Resumo: O presente trabalho versa sobre a prerrogativa do prazo processual em dobro conferida à Defensoria Pública e a possibilidade jurídica de sua extensão a entidades de natureza privada dispostas no CPC de 2015, em benefício dos usuários do serviço de assistência jurídica gratuita, analisando ainda a jurisprudência do STJ e do TJ-SP sobre o assunto.
Palavras-chave: Acesso à justiça. Prazo em dobro. Defensoria Pública. Entidades privadas. Convênio.
Sumário: 1. Introdução; 2. A visão jurisprudencial do prazo em dobro à luz da Lei 1.060/50; 3. A visão jurisprudencial do prazo em dobro à luz do CPC de 2015; 4. O prazo em dobro e o acesso à justiça pela população hipossuficiente assistida por entidades privadas dispostas no art. 186, §3º, do CPC; 5. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
A previsão expressa da existência da Defensoria Pública na Constituição Federal de 1988 está intimamente ligada à efetivação do direito fundamental ao acesso à justiça, insculpido no artigo 5º, XXXV, da Carta Magna. Afinal, não há como se pensar em pleno acesso à justiça se não houver o fornecimento de instrumentos pelo Estado que garantam a proteção e o exercício de direitos à toda a população, inclusive em relação à sua parcela hipossuficiente, que não possui condição financeira de arcar com as custas de um processo judicial e honorários de um advogado, sem prejuízo do seu próprio sustento e de sua família.
Em outras palavras, pela nossa Constituição Federal, limitações de ordem financeira não podem ser traduzidas em limitações de direitos e impedimento de recebimento da prestação jurisdicional.
No entanto, é notório que a Defensoria Pública enfrenta diversos problemas estruturais que a impedem de absorver a totalidade da enorme demanda de casos a ela submetidos: número insuficiente de defensores públicos concursados em relação à população hipossuficiente de cada região; falta de estrutura material (computadores, prédios, salas etc.) para exercício dos trabalhos; falta de outros profissionais para auxílio e complemento da assistência prestada (estagiários, profissionais de psicologia, de serviços social, urbanistas etc.); extensão do território de atuação, entre outros.
Ante tal cenário, a fim de assegurar o direito fundamental ao acesso à justiça da população mais vulnerável e cumprir com os ditames da Constituição Federal, tornou-se comum que a Defensoria Pública busque “parceiros” que possam realizar a mesma função que lhe é incumbida pelo artigo 134, caput, da CF, qual seja, “a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados”.
Por meio de convênios com a OAB, com entidades públicas e privadas que prestam assistência jurídica gratuita, e ainda com núcleos de prática jurídica de faculdades de Direito, a Defensoria Pública consegue transferir parte de sua demanda a terceiros e não deixar que haja pessoas necessitadas sem o resguardo de seus direitos, de forma gratuita.
Não obstante a possibilidade jurídica e a necessidade dessa transferência da função constitucional de defesa dos hipossuficientes a outras entidades privadas e públicas que não a Defensoria Pública, sempre houve nos tribunais controvérsias quanto à equiparação, entre defensores públicos e advogados conveniados, em relação a certas prerrogativas atribuídas pela Lei Complementar 80/1994[i] aos primeiros. Um exemplo emblemático é a concessão do prazo em dobro para a realização dos atos processuais.
Sendo assim, o presente trabalho analisará a viabilidade jurídica da concessão do prazo em dobro em favor de entes privados que exercem a função pública de prestação de assistência jurídica gratuita, à luz do Novo Código de Processo Civil e de princípios constitucionais.
2. A VISÃO JURISPRUDENCIAL DO PRAZO EM DOBRO À LUZ DA LEI 1.060/50
Anteriormente à vigência do Novo Código de Processo Civil de 2015, os pedidos de concessão de prazo em dobro pelos advogados não integrantes da carreira de Estado, mas que faziam as vezes da Defensoria Pública em determinado local, eram realizados com base na Lei 1.060/50, que dispõe em seu artigo 5º, §5º:
“§ 5° Nos Estados onde a Assistência Judiciária seja organizada e por eles mantida, o Defensor Público, ou quem exerça cargo equivalente, será intimado pessoalmente de todos os atos do processo, em ambas as Instâncias, contando-se-lhes em dobro todos os prazos” (grifo nosso).
No entanto, mesmo com tal previsão legal, as decisões dos Tribunais de Justiça se mostravam bastante conflitantes sobre o tema, ora concedendo, ora negando as prerrogativas do prazo em dobro aos advogados conveniados, por interpretações divergentes sobre o mesmo dispositivo supracitado.
Vejamos algumas dessas decisões proferidas pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo a respeito do tema:
“Agravo de Instrumento. Autores beneficiários de assistência judiciária. Convênio celebrado entre a Procuradoria Geral do Estado e o Escritório Modelo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Prazo em dobro. Admissibilidade. Art. 5o, §5°, da Lei n.° 1.060/50 c.c. o art. 10 das Disposições Transitórias da Constituição do Estado de São Paulo. Recurso provido” (TJSP, Agravo de instrumento nº 9035986-23.2004.8.26.0000, Rel. Carlos Stroppa, 4ª Câmara de Direito Privado, j. 14/02/2006)
“Assistência Judiciária - Prazo em dobro - Advogado integrante do Núcleo de Prática Jurídica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em convênio firmado com a Procuradoria do Estado de São Paulo - Atividade que, in casu, é equivalente a de Defensor Público - Aplicação do beneficio de prazo em dobro - Admissibilidade - Recurso provido” (AI nº 7067672900, Relator Cunha Garcia, 20ª Câmara de Direito Privado, d.j 09/05/2006)
“ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA. Núcleo de prática jurídica Universidade particular de ensino. Prazo simples. Advogado que, para ter direito ao prazo em dobro, deve integrar serviço de assistência judiciária mantido pelo Estado. Inteligência do art. 5º, § 5º da Lei 1.060/50.”(TJSP; Agravo de Instrumento 0041374-45.2013.8.26.0000; Relator (a): Reinaldo Caldas; Órgão Julgador: 26ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional I - Santana - 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 19/06/2013; Data de Registro: 21/06/2013)
“PRAZO EM DOBRO. Pretensão à concessão do prazo em dobro. Inadmissibilidade. Irrelevância do fato de a parte estar sendo assistida por advogado integrante de Departamento Jurídico de Universidade que tem convênio com a Defensoria Pública. Inaplicabilidade, ao caso, do disposto no artigo 5º, § 5º, da Lei n. 1.060/50. Precedentes jurisprudenciais desta Corte e do Col. Superior Tribunal de Justiça. Decisão mantida. Recurso improvido, por maioria.”(TJSP; Agravo de Instrumento 2024822-68.2013.8.26.0000; Relator (a): João Camillo de Almeida Prado Costa; Órgão Julgador: 19ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional XI - Pinheiros - 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 21/10/2013; Data de Registro: 07/04/2014
De fato, não havia na Constituição Federal ou no CPC um dispositivo mais claro que pudesse dirimir a dúvida gerada sobre o tema, de modo que, em grande parte das vezes, os pedidos acerca de tais prerrogativas eram negados pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e pelo Superior Tribunal de Justiça[ii].
Essa negativa advinha do entendimento majoritário de que somente entidades de natureza pública poderiam ter prazo em dobro. Ou seja, somente poderia ser considerado cargo equivalente ao do defensor aquele que integrasse assistência judiciária mantida pelo Estado, como por exemplo a Procuradoria de Assistência Judiciária, órgão da Procuradoria Geral do Estado que, no estado de São Paulo, prestava assistência jurídica gratuita antes da implementação da Defensoria Pública pela lei Complementar 988/2006.
Tratava-se, portanto, de questão com alta carga interpretativa a respeito do artigo 5º, §5º, da Lei 1.060/50. Afinal, não foram ali especificadas quais entidades poderiam ser beneficiadas com a dobra do prazo e quais não poderiam.
3. A VISÃO JURISPRUDENCIAL DO PRAZO EM DOBRO À LUZ DO CPC DE 2015
Com a entrada em vigor do Novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015), houve previsão expressa do prazo processual em dobro em favor da Defensoria Pública, em seu artigo 186, caput. Mas não só. Também houve previsão expressa de outras entidades que deveriam ter essa prerrogativa, por exercerem atividades equivalentes: os núcleos de prática jurídica das faculdades de Direito reconhecida na forma da lei e entidades que prestam assistência jurídica gratuita em convênio com a Defensoria Pública. Vejamos:
“Art. 186. A Defensoria Pública gozará de prazo em dobro para todas as suas manifestações processuais.
(...)
§ 3º O disposto no caput aplica-se aos escritórios de prática jurídica das faculdades de Direito reconhecidas na forma da lei e às entidades que prestam assistência jurídica gratuita em razão de convênios firmados com a Defensoria Pública” (grifo nosso).
Após finalmente o CPC tratar sobre o assunto e especificar os beneficiários do prazo em dobro além da própria Defensoria, o tema não deveria mais suscitar polêmica na doutrina e na jurisprudência. O dispositivo é claro ao conceder o mencionado benefício a todos os núcleos de prática jurídica de faculdades de Direito reconhecidas e às entidades que prestam assistência jurídica gratuita em razão de convênios com a Defensoria, sem particularizar qualquer exceção ou diferenciação entre ente público ou privado dentro das duas possibilidades.
Contudo, não é o que vem ocorrendo na prática. O que deveria ser entendimento pacífico, por simples interpretação literal do dispositivo, ainda é objeto de intensas divergências jurisprudenciais dentro do próprio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO DE COBRANÇA – AGRAVANTE REPRESENTADO POR NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA DE ENTIDADE PARTICULAR DE ENSINO SUPERIOR – PRAZO EM DOBRO – POSSIBILIDADE – APLICAÇÃO DO ART. 186, § 3º, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. – DECISÃO REFORMADA – RECURSO PROVIDO.” (TJSP; Agravo de Instrumento 2267183-09.2019.8.26.0000; Relator (a): Eduardo Siqueira; Órgão Julgador: 38ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional XI - Pinheiros - 4ª Vara Cível; Data do Julgamento: 12/03/2020; Data de Registro: 12/03/2020)
“LOCAÇÃO – Despejo por falta de pagamento e cobrança – Pretensões julgadas procedentes – Advogado não pertencente aos quadros da Defensoria Pública – Inaplicabilidade do prazo em dobro previsto no artigo 186, § 3º, do NCPC – Precedentes do STJ – Revelia reconhecida com acerto – Inadimplemento incontroverso – Retomada autorizada pelo artigo 9º, III, da Lei do Inquilinato – Encargos sucumbenciais corretamente distribuídos – Verba honorária fixada em R$ 1.000,00 que não comporta redução – Verba honorária advocatícia majorada para R$ 1.200,00, a termo do disposto no artigo 85, parágrafo 11, do NCPC – Apelação não provida.” (TJSP; Apelação Cível 1000190-64.2018.8.26.0664; Relator (a): Sá Duarte; Órgão Julgador: 33ª Câmara de Direito Privado; Foro de Votuporanga - 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 06/07/2020; Data de Registro: 06/07/2020)
Por sua vez, o STJ continua sistematicamente negando a prerrogativa aos núcleos de prática jurídica mantidos por universidades particulares, ainda que em convênio com a DPE e preenchendo duplamente os requisitos previstos no art. 186, §3º, do CPC:
“AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. INSURGÊNCIA INTERPOSTA APÓS O LAPSO DE QUINZE DIAS. CONTAGEM DO PRAZO EM DIAS ÚTEIS. INAPLICABILIDADE DA REGRA PREVISTA NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. PRAZO EM DOBRO. NÚCLEOS DE PRÁTICA JURÍDICA DE INSTITUIÇÃO DE ENSINO PRIVADA. IMPOSSIBILIDADE. INTEMPESTIVIDADE. REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. É intempestivo o agravo em recurso especial interposto após o decurso do prazo de 15 (quinze) dias, nos termos do art. 994, VI, c/c o art. 1.003, § 5º, e art. 1.042, todos do CPC, c/c o art. 3º do CPP. 2. Para valer-se da prerrogativa da contagem de prazos em dobro, deve, o advogado, integrar o quadro da assistência judiciária organizado e mantido pelo Estado, não se aplicando tal benesse aos defensores dativos, aos núcleos de prática jurídica pertencentes às universidades particulares e ainda, aos institutos de direito de defesa. 3. No caso, a parte teve ciência da decisão que não admitiu o recurso especial em 8.10.2019, iniciando-se o prazo recursal em 11.11.2019, primeiro dia útil subsequente, e o agravo foi interposto apenas em 10.12.2019, portanto, fora do prazo legal. 4. Agravo regimental a que se nega provimento.” (AgRg no AREsp 1662910/DF, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 23/06/2020, DJe 04/08/2020) (grifo nosso)
Como observado, o argumento para a negativa se manteve o mesmo de outrora: entendem os Ministros que haveria uma distinção pela lei entre entidades públicas e privadas, e que somente as públicas fariam as vezes da Defensoria. Consequentemente, só estas fariam jus ao prazo dobrado.
Perceptível também, pela leitura completa dos julgados, que os magistrados pouco adentram na discussão sobre o motivo da existência do prazo em dobro aos defensores e o porquê os entes privados não fariam jus a ele. A discussão cinge-se meramente a respeito da natureza jurídica do ente que presta o serviço de assistência jurídica gratuita.
Com efeito, o posicionamento do STJ supramencionado e ainda de parte do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo quanto à prerrogativa do prazo em dobro não coaduna com a redação literal do dispositivo 186, §3º, do CPC, tampouco pode sobreviver a uma interpretação teleológica da norma. Há que ser perquirido o motivo da existência do prazo em dobro na legislação e o porquê de sua identificação também no caso da prestação de serviços por entidades particulares.
4. O PRAZO EM DOBRO E O ACESSO À JUSTIÇA PELA POPULAÇÃO HIPOSSUFICIENTE ASSISTIDA POR ENTIDADES PRIVADAS DISPOSTAS NO ART. 186, §3º, DO CPC
Como já mencionado, o artigo em nenhum momento realiza qualquer tipo de diferenciação entre entidades de caráter público ou privado. Não contém as expressões “faculdades públicas de direito” ou ainda “entidades mantidas pelo Estado”, como muitas vezes entendem os tribunais estaduais e o STJ.
Tal intepretação restritiva dada pelo STJ modifica substancialmente o significado da norma, criando requisitos inexistentes no NCPC. Quisesse o legislador conceder a prerrogativa somente a entes públicos, certamente haveria introduzido tal especificação. No entanto, não há qualquer palavra ou expressão que possa conduzir a tal conclusão.
Portanto, afirmar que o dispositivo permite o prazo dobrado somente a entes públicos é, na verdade, realizar interpretação contra legem.
Muito além da questão meramente literal do texto legal, cabe ainda uma reflexão acerca do porquê o NCPC positivou o conteúdo do art. 186, §3º, e o porquê tal prerrogativa não se limita apenas a faculdades públicas de Direito ou entidades assistenciais mantidas pelo Estado, devendo ser aplicada a todas elas, sem exceção.
De plano, pode-se afirmar que os reiterados pedidos de prazo em dobro por parte dessas entidades, inclusive particulares, não se mostram um simples “capricho” ou intenção de obter privilégio processual indevido, mas possuem motivos bem delineados.
Tais motivos devem ser analisados sob dois prismas: 1) do próprio funcionamento, logística de atendimento e estrutura das entidades assistenciais em convênio com a Defensoria Pública e núcleos de prática jurídica; e 2) dos interesses dos usuários dos serviços de assistência jurídica gratuita.
Quanto ao primeiro, é importante esclarecer que a estrutura organizacional das entidades conveniadas não é tão diferente da Defensoria, contando com as mesmas dificuldades enfrentadas pela instituição pública. Ou seja, altíssimo número de processos para um quadro diminuto de profissionais, que devem fazer atendimento dos usuários, comparecer às audiências e elaborar as peças processuais.
É necessário relembrar que, em geral, tais convênios transferem centenas ou milhares de processos, tornando a logística de atendimento dos usuários diferente de um atendimento convencional por um advogado particular.
Como regra, deve haver atendimentos presenciais pré-agendados para coleta da versão dos fatos do usuário, de documentos, fornecimento de explicações pelo advogado etc., pois não se mostra faticamente viável a comunicação por telefone, e-mail ou aplicativos de celular para atender um número tão elevado de pessoas.
Deve-se considerar ainda que o público alvo são pessoas hipossuficientes, que muitas vezes sequer possuem computador, e-mail, plano de telefonia ou de internet, o que torna a comunicação com o advogado ainda mais árdua.
Por outro lado, as entidades conveniadas recebem remuneração abaixo dos valores de mercado, já que padronizada pela própria Defensoria em virtude de seu orçamento. Ou seja, quanto menor a remuneração, maiores os problemas estruturais e de logística dos conveniados.
Nesse ponto, é importante ainda realizarmos uma distinção entre o convênio feito com as entidades mencionadas no art. 186, §3º, do CPC, e o realizado com a OAB.
Enquanto neste o advogado cuida de processos pontuais repassados pela Defensoria, podendo ainda verter grande parte do seu tempo para cuidar de processos particulares, naquele a instituição exerce, via de regra, exclusivamente a função de patrocínio dos interesses dos hipossuficientes, função esta que deveria competir ao Estado. Deve ainda atingir metas estipuladas pelo convênio, o que não acontece no caso do convênio com a OAB.
Sem prejuízo disso, os núcleos de prática jurídica de faculdades de Direito possuem a função adicional de fornecer orientação de estágio, da prática da advocacia para os estudantes, o que pressupõe que estes também elaborem peças processuais para posterior correção pelos advogados orientadores. Sem dúvida essa função acarreta uma necessidade de prazos mais elásticos e foi uma das razões da inclusão dos núcleos de prática jurídica como beneficiários do prazo em dobro pelo CPC.
Assim, se a prerrogativa do prazo em dobro está diretamente ligada à estrutura ainda precária e incipiente da Defensoria Pública para cuidar dos interesses de grande volume de usuários necessitados e também à logística de atendimento, que requer mais tempo para colheita de informações necessárias ao processo, igualmente as entidades que realizam o mesmo trabalho, possuem demanda de milhares de processos repassados pelo convênio e pouca estrutura, deveriam fazer jus a mesma prerrogativa, visto que inseridas na mesma situação.
Porém, a maior razão para a concessão do prazo em dobro não está na instituição considerada em si mesma, mas sim em relação aos usuários que necessitam do serviço de assistência jurídica gratuita.
Há que se esclarecer que os assistidos por entidades conveniadas, públicas ou privadas, não possuem o livre arbítrio de optar pela Defensoria Pública ou por aquela instituição.
Em realidade, sempre comparecem à Defensoria e posteriormente são reencaminhados para os conveniados, em data pré-determinada pelo ente público. Assim, os usuários não podem comparecer diretamente nestas instituições, sem que haja um ofício de encaminhamento pela própria da Defensoria Pública.
Como então penalizar reflexamente tal usuário hipossuficiente com um prazo menor para os atos do seu processo pelo fato de que o Estado não possui condições de absorver toda a demanda populacional, tendo que delegar tal função a particulares? Ora, não teriam os entes particulares, neste caso aventado, o direito ao prazo em dobro para o benefício da própria pessoa vulnerável, que foi diligente e compareceu à Defensoria para que esta atuasse no seu processo?
Não possui o usuário culpa pela falta de estrutura estatal e existência de um convênio do Estado com núcleos de prática jurídica e outras entidades privadas. Deve ele ter os mesmos benefícios que teria caso fosse atendido diretamente pela Defensoria, e não reencaminhado. Afinal, se houver perda de prazo de uma defesa ou recurso, o maior prejudicado será a própria parte, e não o advogado ou entidade conveniada.
O atual entendimento do STJ gera então uma situação contraditória e desigual. Aquele cidadão hipossuficiente que comparece à Defensoria e tem a “sorte” de não ser reencaminhado para entidade conveniada privada será atendido diretamente e ainda terá os benefícios do prazo em dobro. Já aquele que não tem essa “sorte” será reencaminhado no dia marcado pela própria DP, deverá passar por nova triagem econômico-financeira, certamente perderá dias de prazo e ainda não terá os benefícios do prazo em dobro.
E ainda mais. Existe grande possibilidade de que pessoas inseridas em ambas as situações acima descritas litiguem entre si, gerando-se evidente desequilíbrio processual.
Basta imaginar um caso prático no qual autor e ré litigam pela guarda do filho em uma ação de divórcio. Se ambos não puderem arcar com as custas processuais e honorários advocatícios, procurando a Defensoria Pública, uma das partes será diretamente atendida e terá prazo em dobro. A outra, visando evitar colidência de interesses no patrocínio da causa, será reencaminhada a ente conveniado, público ou privado, perdendo dias de prazo, e terá apenas prazo simples, caso a instituição não seja estatal.
Tal diferenciação não pune os entes privados. Pune, em realidade, o usuário que ali busca amparo, já que a outra parte, que possui exatamente a mesma condição econômico-financeira que a sua, terá mais tempo para produzir provas, elaborar seus argumentos, enriquecer a descrição dos fatos, e isto inegavelmente resvala na confrontação de seus direitos materiais.
Enfim, a diferenciação se mostra verdadeira afronta ao princípio constitucional da isonomia, e tudo isso por uma ineficiência do próprio Estado, que não possui estrutura para fornecer assistência jurídica gratuita prevista na Constituição Federal para toda a população.
Jamais deve ser ignorado que a função de prestar assistência jurídica gratuita é atribuída pela CF ao Estado. Se este não possui condições de fornecer o serviço para todos os hipossuficientes por conta própria e necessita repassar a sua função constitucional a terceiros, devem ser também transmitidos os instrumentos legais disponíveis para a maior efetividade no cumprimento do direito fundamental ao acesso à justiça. E sem dúvida um dos instrumentos é o prazo em dobro.
Caso contrário, estar-se-ia repassando o problema a particulares sem as armas adequadas para enfrentá-lo.
O que se conclui é que, para a concessão do prazo em dobro, não deve ser considerado quem presta o serviço, mas sim como e para quem se presta, já que, repita-se, o benefício não é para o advogado, mas sim para a própria parte hipossuficiente.
5. CONCLUSÃO
O argumento de que somente entidades estatais fariam jus à prerrogativa parte de um princípio equivocado, na medida em que presume que somente entidades estatais teriam dificuldades ou particularidades que ensejariam a necessidade de prazos processuais maiores, quando na verdade tais dificuldades estão ligadas ao trabalho que se faz, e não à natureza jurídica da pessoa que o faz.
Destarte, o que se pode absorver da interpretação do art. 186, §3º, do NCPC é que todos os núcleos de prática jurídica de faculdades de direito e entidades que prestam assistência jurídica gratuita em convênio com a Defensoria Pública, sejam elas públicas ou privadas, possuem a prerrogativa do prazo em dobro, pela função social que desempenham, pela sua estrutura de funcionamento e peculiaridades do trabalho realizado, destacando-se ainda que o artigo não comporta interpretação restritiva.
Especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Advogado e ex-integrante do Núcleo de Prática Jurídica “D. Paulo Evaristo Arns”, da faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DEBIAZZI, Caio. O prazo em dobro como instrumento de acesso à Justiça e a necessidade de seu reconhecimento aos entes privados dispostos no art. 186, §3º, do CPC Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 jan 2021, 04:47. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56118/o-prazo-em-dobro-como-instrumento-de-acesso-justia-e-a-necessidade-de-seu-reconhecimento-aos-entes-privados-dispostos-no-art-186-3-do-cpc. Acesso em: 23 dez 2024.
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