.
É certo que o direito deve se distanciar de delírios e imprecisões tanto dos conceitos indeterminados, como também da total ausência de controle dos atos judiciais sem que, para isso, tenhamos que violar os pressupostos mais comezinhos do positivismo jurídico excludente que pretende ser – como de fato o é – a forma mais usual e hegemônica para descrever e explicar os fenômenos jurídicos.
Por outro lado, é igualmente sedutor e perigoso que o direito possa, em algum grau, ser identificado com o “justo” ou com o “correto”. Parece-nos cada vez mais claro, nos termos propostos por Waluchow, que o positivismo jurídico includente seja mesmo um caminho entre o jusnaturalismo – que teve e ainda tem a contribuir para a teoria jurídica – e o positivismo analítico do século XX.
Conforme salientou Tércio Sampaio Ferraz Junior, nossa preocupação hoje e para o futuro deve-se manter em distinguirmos, sem utilizar separações radicais, entre o direito e a moral. Tal desafio está à altura deste século, teorias e práticas devem dialogar a fim de encontrarmos, hoje e amanhã, a melhor forma de transmitir o conhecimento acerca do direito e de sua filosofia.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARZOTTO, Luis Fernando. O Positivismo Jurídico Contemporâneo – Uma Introdução a Kelsen, Ross e Hart. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico – Lições da Filosofia do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
DYZENHAUS, David. “The Rule of Law as the Rule of Liberal Principle”. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito – técnica, decisão e dominação. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2003.
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
HART, L. A. Herbert. O Conceito de Direito. (No original em inglês The Concept of Law). 2. ed. Tradução de A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Biblioteca Liceu Salesiano – Fundação Caloueste Gulbenkian, 1996.
ZAMORA, Jorge Luis Fabra. Wilfrid J. Waluchow: el positivismo incluyente y el constitucionalismo del “arbol vivo””. Bogotá, Revista Diálogos de Saberes, n. 49, p. 25-41, jul./dez. 2018.
WALUCHOW, Wilfrid. J. Positivismo Jurídico Incluyente. Tradução de Marcela S. Gil e Romina Tesone. Revisão de tradução de Hugo Zuleta. Madrid: Marcial Pons, 2017.
WELLMAN, Vincent A. “Dworkin and the Legal Process Tradition: The Legacy of Hart & Sacks”. 29 Ariz. L. Rev. 413 (1987). Disponível em: <https://digitalcommons.wayne.edu/lawfrp/148>. Acesso em: 10 dez. 2020.
[1] Na versão original em espanhol de Wilfrid J. Waluchow: el positivismo incluyente y el constitucionalismo del “arbol vivo””: “El positivismo jurídico incluyente defende la tesis de la separación “débil”, en la que la moral puede hacer parte de los criterios de validez estabelecidos en la regla de reconocimiento, pero esto no ocurre en todos los casos (Waluchow, 1989). En la formulación más técnica, el positivismo jurídico incluyente afirma que es conceptualmente posible, pero no necesario, que una regla de reconocimiento incluya criterios morales para la validez de las normas. De este modo, el positivismo jurídico puede dar respuesta al desafío de Dworkin sobre las dos tesis positivistas: para el positivista incluyente, los ejemplos de Dworkin señalan que la moral figura en los criterios de validez en ciertos sistemas jurídicos contemporáneos, pero el argumento no demuenstra que ello ocurra en todos los casos ni destruye la tesis social. De acuerdo con el modelo desarrollado por Hart, sostiene Waluchow, una regla de reconocimiento puede ser tan simple como “todo lo que esté escrito en las doce tablas” o “lo que Reina promulgue en el Parlamento”. Sin embargo, no hay nada en la tesis del positivismo ni en la naturaleza del derecho mismo que prohíba la possibilidad de condiciones morales de validez jurídica. Así, las reglas de reconocimiento pueden inclur directamente princípios morales como “igualdad” o “debido proceso” entre los criterios de validez (Hart, 2000, p. 26). De hecho, afirma Waluchow, esto es lo que ocurre en muchas constitutiones liberales contemporáneas. En estos casos, los criterios de moralidad y legalidad van de la mano, pero no se confunden, como sugiere Dworkin, sino que su unión es contingente y dependiente de su manifestación en la regla de reconocimiento. El positivismo jurídico incluyente, entonces, captura la intuicion doworkinana sobre el papel de la moral en los sistemas jurídicos contemporáneos, pero la presenta en una formulación institucional adecuada, que es consistente con la tesis centrales del positivismo”.
[2] Na versão original em inglês de “Dworkin and the Legal Process Tradition: The Legacy of Hart & Sacks”: “His challenge to positivism has consistently emphasized that certain values which he has described as having moral characteristics are important to a theory of law.”
[3] Na versão em espanhol: “En resumen, pues, este libro está diseñado para mostrar que hay uma teoria positivista que yace a mitad de camino entre el positivismo excluyente de RAZ y la teoría del derecho (natural) como integridade de DWORKIN (a la que se designará de aqui em adelante como <teoría de la integridade> [...] Creo que em algún lugar entre los puntos de vista opuestos de RAZ y DWORKIN se encuentra el positivismo jurídico incluyente, una teoría del derecho viable e iluminadora”.
[4] Na versão em espanhol: “Cualquier conexión entre el derecho y la moral es sólo contingente, dependiente de si, em realidad, las clases correctas de leyes se han creado de modo correcto. Es este punto de vista el que intentan expresar los positivistas cuando afirman la separación entre el derecho y la moral”.
[5] Na versão em espanhol: “El simple hecho de su dictado por parte de una legislatura soberana, por ejemplo, sería insuficiente para determinar la validez jurídica de la regla. Se nos requeriría que decidamos si ella viola uma condición moral, por ejemplo, la cláusula del debido proceso del Acta de Derechos [Bill of Rights] estadounidense, que es interpretada por muchos como especificación de la equidad como una condición (moral) para la validez em los Estados Unidos”.
[6] Texto original em inglês de “The Rule of Law as the Rule of Liberal Principle”: “On the hand, we have liberals determined to preserve the substantive standards of morality from statutory encroachments by democratic legislatures. They thus hold up the judiciary as the legal guardian of the political constitution. The ideal system for many liberals, especially in the United States of America, entrenches liberal political morality in written constitution – one that gives to judges the authority to strike down statutes as invalid when these cannot be interpreted in a fashion consistent with that morality. On the other hand, we have the populist democrats referred to earlier, who require law to be nothing more than the expression of what the people in fact want, unconstrained insofar as this possible by formal legal requirements and completely unconstrained by judicially interpreted principles.
Curiously, what these liberals and democrats share is an instrumental, basically positivist, account of law. Law is just instrument of substantive values established by political morality, and disagreement is about only whether it is liberal political philosophy or “the people” who should decide on the content of morality. And if it seems old suggest that Dworkin turns out to be a positivist in this very limited sense, one should recall that a constant criticism of this theory has been that it boils down to a version of America constitucionalism – to a political theory with a claim to have established itself in a particular legal order”.
[7] Na versão em espanhol: “Un sistema que formalmente reconoce sus próprias limitaciones, que reconoce que sus legisladores y jueces puedan equivocarse juridicamente violando importantes derechos de moral política, parece ser un sistema que impondrá el respecto de una ciudadanía moralmente iluminada y sensible”.
[8] Na versão em espanhol: “Estuvo de acuerdo con los partidários del derecho natural en que en ciertos aspectos el derecho y la moral se encuentran más que sólo contingente o incidentalmente conectados. Ciertos hechos muy básicos sobre los seres humanos, en particular el casi universal deseo de supervivência, en conjunción con ciertos otros hechos contingentes sobre el médio en que nos encontramos, implican una “necesidad natural” de que la moral y el derecho compartan un certo “contenido mínimo”. Por ejemplo cada uno debe incluir “formas mínimas de protección para las personas, la propriedade y las promesas”.
graduado e mestrando em Filosofia do Direito na PUC-SP, bolsista pelo CNPq. Advogado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MATOS, JOSÉ CARLOS SEVERO DE OLIVEIRA. Positivismo excludente versus positivismo includente Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 31 dez 2020, 04:40. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56004/positivismo-excludente-versus-positivismo-includente. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: EDUARDO MEDEIROS DO PACO
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Por: LETICIA REGINA ANÉZIO
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