MATEUS DE SOUZA FIGUEIREDO
Resumo: A lei 13.964/19, trouxe diversas inovações ao direito penal e processual penal brasileiro. Cite-se com ela a famigerada figura do juiz de garantias. Tal instituto prevê a obrigatoriedade da divisão entre as fases pré e processual penal. Entende-se, que, como base nos fundamentos que sustentam sua criação, não haverá comunicação entre os dois magistrados, seja no âmbito do conteúdo ou procedimental, excetuando-se aquelas hipóteses previstas no artigo 3.º-C, § 3.º do CPP, como nos casos de provas irrepetíveis; obtenção de provas cautelares e antecipação de provas, ficando todo os demais conteúdos produzidos na fase inquisitória, acautelados na secretaria daquele juízo. Um dos principais objetivos da instituição do juiz de garantias é reforçar, no nível infraconstitucional, o sistema acusatório constitucional. Sua instituição, tem como objeto a preservação da imparcialidade do juiz julgador da causa. Este, deve ser poupado de tomar decisões no curso da investigação preliminar e não deve ter contato com elementos de informação produzidos no procedimento inquisitorial onde não há predominância do princípio do contraditório e da ampla defesa. Não obstante, todos os avanços e contribuições atribuídos à referida alteração, vislumbra-se que seu sistema de implementação se encontra muito longe do esperado ao confrontar com a atual estrutura e situação do sistema judiciário nacional, que, deverá, recepcionar a nova norma em breve. Para tanto, far-se-á necessário a mobilização administrativa e estrutural do poder judiciário, com a contratação de pessoal, investimentos em infraestruturas, sem falar no problema da aplicabilidade deste novo instituto em comarcas menores ou de competência única.
Palavras chave: Juiz de Garantias. Ordenamento Jurídico. Eficácia. Estrutura Judicial. Aplicabilidade.
Abstract: Law 13.964/19 brought several innovations to Brazilian criminal and procedural criminal law. Let us mention the notorious figure of the guarantee judge. Such institute provides for the mandatory division between the pre and criminal procedural phases. It is understood that, based on the fundamentals that support its creation, there will be no communication between the two magistrates, either in terms of content or procedural, except for those cases provided for in Article 3-C, § 3 of CPP, as in the case of unrepeatable evidence; obtaining of evidence and anticipation of evidence, leaving all other content produced in the inquisitorial phase, taken care of in the secretary of that court. One of the main objectives of the guarantee judge institution is to reinforce, at the infraconstitutional level, the constitutional accusatory system. Its institution aims to preserve the impartiality of the judge who judges the case. The latter must be spared from making decisions in the course of the preliminary investigation and must not have contact with information elements produced in the inquisitorial procedure where there is no predominance of the principle of contradictory and broad defense. Notwithstanding, all the advances and contributions attributed to the referred alteration, it is seen that its system of implementation is far from expected when confronted with the current structure and situation of the national judicial system, which should receive the new rule soon. To this end, administrative and structural mobilization of the judiciary will be necessary, with the hiring of personnel, investments in infrastructure, not to mention the problem of the applicability of this new institute in smaller counties or with unique competence.
Keywords: Guarantee Judge. Legal Order. Efficiency. Judicial Structure. Applicabilit
O juiz de garantias não é uma ideia originalmente brasileira pois já existente na legislação de vários países da América Latina, tais como: Chile, Argentina, Uruguai, dentre outros. Além da Europa, como: Alemanha, França, Itália. Até mesmo nos Estados Unidos, separadas algumas diferenças, contam com um juiz de atuação pré-processual.
Foi a partir do desdobramento do artigo 3º do Código de Processo Penal, mais especificamente no 3º-A, que houve a condução definitivamente do Código, em consonância com a Constituição Federal, para consagrá-lo a estrutura acusatória.
Assim, a função do juiz de garantias tem como objetivo a promoção do controle de legalidade dos atos de investigação criminal, ou seja, de tudo que acontece na fase de inquérito policial e a promoção do juízo de admissibilidade acusatória.
Não obstante sua necessária criação, o dispositivo não encontrou vigor desde sua aprovação, face a uma série de ADIs, que culminou em uma liminar proferida pelo ministro Luiz Fux, vice-presidente do Supremo Tribunal Federal, que, no uso de suas atribuições, considerou que o Juiz das Garantias, sofre de vícios e ainda trará forte impacto na estrutura do poder judiciário, para sua devida implementação, como se verifica a seguir:
O juiz das garantias, embora formalmente concebido pela lei como norma processual geral, altera materialmente a divisão e a organização de serviços judiciários em nível tal que enseja completa reorganização da justiça criminal do país, de sorte que inafastável considerar que os artigos 3º-A a 3º-F consistem preponderantemente em normas de organização judiciária, sobre as quais o Poder Judiciário tem iniciativa legislativa própria (Art. 96 da Constituição). (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.299. Relator ministro Luiz Fux / 22 de janeiro de 2020).
Ainda, considerou que a falta de prévia dotação orçamentária é um dos grandes vícios constantes da nova norma.
A complexidade da matéria em análise reclama a reunião de melhores subsídios que indiquem, acima de qualquer dúvida razoável, os reais impactos do juízo das garantias para os diversos interesses tutelados pela Constituição Federal, incluídos o devido processo legal, a duração razoável do processo e a eficiência da justiça criminal (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.299. Relator ministro Luiz Fux / 22 de janeiro de 2020).
Assim, temos que, grandes serão os desafios para sua real aplicabilidade e vigência, face as barreiras procedimentais presentes e estruturais futuras que aqui passaremos a nos ater.
A ideia de Juiz de Garantias, empiricamente, remonta ao conceito dado por Max Weber, quanto a uma figura de poder publicamente estabelecida e imparcial ao conflito, o “terceiro superior”, que leva a sociedade a se submeter a suas decisões.
Em situações extremas, esta decisão pode ser aplicada por meio da coerção. Todavia, para a perfeita adesão desta figura, bem como de suas decisões, faz-se necessário que este “terceiro superior” seja imparcial. Para tanto, deve-se manter preservada e, sobretudo, neutra, quanto às partes litigantes. Assim, neste enredo, o desfecho da causa terá uma resposta, por um terceiro, verdadeiramente imparcial.
Os anseios por justiça, no conceito moderno, se agarram nestes princípios irrefutáveis para uma legítima e incontestável atuação do julgador, que se desdobra no papel de aplicador da lei e garantidor dos direitos fundamentais em sua maioria positivados, como, a exemplo da Constituição brasileira, que adotou o sistema acusatório e não inquisidor.
A matriz dialética brasileira tem estrutura fundada no contraditório e na ampla defesa, divergindo do sistema inquisitório pretérito, que aglutina funções, e tem por característica crucial a concentração em um único ator processual, o juiz, das funções de acusar, defender e julgar, o que, obviamente, malfere a parcialidade do julgamento dado.
Diante de uma estrutura assim engendrada, resta completamente dizimado o contraditório e a ampla defesa, não tendo o réu a possibilidade de manifestar-se e, de algum modo, contribuir na formação do livre convencimento do magistrado.
Trazendo à baila ideias do doutrinador Tourinho Filho, com importantes considerações acerca da impossibilidade do exercício do contraditório e da ampla defesa, preleciona que:
O processo de tipo inquisitório é a antítese do acusatório. Não há o contraditório, e por isso mesmo inexistem as regras de igualdade e liberdade processuais. As funções de acusar, defender e julgar encontram-se enfeixadas numa só pessoa: o Juiz. É ele quem inicia, de ofício, o processo, quem recolhe as provas e, a final, profere a decisão, podendo, no curso do processo, submeter o acusado a torturas, a fim de obter a rainha das provas: a confissão. O processo é secreto e escrito. Nenhuma garantia se confere ao acusado. Este aparece em uma situação tal subordinação que se transfigura e se transmuda em objeto do processo e não em sujeito de direito (TOURINHO FILHO, 2005. pg. 49).
Sobre este aspecto, a ciência processual demonstra que este acúmulo de funções atribuídas ao magistrado, gera sobrecarga e influi no condicionamento profissional e na objetividade do julgador.
Assim, faz-se necessário o instituto do duplo juiz, para preservação da imparcialidade cognitiva daquele que irá julgar, dando efetivo cumprimento ao sistema acusatório constitucionalmente adotado.
Deste modo, fica a cargo do direito criar mecanismos que permitam a preservação de uma ilibada e cristalina tutela jurídica, com a consequente e legítima atuação jurisdicional, onde, o julgador, tem a função bem definida de, nas palavras de Aury Lopes Júnior, “atuar como garantidor, dos direitos do acusado no Processo Penal”, ficando a cargo do Ministério Público e Defesa a função de formar no julgador, a convicção para uma acertada decisão.
Neste introito, nos termos do artigo 3º-C do CPP, foi introduzido o novo instituto do juiz de garantias, visto por muitos doutrinadores como uma grande inovação introduzida pela lei 13.964/2019, e, já consagrado em diversos países, ainda que com nomenclatura diversa, como a exemplo da Itália, onde é conhecido como “Juiz da investigação” (II giudice per le indagini preliminari).
O juiz de garantias, pela primeira vez, passou as tratativas de sua inserção no ordenamento jurídico brasileiro, mediante sua pauta no projeto de reforma global do nosso Código de Processo Penal.
O então projeto de lei, tramitou pelo Senado Federal, entre 2009 e 2011. O anteprojeto, oriundo daquela casa, foi etiquetado e aprovado sob o n.º 156/2009.
A aprovação em Plenário da redação final do texto, ocorreu na sessão extraordinária em 7/12/2010, com remessa de comunicação à Câmara dos Deputados sob o n.º PL 8.045/2010.
O último andamento se deu em 21/3/2019, mediante ato da atual Presidência do deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), que criou Comissão Especial, a ser composta de 34 titulares e igual número de suplentes, para proferir parecer sobre o PL 8.045/2010, responsável pela elaboração, junto ao Senado, da versão original do anteprojeto de reforma do CPP.
Mais precisamente, o artigo 3º da lei 13.964/19 introduziu no Código de Processo Penal a figura do juiz de garantias. Atribuindo-se ao juiz que atua na fase da investigação criminal, antes do ajuizamento da ação penal, a função de tutelar os direitos fundamentais das pessoas investigadas e de zelar pela legalidade da investigação.
Embora tenhamos discorrido quanto ao tema em linhas volvidas, cabe lembrar que há inúmeros códigos de processos penais espalhados mundo afora, trazendo em seus contextos regras expressas, especificamente no viés de separar órgãos jurisdicionais de controle da investigação preliminar e de instrução e julgamento do mérito penal, com vistas à máxima imparcialidade da “persona” do julgador.
A Constituição de 1988, em seu artigo 129, inciso I, consagra em matéria de processo penal, o sistema acusatório, atribuindo separadamente à cada órgão as funções bem delimitadas de acusação e julgamento.
Sob esta égide de adequação das normas processuais penais brasileiras à luz da Constituição, é que, o projeto de reforma inicia seu texto com uma explanação de seus motivos:
A incompatibilidade do modelo normativo do citado decreto-lei 3.689/1941 e da Constituição de 1988, é manifesta e inquestionável (Brasil, 2009, p. 119).
[...]
a relevância da abertura do texto pela enumeração dos princípios fundamentais do código não pode ser subestimada. Não só por questões associadas a ideia de sistematização do processo penal, mas, sobretudo, pela especificação dos balizamentos teóricos escolhidos, inteiramente incorporados nas tematizações levadas a cabo na Constituição da República de 1988 (Brasil, 2009, p. 120).
[...]
Com efeito a explicitação do princípio acusatório não seria suficiente sem o esclarecimento de seus contornos mínimos, e, mais que isso, de sua pertinência e adequação as peculiaridades da realidade nacional (Brasil, 2009, p. 120).
Quanto a este aspecto, uma posição constitucional do órgão jurisdicional que vise separar as fases e agentes atuantes das etapas investigativas preliminares e instrutórias/julgadoras, é condizente com a própria ideia de um sistema processual penal acusatório, na perspectiva funcional de um juiz controlador da legalidade e garantidor dos direitos fundamentais, e não como investigador da ação penal.
Assim, e, com este introito, o juiz de garantias foi regulado no capítulo II do projeto de reforma do código de processo penal brasileiro, fundamentado na importância da releitura do papel jurisdicional no âmbito do poder público, à luz de uma constituição emoldurada sob os princípios acusatórios.
Como dito, o instituto do juiz de garantias foi introduzido no Brasil pela Lei 13.964/2019, sendo aprovada pelo congresso nacional e sancionada pelo Presidente da República em dezembro daquele mesmo ano.
A lei foi uma subespécie composta do denominado “Pacote Anticrime”, tendo como patrono, à época, o Ministro da Justiça Sergio Moro, cujo âmago era o incremento do poder punitivo do Estado, por meio da criação de dispositivos penais mais rígidos. Todavia, para tanto, far-se-ia necessário a flexibilização de direitos e garantias fundamentais.
Durante sua tramitação nas casas legislativas, questões relevantes da reforma do Código de Processo Penal foram introduzidas neste pacote, sendo, uma delas, o juiz de garantias.
O referido pacote, além deste novo instituto, trouxe outras alternativas jurídicas que visam corroborar com a desburocratização do sistema penal. Um bom exemplo é o acordo de não persecução penal (APP).
No que tange a lei 13.964/2019, é que ela veio no intuito de aperfeiçoar a legislação penal e processual penal, tendo em vista que traz diversas modificações inclusive na Lei de Execução Penal (LEP).
O juiz de garantias foi acrescentado no artigo 3º do código de processo penal, discorrido das letras de “A” ao F” deste mesmo artigo.
A figuração de um juiz tutor no processo de investigação e garantia dos direitos do investigado, reforça a atuação do Ministério Público a quem se confere o domínio da investigação, perfazendo uma harmonização com o sistema acusatório constitucionalmente adotado.
Previsto nos artigos 3.º-B e seguintes do Código de Processo Penal, os novos dispositivos especificam a finalidade, atribuição e parâmetros de atuação do juiz de garantias. Em conformidade com o “caput” do citado artigo, este conceitua o juiz de garantias como “responsável pelo controle de legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais.” (Machado Maya, 2020, p. 91).
De modo a garantir ainda mais a imparcialidade do Magistrado, evitando sua contaminação, há previsão nos artigos suspensos de que aquele que atuar na investigação estará impedido de atuar no processo.
O juiz preliminar, deverá ser informado da instauração de toda e qualquer investigação criminal, nos termos do inciso IV do artigo 3°-B:
Art. 3º-B. O juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário, competindo-lhe especialmente: (Incluído pela Lei n.º 13.964, de 2019).
(...)
IV - ser informado sobre a instauração de qualquer investigação criminal; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019).
No artigo 3º-B em seus incisos V e VI, a figura do juiz de garantias teria as atribuições de deferir, indeferir, prorrogar, revogar ou substituir prisão preventiva ou outra medida cautelar dentro do processo de investigação, desde que formulados pelo Ministério Público ou representados pela autoridade policial.
Ademais, é competência deste a substituição da prisão e revogação de cautelares, além da avaliação e concessão de pedidos feitos pela defesa.
Por força do § 2° do artigo 3°-B, a ele compete prorrogar a duração do inquérito, por uma única vez, mediante representação da autoridade policial e após manifestação do Ministério Público, vedando, assim, qualquer ato de ofício.
Art. 3°-B. [...] § 2º Se o investigado estiver preso, o juiz das garantias poderá, mediante representação da autoridade policial e ouvido o Ministério Público, prorrogar, uma única vez, a duração do inquérito por até 15 (quinze) dias, após o que, se ainda assim a investigação não for concluída, a prisão será imediatamente relaxada. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019).
No que tange às exceções, cabe dizer que a nova legislação traz:
Art. 3º-C. A competência do juiz das garantias abrange todas as infrações penais, exceto as de menor potencial ofensivo, e cessa com o recebimento da denúncia ou queixa na forma do art. 399 deste Código.
Logo, não haveria atuação desse Magistrado nas infrações penais de menor potencial, tendo seu protagonismo findado com o recebimento da denúncia.
Temos que a nova figura do juiz de garantias vai ficar responsável por todas as decisões tomadas durante a investigação. Cite-se, como exemplo:
(i) decidir sobre a autorização ou não de escutas, de quebra de sigilo fiscal, de operações de busca e apreensão;
(ii) requisitar documentos, laudos e informações ao delegado de polícia sobre o andamento da investigação;
(iii) determinar o trancamento do inquérito quando não houver fundamentos suficientes para a investigação;
(iv) julgar alguns tipos de habeas corpus;
(v) decidir sobre a aceitação de acordos de delação premiadas feitos durante a investigação.
Todas estas alterações são o que separam o juiz que se envolve na investigação daquele que verifica a existência ou qualidade da prova e da acusação, isto é, decide quanto ao mérito da ação.
Os inquéritos terão um juízo específico para a etapa inicial. Recebida a denúncia ou queixa, o juiz das garantias deixará o caso, que passará para o “juízo da instrução e do julgamento”.
Com a eficácia da norma que regulamenta o instituto do juiz de garantias, é certo que esta demandará significativas alterações na estrutura do poder judiciário.
O novo dispositivo prevê a inserção de mais um magistrado responsável pela etapa inicial processual, qual seja, os atos pertinentes ao inquérito até o recebimento da denúncia.
No entanto, é notório reconhecer que as presentes mudanças encontrão inegáveis barreiras. Muitos Estados brasileiros, sofrerão com implicações de uma adoção expressa deste instituto. Além de haver vacância nos cargos de juízes, muitos dos que estão na ativa atuam em comarcas pequenas ou únicas do interior e terão que se desdobrar em uma espécie de rodízio e alternâncias para atender ao dispositivo de lei.
Lado outro, far-se-ia necessário um número ainda maior de magistrados, sem falar em um aumento substancial de servidores para movimentar a nova máquina.
Logo, o que se apura, é um investimento em estrutura física e humana, gerando gastos com insumos, energia, água, internet, combustível, segurança, e tantos mais elementos para seu efetivo funcionamento.
Fato é que, tais desafios geram algumas perguntas: haveria tempo hábil para a implementação de tal instituto? Há no judiciário, receita capaz de suportar necessárias alterações? Quais impactos haveriam na máquina judiciária, face a sua implementação, sabendo-se que já existe uma presente precariedade estrutural?
Não obstante, embora verdadeiras as premissas, a implementação do juiz de garantias promoverá uma verdadeira revolução no sistema jurídico acusatório, excepcionalmente no que tange a colheita de provas e preservação da imparcialidade do julgador, consequentemente trazendo mais agilidade, segurança e credibilidade ao direito processual penal brasileiro.
Antes mesmo de adquirir vigor em sua totalidade, a lei 13.964/2019 foi objeto de ADIs - Ações Diretas de Inconstitucionalidade. Os argumentos giram em torno de aspectos formais e materiais. Dentre eles, foram objetos de debates, a invasão da competência do poder judiciário e indevido regramento de normas procedimentais especiais pela União, em caso de competência legislativa concorrente.
Ainda, violação aos princípios da isonomia, do juiz natural e da razoável duração do processo. Ofensa aos dispositivos constitucionais que dispõem ser do judiciário a competência para definir a organização judiciária e também aos dispositivos que tratam dos limites orçamentários impostos ao Poder Judiciário, dentre outros.
Em menos de uma semana o Relator prevento de todas as ADIs (ADI n. 6.298, ADI 6.299 e ADI 6.300) contra a Lei n. 13.964/19, Ministro Luiz Fux, revogou a decisão monocrática então proferida pelo Ministro Dias Tóffoli, suspendendo “sine die” a eficácia da referida norma, “ad referendum” do plenário, da eficácia e implantação do juiz de garantias.
As referidas ações, concentraram seus ataques e impugnações aos artigos 3º-A a 3º-F introduzidos no CPP pela nova lei. De acordo com estas, os novos dispositivos padecem de vício de inconstitucionalidade formal. Neste entendimento, a inconstitucionalidade formal decorreria de que a nova norma vem contemplar normas gerais, tanto quanto normas de procedimento em matéria processual.
Este argumento aduz que isso violaria o artigo 24, § 1º, da CR, porque no âmbito da legislação concorrencial, isto é, quando estabelece regras processuais em matéria processual, a União se limita à formulação de regras gerais. De acordo com esta premissa, as regras da “fase pré-processual” relativa às investigações policiais não foram confirmadas em processo penal, mas sim em contencioso.
Compulsa-se, ainda, que a nova lei deveria ser de iniciativa dos tribunais, consoante artigo 96, I, ‘a’, ‘d’ e II, ‘d’ da Constituição Federal.
Art. 96. Compete privativamente:
I - aos tribunais:
a) eleger seus órgãos diretivos e elaborar seus regimentos internos, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos;
(...)
d) propor a criação de novas varas judiciárias;
II – ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores e aos Tribunais de Justiça propor ao Poder Legislativo respectivo, observado o disposto no art. 169;
d) a alteração da organização e da divisão judiciárias;
Para balizar os argumentos de que a regulamentação das investigações criminais não foi formalmente confirmada, os autores da ADI 6298 recrutaram decisões do STF, de forma a ficar claro que a essência do artigo 24, XI, da CR, é uma legislação sobre inquéritos de forma a ser uma autoridade legislativa concorrente.
Com a precedência desses casos, o STF deu seu parecer em relação a constitucionalidade de leis estaduais que disciplinavam as atividades das polícias judiciárias dos estados-membros.
Na ADI 4618, relatada pela Ministra Carmen Lúcia, em 19 de fevereiro de 2019, foi posta à prova a constitucionalidade de lei complementar de Santa Catarina que instituía o plano de carreira dos servidores de segurança pública do Estado.
Concluiu-se que as funções dos agentes de segurança pública e das polícias judiciárias, com viés de infrações penais, possuíam natureza administrativa e não processual penal.
Neste contexto, cabe citar as considerações de André Machado Maya, quanto ao assunto:
A competência para legislar sobre questões processuais é privativa da União, a teor do artigo 22 da Constituição Federal. Ademais, concorrente com os Estados a competência para legislar sobre procedimentos em matéria processual, a teor do artigo 24, X, da Constituição Federal. Ainda que o juiz das garantias trate de questão procedimental, ao prever uma regra de impedimento, certo é que não há nenhum óbice a que a União legisle, criando regras gerais. Aliás, fosse o contrário, a Lei 11.719/08, que alterou os procedimentos em matéria penal, seria também inconstitucional. (Maya, 2020, p. 133).
Na cautelar proferida nas ADI’s 6298, 6299 e 6300, o Ministro Dias Toffoli saiu a frente analisando os seus fundamentos e adequação sobre a constitucionalidade do juiz de garantias, observando sua necessidade e razoabilidade para a garantia de sua imparcialidade.
Sobre o tema contempla André Machado Maya:
Outrossim, causa espécie a ponderação entre uma garantia fundamental estruturante do devido processo legal – imparcialidade – e regras que estabelecem limites orçamentários. Em especial porque a Lei 13.964/2019 não determina a criação de cargos de magistratura e tampouco qualquer incremento de orçamento do Poder Judiciário. Aliás, até por isso prevê a hipótese do rodízio entre magistrado nas comarcas com apenas um juiz (Maya, 2020, p. 132).
Os argumentos estão ligados ao pressuposto de que a União estaria forçando o judiciário a promover um juízo especifico e a criação de novos cargos de juízes, no entanto, a Lei não apresenta esta proposta, mas sim de disciplinar as questões processuais penais e dar parâmetros de impedimentos com uma divisão dicotômica do processo.
Em reexame da medida cautelar da ADI 6299, o relator do STF, Ministro Luiz Fux, se pronunciou em sentido oposto, aviltando a inconstitucionalidade material dos dispositivos que disciplinam o juiz de garantias pois afrontam, segundo o ministro, aos artigos 169 e 99 da Constituição Federal.
De acordo com o ministro, a inconstitucionalidade estaria na ausência de dotação orçamentária, estudos dos seus impactos e de sua aplicação com antecedência, além de afrontar o Novo Regime Fiscal da União contemplado pela Emenda Constitucional n.º 95/2016.
Não há como não reconhecer que o foco está nas questões orçamentárias e estruturais, principalmente em relação as modificações processuais que vem adicionar satisfação qualificada às decisões judiciais em matéria penal.
Apenas três dias após a promulgação da lei 13.964/2019, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e a Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE) ajuizaram uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal, impugnando o instituto do juiz de garantias. Arguiram a inconstitucionalidade do art. 3º da lei 13.964/2019, que acrescentou os artigos 3º-A a 3º-F ao Código de Processo Penal, bem como de seu art. 20, que fixava o prazo de 30 dias de “vacatio legis”.
Em 03.02.2020, o Ministro Luiz Fux, relator das ADIs perante o Supremo Tribunal Federal, deferiu monocraticamente a suspensão liminar das regras relacionadas com o juiz de garantias, adiando sua implementação.
Neste cenário, promoveu-se uma controvérsia, uma vez que o Ministro Dias Toffoli, adiantou seu parecer quanto a constitucionalidade da implementação do juiz de garantias. No entanto, face a um reexame posterior na medida cautelar proferida, o Ministro Fux, estabeleceu de maneira definitiva, a suspensão da eficácia da nova norma, e de seus dispositivos.
Como dito anteriormente, sustentou sua decisão sobre a necessidade de se debater questões quanto a constitucionalidade da nova lei, principalmente no que tange aos aspectos de ausência de dotação orçamentária para sua implementação e quanto a afronta do novo regime fiscal da União.
Assim, por força desta segunda decisão, prevalece o estado atual em que se encontram as questões colocadas sobre a constitucionalidade do juiz das garantias.
É inexorável reconhecer que a imediata exequibilidade do sistema constante do pacote anticrime, com destaque ao juiz de garantias, esbarra em sérios obstáculos.
Exemplifica-se como já discorrido em linhas volvidas, a notável ausência de estrutura do sistema judiciário brasileiro.
Não obstante, compulsa-se que haverá ainda a necessidade de criação de inúmeros cargos de juízes e serventuários para suportar as demandas geradas com a implementação deste novo instituto.
O juiz de garantias surge como uma quebra de paradigma, uma real mudança no método de persecução penal inquisitivo para um sistema penal acusatório, seguindo a metodologia adversarial.
Sua repercussão no âmbito internacional, mobilizou, principalmente nas décadas de 1990 e 2000, os países da América Latina em quase sua totalidade a alterarem suas legislações penais.
No Brasil, esta reforma veio com o condão de reduzir o distanciamento entre a legislação penal atuante e o sistema jurídico constitucional adotado, fundado no modelo de Estado Democrático de Direito.
Trata-se, sem exagero, de uma verdadeira revolução política no campo do processo penal em direção a um maior compromisso democrático.
Tais mudanças, no entanto, para que sejam efetivas, demandarão profundas alterações. E estas, não só nos campos físicos e estruturais. Mas sobretudo, no próprio modo de ser e de pensar a figura do juiz.
Enfim, pode-se concluir que o juiz de garantias promoverá uma verdadeira transformação em nossa cultura jurisdicional, tendo em vista que se mostra como uma notável e necessária releitura do sistema processual penal brasileiro.
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WEBER, Max. Conceitos sociológicos fundamentais. Tradução de Artur Morão. Covilhã: Lusosofia Press, 2010.
Estudante de Direito na Faculdade UNA Contagem
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JESUS, Wagner Silvestre de. Juiz de garantias e sua aplicabilidade no sistema jurisdicional brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 jan 2021, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56033/juiz-de-garantias-e-sua-aplicabilidade-no-sistema-jurisdicional-brasileiro. Acesso em: 23 dez 2024.
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