RESUMO: O artigo analisa a responsabilidade civil do município decorrente da contratação emergencial de obra pública. Abordou-se as situações que envolvem irregularidade na dispensa de licitação, na fiscalização da obra e na confecção dos laudos autorizadores. De igual modo, analisou-se o campo de incidência da responsabilidade civil em vista de danos causados por força de obra desenvolvida por particular contrato pelo município. Todas as considerações levaram em conta, quando cabível, aspectos da Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/1992) e da recente Lei nº 13.655/2018, que alterou dispositivos da LINDB.
PALAVRAS-CHAVE: Responsabilidade civil do município, Contratação emergencial, Obra pública, Improbidade Administrativa, LINDB
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO – 2. FUNDAMENTAÇÃO - 2.1. DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO MUNICÍPIO POR OBRAS REALIZADAS, COM IMPERÍCIA, POR EMPRESAS PRIVADAS – 2.2. DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO PREFEITO POR ATOS DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA – 2.3. DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO AGENTE PÚBLICO PELO COMETIMENTO DE ERRO GROSSEIRO – 2.4. DA RESPONSABILIDADE ADMINISTRATIVA DA EMPRESA PÚBLICA RESPONSÁVEL PELA FISCALIZAÇÃO DA OBRA – 2.5. DA IMPRESCRITIBILIDADE DOS DANOS AO MEIO AMBIENTE – 3. CONCLUSÕES – 4. REFERÊNCIAS
1 - INTRODUÇÃO
Trata-se de consulta formulada pelo prefeito municipal objetivando o esclarecimento de aspectos relacionados a responsabilidade civil, em face dos atos a seguir narrados.
Em consequência das últimas chuvas de verão, o consulente (prefeito municipal) viu-se obrigado a realizar obras emergenciais de infraestrutura em vias públicas locais, porquanto o risco do asfalto ceder era elevado, vez que as vias estavam em áreas inundadas e o município não dispõe de sistema pluvial para drenagem das águas de chuva.
Sucede que, no decorrer das obras, a Controladoria Geral do município recebeu denúncia anônima informando que as obras haviam sido autorizadas sem considerar nascente localizada às margens da via e que esta, após a movimentação de terras, teria ficado totalmente soterrada.
Ainda, foi relatado que o engenheiro responsável técnico pela obra incorreu em erro grosseiro quando da elaboração do laudo técnico, de igual modo, indicou-se que o fiscal responsável pelo licenciamento agiu de modo negligente, haja vista não ter considerado o erro contido no supramencionado laudo.
Por fim, a denúncia indica que, para reduzir custos, a empresa responsável pela obra estaria utilizando funcionários sem capacitação técnica e materiais de baixa qualidade.
Em vista disso, o prefeito municipal, temendo possíveis ações indenizatórias e de responsabilidade administrativa e criminal, elabora consulta, nos seguintes termos (ipsis litteris):
a) Pode o Município responder objetivamente pelos danos, inclusive os causados a terceiros não usuários das vias, advindos das obras mesmo tendo estes sido provocados por imperícia da empresa privada contratada para a realização da obra?
b) Pode o Prefeito ser acionado judicialmente por improbidade decorrente de ineficiência administrativa? E por lesão ao erário?
c) Caso seja comprovada falha técnica no licenciamento urbanístico-ambiental da obra, o engenheiro responsável responde por improbidade administrativa decorrente de lesão ao erário?
d) Caso seja comprovado fraude no licenciamento urbanístico-ambiental, poderá ser aberto processo administrativo de responsabilização para apuração de responsabilidade administrativa da empresa pública responsável pela fiscalização da obra?
e) Por se tratar de danos ambientais, seriam estes considerados imprescritíveis face ao disposto no artigo 37, parágrafo 5º, da Constituição de 1988?
É o suscinto relatório.
2 – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO MUNICÍPIO POR OBRAS REALIZADAS, COM IMPERÍCIA, POR EMPRESAS PRIVADAS
A primeira indagação da autoridade consulente diz respeito à responsabilidade civil do município por danos ocasionados a partir de obras executadas por empresa privada. Para melhor entendimento da matéria, faz-se mister realizar breves considerações a respeito da responsabilidade civil do Estado.
Nesse sentido, a responsabilidade civil do Estado, no direito brasileiro, encontra fundamento normativo no art. 37, § 6º, da Constituição Federal de 1988 (CF/88)[1]:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
(...)
§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
(Grifos nossos)
Previsão semelhante é encontrada, também, no art. 43, do Código Civil (CC): “As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo”. Denota-se, porém, que, diferentemente do que prevê a CF/88, o CC omite as pessoas jurídicas privadas prestadoras de serviços públicos.[2]
Trata-se, pois, em ambas as hipóteses normativas, da responsabilidade civil objetiva do Estado, baseada na teoria do risco administrativo que, para sua incidência, requer a presença de três elementos: a conduta, o dano e o nexo de causalidade.
A conduta tem que ser praticada por agente público que, necessariamente, deve atuar nessa condição.[3] Por sua vez, o dano é o elemento indispensável para a caracterização do dever de indenizar. Conforme observa Matheus Carvalho: “os danos que geram responsabilidade do Estado são os danos jurídicos, ou seja, o dano a um bem tutelado pelo direito, ainda que exclusivamente moral”.[4] A seu turno, o nexo de causalidade se manifesta na constatação de que a conduta praticada pelos agentes do Estado foi determinante para o dano causado ao particular.
Importante salientar que, como a responsabilidade fundada no art. 37, §6º, da CF/88 é objetiva, não se faz necessário que a vítima comprove o dolo ou a culpa do agente público. O elemento subjetivo é relevante apenas para o Estado quando este oferece ação de regresso contra o agente causador do dano, porquanto a responsabilidade do servidor público, nesse caso (ação de regresso) é subjetiva. Odete Meduar bem esclarece a questão:
“(...) O preceito constitucional estabelece duas relações de responsabilidade: a) a do Poder Público e seus delegados na prestação de serviços públicos perante a vítima do dano, de caráter objetivo, baseada no nexo causal; b) a do agente causador do dano, perante a Administração ou empregador, de caráter subjetivo, calcada no dolo ou culpa”.[5]
(Grifos nossos)
Assim, como primeira premissa, temos que a responsabilidade civil do Estado e das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público é objetiva, conforme art. 37, § 6º, da CF/88 c/c art. 43, do CC. Os elementos para caracterizar essa responsabilidade, que pode ocorrer tanto em relação aos atos lícitos quantos aos ilícitos, são, frise-se: conduta, dano e nexo de causalidade.
O fundamento filosófico que justifica a responsabilidade objetiva do Estado concentra-se no princípio do Estado de Direito, pelo qual faz-se necessário indenizar as violações de direito cometidas, e no princípio da solidariedade social, pelo qual apenas uma ou algumas pessoas não devem sofrer individualmente o ônus a elas infringido para beneficiar todos os membros da coletividade.[6]
É por isso que, em homenagem ao princípio da solidariedade social, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu que a responsabilidade da pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviço público em relação a terceiro não usuário do serviço é objetiva. Segue, no que interessa, ementa do aresto:
EMENTA: CONSTITUCIONAL. RESPONSABILIDADE DO ESTADO. ART. 37, § 6º, DA CONSTITUIÇÃO. PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO PRIVADO PRESTADORAS DE SERVIÇO PÚBLICO. CONCESSIONÁRIO OU PERMISSIONÁRIO DO SERVIÇO DE TRANSPORTE COLETIVO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA EM REALÇAO A TERCEIROS NÃO-USUÁRIOS DO SERVIÇO. RECURSO DESPROVIDO.
I – A responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público é objetiva relativamente a terceiros usuários e não-usuários do serviço, segundo decorre do art. 37, § 6º, da Constituição Federal.
II – A inequívoca presença do nexo de casualidade entre o ato administrativo e o dano causado ao terceiro não-usuário do serviço público, é condição suficiente para estabelecer a responsabilidade objetiva da pessoa jurídica de direito privado.
III – Recurso extraordinário desprovido.[7]
(Grifos nossos)
Pois bem: regressando à indagação formulada pela autoridade consulente, observa-se que, a nosso ver, o município não pode ser responsabilizado objetivamente pelos danos causados, inclusive a terceiros não usuários das vias, por força de obra pública executada com imperícia pela empresa privada contratada.
Para caracterizar a responsabilidade objetiva do Estado, faz-se necessário, como já dito, a conduta do agente público (além do dano e nexo de causalidade). Ou seja, a presença do Estado na relação que ensejou o dano é elemento exigido pelo ordenamento jurídico (art. 37, §6º, da CF/88 c/c art. 43, do CC), sem o qual não há como se configurar o nexo de causalidade.
Desse modo, o município, ao contratar empresa privada para executar as obras emergenciais, delegou a execução do serviço. Portanto, não houve atuação direta do Estado. Nesse caso, por tratar-se de relação baseada em contrato administrativo, lastreada na Lei nº 8.666/1993, a contratada deve responder, posto que agiu negligentemente, pelos danos causados, tanto em relação aos usuários quando aos não usuários das vias, de maneira direta.
Não é o caso, frise-se, de dano ocasionado pelo simples fato da obra. É, em verdade, dano provocado pela negligência da empresa contratada para executar os serviços. Assim, incide, indubitavelmente, o art. 70, da Lei nº 8.666/1993:
Art. 70. O contratado é responsável pelos danos causados diretamente à Administração ou a terceiros, decorrentes de sua culpa ou dolo na execução do contrato, não excluindo ou reduzindo essa responsabilidade a fiscalização ou o acompanhamento pelo órgão interessado.
(Grifos nossos)
Nesse lastro, a responsabilidade da empresa privada contratada é subjetiva, devendo ser comprovado o dolo ou a culpa, nos termos do artigo supramencionado, bem como conforme os arts. 186, 187 e 927, todos do CC:
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
(...)
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
(Grifos nossos)
Na hipótese do patrimônio da contratada não ser suficiente para ressarcir os danos provocados, o município poderá responder subsidiariamente. Mas apenas nessa hipótese. Em sede doutrinária, colhe-se o entendimento de Rafael Carvalho Rezende de Oliveira:
A leitura do dispositivo em comento (art. 70) permite concluir pela responsabilidade primária do contratado pela má execução do contrato. (...) não há que falar em solidariedade entre o Poder Público e o contratado pelos danos causados a terceiros. A responsabilidade do Estado é eventual e subsidiária. Eventual ação de ressarcimento por danos causados pelo cumprimento inadequado do contrato deve ser direcionada ao contratado, e não ao Poder Público.[8]
(Grifos nossos)
Também é esse o entendimento de José dos Santos Carvalho Filho que, ao analisar os casos de danos provocados por obras executadas por particulares contratados pelo Estado, na hipótese em que há dolo ou culpa do contratado, rechaça a ideia de responsabilidade objetiva e solidária do Estado:
Uma segunda hipótese pressupõe que o Estado tenha cometido a execução da obra a um empreiteiro através de contrato administrativo, e que o dano tenha sido provocado exclusivamente por culpa do executor. A solução será a de atribuir-se ao empreiteiro a responsabilidade subjetiva comum de direito privado, sabido que cumpre o contrato sob sua conta e risco. A ação deve ser movida, no caso, somente contra o empreiteiro, sem participação do Estado no processo. A responsabilidade do Estado é subsidiária, isto é, só estará configurada se o executor não lograr reparar os prejuízos que causou ao prejudicado.[9]
(Grifos nossos)
Em síntese conclusiva, temos que, no presente caso, a empresa contratada responde diretamente pelos danos provocados, ensejando a responsabilidade subjetiva, nos termos do art. 70, da Lei nº 8.666/1993, e dos arts. 186, 187 e 927, todos do CC. A responsabilidade do município ocorrerá apenas de modo subsidiário, caso o património da empresa não seja suficiente.[10]
2.2. DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO PREFEITO POR ATOS DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA
O prefeito indaga se é possível que ele seja responsabilizado por improbidade administrativa decorrente de ineficiência administrativa e lesão ao erário. De início, necessário pontuar que os prefeitos podem responder por improbidade administrativa, Lei nº 8.429/1992, e, também, pelos crimes de responsabilidade, Decreto-Lei 201/67.[11]
Pois bem: como é cediço, os atos de improbidade administrativa, conforme prevê a Lei nº 8.429/1992, podem ser enquadrados em quatro tipos (espécies): os que ensejam enriquecimento ilícito (art. 9º), os que causam prejuízo ao erário (art. 10), os que importam em concessão ou aplicação indevida de benefício financeiro ou tributário (art. 10-A), e os que atentam contra os princípios da Administração Pública (art. 11).
O elemento comum a todos os atos em destaque é a necessidade de se perquirir o elemento subjetivo do agente[12]: dolo, para os atos que ensejam enriquecimento ilícito; dolo ou culpa, para os atos que causam prejuízo ao erário; dolo, para os atos que importam em concessão ou aplicação indevida de benefício financeiro ou tributário; e dolo, para os atos que atentam contra os princípios da Administração Pública (art. 11). A configuração do elemento subjetivo é necessária porquanto, como já decidiu o Superior Tribunal de Justiça (STJ): “(...) a conduta do agente não pode ser considerada ímproba analisando-se a questão apenas do ponto de vista objetivo, o que iria gerar a responsabilidade objetiva”.[13]
Nesse sentido, para ensejar responsabilidade civil por ato de improbidade violador dos princípios da Administração Pública, que seria o caso de ineficiência administrativa (violação ao art. 37 da CF/88)[14], faz-se necessário comprovar o dolo do agente. O STJ entende que o dolo pode ser genérico[15], porém, não há possibilidade de condenação com base no art. 11 apenas ocorrendo culpa do agente. O dolo é, pois, elementar.
In casu, a nosso ver, não há elementos que comprovem a ocorrência de conduta dolosa por parte do prefeito em violar o princípio da eficiência administrativa (art. 37, da CF/88). Ao revés, a autoridade adotou medida que lhe pareceu melhor atender ao interesse público naquela situação particular. Assim, levando em consideração os dados fornecidos pelo consulente, não é possível, repita-se, apontar para o cometimento de ato de improbidade violador do princípio da eficiência. Até porque, como entende o STJ[16], não basta um elemento para caracterizar o ato de improbidade, mas, sim, uma série de atos que unidos possam ensejar a improbidade administrativa.[17]
Em verdade, o que se desenvolveu foi a dispensa de licitação com fulcro no art. 24, IV, da Lei nº 8.666/1993, haja vista se tratar de situação emergencial:
Art. 24. É dispensável a licitação:
(...)
IV - nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para os bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a prorrogação dos respectivos contratos;
(Grifos nossos)
Nesse caso, se ficar comprovado que o prefeito não adotou, propositadamente, as medidas administrativas pertinentes para evitar a situação emergencial, é que poderia ser, em tese, responsabilizado com base no art. 11, da Lei nº 8.429/1992. Importa salientar, ainda, que, tais medidas devem ser factíveis. Ou seja, o prefeito poderia agir de determinada forma, posto que estava ao seu alcance, mas optou (quis) não realizar. No dizer de Marino Pazzaglini Filho:
(...) a norma do art. 11 exige, para sua configuração, que a afronta a princípio constitucional da administração pública decorra de comportamento doloso do agente público devidamente comprovado, ou seja, que ele aja de forma ilícita, consciente da violação de preceito da administração, motivado por desonestidade, por falta de probidade.[18]
(Grifos nossos)
Ainda assim, porém, a responsabilidade com fundamento no art. 11 é residual[19], bem dizer: só se manifesta caso não seja comprovado o enriquecimento ilícito do agente e/ou lesão ao erário. Portanto, a nosso ver, dado o caráter residual do art. 11, não há elementos que evidenciam o cometimento de conduta violadora do princípio da eficiência administrativa.
No tocante à responsabilização por ato de improbidade que causa lesão ao erário (art. 10), a lei exige, como já comentado, o dolo ou a culpa do agente. Além, é claro, do prejuízo ao erário. As considerações feitas a respeito do dolo exigido pelo art. 11, aqui se repetem.
Contudo, é possível que, em se comprovando a irregularidade da dispensa de licitação, o prefeito possa responder por lesão ao erário, uma vez que o STJ entende que a dispensa indevida de licitação causa dano in re ipsa ao Estado, de modo que a lesão já é, nesse caso, presumida.[20]
Assim, para que seja afastada a alegação de irregularidade da dispensa, necessário comprovar que, de fato, tenha ocorrido a situação que ensejou a emergência e que a contratação tenha se restringido aos bens e serviços necessários ao atendimento da situação emergencial, conforme impõe o art. 24, IV, da Lei nº 8.666/1993. Nesse caminhar, Rafael Carvalho Rezende de Oliveira sustenta que:
No tocante à emergência e à calamidade pública, as situações deverão ser analisadas concretamente. A contratação direta, quando houver emergência ou calamidade pública, limita-se aos bens e serviços necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa. Desta forma a lei não autoriza a contratação de qualquer bem ou serviço. A contratação emergencial é devida mesmo na hipótese em que a situação de emergência seja atribuída ao agente público (emergência “fabricada” ou “provocada”), sob pena de não se atender o interesse da coletividade.[21]
(Grifos nossos)
Em suma, caso seja comprovada a irregularidade da dispensa de licitação, é possível, a nosso ver, que o prefeito possa ser acionado judicialmente por ato de improbidade que causa lesão ao erário (art. 10, da Lei nº 8.429/1992), o que afastaria, nessa circunstância, a incidência do art. 11, posto que esse último ostenta caráter residual.
2.3. DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO AGENTE PÚBLICO PELO COMETIMENTO DE ERRO GROSSEIRO
A terceira indagação gira em torno da responsabilidade do engenheiro por ato de improbidade administrativa decorrente de lesão ao erário, caso seja comprovada falha técnica no licenciamento ambiental. Nesse quadrante, a denúncia anônima informa que o engenheiro, agente público, incorreu em erro grosseiro, quando da emissão do laudo.
Já destacamos que, para configurar a incidência do art. 10, da Lei nº 8.429/1992, necessário comprovar o dolo ou culpa do agente, além da lesão (prejuízo) ao erário, em regra (vez que há hipóteses, como a dispensa irregular de licitação, em que a lesão ao erário é presumida).
Sucede que, in casu, o enquadramento da conduta do engenheiro requer uma análise detida e acurada, porquanto a partir das alterações promovidas pela Lei nº 13.655/2018, na Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro, Decreto-Lei nº 4.657/1942 (LINDB), novos paradigmas foram estabelecidos, no tocante à Administração Pública. Ao que se faz relevante no presente caso, cite-se os arts. 22, § 1º, e 28, da LINDB:
Art. 22. Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.
§1º Em decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente.
(...)
Art. 28. O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro.
(Grifos nossos)
O art. 22, § 1º, da LINDB, traz ao direito público o princípio da realidade, de modo que a atuação do agente público tem que ser analisada a partir das circunstâncias que ensejaram a ação. O controle a ser realizado tem que olhar para o passado não com os olhos do presente, mas com as lentes do tempo em que o ato foi praticado. É o que impõe a lei ao prescrever que “serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente”. Irene Patrícia Nohara, ao comentar o artigo em destaque, aduz que:
Quer-se, com a redação deste dispositivo, combater aplicações jurídicas excessivas, descontextualizadas, injustas, em que haja sanções impostas aos gestores de forma arbitrária, sem considerar que ele tinha dificuldades e obstáculos diante das exigências das políticas públicas que lhe incumbia cumprir.[22]
(Grifos nossos)
Ao lado desse novo paradigma, o art. 28 vem dizer que o agente público “responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro”. Essa é uma disposição que, conforme abalizada doutrina[23], vem tutelar a boa-fé do agente público. É, em verdade, um aceno aos servidores que exercem suas funções com zelo, qualidade, honestidade e responsabilidade. Na síntese lapidar de Gustavo Binenbojm e André Cyrino, tem-se que:
O art. 28, LINDB, tem o escopo de proteger o gestor com boas motivações. Para que ele possa assumir o risco de deferir e dormir bem. Do mau administrador continuam tratando os inúmeros estatutos de controle da moralidade administrativa (Lei de Improbidade Administrativa, Lei Geral de Licitações etc.). A LINDB, no seu art. 28, quer tutelar o administrador com incentivos positivos de inovação no trato da coisa pública.[24]
(Grifos nossos)
Nesse quadrante, pois, para o agente público ser responsabilizado por suas opiniões técnicas, faz-se necessário o dolo ou erro grosseiro. O dolo é o elemento subjetivo que se caracteriza pelo designo autônomo de praticar o ato com intuito fraudulento e desonesto. O erro grosseiro, contudo, é o erro evidente, não escusável.
Em âmbito federal, o Decreto nº 9.830/2019, que regulamenta os dispositivos da LINDB alterados pela Lei nº 13.655/2018, traz a definição de erro grosseiro, bem como as hipóteses em que ele não se configura:
Art. 12. O agente público somente poderá ser responsabilizado por suas decisões ou opiniões técnicas se agir ou se omitir com dolo, direto ou eventual, ou cometer erro grosseiro, no desempenho de suas funções.
§ 1º Considera-se erro grosseiro aquele manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia.
§ 2º Não será configurado dolo ou erro grosseiro do agente público se não restar comprovada, nos autos do processo de responsabilização, situação ou circunstância fática capaz de caracterizar o dolo ou o erro grosseiro.
§ 3º O mero nexo de causalidade entre a conduta e o resultado danoso não implica responsabilização, exceto se comprovado o dolo ou o erro grosseiro do agente público.
(...)
§ 8º O disposto neste artigo não exime o agente público de atuar de forma diligente e eficiente no cumprimento dos seus deveres constitucionais e legais.
(Grifos nossos)
Desse modo, o erro grosseiro, frise-se, é o que se manifesta de modo evidente e inescusável, praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado caráter de negligência, imprudência e/ou imperícia.
Assim sendo, para que o agente público responda por improbidade administrativa, na espécie lesão ao erário (art. 10, da Lei nº 8.429/1992), em vista do erro grosseiro cometido, os requisitos acima destacados têm que ser comprovados, mormente a culpa grave. Esse é o entendimento de Irene Patrícia Nohara, para quem:
(...) analisando-se a legislação infraconstitucional, o art. 10 da Lei de Improbidade Administrativa deve ser interpretado de acordo com o art. 28 da LINDB, afastando-se a possibilidade de configuração da improbidade sem a presença de erro grosseiro do agente (culpa grave).” Outrossim, também se entendeu que: “o art. 28 da LINDB, para os casos por ele especificados (decisões e opiniões técnicas) disciplinou o § 6º do artigo 37 da Constituição, passando a exigir o dolo ou erro grosseiro (culpa grave) também para fins da reponsabilidade regressiva do agente público.[25]
(Grifos nossos)
No mesmo caminhar, Gustavo Binenbojm e André Cyrino entendem que:
(...) o art. 28 da LINDB, como lei posterior e de mesma hierarquia que a Lei de Improbidade Administrativa, opera a sua derrogação parcial, para redefinir as modalidades de ato ímprobo que admitem a modalidade culposa e passar a exigir a configuração de erro grosseiro. Pelas razões já acima desenvolvidas, trata-se de uma válida opção legislativa, efetuada de acordo com os princípios e regras constitucionais aplicáveis.
(Grifos nossos)
[1] Conforme destaca Alexandre Mazza, o art. 37, §6º, da CF/88 é o fundamento normativo de cinco teorias fundamentais em matéria de responsabilidade do Estado: a) teoria da responsabilidade objetiva do Estado, b) teoria da imputação volitiva de Otto Gierke, c) teoria do risco administrativo, d) teoria da responsabilidade subjetiva do agente, e e) teoria da ação regressiva como dupla garantia. (MAZZA, Alexandre. Manual de direito administrativo. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2019)
[2] MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 21. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 369.
[3] PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito administrativo. 31. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 820.
[4] CARVALHO, Matheus. Manual de direito administrativo. 6. ed. Salvador: JusPODIVM, 2019, p. 349.
[5] MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 21. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 369.
[6] ARAGÃO, Alexandre Santos de. Curso de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 561.
[7] STF. Recurso Extraordinário 591.874/MS. Tribunal Pleno. Relator: Min. Ricardo Lewandowski.
[8] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Licitações e contratos administrativos: teoria e prática. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 295.
[9] CARVALHO FILHO, José dos Santo. Manual de direito administrativo. 32. ed. São Paulo: Atlas, 2018, p. 682.
[10]Essa é a conclusão que encontra amparo na doutrina majoritária, bem como guarda coerência lógica com os normativos supramencionados. Todavia, há respeitáveis autores que entendem, minoritariamente, ser possível a responsabilidade solidária do Estado, nesses casos. É a posição defendida por Fernando Dias Menezes de Almeida: “(...) De todo modo, essa regra do art. 70 da Lei 8.666/1993 apenas seria aplicável, em seus próprios termos, em hipótese de dolo ou culpa do prestador de serviços, não abrangendo a situação de danos causados sem culpa a terceiros – quando o Estado seria chamado a responder por força do art. 37, § 6 .º, da CF. E isso não afasta, certamente, que o prestador de serviço seja, a seu turno, responsável perante o Estado, tanto por danos que lhe causar diretamente como por danos causados a terceiros os quais tenham sido indenizados pelo Estado. É essa uma responsabilidade contratual, ou, eventualmente, responsabilidade extracontratual, mas não abrangida pelo regime do art. 37, § 6.º, da CF. Caberá à vítima do dano escolher contra quem dirigirá a demanda de indenização, havendo solidariedade entre o Estado e o prestador de serviços por ele contratado, nos termos do Código Civil (...)”. (ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de. Tratado de Direito administrativo – Volume 7. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 370.)
Na mesma sintonia, é a doutrina de Odete Medauar: “Quanto às obras públicas realizadas por empreiteiras privadas contratadas, as tendências atuais sobre responsabilização assim se apresentam: (a) pelo fato da obra, isto é, pela existência da obra, responde somente a Administração – por exemplo: obra pública que impede acesso a garagem; (b) por dolo, negligência, imprudência, imperícia da empreiteira na construção, a responsabilidade é solidária, da Administração e da empreiteira, podendo a vítima escolher quem vai acionar ou acionar ambas”. (MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 21. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 369.)
[11]STJ. Recurso Especial 1.066.772/MS. Primeira Turma. Relator: Min. Benedito Gonçalves.
[12]Maria Sylvia Zanella Di Pietro entende que: “(...) a presença do elemento subjetivo é tanto mais relevante pelo fato de ser objetivo primordial do legislador constituinte o de assegurar a probidade, a moralidade, a honestidade dentro da Administração Pública. Sem um mínimo de má-fé, não se pode cogitar da aplicação de penalidades tão severas como a suspensão dos direitos políticos e a perda da função pública”. (PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito administrativo. 31. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 1035.)
[13]STJ. Recurso Especial 1.193.248/MG. Primeira Turma. Relator: Min. Napoleão Nunes Maia Filho.
[14]Em que pese a Lei nº 8.429/1992, em seu art. 11, não indicar expressamente o mencionado princípio, deve-se entender que ele está contido implicitamente no disposto, posto que o rol do art. 11 não é taxativo e que a lei de improbidade é anterior à CF/88. (PAZZAGLINI FILHO, Marino. Lei de improbidade administrativa comentada: aspectos constitucionais, administrativos, civis, criminais, processuais e de responsabilidade fiscal. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2018, p. 28.)
[15]STJ. Recurso Especial 307.583/RN. Segunda Turma. Relator: Min. Castro Meira.
[16]STJ. Recurso Especial 980.706/RS. Primeira Turma. Relator: Min. Luiz Fux.
[17]CARVALHO, Matheus. Manual de direito administrativo. 6. ed. Salvador: JusPODIVM, 2019, p. 989.
[18]PAZZAGLINI FILHO, Marino. Lei de improbidade administrativa comentada: aspectos constitucionais, administrativos, civis, criminais, processuais e de responsabilidade fiscal. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2018, p. 105.
[19]PAZZAGLINI FILHO, Marino. Lei de improbidade administrativa comentada: aspectos constitucionais, administrativos, civis, criminais, processuais e de responsabilidade fiscal. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2018, p. 120.
[20]STJ. Recurso Especial 817.921/SP. Segunda Turma. Relator: Min. Castro Meira.
[21]OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Licitações e contratos administrativos: teoria e prática. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, pp. 67-68.
[22]NOHARA, Irene Patrícia. LINDB no direito público – coleção soluções de direito administrativo – v. 10. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 92.
[23]Essa é a observação de Floriano de Azevedo Marques Neto: “(...) É, justamente, esse o racional do art. 28. Busca basear na certeza de que o agente não será punido pelo seu atuar de boa-fé ou por divergências de interpretação ou concepção doutrinária”. (MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Comentários à Lei nº 13.655/2018 (Lei da Segurança para a Inovação Pública). Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 136.)
[24]BINENBOJM, Gustavo; CYRINO, André. O art. 28 da LINDB: a cláusula geral do erro administrativo. Revista de Direito Administrativo. Edição Especial: Direito Público na Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro – LINDB (Lei nº 13.655/2018), p. 206, nov. 2018.
[25]NOHARA, Irene Patrícia. LINDB no direito público – coleção soluções de direito administrativo – v. 10. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 96.
Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Especialista em Direito Administrativo pela PUC-MG e em Direito Constitucional pela Univali. Servidor do Tribunal de Contas da União (TCU) desde 2015. Advogado OAB-DF.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: TEIXEIRA, MATEUS OLIVEIRA. Aspectos da responsabilidade civil do município na contratação emergencial de obra pública Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 jan 2021, 04:19. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56079/aspectos-da-responsabilidade-civil-do-municpio-na-contratao-emergencial-de-obra-pblica. Acesso em: 23 dez 2024.
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