RESUMO: O código civil estabelece a prescrição como causa extintiva de direitos não potestativos. Entre suas características, encontra-se a previsão legal (art. 197, I, do Código Civil) de sua suspensão entre cônjuges, relativamente aos direitos de um em face do outro. Tal previsão legal tem origem moralista, com a finalidade de evitar a ocorrência de conflitos judiciais entre os cônjuges, e extingue-se, via de regra, com a extinção da sociedade conjugal. Entre as causas extintivas, o art. 1.571 do Código Civil prevê o divórcio e a separação judicial, mas não a separação extrajudicial. Não obstante, o Superior Tribunal de Justiça, em julgado recente, considerou possível o reconhecimento da extinção da sociedade conjugal, e consequente prescrição, entre direitos envolvendo pessoas que se encontravam extrajudicialmente separadas há mais de 30 anos. Concluiu-se pelo acerto da corte, de maneira que sua decisão vai ao encontro da finalidade do instituto legal e da doutrina que diferencia o instituto da sociedade conjugal do vínculo conjugal. Foi feita a ressalva, entretanto, de que tal interpretação deve ser sempre realizada excepcionalmente, segundo o caso concreto, apenas se demonstrando possível quando incontestável que o direito, indubitavelmente, encontrar-se prescrito em razão do longo prazo de duração da separação extrajudicial.
PALAVRAS-CHAVE: Prazo prescricional entre cônjuges. Separação de Fato. Sociedade Conjugal.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Da prescrição. 2.1 Da suspensão da prescrição entre cônjuges. 3. Da extinção da sociedade conjugal pela separação de fato. 4. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como objetivo analisar a possibilidade de que a suspensão do prazo prescricional, prevista no art. 197, inciso I, do Código Civil (CC), seja removida em razão da separação extrajudicial (separação de fato) dos cônjuges. Para tanto, primeiramente se explicará, brevemente, em que se consiste o instituto da prescrição, oportunidade em que se mencionará as causas legais de suspensão previstas no CC.
Após, será explicado que a referida suspensão apenas termina em razão da extinção da sociedade conjugal, nos termos do que impõe o art. 1.571 do CC. Adiante, será analisada a possibilidade de que a separação de fato, longínqua e definitiva, ponha fim à sociedade conjugal, citando-se julgado do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em que tal entendimento foi pronunciado.
Por fim, será demonstrado que a interpretação feita pelo STJ é a mais correta, considerando-se a mens legis da causa suspensiva e a doutrina mais hodierna, que distingue os institutos do vínculo conjugal e da sociedade conjugal. Não obstante, far-se-á ressalva de que a admissibilidade de que a separação de fato ponha fim à sociedade conjugal deve ser feita excepcionalmente, apenas nos casos concretos em que ficar evidenciada a perda, definitiva, dos deveres inerentes ao matrimônio entre os cônjuges. Ademais, o reconhecimento da prescrição também deverá ocorrer exclusivamente quando, em razão de elevado período de tempo, for incontestável.
2. DA PRESCRIÇÃO.
Vigora na Constituição Federal (CF) o princípio da segurança jurídica, previsto no art. 5º, inciso XXXVI:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; (BRASIL,2020).
Decorre de tal princípio a noção de que, via de regra, os direitos devam ser exercidos em algum prazo, sob pena de se postergar para a eternidade a possibilidade de que um particular ingresse em face de outro pela violação de determinado direito. Nesse sentido, esclarece TARTUCE (2015):
É antiga a máxima jurídica segundo a qual o exercício de um direito não pode ficar pendente de forma indefinida no tempo. O titular deve exercê-lo dentro de um determinado prazo, pois o direito não socorre aqueles que dormem. Com fundamento na pacificação social, na certeza e na segurança da ordem jurídica é que surge a matéria da prescrição e da decadência. Pode-se ainda afirmar que a prescrição e a decadência estão fundadas em uma espécie de boa-fé do próprio legislador ou do sistema jurídico. (TARTUCE, 2017, p. 229).
Existem, no ordenamento jurídico brasileiro, duas espécies de institutos que permitem, em razão da passagem do tempo, impedir a invocação de determinado direito. São elas a prescrição e a decadência.
Permanece problemática, na doutrina, a distinção entre um e outro instituto, uma vez que o CC, embora separe seus efeitos e características, optou por não os diferenciar conceitualmente. Hodiernamente, entretanto, permanece a noção de que, enquanto a prescrição está ligada a direitos potestativos, a prescrição se relaciona com o direito de se exigir, do poder judiciário, a produção de uma sentença condenatória.
Nesse sentido, coloca TARTUCE (2015):
(...) Desse modo, a prescrição mantém relação com deveres, obrigações e com a responsabilidade decorrente da inobservância das regras ditadas pelas partes ou pela ordem jurídica.
Por outro lado, a decadência está associada a direitos potestativos e às ações constitutivas, sejam elas positivas ou negativas. As ações anulatórias de atos e negócios jurídicos, logicamente, têm essa última natureza. A decadência, portanto, tem relação com um estado de sujeição, próprio dos direitos potestativos. Didaticamente, é certo que o direito potestativo, por se contrapor a um estado de sujeição, é aquele que encurrala a outra parte, que não tem saída. (TARTUCE, 2017, p. 230).
Em outras palavras: para se distinguir se determinado direito está regulado pela prescrição ou pela decadência, deve-se, em regra, observar o que se busca obter com sua invocação. Assim, se o agente busca obter a condenação da parte contrária em fazer algo (pagar, dar, fazer, etc.), encontra-se diante de um prazo de prescrição. Por outro lado, se o agente pretende utilizar do seu direito para impor algo unilateralmente (anular, demandar), trata-se de direito submetido a prazo decadencial.
Há, ainda, os direitos potestativos absolutos, que buscam apenas a declaração de determinada situação jurídica. Nota-se que estes não dependem de nenhum fator externo para que se verifiquem, uma vez que uma declaração é meramente a constatação de uma realidade fática. Por esse motivo, direitos meramente declaratórios não se submetem a prazo de prescrição, nem de decadência, podendo ser invocados a qualquer tempo.
Sobre o tema, esclarece TARTUCE (2015):
Por fim, as ações meramente declaratórias, como aquelas que buscam a nulidade absoluta de um negócio, são imprescritíveis, ou melhor tecnicamente, não estão sujeitas à prescrição ou a decadência. A imprescritibilidade dessa ação específica está também justificada porque a nulidade absoluta envolve ordem pública, não convalescendo pelo decurso do tempo (art. 169 do CC). (TARTUCE, 2017, p. 230).
Exemplo de direito imprescritível previsto em lei é o direito de se declarar a nulidade de determinado negócio jurídico, como estabelece o art. 169 do CC:
Art. 169. O negócio jurídico nulo não é suscetível de confirmação, nem convalesce pelo decurso do tempo. (BRASIL,2020).
Após o exposto, cumpre esboçar, sucintamente, as principais características dos prazos prescricionais. Primeiramente, uma vez que se relacionam a direitos disponíveis, podem ser renunciados, tacitamente ou expressamente, pela parte a quem lhes aproveita, conforme dispõe o art. 191 do CC:
Art. 191. A renúncia da prescrição pode ser expressa ou tácita, e só valerá, sendo feita, sem prejuízo de terceiro, depois que a prescrição se consumar; tácita é a renúncia quando se presume de fatos do interessado, incompatíveis com a prescrição. (BRASIL,2020).
Por outro lado, uma vez que decorrem exclusivamente da lei, não podem ser alterados pela vontade das partes:
Art. 192. Os prazos de prescrição não podem ser alterados por acordo das partes. (BRASIL,2020).
Em outra esteira, existem fenômenos processuais e extraprocessuais que podem causar a paralisação temporária da contagem do prazo prescricional (suspensão da prescrição) ou o seu reinício forçado desde o começo (interrupção da prescrição). As causas suspensivas e interruptivas da prescrição se encontram, respectivamente, nos artigos 197 a 199, e no artigo 202, todos do CC:
Art. 197. Não corre a prescrição:
I - entre os cônjuges, na constância da sociedade conjugal;
II - entre ascendentes e descendentes, durante o poder familiar;
III - entre tutelados ou curatelados e seus tutores ou curadores, durante a tutela ou curatela.
Art. 198. Também não corre a prescrição:
I - contra os incapazes de que trata o art. 3 o ;
II - contra os ausentes do País em serviço público da União, dos Estados ou dos Municípios;
III - contra os que se acharem servindo nas Forças Armadas, em tempo de guerra.
Art. 199. Não corre igualmente a prescrição:
I - pendendo condição suspensiva;
II - não estando vencido o prazo;
III - pendendo ação de evicção.
Art. 202. A interrupção da prescrição, que somente poderá ocorrer uma vez, dar-se-á:
I - por despacho do juiz, mesmo incompetente, que ordenar a citação, se o interessado a promover no prazo e na forma da lei processual;
II - por protesto, nas condições do inciso antecedente;
III - por protesto cambial;
IV - pela apresentação do título de crédito em juízo de inventário ou em concurso de credores;
V - por qualquer ato judicial que constitua em mora o devedor;
VI - por qualquer ato inequívoco, ainda que extrajudicial, que importe reconhecimento do direito pelo devedor.
Parágrafo único. A prescrição interrompida recomeça a correr da data do ato que a interrompeu, ou do último ato do processo para a interromper. (BRASIL,2020).
Será objeto em particular desse trabalho a hipótese de suspensão do prazo prescricional prevista no art. 197, inciso I, isto é, a suspensão do prazo prescricional entre cônjuges. Por esse motivo, passa-se expor as minúcias da referida causa suspensiva.
2.1 Da suspensão do prazo prescricional entre cônjuges.
Em síntese, o que dispõe o referido dispositivo legal é que não correrão, entre as partes de uma união conjugal, os prazos prescricionais dos direitos que, por ventura, um venha a ter em face do outro. A finalidade de tal proteção, que antecede ao Código Civil de 2002, é de ordem moral e social, na medida em que evita a criação de atritos na unidade familiar. Em outras palavras, o legislador buscou desestimular que os cônjuges propusessem demandas judiciais um contra o outro durante a constância da relação, permitindo-lhes, com segurança jurídica, postergar eventual ação judicial apenas para o momento em que a sociedade conjugal já não mais existisse.
Sobre o tema, já expunha LEAL (1978):
A prescrição faz com que as ações sejam intentadas, para não se extinguirem pelo decurso do tempo. Criar, pois, a prescrição entre cônjuges, na constância do matrimônio, seria fomentar a dissensão no seio familiar, arrastando os cônjuges a agirem judicialmente, um contra o outro, a fim de não deixarem periclitar o seu direito, armado da ação. Mas a lei tem interesse, de ordem social, em que a harmonia conjugal não se conturbe pelas dissensões entre esposos, porque a família é a célula-mater da sociedade, que se constitui pela agremiação das famílias. Daí procurar o legislador concorrer para a estabilidade dessa harmonia, permitindo que o direito dos cônjuges, entre si, possa persistir, independentemente do exercício da ação, embora nascida, imunizando-o contra os efeitos extintivos da prescrição. (LEAL, 1978, p. 138 a 139).
Após o exposto, cumpre citar em quais hipóteses tal suspensão de prazo deixa de existir. Assim, parece evidente que, uma vez que decorra do início de uma sociedade conjugal, a extinção da causa legal suspensiva se opera no momento em que a sociedade conjugal termina.
É o art. 1.571 do CC que prevê as causas extintivas da sociedade conjugal:
Art. 1.571. A sociedade conjugal termina:
I - pela morte de um dos cônjuges;
II - pela nulidade ou anulação do casamento;
III - pela separação judicial;
IV - pelo divórcio. (BRASIL,2020).
Assim, ocorrendo qualquer uma das hipóteses do art. 1.571, extingue-se a sociedade conjugal, o que implica, de plano e sem qualquer necessidade de pronunciamento judicial, a retomada do prazo prescricional dos direitos existentes entre os cônjuges. Nota-se, contudo, que o art. 1.571 não incluiu, no rol de causas extintivas da sociedade conjugal, a separação de fato.
Resumidamente, distingue-se a separação de fato da separação judicial na medida que, enquanto a última advém de uma decisão judicial, a primeira decorre tão somente das circunstâncias fáticas, ou seja, do rompimento prático da convivência. Nas palavras de TARTUCE (2015):
A separação de fato somente ocorre no plano físico ou afetivo, não havendo uma formalização do distanciamento dos cônjuges. (TARTUCE, 2015, p. 932).
Cumpre salientar que, após a Emenda Constitucional nº 66/2010 (Emenda do Divórcio), o instituto da separação conjugal (seja judicial ou extrajudicial) perdeu relativa relevância. Isso porque a referida emenda tornou possível que a dissolução do casamento ocorresse por meio de divórcio direto, o que tornou mais rara a ocorrência de pedidos de separação judicial.
É o que esclarece TARTUCE (2015):
No estudo da dissolução da sociedade conjugal, era comum a diferenciação entre a separação jurídica ou de direito – a englobar a separação judicial e a extrajudicial – e o divórcio. A separação jurídica colocava fim somente à sociedade conjugal, persistindo o casamento, enquanto que o divórcio findaria o casamento e, consequentemente, a sociedade conjugal. Havia, portanto, um sistema bifásico de extinção dos institutos, o que foi banido com a Emenda do Divórcio, de acordo com a corrente doutrinária e jurisprudencial seguida por este autor. (TARTUCE, 2015, p. 931).
Apesar dessa relativa perda de abrangência jurídica, os dois institutos (separação judicial e de fato) permanecem existentes. Nesse contexto, cabe identificar se há diferença nos seus efeitos no que tange à extinção da sociedade conjugal e a consequente remoção da causa de suspensão do prazo prescricional entre cônjuges.
3. DA EXTINÇÃO DA SOCIEDADE CONJUGAL PELA SEPARAÇÃO DE FATO.
Em uma leitura literal, o art. 1.571 do CC estabelece apenas a separação judicial como uma causa extintiva da sociedade conjugal. Interpretando-o restritivamente, seria extraída a noção de que a separação extrajudicial (separação de fato), em si, não extinguiria a sociedade conjugal.
Por essa razão, enquanto os indivíduos envolvidos no matrimônio não formalizassem judicialmente sua separação, ou a convertessem em divórcio, permaneceriam suspensos os prazos prescricionais dos direitos que um possuiria em face do outro. Nota-se que, por essa interpretação, a suspensão do prazo prescricional se manteria indefinidamente, mesmo que a separação de fato durasse dezenas de anos ou a integridade da vida dos cônjuges.
Todavia, quando chamado a decidir sobre o tema, em julgado recente, o STJ, em caso concreto, considerou possível que a separação de fato seja causa extintiva da sociedade conjugal:
CIVIL. RECURSO ESPECIAL. RECURSO ESPECIAL INTERPOSTO SOB A ÉGIDE DO NCPC. FAMÍLIA. DIVÓRCIO. PRETENSÃO DE PARTILHA DE BENS COMUNS APÓS 30 (TRINTA) ANOS DA SEPARAÇÃO DE FATO. PRESCRIÇÃO. REGRA DO ART.
197, I, DO CC/02. OCORRÊNCIA DA PRESCRIÇÃO. EQUIPARAÇÃO DOS EFEITOS DA SEPARAÇÃO JUDICIAL COM A DE FATO. RECURSO ESPECIAL NÃO PROVIDO.
1. Aplicabilidade das disposições do NCPC, no que se refere aos requisitos de admissibilidade do recurso especial ao caso concreto ante os termos do Enunciado Administrativo nº 3, aprovado pelo Plenário do STJ na sessão de 9/3/2016: Aos recursos interpostos com fundamento no CPC/15 (relativos a decisões publicadas a partir de 18 de março de 2016) serão exigidos os requisitos de admissibilidade na forma do novo CPC.
2. Na linha da doutrina especializada, razões de ordem moral ensejam o impedimento da fluência do curso do prazo prescricional na vigência da sociedade conjugal (art. 197, I, do CC/02), cuja finalidade consistiria na preservação da harmonia e da estabilidade do matrimônio.
3. Tanto a separação judicial (negócio jurídico), como a separação de fato (fato jurídico), comprovadas por prazo razoável, produzem o efeito de pôr termo aos deveres de coabitação, de fidelidade recíproca e ao regime matrimonial de bens (elementos objetivos), e revelam a vontade de dar por encerrada a sociedade conjugal (elemento subjetivo).
3.1. Não subsistindo a finalidade de preservação da entidade familiar e do respectivo patrimônio comum, não há óbice em considerar passível de término a sociedade de fato e a sociedade conjugal. Por conseguinte, não há empecilho à fluência da prescrição nas relações com tais coloridos jurídicos.
4. Por isso, a pretensão de partilha de bem comum após mais de 30 (trinta) anos da separação de fato e da partilha amigável dos bens comuns do ex-casal está fulminada pela prescrição.
5. Recurso especial não provido.
(REsp 1660947/TO, Rel. Ministro MOURA RIBEIRO, TERCEIRA TURMA, julgado em 05/11/2019, DJe 07/11/2019).
Em síntese, o caso envolvia dois indivíduos casados sobre o regime de separação total de bens que se separaram extrajudicialmente (separação de fato) sem realizar a adequada partilha dos seus bens, estipulando apenas, em acordo, que a propriedade do imóvel comum do casal seria entregue ao marido, e que este, em compensação, forneceria outro imóvel à esposa. Passados mais de trinta anos sem que o acordo fosse cumprido, a mulher peticionou na justiça pugnando pela realização da partilha dos bens. O marido alegou, então, que o referido direito de partilha, bem como o direito de exigir o cumprimento do acordo fixado entre eles, estaria prescrito. Em razão disso, a mulher alegou que a prescrição não poderia ocorrer, uma vez que não tinham formalizado sua separação judicial, de modo que o prazo prescricional das obrigações contraídas entre eles estaria suspenso.
Em primeira instância, o juiz de primeiro grau entendeu pela procedência do pedido, acolhendo a interpretação restritiva de que a separação de fato, mesmo que perdure por vários anos, não possuiria o condão de extinguir a sociedade conjugal. Em sede de apelação, o Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins reformou a sentença e considerou prescrita a obrigação de partilha, reconhecendo a possibilidade de que a separação de fato, no caso em tela, tivesse extinguido a sociedade. Posteriormente, o STJ, em julgamento de recurso especial, ratificou o acórdão do tribunal de segunda instância.
Extrai-se do acórdão do STJ que, excepcionalmente, seria possível que uma separação extrajudicial extinguisse a sociedade conjugal, nas hipóteses em que esta perdurasse de forma estável, por um longo período de tempo (trinta anos, no caso). A extinção da sociedade conjugal implicaria o início do prazo prescricional, e, considerando que o maior prazo prescricional previsto na legislação brasileira é de 20 anos, inevitavelmente, já estaria prescrita a pretensão da ex-cônjuge.
Destaca-se que o STJ não dispôs que a separação de fato seria causa extralegal de extinção da sociedade conjugal. Pelo contrário, a referida corte entendeu que o inciso I do art. 1.571 não pode ser interpretado restritivamente, de maneira que, da sua aplicação, concluiria-se a possibilidade de, excepcionalmente, a separação de fato servir como causa extintiva da sociedade conjugal.
Analisando-se o julgado referido, conclui-se pelo seu acerto. Primeiramente, porque a sua interpretação vai ao encontro à razão de ser da existência da própria causa de suspensão do prazo prescricional. Como já explicado no início do presente trabalho, é sabido que a mens legis (a intenção do legislador), ao criar a suspensão do prazo prescricional entre cônjuges, era de ordem moralista e social. Nesse diapasão, a finalidade precípua era de evitar que surgissem atritos jurídicos entre os cônjuges, e que desse conflito pudesse ser prejudicado seu vínculo afetivo e sua lealdade.
Ora, se os cônjuges já se encontram separados há mais de trinta anos e não mantém entre si qualquer espécie de afeto, tendo construído vidas completamente independentes, não há razão de ser para que o instituto se mantenha. Nota-se que o STJ preferiu, portanto, realizar uma interpretação teleológica do art. 197, I, do CC, isto é, em vez de interpretá-lo literalmente, optou-se por uma interpretação que fosse mais coerente com a sua razão de existência.
Nesse diapasão, há doutrina que sustenta a distinção entre vínculo conjugal e sociedade conjugal. Sobre essa perspectiva, enquanto o vínculo conjugal seria a relação jurídica em si, a sociedade conjugal corresponderia aos deveres inerentes de fidelidade, lealdade e de afeto, bem como a todos os direitos inerentes a eles. A extinção da primeira implicaria a da segunda, mas a máxima oposta não seria verdadeira.
A respeito do tema, leciona NADER (2016):
No casamento havemos de distinguir o vínculo matrimonial da chamadasociedade conjugal. O vínculo é a relação jurídica, que se forma com o ato civil, instaura a sociedade conjugal e se apaga com a morte, invalidade do casamento e divórcio. Sociedade conjugal é a comunhão de vida, a convivência a ser pautada pela observância de múltiplos deveres. Quando se extingue o vínculo, ipso facto, extingue-se igualmente a sociedade conjugal, mas a recíproca não é verdadeira. (NADER, 2016, p. 305).
O entendimento acima esposado vai ao encontro do julgado do STJ. Isso porque, em uma separação de fato que se prolongue por período de tempo excessivo, como no caso em tela, resta evidente que já não existem mais nenhum dos deveres inerentes à união matrimonial, implicando extinção da sociedade conjugal, e, por corolário, o fim da suspensão legal dos prazos processuais.
Ressalva-se, contudo, que a admissibilidade de extinção da sociedade conjugal em consequência da separação de fato deve ser feita apenas excepcionalmente. Conforme exposto, há distinção efetiva entre a separação fática, que frequentemente ocorre sem que isso implique fim ao matrimônio, e a separação judicial, que põe término definitivo a ele. Considerar que a separação de fato possuiria, sempre, os mesmos efeitos da separação judicial, seria uma perversão dos institutos, capaz de gerar catastróficas consequências jurídicas.
Não obstante, em casos específicos, em que o elevado decurso de tempo, somado a outras variáveis, evidencie a ausência completa dos deveres conjugais (sociedade conjugal), pode a separação extrajudicial ser tida como causa extintiva da sociedade conjugal. Nesses casos, correrá normalmente a prescrição entre os cônjuges. Entretanto, uma vez que não se é possível precisar o exato dia em que essa separação se torna definitiva, a abordagem da prescrição deve ser feita de forma cautelosa, de maneira que, idealmente, apenas seria reconhecível quando o transcurso do tempo for suficientemente elevado para que se tenha absoluta certeza de que, inevitavelmente, encontra-se prescrito o direito.
4. CONCLUSÃO.
O presente artigo conclui que há, no ordenamento jurídico brasileiro, dois institutos capazes de impedir a invocação de determinado direito em razão do decurso do tempo: a prescrição e a decadência. Esmiuçadas as características da primeira, nota-se que a o Código Civil estabelece hipóteses de sua suspensão, sendo uma delas a união matrimonial, relativa aos direitos de um cônjuge em face do outro.
Essa suspensão perdura, segundo a lei, enquanto durar a união matrimonial, apenas se extinguindo com a morte de um dos cônjuges, pela anulação ou decretação de nulidade do casamento ou pela ocorrência de separação judicial ou de divórcio (art. 1.571 do CC). Pela literalidade da lei, a separação de fato não seria causa extintiva da sociedade conjugal, de maneira que o prazo prescricional das obrigações recíprocas permaneceria suspenso, indefinidamente, enquanto os indivíduos permanecessem separados apenas extrajudicialmente.
Apesar do exposto, apresentou-se julgado do STJ em que foi reconhecida, excepcionalmente, a extinção da sociedade conjugal em face de uma separação de fato que perdurou por mais de trinta anos. Concluiu-se que o referido julgado está correto, uma vez que se revela condizente com a finalidade da norma que estabelece a suspensão do prazo prescricional, que é evitar a criação de conflitos entre os cônjuges e respeitar os deveres inerentes ao casamento, além de estar em acordo com a parcela da doutrina que diferencia vínculo conjugal e sociedade conjugal.
Ressalvou-se, ainda, que, embora seja possível que uma separação de fato seja interpretada como extintiva de uma sociedade conjugal, essa regra não pode ser absoluta, sob pena de confundir os institutos da separação judicial e extrajudicial. Assim, apenas excepcionalmente, e concretamente, poderia se admitir essa hipótese. Da mesma forma a prescrição em decorrência de separação de fato apenas poderia ser reconhecida quando, após elevados períodos de tempo, restar incontestável que determinado direito encontra-se prescrito.
Espera-se que futuros estudos sejam realizados sobre o tema, precipuamente para diferenciar os institutos do vínculo conjugal e da sociedade conjugal. Igualmente, seria interessante se fossem desenvolvidas diretrizes mais consolidadas para o reconhecimento de eventual prescrição entre cônjuges separados extrajudicialmente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Lei nº 10.046 de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). Brasília, DF: Presidência da República.
Disponível em:
< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm>. Acesso em: 20/08/2020.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 05 de outubro de 1988. Brasília, DF: Congresso Nacional.
Disponível em:
< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 20/08/2020.
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. A separação de fato por tempo razoável mitiga a regra do art. 197, I, do Código Civil. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/876e8108f87eb61877c6263228b67256>. Acesso em: 04/11/2020.
FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 09. ed. – Salvador/BA: Editora Juspodium, 2018.
LEAL, Antônio Luís da Câmara. Da Prescrição e da Decadência – Teoria Geral do Direito Civil. 03. ed. Atualizada por Aguiar Dias – Rio de Janeiro/RJ: Editora Forense, 1978.
NADER, Paulo. Curso de direito civi: vol. 5: direito de família. 07. ed. – Rio de Janeiro/RJ: Editora Forense, 2016
TARTUCE, Flávio. Manual de Direito de direito civil: volume único. 05. ed. – São Paulo/SP: Editora Método, 2015.
Pós-graduado em Ciências Criminais pela Faculdade Damásio, graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), advogado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: AMARAL, Guilherme Francisco Souza. A fluência do prazo prescricional entre cônjuges em decorrência de separação extrajudicial Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 fev 2021, 04:41. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56143/a-fluncia-do-prazo-prescricional-entre-cnjuges-em-decorrncia-de-separao-extrajudicial. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: MARIANA BRITO CASTELO BRANCO
Por: Jorge Hilton Vieira Lima
Por: isabella maria rabelo gontijo
Por: Sandra Karla Silva de Castro
Por: MARIA CLARA MADUREIRO QUEIROZ NETO
Precisa estar logado para fazer comentários.