RESUMO: O presente artigo busca demonstrar a definição da teoria do Direito Penal do Inimigo, desenvolvida pelo alemão Gunther Jakobs em 1985, com base em filósofos contratualistas da era moderna, embasando as políticas criminais hodiernamente requeridas por uma sociedade temente a criminalidade moderna que assola e desestrutura o meio social, em virtude da globalização. Fazendo-se a analise dos elementos caracterizadores do Direito Penal do Inimigo e a relação que guardam com os institutos penais constantes no ordenamento jurídico brasileiro. Verificando a (in) viabilidade dos aspectos formais e materiais da tese no ordenamento jurídico pátrio como forma de combate a criminalidade, sobretudo quando correlacionados com os princípios constitucionais vigentes em decorrência do Estado Democrático de Direito adotado pela Carta Magna brasileira. Utilizou-se do método da pesquisa explicativa, buscando compreender as causas e efeitos da tese abordada, através de pesquisas bibliográficas, bem como da pesquisa qualitativa, analisando as idéias do Direito Penal do Inimigo por meio de revisões bibliográficas. Obtendo como resultado a constatação de alguns aspectos da teoria em leis esparsas no direito brasileiro, embora que considerada inconstitucional quando aplicada na integralidade.
PALAVRAS-CHAVE: Direito Penal. Inimigo. Ordenamento Jurídico. Princípios.
ABSTRACT: The present article seeks to demonstrate the definition of the Enemy's Criminal Law theory, developed by the German Gunther Jakobs in 1985, based on contractual philosophers of the modern era, supporting the criminal policies nowadays required by a society fearful of the modern criminality that plagues and disrupts the social environment, due to globalization. Making an analysis of the elements that characterize the Criminal Law of the Enemy and the relationship they have with the criminal institutes in the Brazilian legal system. Verifying the (in) viability of the formal and material aspects of the thesis in the national legal system as a way of fighting crime, especially when correlated with the constitutional principles in force as a result of the Democratic Rule of Law adopted by the Brazilian Magna Carta. The explanatory research method was used, seeking to understand the causes and effects of the approached thesis, through bibliographic research, as well as qualitative research, analyzing the ideas of the Criminal Law of the Enemy through bibliographic reviews. Obtaining as a result the verification of some aspects of the theory in sparse laws in Brazilian law, although considered unconstitutional when applied in full.
KEYWORDS: Criminal Law. Enemy. Legal Order. Principles.
INTRODUÇÃO
Após a segunda guerra mundial desencadeou-se no ocidente teorias na seara do direito penal, imbuídas de legitimar os Estados a atuarem frente a situações que colocam a coletividade e a manutenção do próprio Estado em perigo, mormente os atentados terroristas. Teorias estas que permitiriam aos Estados agirem em decorrência do contrato social firmado entre os povos, dentre as teorias, o direito penal do inimigo, desenvolvida pelo doutrinador alemão Gunther Jakobs em 1985, considerada pela doutrina como sendo de terceira velocidade do direito penal, com objetivo de flexibilizar as normas aplicadas aos infratores em prol do bem estar social da coletividade.
Dada as infindáveis discussões na atualidade sobre o direito penal do inimigo no âmbito jurídico, bem como a atuação do judiciário frente a dispositivos que viabilizam a concretude do direito penal perante aos temas problemáticos e complexos que transitam em meio a teoria das velocidades do direito penal, mormente a terceira velocidade, no ordenamento jurídico penal brasileiro, faz-se necessário buscar o entendimento da origem da teoria do direito penal do inimigo quanto a sua aplicação no ordenamento jurídico brasileiro, sobretudo quanto a compatibilidade com os princípios constitucionais vigente, pertinentes ao Estado Democrático de Direito.
A constituição da Republica Federativa do Brasil em vigor adotou o principio do devido processo legal, o qual “ninguém será privado da liberdade ou dos seus bens sem o devido processo legal” (artigo 5º, inciso LIV), sendo gênero do qual todos os demais princípios constitucionais do processo são espécies, abrangendo o sentido material-substancial e o processual por todas as áreas do direito.
Ao Estado compete o processamento e julgamento das condutas humanas desautorizantes da norma, nos limites da lei, mas quando surpreendidos com ações perigosas, como por exemplo, ações terroristas que colocam não apenas a sociedade mais como também a existência do Estado em risco, conquanto seja necessário o Estado adotar políticas criminais mais enérgicas. Outrossim, requer a verificação da (in)viabilidade do direito penal do inimigo no sistema jurídico penal brasileiro, sobretudo quando confrontado ao principio do devido processo legal.
1 TEORIAS DO DIREITO PENAL
1.1 Velocidades do Direito Penal
O Jurista espanhol, professor catedrático da Universidade Pompeu Fabra, Jesús-Maria Sánchez, com o objetivo de formular um direito moderno evitando o expansionismo das regras inerentes às penas privativas de liberdade, desenvolveu a teoria das velocidades no direito penal, que se subdivide em três, cada qual traz uma concepção acerca das sanções e as garantias processuais do direito penal a serem aplicadas aos infratores.
A primeira velocidade é representada pelo direito penal da prisão (direito penal nuclear), esta guarnece os princípios político-criminais clássicos, conservando as regras de imputação e os princípios processuais. Consiste na percepção tradicional que a finalidade do direito penal é a aplicação da pena privativa de liberdade e para isso, as garantias penais e processuais penais devem ser observadas.
Ademais, a segunda velocidade é voltada para aqueles delitos que não envolvem sanções de natureza privativa de liberdade (direito penal periférico), mas de penas restritivas de direitos e/ou pecuniárias, considerada na seara do direito penal como direito penal mínimo, é o caso de delitos de competência dos Juizados Especiais Criminais, regulado pela lei de Juizados Especiais Criminais. Uma vez que não existe a privação da liberdade, seria possível a flexibilização das garantias processuais penais em razão da menor intensidade da sanção penal.
No mesmo sentido “quando a sanção penal possível de ser aplicada no caso concreto se limitar às restritivas de direito, ou à multa, a ação penal pode ser mais ágil, eis que a disputa entre o acusado e o Estado não envolve tão relevante bem jurídico: a liberdade do ser humano.” (MASSON, 2015).
Por derradeiro, a terceira velocidade busca trazer uma junção, ou seja, a coexistência das duas velocidades anteriores, se valendo da aplicação da sanção de privação de liberdade da primeira velocidade, e relativizando as garantias processuais aplicadas aos infratores, flexibilizações advindas da segunda velocidade.
Do mesmo modo, “defende a punição do criminoso com pena privativa de liberdade dos crimes de mais gravidade, todavia, difere-se da primeira velocidade ao permitir que, para os crimes considerados mais graves, haja a flexibilização ou eliminação da garantias fundamentais” (BYRON, 2017).
E é nesta velocidade que esta inserida o direito penal do inimigo, tendo a flexibilização ou eliminação de direitos e garantias constitucionais e legais aplicadas aos infratores considerados inimigos pelo Estado.
1.2 Direito Penal do Fato e Direito Penal do Autor
O direito penal do autor tem seu foco no agente que cometeu o delito, ao invés de se preocupar com a ação concreta descrita tipicamente na norma, sendo de maneira oposta ao direito penal do fato, que acaba por penalizar somente o fato individualmente consumado, e não aos perigos que no futuro se esperam do mesmo. Nesse sentido, ensinam Alejandro Alagia, Eugênio Raul Zaffaroni e Nilo Batista, conforme citados por Kelly Cardoso da Silva:
Além dessas formas tradicionais e puras, porém integrando-as e complementando-as com um conjunto de presunções, encontra-se o novo direito penal do autor que, sob a forma de direito penal do risco, antecipa a tipicidade na direção de atos de tentativa e mesmo preparatórios, o que aumenta a relevância dos elementos subjetivos e normativos dos tipos penais, pretendendo assim controlar não apenas a conduta, mas também a lealdade do sujeito ao ordenamento (SILVA, 2016).
Conforme se depreende das explicações acima, o direito penal do fato apenas punirá o indivíduo que cometer o delito que traga na sua essência um fato típico, causando um resultado real na sociedade, além do mais, é necessário possuir os pressupostos da antijuridicidade e culpabilidade. O direito penal do autor, por outro lado, preocupa-se em antecipar a punição com fulcro na periculosidade do agente, alcançando até mesmo atos preparatórios, independente do real cometimento do delito.
Ressalta-se que, o mencionado adiantamento da pena para atos preparatórios, com fulcro na periculosidade do indivíduo, nos moldes do direito penal do autor, também é uma das principais características do Direito Penal do Inimigo.
Outrossim, o direito penal do autor fulmina o 5° axioma previsto no garantismo penal, qual seja, “nulla injuria sine actione” , em outras palavras “não há lesão ou perigo a lesão a bens jurídicos se não houve conduta”, predominantemente aceito entre os doutrinadores por respeitar os direitos fundamentais.
Ressalta-se que o sistema penal brasileiro com base no Estado de Direito adota na persecução do crime, a teoria do fato, para responsabilizar penalmente alguém pela prática de uma conduta criminosa, impõe-se ao Estado, por meio de provar, de forma induvidosa, a sua concorrência direta ou indiretamente para a prática da conduta que lhe foi imputada. Ademais, para a fixação da pena, regime de cumprimento da pena, espécie de sanção, entre outros, adotou o direito penal do autor (artigo 59, do Código Penal).
2 O DIREITO PENAL DO INIMIGO
2.1 Origem Histórica
O denominado direito penal do inimigo, no alemão “feindstrafrect” tem sua origem no ano de 1985, oriunda das ideias do Alemão Gunther Jakobs, com base em grandes filósofos e pensadores dos quais se destacam Jean-Jacques Rousseau, Johann Gottlieb Fichte, Immanuel Kant e Thomas Hobbes, e que foi apresentada pela primeira vez durante as “Jornadas de Professores de Direito Penal de Frankfurt”. Nesta primeira demonstração, o penalista citado, buscou explicar o direito penal do inimigo como a antítese do direito penal do cidadão (ESTEFAM, 2015).
Apesar da sustentação da tese do direito penal do inimigo defendida por Jakobs ter sido fundamentada com base nos mais importantes filósofos contratualistas, perfez por não obter aceitação no âmbito jurídico de imediato, pelo contrário acabou por receber inúmeras criticas pelo fato de possuir um condão voltado para o direito penal máximo.
Frise-se que em 1985 a temática não ganhou muita repercussão. Somente a partir de 1999, é que a teoria do direito penal do inimigo ganhou força e adeptos, refletindo na legislação de vários países os seus principais contornos. Isso ocorreu devido à mudança de pensamento social, que passou a buscar meios de combate para os efeitos gerados desde a queda do consumismo (1989) até o os recentes atentados terroristas ocorridos no plano Internacional na presente década (JESUS, 2005, p.01), mormente o de dia 11 de setembro de 2001 (Nova York), sem dúvida, o mais marcante decisivo (BINATO JR., 2012).
Após longos debates e amadurecimento em torno da busca da definição e dos contornos que envolvem a teoria do direito penal do inimigo, a tese paulatinamente ganhou destaque na seara jurídica, principalmente com a presença da aplicabilidade nos ordenamentos jurídicos dos Estados, ao menos em parte, quando enumeramos os aspectos que caracterizam o direito penal do inimigo frente à criminalidade moderna, mormente os atentados terroristas que ocorreram no ano de 2011 nos Estados Unidos da América.
2.2 Conceito de Inimigo
Para os filósofos contratualistas, Rosseau e Fichte, estes buscam definir por meio da distinção entre cidadão e o inimigo. Enquanto que aquele é tratado como sujeito capaz de direito e teme a coação imposta pela lei, este é visto como violador da norma, como bem dito, do contrato social convencionado entre as pessoas e o Estado, os considerando assim, como malfeitor que perde o status de cidadão de direito. Diferentemente daquele que comete um delito intencional e premeditado, este sim deve ser submetido a uma ritualística processual e condenado, enquanto que o inimigo deve ser submetido a uma execução como instrumento de segurança para os demais da sociedade.
Com base no pensamento de Rousseau, de que aqueles que atacam o direito social deixam de ser membro do Estado e entram em guerra contra ele (VEIGA JR, 2017) ideia que se assemelha ao pensamento de Fichte, que defende que “quem abandona o contrato cidadão em um ponto em que o contrato se encontrava com sua prudência, seja de modo voluntário ou por imprevisão, em sentido estrito perde todos os seus direitos como cidadão e como ser humano (VEIGA JR, 2017). Na mesma linha de interpretação Kant assevera que o indivíduo é dado uma escolha ao passo que “eu posso obrigá-lo a entrar em um estado social Legal ou afastar-se do meu lado” (PIM, 2006).
Ademais no sentido de trazer uma definição por meio da distinção, a teoria da submissão de Hobbes que também busca fundamentar que o cidadão deve manter os seus direitos enquanto submisso a norma, por outro lado castigá-lo como inimigo quando não observante da imposição legal, compactuando com a ideia Kant afirma que o individuo esta obrigado a suportar a transição que estar vinculada ao contrato social, a passagem do estado de natureza para um estado jurídico político, por exemplo, estar vinculado a uma constituição cidadã, para aqueles que se recusam a participar de uma comunidade submissiva a norma, este sim deve ser tratados como inimigos, e legítima uma resposta por parte do Estado por medidas que protejam a coletividade.
Nessa perspectiva Hobbes, entende que aquele que quebra seus vínculos com a sociedade civil e passa a viver em estado de natureza, isto é, com a liberdade de usufruir de seu poder da forma que quiser para preservar sua vida passa a ser considerado inimigo desta sociedade (CARVALHO JR., 2012).
Os contratualistas até então citados, nos levam a refletir que há dois institutos jurídicos antagônicos contidos no direito penal, o do cidadão que abrangerá delitos cometidos por cidadãos preservando seu status de cidadão de direitos sem que haja a destruição da comunidade ordenada pelo ordenamento jurídico, mas sim uma mera infração sendo possível sua reparação, enquanto que o direito penal do inimigo, que tratará um delinquente contumaz, insubordinado a lei com certo grau de periculosidade, tais como:
[...] criminosos econômicos, terroristas, delinqüentes organizados, autores de delitos sexuais e outras infrações penais perigosas (Jakobs, ob. cit., p. 39). Em poucas palavras, é inimigo quem se afasta de modo permanente do Direito e não oferece garantias cognitivas de que vai continuar fiel à norma. O autor cita o fatídico 11 de setembro de 2001 como manifestação inequívoca de um ato típico de inimigo (GOMES, 2004).
Estes são considerados inimigos que conspiram a delinqüir como inimigo do Estado que merece ser executado como traidor ainda no estagio prévio (atos preparatórios), com medidas de segurança que tragam uma proteção para o coletivo, pois aquele tende a destruição das instituições e das normas, de tal modo que não haja a confusão entre um cidadão que goza das garantias do direito e processo penal e o inimigo que deve ser tratado com artifícios de guerra. De modo suscito podemos reunir o conceito ao menos filosófico trazido nos escritos de Jakobs:
Fundamentos (filosóficos) do Direito penal do inimigo: (a) o inimigo, ao infringir o contrato social, deixa de ser membro do Estado, está em guerra contra ele; logo, deve morrer como tal (Rousseau); (b) quem abandona o contrato do cidadão perde todos os seus direitos (Fichte); (c) em casos de alta traição contra o Estado, o criminoso não deve ser castigado como súdito, senão como inimigo (Hobbes); (d) quem ameaça constantemente a sociedade e o Estado, quem não aceita o “estado comunitário-legal”, deve ser tratado como inimigo (Kant) (GOMES, 2004).
Por fim, é nessa concepção de que o direito penal aplicado ao cidadão, ver a coação penal como representação da reação social ao fato criminoso, de modo tal que a sanção, para o cidadão, seria um simbolismo necessário para a manutenção do status quo, servindo de caráter retributivo e preventivo de novos intentos criminosos. No que tange o Direito Penal do Inimigo, a função de eliminar o perigo, neutralizando o delinquente desertor, partindo da premissa que aquele que viola as normas do contrato social repetidamente deixa de possuir o status de cidadão, devendo ser transformado em inimigo e, assim, alvo de uma segregação em favorecimento do bem jurídico protegido.
Ressalta-se que Jakobs não se filia a tese de que o Direito Penal do Inimigo deve ser uma regra a ser adotada no ordenamento jurídico. Pelo contrário, para o autor seria um verdadeiro direito penal de exceção, ou seja, um conjunto de leis de combate, e não a todo e qualquer crime, mas principalmente no que se refere ao terrorismo, o crime organizado, crimes econômicos, crimes sexuais e tráfico de entorpecentes.
2.3 Características Do Direito Penal Do Inimigo
Na visão de Jakobs existem ao menos três características envolvidas na teoria penal do inimigo:
1ª - seu objetivo não é a garantia da vigência da norma, mas a eliminação de um perigo;
2ª - a punibilidade avança em boa parte para a incriminação de atos preparatórios;
3ª - a sanção penal, baseada numa reação a um fato passado, projeta-se também no sentido da segurança contra fatos futuros, o que importa aumento de penas e utilização de medidas de segurança.
De modo mais detalhada o Luiz Flávio Gomes apresenta as características básicas do sistema jurídico penal proposto por Jakobs:
a) o inimigo não pode ser punido com pena, e sim com medida de segurança;
b) não deve ser punido de acordo com sua culpabilidade, senão consoante a sua periculosidade;
c) as medidas contra o inimigo não olham prioritariamente o passado (o que ele fez), sim, o futuro (o que ele representa de perigo futuro);
d) não é um direito retrospectivo, sim, prospectivo;
e) o inimigo não é um sujeito de direito, sim um objeto de coação;
f) o cidadão mesmo depois de delinquir, continua com status de pessoa, já o inimigo perde esse status (importante só sua periculosidade);
g) o direito penal do cidadão mantém a vigência da norma, já o direito penal do inimigo combate preponderantemente o perigo;
h) o direito penal do inimigo deve adiantar o âmbito de proteção da norma (antecipação da tutela penal), para alcançar os atos preparatórios;
i) mesmo que a pena seja intensa (desproporcional), ainda assim, justifica-se a antecipação da proteção penal;
j) quanto ao cidadão (autor de um homicídio ocasional), espera-se que ele exteriorize um fato para que incida a reação (quem vem confirmar a vigência da norma), em relação ao inimigo deve ser interceptado prontamente, no estágio prévio, em razão de sua periculosidade" (GOMES, 2004).
Em contraposição ao garantismo penal o direito penal do inimigo vislumbra-se como verdadeiro exemplo de direito penal do autor, uma vez que há uma preocupação em torno do aspecto de ser do deliquente, indo de frente ao sistema adotado no Brasil, qual seja o direito penal do fato. Em crítica ao modelo de Jakobs o jurista argentino Zaffaroni afirma que "admitir um tratamento penal diferenciado para os inimigos não identificáveis fisicamente reconhecíveis significa exercer um controle social mais autoritário sobre a população, como único modo de identificá-los e, ademais, impor a toda a população uma série de limitações à sua liberdade e também risco de uma identificação errônea e, consequentemente, condenações e penas a inocentes” (ZAFFARONI, 2007).
3 A CONSTITUIÇÃO DA REPUBLICA FEDERATIVA DO BRASIL E O DIREITO PENAL DO INIMIGO
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é a lei fundamental e suprema do Brasil, servindo de parâmetro de validade a todas as demais espécies normativas, situando-se no topo do ordenamento jurídico, de acordo com a teoria da hierarquia das normas, simbolizada pela pirâmide de Hans Kelsen. Considerada a "Constituição Cidadã", por ter sido concebida no processo de redemocratização, iniciado com o encerramento da ditadura militar no Brasil (1964–1985).
A constituição definiu o perfil político jurídico do Brasil, logo no seu primeiro artigo como sendo “Estado Democrático de Direito”, importante destacar este perfil, uma vez que dele decorrem todos os princípios fundamentais do Estado brasileiro. Verifica-se que o Estado Democrático de direito busca não somente a igualdade formal entre os homens, mais também imposições de metas e deveres quanto à “construção de uma sociedade livre, justa e solidaria; pela garantia do desenvolvimento nacional; pela erradicação da pobreza e da marginalização; pela redução das desigualdades sociais e regionais; pela promoção do bem comum; pelo combate ao preconceito de raça, cor, origem, sexo, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art.3°, I a IV); dentre outros pelo respeito à dignidade da pessoa humana” (BRASIL, 1988).
Como princípio constitucional, a dignidade humana deverá ser entendida como norma de hierarquia superior, destinada a orientar todo o sistema no que diz respeito a criação legislativa, bem como para aferir a validade das normas que lhe são inferiores. Assim, por exemplo, o legislador infraconstitucional estaria proibido de criar tipos penais incriminadores que atentassem contra a dignidade da pessoa humana, ficando proibida a cominação de penas cruéis, ou de natureza aflitiva, a exemplo dos açoites. Da mesma forma, estaria proibida a instituição da tortura, como meio de se obter a confissão de um indiciado/acusado (por maior que fosse a gravidade, em tese, da infração penal praticada) (GRECO, 2009).
Pelo que fora exposto, o principio da dignidade humana, importada da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, é balizador de todos os outros princípios, é tanto que qualquer construção típica na seara penal, cujo conteúdo contrariar e afrontar a este princípio será materialmente inconstitucional, posto que atentatório ao próprio fundamento de existência do Estado Democrático de Direito.
Verifica-se que é incongruente a aplicação do direito penal do inimigo frente à dignidade humana do indivíduo denominado inimigo, pois está última torna-se plenamente violada e vulnerada. Suprimir por total o status de pessoa do delinquente inimigo, tornando-o mero objeto de coação, sem nenhuma dignidade, não é condizente com nossa Constituição Federal que se pauta na dignidade da pessoa humana, razão pela qual, não lhe assiste guarida. Não sendo legítimo ferir de morte todo o sistema jurídico visando combater os terroristas, participantes do crime organizado, entre outros infratores de alta periculosidade, como se pretende no direito penal do inimigo.
Por conseguinte, será apresentado o princípio do devido processo legal que é violado pela aplicação da tese do Direito Penal do Inimigo, tendo como parâmetro nossa Constituição Federal de 1988, que declara ser inviolável este e outros princípios e garantias que se encontram espalhados implícita e explicitamente no seu texto. O direito ao devido processo legal, que se correlaciona com o contraditório e a ampla defesa encontram-se disposto no art.5º, inciso, LIV e LV da Constituição Federal de 1988, nos quais estipulam que:
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
LIV _ ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.
LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (BRASIL, 1988).
No mesmo sentido, encontramos o mesmo principio materializado na Convenção Americana dos Direitos Humanos, o devido processo legal, tem seu respaldo no artigo 8º, que diz:
Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro do prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza (CHOUKR, 2001).
O devido processo legal é uma garantia constitucional fundamental, sendo intrínseca na aplicação do contraditório e da ampla defesa. Sem o devido processo legal, não pode ser estabelecidas estas ultimas garantias, e nem qualquer outra, uma vez que esses princípios garantem a proteção dos direitos fundamentais em demanda, sejam eles difusos ou coletivos.
Consoante Moraes, o devido processo legal:
[...] configura dupla proteção ao indivíduo, atuando tanto no âmbito material de proteção ao direito de liberdade e propriedade quanto no âmbito formal, ao assegurar-lhe paridade total de condições com o Estado-persecutor e plenitude de defesa (direito à defesa técnica, à publicidade do processo, à citação, de produção de provas, de ser processado e julgado pelo juiz competente, aos recursos, à decisão imutável, à revisão criminal) [...] (MORAES, 2000).
Portanto os princípios constitucionais, mormente o devido processo legal, são essenciais para que se assegure a eficácia dos demais direitos garantidos pela constituição, fazendo-se necessário a sua aplicação de forma perene. Não podendo se debruçar de modo integral na proposta de Jakobs, já que esta visa a flexibilização dos direitos e garantias, contudo uma norma que tende a guardar na integralidade os elementos da teoria do direito penal do inimigo padece de inconstitucionalidade.
4 OS REFLEXOS DO DIREITO PENAL DO INIMIGO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
Embora que o Direito Penal do Inimigo seja rejeitado pela jurisprudência brasileira, se aplicado na sua integralidade e a República Federativa do Brasil esteja comprometida em assegurar os direitos sociais e individuais, dentre eles o da liberdade, segurança, bem estar, igualdade e justiça como valores supremos fundados na harmonia social. É possível encontrar alguns reflexos do direito penal do inimigo presentes no nosso ordenamento, ou seja, a sua integralidade é expurgada do nosso sistema, mas alguns mecanismos estão presentes em algumas leis brasileiras.
Ocorre que a insegurança e o medo existentes atualmente abrem espaço para interpretações expansionistas do direito penal, numa sociedade sem poderes para lidar com a criminalidade. Assim a sanção penal se torna a maior arma para controlar a situação, dando espaço para que algum dos elementos do direito penal do inimigo seja utilizado como forma de recrudescimento das penas nos crimes mais graves e hediondos, bem como para combater mais eficazmente indivíduos de alta periculosidade que comandam organizações criminosas. Assim, existem alguns reflexos dessa teoria no nosso ordenamento jurídico.
Tomemos como exemplo a Lei nº. 10.792/2003 que modificou a Lei de Execuções Penais e instituiu o Regime Disciplinar Diferenciado, trazendo consigo elementos do direito penal do inimigo em seu §1º do artigo 52 da aludida lei, vejamos: “Art. 52 (...) §1º: O regime disciplinar diferenciado também poderá abrigar presos provisórios ou condenados, nacionais ou estrangeiros, que apresentem alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade.”
Outrossim, a Lei de Crimes Hediondos (n° 8.072/1990), que aumentou consideravelmente a pena de vários crimes, estabelecendo também um cumprimento da pena em regime inicialmente fechado (que foi julgado inconstitucional pelo STF em razão do princípio da individualização da pena). Essa lei estabeleceu ainda um lapso temporal mais severo para a progressão de regime (2/5 para réus primários e 3/5 para reincidentes).
Ademais, ainda é possível encontrar elementos do direito penal do inimigo na Lei do Abate, regulamentada pelo decreto n° 5.144, que tem o objetivo de salvaguardar a segurança no espaço aéreo brasileiro, por meio da destruição da aeronave interceptada sem autorização de vôo, utilizando-se em ultimo ato, depois de tentado outros meios, disparo de tiros feitos pela aeronave de interceptação, com a finalidade de provocar danos e impedir o prosseguimento do voo da aeronave hostil.
Além do mais, a doutrina demonstra outros reflexos peculiares dessa tese pulverizada em nosso ordenamento jurídico, são eles: a) crime de quadrilha ou bando, visto que se pune atos meramente preparatórios para outros crimes, não se verificando a incidência do princípio da materialização e exteriorização do fato; b) contravenção de vadiagem (art. 59 da lei de Contravenção Penal), em razão de punir o modo de vida, em um verdadeiro direito penal do autor; c) crimes de perigo abstrato, já que vai de encontro ao princípio da lesividade.
Portanto, embora que inconstitucional, quando usado na íntegra a teoria do direito penal do inimigo, é possível verificar a incidência da Teoria da Expansão do Direito Penal, especificadamente, da terceira velocidade em que se utiliza da aplicação das penas privativas de liberdade, conquanto permitam a flexibilização de garantias materiais e processuais na aplicação das leis supracitadas.
CONCLUSÃO
A tese de Gunter Jakobs, o direito penal do inimigo, tem ao menos uma justificativa que autoriza medidas mais enérgicas frente a inimigos que tendem de forma permanente e perigosa violar a ordem social, viabilizando tratamento desigual para pessoas, embora que estas pessoas possuam vinculo jurídico político com o Estado, considerando-as como sem personalidade, as submetendo somente à coação, ignorando inclusive os direitos inerentes a pessoa humana.
Em um dado momento somos levados acreditar que os aspectos trazidos pelo direito penal do inimigo, dentre eles a flexibilização das normas para que o infrator seja alcançado em sua periculosidade é razoável e aceitável, desde que proporcional, o afastamento das garantias constitucionais previsto na hipótese de cometimento de crimes graves, com a cominação de sanções mais severas, para que assim fiquem assegurado o direito da coletividade e a manutenção do Estado.
Embora que prudente uma medida que resguarde a sociedade de malfeitores, pertinente seria a indagação de que o delinquente não estaria obrigado a reparar o dano causado, como também possui o direito de se ressocializar para que seja reintegrado na sociedade, resguardando seu status de pessoa, direito este inerente ao ser humano, ao invés de ser expurgado do âmbito social de modo arbitrário e contrário aos fundamentos do Estado Democrático de Direito?
Nesse sentido a legislação tem evoluído com a criação de normas que servem como paliativo para conter o medo que assola hoje a sociedade, afastando-se em parte do direito penal liberal, democrático e garantista.
Portanto a teoria do Direito Penal do Inimigo encontre-se permeados em leis esparsas no ordenamento jurídico brasileiro, ao menos alguns dos aspectos caracterizadores da tese em casos excepcionais. Todavia mostra-se inadmissível a aplicabilidade na integralidade em nosso ordenamento pátrio, uma vez que os elementos constantes na teoria mostram-se condizentes com o Direito Penal Maximo, principalmente com o Direito Penal do Autor, estes sendo rechaçado por violar princípios basilares da constituição brasileira, tais como, o devido processo legal, sobretudo a dignidade da pessoa humana.
REFERÊNCIAS
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Graduado em Direito pelo Centro Universitário CEUNI-FAMETRO.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MATIAS, Reury Barros. Direito penal do inimigo e o ordenamento jurídico brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 jan 2021, 04:28. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56064/direito-penal-do-inimigo-e-o-ordenamento-jurdico-brasileiro. Acesso em: 23 dez 2024.
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