Resumo: O presente artigo, valendo-se da pesquisa bibliográfica, tem como objetivo central expor alguns dos fundamentos da Teoria Crítico-estruturalista e como ela pode ser aplicada aos processos de insolvência regidos pela Lei 11.101/05, na expectativa de torná-los mais eficientes e igualitários. Atualmente, apenas 1% das empresas em crise que buscam a Recuperação Judicial conseguem chegar ao final do período fiscalizatório bienal cumprindo com todas as suas obrigações, o que evidencia uma falha do ordenamento jurídico de insolvência e um sério problema normativo, bem como, jurídico-econômico. A partir da concepção de que todos os fenômenos são formados por estruturas, analisar os procedimentos de insolvência pela ótica da teoria crítica, pode fornecer bases e subsídios eficientes que cumpram com os preceitos constitucionais da ordem econômica do Brasil e, consequentemente, provocar mudanças no cenário atual.
Palavras-chave: Insolvência. Estruturalismo. Eficiência. Recuperação Judicial.
Abastract: This article, using bibliographic research, has the central objective of exposing some of the fundamentals of the Critical-structuralist Theory and how it can be applied to insolvency proceedings governed by Law 11.101 / 05, in the hope of making them more efficient and effective. egalitarian. Currently, only 1% of companies in crisis seeking judicial reorganization are able to reach the end of the biennial inspection period, fulfilling all their obligations, which shows a flaw in the insolvency legal system and a serious regulatory, as well as, legal- economic. From the conception that all phenomena are formed by structures, analyzing insolvency procedures from the perspective of critical theory, can provide efficient bases and subsidies that comply with the constitutional precepts of Brazil's economic order and, consequently, bring about changes in the scenario current.
Keywords: Insolvency. Structuralism. Efficiency. Judicial Recovery.
Sumário: 1. Introdução. 2. A Insolvência sob a Ótica Da Teoria Crítico-Estruturalista do Direito Comercial. 3. Os Interesses Envolvidos no Processo de Insolvência Como Elemento Estrutural. 4. A Estrutura do Poder na Recuperação Judicial. 5. Considerações Finais. 6. Referências.
1. INTRODUÇÃO
O estruturalismo é uma abordagem cientifica e filosófica inicialmente cunhada na segunda metade do século XX, a qual, foi mais precisamente aplicada ao estudo voltado aos campos da linguística, cultura, sociologia e antropologia.
Partindo da premissa de que todo e qualquer fenômeno é formado pela relação de elementos interligados, cada um com seu devido grau de importância na cadeia de relações, exercendo, então, um padrão de dependência e equivalência entre si, é possível afirmar que todos os fenômenos são formados estruturas.
No campo do Direito não poderia ser distinto. Tratando-se de uma ciência evolutiva e dinâmica, cujo objetivo é regular as relações e condutas humanas por meio da positivação das regras e das normas, claramente se observa a existência de estruturas inter-relacionadas, cujo fim é proteger os direitos juridicamente tutelados.
Desse modo, tanto quanto possível, o estruturalismo jurídico vem sendo utilizado para analisar a complexidade das relações desenvolvidas dentro das ramificações abarcadas pelo Direito, inclusive, do Direito Comercial.
O objetivo do presente artigo, por meio de uma análise estruturalista, é demonstrar possíveis falhas e problemas que vem tornando os processos de recuperação judicial e falência ineficientes, em razão de vícios normativos, empresariais e culturais, existentes no sistema de insolvência brasileiro.
Pretende-se inicialmente, apresentar algumas das ideias centrais trazidas pela Teoria Crítico-estruturalista do Direito Comercial, com intuito de formar uma base introdutória ao tema abordado. Em segundo momento, o pensamento desenvolvido está ligado a estrutura formada pelos interesses envolvidos nos processos de insolvência e o papel social da empresa.
Ao final, será analisada a relação entre a estrutura de poder estabelecida no procedimento de recuperação judicial e as possíveis ineficiências que decorrem do poder desproporcional atribuído a determinados agentes específicos envolvidos nas negociações e na administração da empresa em crise.
2. A INSOLVÊNCIA SOB A ÓTICA DA TEORIA CRÍTICO-ESTRUTURALISTA DO DIREITO COMERCIAL
O direito em se tratando de uma ciência social, cujo objetivo primaz é regular as relações públicas e privadas através do positivismo estabelecido pela criação das normas, é amplamente passível de ser estudado pela ótica estrutural e pela teoria crítica, haja vista que, é formado por cadeias de fenômenos interligados que, juntos, constroem os alicerces do chamado estruturalismo jurídico.
Partindo deste viés, observa-se que ao longo do tempo, em virtude de evoluções sociais e pessoais constantes, o direito tem sido utilizado como meio de instrumentalização de outras ciências sociais aplicadas. Explico. A norma, por si só, introduzida através do direito, é ou deveria ser utilizada como base para orientar os demais fenômenos ligados às demais áreas da sociedade, como por exemplo a economia, a política, o meio ambiente, a educação etc.
Pois bem. A Lei como um instrumento normativo, não se presta tão somente a proteger um bem jurídico tutelado, mas a partir disso, pautar determinadas decisões em outras esferas. Entretanto, a letargia do direito proveniente do aspecto puramente positivista que limita as interpretações à literalidade da lei, não é capaz de acompanhar todas as transformações cotidianas, tornando-se até certo ponto insuficiente, abrindo brechas para intepretações distorcidas aquém do limite da norma.
Assim, da forma como aplicado, o direito parece então fundamentalmente um instrumento de manutenção das estruturas econômicas e sociais existentes [1]. No entanto, quando falamos em estruturalismo jurídico, não nos referimos simplesmente a estrutura interna do direito em si, representada pelo positivismo, ou por seu olhar sancionatório, mas, sim, as relações geradas por ele, ora em caráter econômico, ora em caráter valorativo.
Por outro lado, analisando essas afirmações baseadas na realidade, certo é que, o atual ambiente econômico é extremamente institucionalizado, havendo de fato uma sobreposição do império do poder econômico em detrimento do poder jurídico, à medida que o direito tem sido utilizado dramaticamente como um instrumento de serviço do poder econômico, logo, o poder econômico não mais está sujeito ao direito.
Todavia, esse mesmo poder tem se valido do direito como mecanismo de defesa de seus próprios interesses, ou seja, a economia tem se tornando a principal orientadora das normas. Este fenômeno é que o estruturalismo jurídico visa subverter: olhar o direito nas linhas da sociedade como um todo e, a partir disso, rememorar o peso do direito nas estruturas institucionais e sociais.
Em meio a tantas discussões, para Calixto Salomão Filho, percursor da Teoria Crítico-estruturalista do Direito Comercial[2], algumas destas estruturas desestabilizadoras estão associadas ao conservadorismo institucionalizado, que lhes permite manter as vigas de sustentação, evidentemente presentes no Direito Comercial contemporâneo, campo do conhecimento em que se tem verificado a aceitação e até mesmo a valorização do poder econômico como dominante.
A partir de uma teoria crítico-estruturalista, o Direito Comercial tem a possibilidade de renovar-se e, de certo modo, proteger-se das investidas de grandes dominadores do mercado. Como consequência disso, a economia tornar-se-ia mais eficiente, enquanto o direito passaria a exercer o papel de protagonista no desenvolvimento igualitário do mercado, à medida que readquire sua importância e um novo significado, pois posiciona-se não como passivo observador e receptor de dados do cotidiano econômico-empresarial, mas sim como um instrumento de transformação.
Sob essa perspectiva, especialmente em relação ao direito comercial, haveria a possibilidade de visualizar as relações como um todo, além da norma, o que enseja em uma real valoração do direito dentro de um determinado sistema, seja ele institucional, mercadológico ou econômico, flexibilizando o caráter positivista e, então, abrangendo um número maior de relações sem abandonar sua teleologia.
Assim, enxergar e estudar o direito como uma estrutura, sendo parte de uma estrutura maior, qual seja a estrutura social, a norma assumiria uma posição diametralmente oposta da que vem sido utilizada no atual cenário jurídico-econômico, deixando de ser mera ferramenta de instrumentalização econômica do legislador, retomando sua predominância em face dos detentores dos bens de capital.
Para tanto, a contribuição do Direito deveria se voltar à implementação de uma agenda que busque impactar diretamente a realidade socioeconômica de determinado ambiente ou comunidade, sobretudo porque, depende da intervenção legislativa direta sobre determinadas estruturas ideologicamente arraigadas e, na mesma medida, nos institutos jurídicos que as protegem.
Contudo, a ideia de se adotar um modelo crítico do direito e de seu papel, não deve estar ligada a uma errônea tentativa de planejamento ou definição dos resultados do processo econômico, mas, sim, à finalidade de proteger valores que são essenciais à criação de um caminho mais igualitário de desenvolvê-lo, que esteja voltado ao crescimento com objetivo definido em prol da sociedade.
Aproximando essa reflexão teórica ao campo da insolvência, não é necessário aprofundar-se no mundo das Recuperações Judiciais para identificar que o atual sistema concursal brasileiro, regido pela Lei 11.101/05, tem sido totalmente utilizado em prol de uma pequena parcela do empresariado, além de favorecer os interesses de alguns em detrimento de outros, o que consequentemente resulta no desequilíbrio da balança que sopesa os objetivos esperados da legislação falimentar.
A evolução do direito concursal no ordenamento jurídico brasileiro, iniciou-se com a transição e substituição do Decreto Lei 7661/45, antiga Lei da Concordata, pela atual Lei de Recuperação e Falência (11.101/05), onde o legislador buscou apresentar um novo microssistema de insolvência no Brasil, colocando os credores em papel de maior destaque no âmbito da Recuperação Judicial, assim como, regulamentou o processo falimentar.
Tendo como pedra angular o princípio da preservação da empresa, a égide do emprego dos trabalhadores e a manutenção da fonte produtora, a expectativa entorno da nova lei era absolutamente relevante, tendo em vista que, a atividade privada é a maior favorecida quando uma legislação fornece subsídios e condições especiais de pagamentos dos credores, além de suspender as execuções em face do devedor pelo período de 180 dias (stay period), a fim de possibilitar sua reorganização e negociação das diretrizes do plano de soerguimento.
Sob essa perspectiva, estaríamos diante da norma perfeita. Mas nem tudo são flores. Ao longo dos anos, verifica-se que o procedimento regido pela LRF tem se tornado ineficiente, à medida que, apenas 1% das empresas que entram em Recuperação Judicial conseguem chegar final do período bienal de fiscalização do poder judiciário e continuar cumprindo com todas as disposições previstas em seu Plano de Recuperação Judicial aprovado pelos credores em assembleia geral[3].
Ao que tudo indica, apesar dos esforços empregados para tornar o procedimento mais célere, a aplicação da norma tem sofrido um revés ao longo do tempo por diversos fatores, arborizando na busca despretensiosa da recuperação pela via judicial, sem que haja uma tentativa previa de reestruturação interna com auxílio de profissionais especializados ou negociação prévia com os credores.
Eis o ponto chave de nossa abordagem. Partindo da teoria crítico-estruturalista aplicada ao âmbito da insolvência, fato é que, analisando o procedimento concursal sob a perspectiva estrutural, composta pelos interesses do devedor, dos credores, do fisco e da sociedade, seria totalmente viável reestabelecer o equilíbrio de forças durante o processamento do pedido, o que traria inúmeros benefícios aos envolvidos: efetiva recuperação do devedor e da fonte produtora, recuperação do crédito discutido na demanda, geração de empregos, arrecadação regular de impostos etc.
A partir da concepção de que estruturas são formadas por elementos chave e, nesse caso, temos como elemento chave o soerguimento da empresa, o caminho para retomada da efetividade seria enxergar o campo da insolvência como um todo, onde certamente cada peça possui sua devida importância. Os credores, por exemplo, podem aprovar o plano de recuperação judicial e permitir que a empresa continue suas atividades, em contrapartida, tem o poder de rejeitar o plano e, então, levar a empresa a falência.
O devedor, por sua vez, tem em suas mãos o poder de negociação, a capacidade de controle da empresa em crise e, ainda, a capacidade de direcionar as decisões a serem tomadas durante o cumprimento das obrigações assumidas no ato do deferimento do processo recuperacional. Entretanto, é cediço que havendo o descumprimento de tais obrigações o devedor está fadado à bancarrota.
Assim, vejamos: uma estrutura como a que é desenvolvida durante o processo de Recuperação Judicial, totalmente interligada por uma relação de dependência entre os indivíduos envolvidos, não deve, tão somente, servir aos interesses e privilégios da própria empresa em recuperação, mas deve ter como objetivo principal o resultado positivo que o soerguimento da atividade proporciona à sociedade.
Noutro ponto, à falência como parte integrante do microssistema da insolvência, possui um papel não menos importante se comparada ao instituto da recuperação, principalmente pelo fato de que seu objetivo central é a eliminação de empresas inviáveis do mercado, abrindo espaço para a criação de novas fontes produtoras. Analisando por este ângulo, a falência é medida que se impõe como necessária ao desenvolvimento socioeconômico.
Logo, dentro dessa estrutura, extirpar empresas economicamente inviáveis, produz efeitos interessantes a toda a cadeia produtiva, pois, possibilita a venda de ativos por uma única via, permite o recebimento do crédito pelos credores em sua totalidade sem a aplicação de deságios e, além do mais, possibilita que o devedor ao final do período de suspensão quando do encerramento da falência, retorne ao mercado e reinicie suas atividades na medida que lhe couber, fazendo uso do chamado fresh start.
Portanto, observar o direito como uma estrutura, em específico o direito concursal e comercial, nos faz enxergar além da aplicação pura da norma, possibilitando a utilização do poder jurídico de forma mais efetiva, sem submissão ao poder econômico, deixando de lado o caráter positivista em sentido estrito, permitindo, assim, que a maioria dos interesses sejam alcançados e, também, vistos como objeto de estudo para aprimorar a efetividade da aplicação da legislação vigente.
3. OS INTERESSES ENVOLVIDOS NO PROCESSO DE INSOLVÊNCIA COMO ELEMENTO ESTRUTURAL
Apesar dos esforços do legislador quando da criação do atual diploma falimentar, em realocar os credores numa posição de predominância e protagonismo perante o devedor, com objetivo de permitir o soerguimento da empresa e proporcionar a recuperação dos créditos devidos de maneira ágil, a realidade dos processos de recuperação em tramite perante o poder judiciário brasileiro, ressalvadas algumas exceções, não permite constatar que tal pretensão tenha sido plenamente alcançada.
De todo modo, não seria razoável afirmar que a política legislativa ditada pela LRF seja lesiva, levando em consideração que abarca princípios e diretrizes que, se aplicadas com a devida destreza, podem gerar bons frutos ao mercado, aos quotistas ou acionistas, aos trabalhadores e a sociedade como um todo.
A proteção aos interesses, perseguida pelo legislador no ato da edição da norma, ora abarca interesses do devedor, ora abarca interesses do credor, “o que releva a existência de um movimento pendular, que oscila na proteção dos polos da relação de direito material. Trata-se do que Fábio Konder Comparato chamou de dualismo pendular na proteção dos interesses dos credores ou dos devedores”.[4]
Observa-se neste aspecto, que a lei em determinado momento protege mais o credor, enquanto em outros pontos mais o devedor; o consumidor e o fornecedor, o inquilino e o locador; e assim por diante. Não obstante, pode-se dizer que tal fenômeno também se verifica em relação ao aplicador do Direito, logo, não apenas a própria lei toma partido na proteção de um dos polos da relação de direito material, mas há uma forte pretensão de que o intérprete da lei a aplique em favor de um dos lados da relação em detrimento do outro, a depender do caso concreto.[5]
Complementando a linha de raciocínio traçada até aqui, anota-se a seguinte lição introduzida por Rodrigo Bróglia Mendes[6], Professor Doutor da Universidade de São Paulo:
“Os dois objetivos que informaram a política legislativa (LRF) consistem, de um lado, propiciar a recuperação da empresa em crise e, de outro, permitir segurança na satisfação dos créditos garantidos, barateando o custo do dinheiro e facilitando a concessão de crédito. Esses objetivos são comuns nos regimes de insolvência e chegou-se a sustentar que, historicamente, verifica-se um movimento pendular entre estas duas políticas legislativas. O regime da Lei nº 11.101 pretendeu prestigiar esses dois objetivos simultaneamente, mas existem certos casos em que eles podem se apresentar em conflito”. (g.n).
Apesar de algumas críticas que a doutrina vem apontando acerca do dualismo pendular implícito na legislação falimentar, não há dúvidas que a LRF possui elementos que devem ser analisados aquém do olhar positivista, ou seja: o fato da norma preservar interesses de ambas as partes envolvidas no procedimento, realça a ideia de que existe uma relação de codependência entre os envolvidos, de modo que, estruturalmente, se um dos lados não tiver os seus interesses atendidos, todo o processo de recuperação está fadado ao insucesso.
Vejamos. O procedimento da Recuperação Judicial é revestido de natureza negocial entre credor e devedor, portanto, para que sua estrutura seja preservada, a lei fornece subsídios ao soerguimento da empresa (art. 50, LRF), os quais, devem ser utilizados pelo devedor para que deixe a situação de crise. Assim observamos que o interesse do devedor no pedido de processamento está em maior evidência nesse momento, proporcionando maior proteção aos controladores e acionistas, mesmo que de modo subjetivo.
Enquanto do outro lado, temos os trabalhadores da empresa em crise, cujo interesse é a manutenção da atividade produtora e consequentemente a preservação de seus postos de empregos e salários, ainda neste ponto, destaca-se o fato de que os credores trabalhistas não estão sujeitos aos deságios (descontos) em seus créditos quando submetidos à Recuperação Judicial, além do famigerado pensamento arraigado nessas situações, de que antes o recebimento ínfimo de uma parcela de seu crédito durante o curso da recuperação, do que nenhum recebimento se houver a quebra da sociedade empresária pela insuficiência de recursos ou ativos.
Em outro nível estrutural, estão os credores de modo geral, onde o interesse maior está ligado ao recebimento dos créditos constituídos em face do devedor, o que representa uma parcela importante da cadeia, de modo que, havendo a recuperação do crédito, o ciclo produtivo se mantém estável, evitando que novas empresas enfrentem dificuldades e superendividamento – o credor de alguém, também é devedor de alguém.
Outrossim, ainda que não submetido aos efeitos da Recuperação Judicial, o crédito público de natureza fiscal sofre os efeitos desta indiretamente, ao passo que, o recolhimento de tributos faz parte do ecossistema comercial, enquanto uma empresa improdutiva não poderá gerar riquezas e terá pela frente fortes dificuldades de fluxo de caixa e auferimento de receitas, assim, não priorizará o pagamento de impostos, deixando o fisco à mercê do sucesso do soerguimento para que o ciclo retome seu curso natural, resultando em prejuízo direto ao interesse público pela ausência de investimentos.
De mais a mais, a verdade que permeia os processos de insolvência atualmente regidos pela Lei 11.101/05, é que há um desequilíbrio nos interesses protegidos pela própria legislação, isso porque, em grandes casos os interesses dos acionistas, sócios controladores ou administradores, ganham papéis de destaque em face ao interesse público, dos trabalhadores e dos credores, cujo único objetivo a ser atingindo nessas situações, ao menos pelo enfoque empresarial, é a retomada do lucro.
Sopesado isso, para melhor entendimento da discussão acerca do tema, vale destacar a lição doutrinária de Sheila Neder Cerezetti[7]:
“cabe notar que um interessante paralelo pode ser traçado entre (os) dois ramos do direito empresarial - quais sejam: o direito societário e o direito concursal. Constata-se que em ambos se contrapõem duas principais teorias. Mas não é só. O fato é que o confronto entre as duas teorias nos dois campos jurídicos fundamenta-se na mesma questão: quais os interesses dignos de tutela(?) sendo que tanto no direito societário quanto no direito concursal uma das correntes advoga uma limitação aos interesses patrimoniais, ao passo que a outra amplia o panorama. As funções de uma lei de insolvência podem ser resumidas no esforço pela maximização do valor dos ativos para satisfação dos credores ou podem dizer respeito à criação de um fórum em que todos os interesses abrangidos pela crise empresarial são levados em consideração e encontram respeito mútuo, na busca de uma solução à crise (g.n).
Exatamente por conta dessa discussão que a teoria crítica pode ser aplicada aos processos de insolvência, à medida que, o equilíbrio estrutural entre os interesses envolvidos no procedimento, deve decorrer da aplicação da norma, objetivando tanto quanto possível a eficiência da recuperação, a qual deve estar atrelada à maximização da proteção dos interesses.
Logo, se os interesses dos envolvidos não estiverem equilibrados, a estrutura da recuperação judicial e da falência estará totalmente comprometida e nunca será possível alcançar o objetivo maior do legislador, conforme se tem visto, em razão do baixo índice de empresas que conseguem o soerguimento ao final do período fiscalizatório bienal, ou o baixo índice de empresários que conseguem fazer uso do fresh start, em razão da inefetividade dos processos de falência.
Assim, se observarmos a estrutura dos processos falimentares e de recuperação judicial pelo viés estruturalista, haveria a possibilidade de tornarmos o processo mais equânime, que coloca os interesses dos envolvidos em patamar de igualdade e, portanto, seria obstada qualquer tentativa utilização do poder judiciário para atendimento de interesses puramente institucionalistas.
4. A ESTRUTURA DO PODER NA RECUPERAÇÃO JUDICIAL
O antigo decreto falimentar (7661/45), predecessor da atual Lei de Recuperação Judicial e Falências (LRF), o qual regia o instituto da concordata, possuía uma estrutura individualista, muito distante da que temos hoje com a Lei 11.101/05. Pode-se dizer que, o maior avanço em relação a normativa substituída, é a atribuição de mais poder e maior protagonismo aos credores submetidos aos efeitos da Recuperação Judicial.
Todavia, tal protagonismo é realmente verdadeiro e eficiente? Os credores possuem tanto poder quanto esperado pelo legislador? No primeiro momento, ao ler tais questionamentos, a primeira e imediata resposta que vem a nossa mente é: Sim. Ora, os credores possuem o poder de aprovar e rejeitar o plano de recuperação judicial, o que poderá afetar, nada mais, nada menos, que diretamente no futuro da empresa em crise, seja possibilitando seu soerguimento, seja levando-a falência.
Ocorre que, na medida que o direito concursal foi evoluindo, um novo “porém” passou a rondar os processos recuperacionais. A recíproca das afirmações acima, até certo ponto são verdadeiras. A boa intenção do legislador resultou, sim, na atribuição de maiores poderes aos credores positivamente falando, diferentemente do que se via nos processos regidos pela Lei da Concordata.
Em contrapartida, a realidade observada nos processos de insolvência atualmente, é que os credores, apesar dos indistintos poderes que lhes foram conferidos, não possuem tantos poderes quanto se imagina, pois, respectiva autonomia não os acompanha do início ao fim dos processos recuperacionais, limitando-se, tão somente, até a realização da assembleia de credores, onde terão a oportunidade de votar o Plano de Recuperação Judicial elaborado pela própria devedora, na forma que melhor atenda aos seus interesses.
Sabemos, contudo, que dos envolvidos nos processos de recuperação judicial, a única participante detentora de elementos suficientes para propor formas de negociação e reestruturação é a própria empresa em crise, cenário este que tende a ser modificado com a entrada em vigor das alterações a serem realizadas pela Lei 14.112/20, a qual prevê a possibilidade dos credores proporem o Plano de Recuperação Judicial, medida que ainda gera certa insegurança dentro do âmbito da insolvência, pela ausência de diretrizes e orientações básicas de como essa ferramenta será utilizada pelos mesmos.
No entanto, tal discussão não é objeto deste artigo, do mesmo modo que, não se pretende neste momento esgotar toda a temática aqui abordada, porém, não se pode desprezar, como já dito anteriormente no segundo tópico, que a atual LRF possui uma inclinação pró-devedor, o que implica em um desbalanceamento no ambiente de negociação entre os credores e a recuperanda.
Isso porque, o controle da empresa em recuperação judicial permanecerá com os sócios, acionistas, administradores e/ou controladores, não levando em consideração que estes agentes podem ser os responsáveis por todas as dificuldades enfrentadas pela empresa o que, consequentemente, a levou ao estado de insolvência, não deixando alternativa senão a busca pelo poder judiciário.
A respeito disso, não se justifica recuperar um empreendimento vitimado pela má-fé de seus titulares, ou procurar soerguer, pela via processual, esta empresa e entregar sua gestão novamente a seus antigos titulares, além disso, não se imagina em um ordenamento que preze pela segurança jurídica, um modelo onde o poder público assumiria a gestão de tais empreendimentos, retornando à então superada concepção de Estado-empresário.
Assim, podemos afirmar que a posição ocupada pelo administrador da devedora na recuperação judicial, “à qual corresponde a inclinação “pró-devedor” da Lei, justifica-se diante do pressuposto de que determinados titulares de interesses, especificamente trabalhadores e fornecedores de bens e serviços, usualmente não costumam se beneficiar da decisão de liquidação da empresa”.[8]
Diante disso, a estrutura de poder conferida pelos processos de recuperação judicial, onde o poder de controle permanece com o corpo de executivos e administradores, é equânime do ponto de vista negocial? Dito isto, as decisões que serão tomadas após o deferimento e processamento do pedido realmente atenderão aos interesses de todos os envolvidos no procedimento?
Sob essa perspectiva, nos parece que o desequilíbrio causado pela manutenção dos administradores no topo da estrutura de poder da devedora, é o propulsor de inúmeros problemas desencadeados durante o processo de recuperação judicial, tendo em vista que, esses responsáveis, possuem maiores privilégios em relação a extração de capital da empresa insolvente, além de serem detentores de poder para realizar a contratação de empréstimos financeiramente suicidas, ou, ainda, em alguns casos, adquirem tempo hábil para o desvio de recursos e riquezas da fonte produtora.
Para ilustrar a gravidade desta estrutura de poder desbalanceada no âmbito do processo de insolvência, relembramos a I. lição de Deborah Kirschbaum[9]:
A menos que devidamente monitorada, a administração de uma empresa tomadora excessivamente endividada pode acabar desperdiçando os recursos tomados com projetos de alto risco, sob a expectativa de que somente tais projetos possam produzir nível de retorno capaz de repagar as dívidas e ainda algum excedente para os sócios. A tomada de riscos excessivos em empresas muito endividadas representa um potencial de claro agravamento das perspectivas de insolvência. Assim, em situações de elevada alavancagem financeira, ainda que solvente a sociedade, os sócios são encarados como agentes cujo maior incentivo é expropriar a riqueza da empresa. O argumento contrário à preservação dos direitos societários na recuperação judicial segue essa linha de raciocínio. O Direito deve então procurar oferecer instrumentos que contrabalancem tais incentivos (g.n).
Não visualizamos em um horizonte tão próximo, uma forma possível da atual política legislativa que rege o microssistema de insolvência brasileiro obter meios e recursos suficientes para combater a concentração de poder da empresa em crise, podendo ser considerado, inclusive, como um dos fatores contribuintes para a inefetividade dos processos de recuperação judicial, o que inspira uma série de questionamentos e pressupõe, ainda, a possibilidade do cometimento de abusos.
Assim sendo, sob essa perspectiva, é importante avaliar até que ponto são compensados pela tentativa de recuperação de empresas, os custos do procedimento e da alocação de poder na estrutura recuperacional, somente esta ponderação é capaz de instruir o juízo sobre a adequação da norma à realidade brasileira e, a partir disso, avaliar possíveis alternativas aos conceitos adotados pela Lei.
Alguns autores, defendem a ideia de que a alocação de poder, assim como a possibilidade de controle da empresa em crise, poderia ser conferida aos demais agentes envolvidos no processo de recuperação judicial: credores, administrador judicial e auxiliares. Obviamente, tais alternativas ainda encontram muita resistência no âmbito dos procedimentos recuperacionais. Qual a possibilidade de uma sociedade empresária, endividada, conferir a terceiros alheios o poder de controle? Quais seriam os custos, os repasses de informações e os aspectos patrimoniais de acionistas ou quotistas? Não há, infelizmente, uma resposta definitiva para solucionar estes problemas.
É preciso compreender, que apesar dos avanços dos programas de integridade empresarial (Compliance), o sistema econômico é povoado por pessoas e empresas de todos os tipos, cabendo ao poder judiciário, na medida do possível, obstar o uso do instituto da recuperação judicial para praticas contrarias aos preceitos da Lei Regente, assim, a alocação estrutural do poder não seria um problema do ponto de vista protetivo/normativo, pois os interesses envolvidos estariam devidamente protegidos.
Certamente, os problemas relacionados a práticas fraudulentas decorrentes das relações de poder não estão vinculados tão somente à estrutura da insolvência, práticas fraudulentas decorrem do mundo corporativo e social em todas as esferas.
Parafraseando Eduardo Goulart Pimenta[10], cabe ao legislador definir mecanismos e institutos para coibir as condutas fraudulentas que devem ser punidas e ao Poder Judiciário sancionar rigorosamente tais condutas por meio deles, como por exemplo a desconsideração da personalidade jurídica, a responsabilização civil de administradores e controladores de sociedades, a responsabilização pessoal de sócios em face da irregularidade das sociedades e assim por diante. Um rigoroso sistema punitivo da fraude e da má-fé no meio empresarial é quem mais pode contribuir para afastar pessoas desonestas que se valem dos processos recuperacionais para proteção de seus próprios interesses.
Desse modo, podemos concluir que a realocação de poder em processos de recuperação judicial é fator relevante para o desenvolvimento do atual modelo de recuperação de empresas no Brasil.
Ademais, no microssistema de insolvência, analisar o procedimento pela teoria critica nos mostra a importância de cada elemento dentro da cadeia estrutural, o qual anseia por reformas condizentes com a realidade brasileira, principalmente pelo cenário de reiteradas crises econômicas, inviabilizando empresas e levando-as ao encerramento das atividades, logo, proporcionar meios efetivos para a recuperação de empresas viáveis é medida que deve atender principalmente aos preceitos da ordem econômica constitucional.[11]
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dentro das exposições que foram traçadas aqui, observamos que o Direito Comercial, mais precisamente no campo da Insolvência, possui eixos interrelacionados capazes de formarem estruturas e, portanto, estão propícios de serem analisados pela teoria crítica. Cabe ressaltar que, a ideia central da teoria crítica do direito comercial, é proporcionar um ambiente de discussão que permita o Direito evoluir como ciência, sem que o poder jurídico se subverta ao poder econômico.
Podemos concluir que, o ordenamento jurídico de insolvência brasileiro tem sofrido um revés ao longo do tempo, levando em consideração o baixo índice de soerguimento das empresas em crise que buscam a Recuperação Judicial. Como vimos, isso se dá por inúmeros fatores como: o favorecimento de alguns interesses em detrimento de outros durante o procedimento e do período fiscalizatório; o desbalanceamento da alocação de poder após o deferimento do pedido e o uso indiscriminado do instituto para tentativa de práticas fraudulentas, causando sua banalização.
Portanto, cabe a todos os operadores do direito no âmbito prático e acadêmico, assim como, as empresas responsáveis pelo desenvolvimento econômico nacional, buscarem alternativas eficazes para que o direito concursal brasileiro evolua e atinja os preceitos constitucionais da ordem econômica, além de proporcionar um ambiente de recuperação eficiente a todas as estruturas empresariais em momento de dificuldade.
6. REFERÊNCIAS
CEREZETTI, Sheila Christina Neder. A recuperação judicial de sociedades por ações. Ed. Malheiros – São Paulo, 2012.
COSTA, Daniel Carnio. Recuperação judicial de empresas – As novas teorias da divisão equilibrada de ônus e da superação do dualismo pendular, 2017. <disponível em: https://www.editorajc.com.br/recuperacao-judicial-de-empresas-as-novas-teorias-da-divisao-equilibrada-de-onus-e-da-superacao-do-dualismo-pendular>
KIRSCHBAUM, Deborah. A Recuperação Judicial no Brasil: Governança, Financiamento Extraconcursal e Votação do Plano. Tese de Doutorado – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2009.
MENDES, Rodrigo Octavio Bróglia. Regime de insolvência e recuperação de empresa no Brasil. Especialmente a questão dos credores garantidos. In. Miguel Pestana de Vasconcelos (coord.), Falência, Insolvência e recuperação de empresas – I. º congresso de Direito Comercial das Faculdades de Direito da Universidade do Porto, de S. Paulo e de Macau, Porto, FDUP, 2016.
PIMENTA, Eduardo Goulart. Recuperação Judicial de Empresas: Caracterização, Avanços e Limites. Revista de Direito GV. Vol. 2. Pag. 151-166. São Paulo, 2006.
SALOMÃO FILHO, Calixto. Teoria crítico-estruturalista do Direito Comercial. São Paulo: Marcial Pons, 2015.
______________________. Novo Estruturalismo Jurídico: uma alternativa para o direito? Revista Dos Tribunais. Vol. 926/2012.
CORREA, Fernando; NUNES, Marcelo Guedes; SACRAMONE, Marcelo; WAISBERG, Ivo (coord.) – Observatório de Insolvência do Núcleo de Estudos de Processos de Insolvência (NEPI), da PUCSP e da Associação Brasileira de Jurimetria – ABJ. São Paulo, 2017. <Disponível em: https://abj.org.br/cases/insolvencia/>
[1] SALOMÃO FILHO, Calixto. Novo Estruturalismo Jurídico: uma alternativa para o direito? Revista Dos Tribunais. Vol. 926/2012.
[2] SALOMÃO FILHO, Calixto. Teoria crítico-estruturalista do Direito Comercial. São Paulo: Marcial Pons, 2015
[3] Dados Extraídos do Observatório de Insolvência do Núcleo de Estudos de Processos de Insolvência (NEPI), da PUCSP e da Associação Brasileira de Jurimetria – ABJ. São Paulo, 2017.
[4] COSTA, Daniel Carnio. Recuperação judicial de empresas – As novas teorias da divisão equilibrada de ônus e da superação do dualismo pendular, 2017. <disponível em: https://www.editorajc.com.br/recuperacao-judicial-de-empresas-as-novas-teorias-da-divisao-equilibrada-de-onus-e-da-superacao-do-dualismo-pendular>
[5] Op. Cit.
[6] MENDES, Rodrigo Octavio Bróglia. Regime de insolvência e recuperação de empresa no Brasil. Especialmente a questão dos credores garantidos. In. Miguel Pestana de Vasconcelos (coord.), Falência, Insolvência e recuperação de empresas – I. º congresso de Direito Comercial das Faculdades de Direito da Universidade do Porto, de S. Paulo e de Macau, Porto, FDUP, 2016.
[7] CEREZETTI, Sheila Christina Neder. A recuperação judicial de sociedades por ações. Ed. Malheiros – São Paulo, 2012. Pag. 237.
[8] KIRSCHBAUM, Deborah. A Recuperação Judicial no Brasil: Governança, Financiamento Extraconcursal e Votação do Plano. Tese de Doutorado – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2009.
[9] Op. Cit.
[10] PIMENTA, Eduardo Goulart. Recuperação Judicial de Empresas: Caracterização, Avanços e Limites. Revista de Direito GV. Vol. 2. Pag. 151-166. São Paulo, 2006.
[11] Art. 170 CF/88. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - função social da propriedade; IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor; VI - defesa do meio ambiente; VII - redução das desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno emprego; IX - tratamento favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de pequeno porte. Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COELHO, Marco Aurélio Ferreira. O microssistema brasileiro de insolvência sob a perspectiva crítico-estruturalista Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 jan 2021, 04:44. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56117/o-microssistema-brasileiro-de-insolvncia-sob-a-perspectiva-crtico-estruturalista. Acesso em: 23 dez 2024.
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