O Conselho da Justiça Federal (CJF) realizou a I Jornada de Direito Administrativo, em 2020, oportunidade em que se debruçou acerca de diversas celeumas hodiernas no campo do direito administrativo.
Esse novel momento onde doutrinadores, juristas e profissionais em geral do direito buscaram refletir sobre os caminhos da nova Administração Pública merece um especial registro, a fim de que novas jornadas administrativistas possam ser realizadas no Brasil.
No entanto, em que pese essa inovação, é certo que muitos posicionamentos da I Jornada de Direito Administrativo não trouxeram pacificação sobre temas centrais desse ramo jurídico, mas sim catalisaram discussões e controvérsias gigantescas.
Uma dessas divergências se consubstanciou na aprovação do Enunciado nº 10, o qual contou com a seguinte redação final:
Em contratos administrativos decorrentes de licitações regidas pela Lei n. 8.666/1993, é facultado à Administração Pública propor aditivo para alterar a cláusula de resolução de conflitos entre as partes, incluindo métodos alternativos ao Poder Judiciário como Mediação, Arbitragem e Dispute Board.[1]
Nesse sentido, é bastante comum nos dias atuais a busca por métodos alternativos de resolução de conflitos, os quais devem ser estimulados, seja no campo do direito público, seja na seara do direito privado.
Não há mais espaço para que apenas o Poder Judiciário seja o protagonista na resolução de conflitos sociais. A sociedade vem, por isso, evoluindo para reconhecer essa necessidade urgente de pacificação por meios extrajudiciais, uma perspectiva moderna que se coaduna com o ordenamento jurídico brasileiro[2].
Inexiste, assim, qualquer sentido lógico e jurídico em criar entraves a uma maior presença dos métodos alternativos de resolução de conflitos, mesmo para os casos em que a parte envolvida é a Administração Pública, desde que guardadas as devidas peculiaridades decorrentes do regime jurídico administrativo[3].
No entanto, não se pode ignorar que o Enunciado nº 10, à pretexto de promover esse incentivo alhures mencionado, acabou por institucionalizar a quebra do princípio da vinculação ao instrumento convocatório.
Ora, o enunciado acima aduz que em contratos administrativos decorrentes de licitações regidas pela Lei Federal nº 8.666/1993 é facultado à Administração Pública propor aditivo para alterar a cláusula de resolução de conflitos entre as partes, incluindo métodos alternativos ao Poder Judiciário como Mediação, Arbitragem e Dispute Board.
Para se entender a complexidade da discussão far-se-á uma breve reflexão.
Imagine-se, por exemplo, um contrato de concessão de serviço público cuja licitação prévia teve como valor estimado R$ 20.000.000.000,00 (vinte bilhões de reais). Parece uma hipótese excepcional, mas não é. Atualmente, notadamente após a recente sanção da Lei Federal nº 14.026/2020 – marco legal do saneamento básico – os contratos têm sido nestes valores mínimos em diversas licitações que visam à concessão de serviços públicos na área de saneamento básico.
Pois bem. Uma vez fixado no edital do certame que o conflito futuro entre a contratante (Administração Pública) e o contratado (licitante) seria resolvido pelas vias judiciais perante o Poder Judiciário, criou-se para os eventuais interessados em concorrer naquele certame uma justa expectativa de comportamento administrativo.
Assim, não é sem razão pressupor que potenciais empresas multinacionais licitantes tenham desistido de participar da disputa em função dos riscos jurídicos, administrativos e econômicos que essas contendas perante o Poder Judiciário poderiam trazer para as referidas empresas.
Como se sabe, uma litigiosidade perante o Poder Judiciário poderá consumir anos de tramitação, com custos elevadíssimos para as partes, trazendo mais complicações que benefícios para os envolvidos. Daí porque diversos setores de compliance em multinacionais, bem como seus consultores jurídicos, acabam por não recomendar a participação em certames que não possuam cláusula de resolução alternativa de conflitos.
A existência dessa cláusula é fato determinante no quesito competitividade entre os licitantes, interferindo, também, no resultado final da seleção, pois poderá inibir a concorrência e alterar o desfecho da licitação.
Uma vez concluída a fase licitatória e firmado o contrato administrativo sob as premissas do edital, se a pactuação indicou que tal avença teria a resolução de conflitos pela via judicial, esta definição, salvo melhor juízo, deve ser observada.
O que não seria justo com os demais potenciais licitantes é a perspectiva defendida pelo Enunciado nº 10. Isto porque o seu texto admite a mudança de um comportamento mediante termo aditivo, como se a cláusula de resolução de conflitos se tratasse de mero interesse das partes envolvidas no contrato.
E não é assim.
Com a cláusula de resolutividade de conflitos perante o Poder Judiciário, à toda evidência, houve um comportamento estatal que interferiu no interesse de potenciais licitantes, estes que poderiam não apenas terem participado do certame se soubessem que a Administração Pública alteraria essa cláusula posteriormente através de termo aditivo, mas até mesmo serem os ofertantes de uma proposta mais vantajosa para a Administração Pública.
Por exemplo, uma empresa vencedora da licitação acima exemplificada poderia ter lançado uma proposta de R$ 20.000.000.000,00 (vinte bilhões de reais) pelo contrato de concessão do serviço público de saneamento, sabedora de que o futuro conflito seria submetido ao Poder Judiciário.
Porém, se outra potencial empresa licitante soubesse que a Administração Pública permitiria um aditivo para alterar a forma de resolução do conflito visando a um método extrajudicial – com menor risco e onerosidade – poderia ter participado e ofertado uma proposta de R$ 21.000.000.000,00 (vinte e um bilhões de reais).
Isto sem se mencionar as propostas dos demais licitantes que chegaram a participar da licitação, mas ofertaram um valor menor para vencer a disputa, justamente prevendo os custos operacionais de conflitos no Poder Judiciário, os quais, como se sabe, são imprevisíveis e de maior impacto econômico.
Quem garante, então, que essa mudança de cláusula de resolução de conflitos não afetou a obtenção de uma proposta mais vantajosa para a Administração Pública? Seria justo com o potencial licitante burlar o princípio da vinculação ao instrumento convocatório? Como fica a questão da isonomia, da moralidade e da impessoalidade entre o licitante vencedor, o(s) licitante(s) perdedor(es) e os potenciais licitantes?
Por isso mesmo a Lei Federal nº 8.666/1993 (Lei de Licitações e Contratos) é bastante clara ao assegurar o princípio da vinculação ao instrumento convocatório:
Art. 3o. A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos.
Art. 41. A Administração não pode descumprir as normas e condições do edital, ao qual se acha estritamente vinculada.
Art. 55. São cláusulas necessárias em todo contrato as que estabeleçam:
[...]
XI - a vinculação ao edital de licitação ou ao termo que a dispensou ou a inexigiu, ao convite e à proposta do licitante vencedor; (grifou-se)
Igualmente, já advertiu o Tribunal de Contas da União (TCU):
Acórdão:
VISTOS, relatados e discutidos estes autos que tratam de relatório de auditoria (Fiscobras 2012) realizada na Eletrobras Distribuição Alagoas (CEAL), no Contrato nº 006/2012, relativamente à Temática "Luz para Todos",
ACORDAM os Ministros do Tribunal de Contas da União, reunidos em Sessão do Plenário, ante as razões expostas pelo relator, em:
9.1. dar ciência às Centrais Elétricas Brasileiras S. A. (Eletrobras) e à Eletrobras Distribuição Alagoas (CEAL), em virtude das ocorrências relativas ao Contrato nº 006/2012, que promover alterações na redação de cláusulas contratuais, assim como incluir novas cláusulas, alíneas ou incisos, tornando o contrato diferente da minuta anexa ao edital da licitação, constitui infringência ao princípio da vinculação ao instrumento convocatório, contemplado nas disposições do art. 54, § 1º, da Lei nº 8.666/93;
9.2. arquivar o processo.
10. Ata n° 12/2013 – Plenário.
11. Data da Sessão: 10/4/2013 – Ordinária.
12. Código eletrônico para localização na página do TCU na Internet: AC-0843-12/13-P.
13. Especificação do quorum:
13.1. Ministros presentes: Aroldo Cedraz (na Presidência), Walton Alencar Rodrigues, Benjamin Zymler, Raimundo Carreiro (Relator), José Jorge, José Múcio Monteiro e Ana Arraes.
13.2. Ministros-Substitutos presentes: Augusto Sherman Cavalcanti, Marcos Bemquerer Costa, André Luís de Carvalho e Weder de Oliveira.
Por fim, não existe previsão legal na Lei Federal nº 8.666/1993 para se alterar o contrato visando a essa finalidade de criação da cláusula de resolução alternativa de conflitos, a demonstrar a clara violação ao princípio da legalidade no Enunciado nº 10, consoante se extrai a seguir:
Seção III
Da Alteração dos Contratos
Art. 65. Os contratos regidos por esta Lei poderão ser alterados, com as devidas justificativas, nos seguintes casos:
I - unilateralmente pela Administração:
a) quando houver modificação do projeto ou das especificações, para melhor adequação técnica aos seus objetivos;
b) quando necessária a modificação do valor contratual em decorrência de acréscimo ou diminuição quantitativa de seu objeto, nos limites permitidos por esta Lei;
II - por acordo das partes:
a) quando conveniente a substituição da garantia de execução;
b) quando necessária a modificação do regime de execução da obra ou serviço, bem como do modo de fornecimento, em face de verificação técnica da inaplicabilidade dos termos contratuais originários;
c) quando necessária a modificação da forma de pagamento, por imposição de circunstâncias supervenientes, mantido o valor inicial atualizado, vedada a antecipação do pagamento, com relação ao cronograma financeiro fixado, sem a correspondente contraprestação de fornecimento de bens ou execução de obra ou serviço;
d) para restabelecer a relação que as partes pactuaram inicialmente entre os encargos do contratado e a retribuição da administração para a justa remuneração da obra, serviço ou fornecimento, objetivando a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, na hipótese de sobrevirem fatos imprevisíveis, ou previsíveis porém de consequências incalculáveis, retardadores ou impeditivos da execução do ajustado, ou, ainda, em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe, configurando álea econômica extraordinária e extracontratual. (Redação dada pela Lei nº 8.883, de 1994)
Assim, entende-se que a quebra da confiança legítima nos atos administrativos não deveria ser estimulada como de fato ocorreu no Enunciado nº 10. É preciso haver limites a essa flexibilização do princípio da vinculação ao instrumento convocatório[4], sob pena de que, ao argumento de resolver um problema contratual específico, não se frustre a essência do processo licitatório que é obter a proposta mais vantajosa para a Administração Pública, permitindo a ampla competividade e isonomia entre os interessados. E se há interesse em submeter os conflitos futuros de determinado pacto à resolução extrajudicial, que tal previsão seja previamente planejada e fixada no edital regulador do certame.
[1] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). Disponível em: <http://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/10082020-I-Jornada-de-Direito-Administrativo-divulga-os-40-enunciados-aprovados.aspx>. Acesso em: 29 dez. 2020.
[2] GUERREIRO. Luís Fernando. Convenção de arbitragem e processo arbitral. São Paulo: Atlas, 2009.
[3] BERALDO, Leonardo de Faria. Curso de arbitragem nos termos da Lei 9.307/96. São Paulo: Atlas, 2014.
[4] MENDES, Renato Geraldo. O Processo de Contração Pública – Fases, etapas e atos. Curitiba: Zênite, 2012.
Procurador do Estado de Alagoas. Advogado. Consultor Jurídico. Ex-Conselheiro do Conselho Estadual de Segurança Pública de Alagoas. Ex-Membro de Comissões e Cursos de Formação de Concursos Públicos em Alagoas. Ex-Membro do Grupo Estadual de Fomento, Formulação, Articulação e Monitoramento de Políticas Públicas em Alagoas. Ex-Técnico Judiciário do Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Ex-Estagiário da Justiça Federal em Alagoas. Ex-Estagiário da Procuradoria Regional do Trabalho em Alagoas. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CALHEIROS, Elder Soares da Silva. Críticas ao Enunciado nº 10 da I Jornada De Direito Administrativo sob a perspectiva do princípio da vinculação ao instrumento convocatório Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 jan 2021, 04:31. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56026/crticas-ao-enunciado-n-10-da-i-jornada-de-direito-administrativo-sob-a-perspectiva-do-princpio-da-vinculao-ao-instrumento-convocatrio. Acesso em: 23 dez 2024.
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