Em 2020, o Conselho da Justiça Federal (CJF) realizou a I Jornada de Direito Administrativo onde foram abordados vários temas da atualidade nesse campo jurídico que trata das questões atinentes à Administração Pública.
A par disso, constou a aprovação do Enunciado nº 18 com a seguinte redação:
A ausência de previsão editalícia não afasta a possibilidade de celebração de compromisso arbitral em conflitos oriundos de contratos administrativos.
Não se questiona aqui neste momento a possibilidade ou não de celebração de compromisso arbitral no âmbito da Administração Pública, assunto esse, aliás, de bastante celeuma no cenário nacional.
Até porque, como se sabe, já há diversas manifestações da Administração Pública brasileira acerca do cabimento da arbitragem em suas pactuações, a exemplo da regra insculpida no Regimento Interno da Procuradoria Geral do Estado de Alagoas (Decreto Estadual nº 4.804/2010), a saber:
Art. 27. Compete à Procuradoria Judicial a representação judicial do Estado, com exclusividade, em qualquer ação, foro, tribunal, juizado ou instância, e das autarquias e fundações públicas, exceto daquelas que possuam serviço jurídico próprio, observada a competência da Procuradoria da Fazenda Estadual.
§ 1º É ainda da competência da Procuradoria Judicial:
[...]
§ 3º Nos feitos de interesse do Estado e, quando for o caso, das entidades da administração indireta, a Procuradoria Judicial pode propor ao Procurador Geral do Estado que solicite autorização do Governador do Estado, para desistir, transigir, firmar compromisso arbitral e confessar. (grifou-se)
O que se propõe a discutir aqui é outra situação.
Ora, o edital é a lei do caso concreto e irá regular tanto a atuação da Administração Pública quanto a dos licitantes interessados em com ela contratar. Por isso mesmo, a Lei Federal nº 8.666/1993 (Lei de Licitações e Contratos) prevê o que abaixo segue:
Art. 3o. A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos.
Art. 41. A Administração não pode descumprir as normas e condições do edital, ao qual se acha estritamente vinculada.
Art. 55. São cláusulas necessárias em todo contrato as que estabeleçam:
[...]
XI - a vinculação ao edital de licitação ou ao termo que a dispensou ou a inexigiu, ao convite e à proposta do licitante vencedor; (grifou-se)
Explicitando o assunto, Lucas Rocha Furtado aduz o seguinte ao tratar do instrumento convocatório:
[...] é a lei do caso, aquela que irá regular a atuação tanto da administração pública quanto dos licitantes. Esse princípio é mencionado no art. 3º da Lei de Licitações, e enfatizado pelo art. 41 da mesma lei que dispõe que “a Administração não pode descumprir as normas e condições do edital, ao qual se acha estritamente vinculada”.
Nesse sentido, numa primeira leitura do Enunciado nº 18 se vê claramente a flexibilização do princípio da vinculação ao instrumento convocatório, este último que prevê uma observância das partes quanto ao pactuado.
Essa situação de que trata o enunciado, em que pese possa ser eventualmente benéfica aos contratantes no caso concreto – haja vista os ganhos possivelmente advindos da arbitragem – não tem o condão de afastar outras realidades fáticas.
Explica-se.
Muitas empresas deixam de contratar com a Administração Pública exatamente porque são sabedoras de que eventuais descumprimentos de cláusulas contratuais por parte daquela desaguariam em conflitos judiciais de décadas perante o Poder Judiciário.
Esses conflitos de longo prazo, em grande parte, afastam potenciais empresas licitantes interessadas em soluções mais rápidas de eventuais contendas. Cada vez mais o mercado empresarial busca por celeridade, onde a possibilidade de arbitragem em determinado contrato se traduz em atrativo para os competidores. As empresas querem segurança jurídica e não uma teia infindável de recursos judiciais, acaso uma demanda venha a ser proposta perante o Poder Judiciário.
Portanto, é possível que a Administração Pública deixe de receber propostas até mais vantajosas de licitantes que creram em determinado cenário fático – ausência de arbitragem no contrato futuro – simplesmente porque não houve clareza editalícia acerca desse método de resolução extrajudicial de conflitos.
Há casos em que os próprios departamentos jurídicos e de compliance das empresas não recomendam a formalização de contratos administrativos onde seja inexistente a fixação de arbitragem no edital do certame. Essas empresas sequer chegam a se interessar em lançar propostas na fase externa da licitação.
Um exemplo clássico dessa realidade advém de contratos bilionários em Parcerias Público-Privadas (PPP) em que uma empresa multinacional poderá se desinteressar em lançar proposta mais vantajosa para a Administração Pública apenas porque está ciente de que uma contenda com esta poderá levar anos para se findar perante o Poder Judiciário, com custos inimagináveis com essa judicialização do ponto de vista econômico. Por isso mesmo muitos setores do mercado mundial somente admitem pactuar com a Administração Pública se houver fixação de arbitragem.
No exemplo citado acima, como ficaria a percepção de lisura do certame pela empresa multinacional que deixou de participar da licitação exatamente em razão da ausência de arbitragem, mas viu, logo após a formalização contratual, uma mudança do comportamento editalício para permitir que conflitos posteriores fossem submetidos à arbitragem?
Nesse contexto, em que pese se mostre importante a preocupação dos editores do Enunciado nº 18 da I Jornada de Direito Administrativo em promover a expansão da arbitragem em contratos administrativos, não se pode ignorar que essa realidade de admitir a arbitragem alheia à previsão editalícia poderá acomodar situações de quebra da competitividade, da vinculação ao instrumento convocatório, da segurança jurídica, da isonomia, da impessoalidade, da moralidade e da escolha mais vantajosa para a Administração Pública.
Enfim, não é saudável para o bom funcionamento da Administração Pública que os comportamentos e justas expectativas criadas em editais licitatórios sejam violados, pois, como se disse, a possibilidade de arbitragem em determinado contrato administrativo pode se traduzir – e na realidade brasileira assim o é – em fator decisivo no quesito competitividade.
Ter ou não arbitragem em dado contrato administrativo pode ser o diferencial para determinada empresa se inscrever ou não no certame, afetando diretamente a competição entre os licitantes. Daí o porquê de as regras editalícias serem cumpridas, nos exatos moldes em que previamente definidas, e não decididas posteriormente ao bel prazer da Administração Pública e do licitante vencedor.
Inadmissível, assim, o escancarado casuísmo tratado no Enunciado nº 18, como se o mero e eventual benefício trazido por uma arbitragem não prevista em edital pudesse ignorar a violação aos princípios administrativos indicados nessa reflexão.
É preciso, pois, que se esteja em constante alerta aos aparentes benefícios desse Enunciado nº 18 para a Administração Pública, os quais, em essência, têm potencial lesivo para institucionalizar graves distorções no campo das licitações e contratações públicas.
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