RESUMO: A proposta do presente trabalho é, a partir da análise histórica do conceito de processo, apontar aspectos da Teoria Discursiva do Direito e da Democracia, de Jürgen Habermas, que possam contribuir para uma definição de processo adequada ao paradigma do Estado Democrático de Direito.
PALAVRAS-CHAVE: Teoria Discursiva do Direito. Teoria do Processo. Estado Democrático de Direito.
ABSTRACT: The proposal of the present work is, from the historical analysis of the concept of process, to point out aspects of the Discourse Theory of Law and Democracy, by Jürgen Habermas, that can contribute to a definition of jurisdictional process appropriate to the paradigm of the Democratic State of Law.
KEYWORDS: Discourse Theory of Law. Jurisdictional process. Democratic State of Law.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Processo e Estado Liberal. 3. Processo e Estado de Bem-Estar Social. 4. Processo e Estado Democrático de Direito. 4.1. A Teoria Discursiva do Direito e o processo jurisdictional. 4.2. O processo como procedimento em contraditório. 5. Conclusão. 6. Referências.
1. INTRODUÇÃO
O estudo do direito processual a partir do resgate histórico do conceito de processo permite identificar a evolução deste na modernidade. Para tanto, justifica-se o emprego da noção de paradigma, nos moldes da filosofia da ciência de Thomas Kuhn (CARVALHO NETTO, 2004, p. 29), na medida em que os paradigmas “informam e conformam a aplicação do Direito” (OLIVEIRA, 2016, p. 116). Segundo Habermas (1997b, p. 181):
Os paradigmas do direito permitem diagnosticar a situação e servem de guias para a ação. Eles iluminam o horizonte de determinada sociedade, tendo em vista a realização do sistema de direitos. Nesta medida, sua função primordial consiste em abrir as portas para o mundo. Paradigmas abrem perspectivas de interpretação nas quais é possível referir os princípios do Estado de direito ao contexto da sociedade como um todo. Elas lançam luz sobre as restrições e as possibilidades para a realização de direitos fundamentais, os quais, enquanto princípios não saturados, necessitam de uma interpretação e de uma estruturação ulterior.
Nesta perspectiva, apresentaremos as características do processo jurisdicional nos três paradigmas do Estado moderno, quais sejam, Estado Liberal, Estado de Bem-Estar Social e Estado Democrático de Direito. Em seguida, trataremos dos aspectos da Teoria Discursiva do Direito e da Democracia, de Jürgen Habermas, relacionados ao tema, a fim de verificar qual o modelo processual a ela se revela adequada.
2. PROCESSO E ESTADO LIBERAL
O paradigma do Estado Liberal, que se seguiu às revoluções políticas dos séculos XVII e XVIII, caracteriza-se pela prevalência de uma percepção personalista e patrimonialista dos direitos, amparada na ideia de igualdade formal e na postura não intervencionista do Estado, que passou a ter seus poderes limitados em prol da liberdade dos indivíduos. No Direito, refletindo essas ideias, predominava o positivismo exegético, marcado pela pretensão de completude da legislação (com a elaboração de diversos códigos no século XIX) e pela máxima restrição da atividade interpretativa do julgador (“juiz boca da lei”).
O liberalismo processual, seguindo a linha do abstencionismo estatal, tem como características a passividade do juiz (princípio da inércia) e a ampla liberdade das partes, inclusive quanto à tramitação do processo[1]. O processo civil, nesse contexto, era visto como “coisa das partes”, sendo mero instrumento dos cidadãos para resolução de conflitos, e o processo penal como “luta entre as partes” (NUNES, BAHIA, PEDRON, 2020, p. 84-85). No plano teórico, o processo era definido como contrato ou quase-contrato, ou seja, sua natureza jurídica era determinada com base em categorias do direito privado (CINTRA, GRINOVER, DINAMARCO, 2015, p. 319-320).
O processo, em tais moldes, revela-se custoso e marcado pela excessiva morosidade, de modo que o acesso à justiça era viável apenas para pequena parcela da população e para a tutela de poucas situações jurídicas, sobretudo relacionadas ao direito à propriedade (TARUFFO, MITIDIERO, 2018, p. 171-172).
3. PROCESSO E ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL
A partir do final do século XIX e das primeiras décadas do século XX, ocorre a transição do Estado Liberal para o Estado de Bem-Estar Social, sobretudo em decorrência da luta pela concretização dos direitos sociais negligenciados pelo liberalismo, que ampliou sobremaneira a desigualdade econômica ao possibilitar o acúmulo de capital e promover maior exploração do homem pelo homem (CARVALHO NETTO, 2004, p. 34). No plano normativo, a mudança de paradigma é notada na constitucionalização de direitos sociais, tanto na Constituição mexicana, de 1917, como na Constituição alemã (de Weimar), em 1919[2].
Há um reforço da atuação estatal, que não mais pode se limitar à postura não intervencionista[3], de respeito aos “direitos da liberdade” (civis e políticos), exigindo-se do Estado prestações materiais para a efetiva concretização de direitos, abandonando-se a concepção meramente formal de igualdade (BONAVIDES, 2009, p. 563-564). Nesse contexto, “todo o Direito é público, imposição de um Estado colocado acima da sociedade, uma sociedade amorfa, carente de acesso à saúde ou à educação, massa pronta a ser moldada pelo Leviatã onisciente sobre o qual recai essa imensa tarefa” (CARVALHO NETTO, 2004, p. 35).
No âmbito processual, surgem correntes doutrinárias que defendem uma ampliação do papel do juiz no processo, a partir da perspectiva de que o direito é instrumento de transformação social (NUNES, BAHIA, PEDRON, 2020, p. 87).
Neste sentido, destaca-se o trabalho de Anton Menger, que, em seu obra “O direito civil e os pobres”, de 1890, atribui ao juiz a tarefa de compensar as desigualdades materiais entre as partes, atuando, inclusive, como verdadeiro representante das classes mais pobres (NUNES, BAHIA, PEDRON, 2020, p. 87-88). A partir das ideias de Menger, Franz Klein colaborou para a elaboração do Código de Processo Civil do Império Austro-Húngaro, de 1895, que remodelou o papel das partes e do juiz no processo, atribuindo-se a este último não apenas a tarefa de promover o equilíbrio entre as partes, mas também de assumir a direção do processo (NUNES, BAHIA, PEDRON, 2020, p. 88-90).
No modelo social, o processo passa a ter finalidades metajurídicas (políticas, econômicas e sociais) sendo definido por Klein como “instituição estatal de bem-estar social”, voltada para a “busca da pacificação social” (NUNES, BAHIA, PEDRON, 2020, p. 90)[4].
Atribui-se a Oskar von Bülow, a partir de sua “Teoria das exceções e dos pressupostos processuais” (1868), a autonomia científica do Direito Processual. Ele define o processo como relação jurídica de direito público[5] (distinta da relação de direito material), que se desenvolve progressivamente entre o juiz e as partes, as quais devem cooperar com o Estado-juiz e a ele se sujeitar (NUNES, BAHIA, PEDRON, 2020, p. 237).
A tese de Bülow, coerente com o intervencionismo estatal próprio do Estado de Bem-Estar Social, confere maiores poderes ao juiz, não apenas no que diz respeito à condução do processo, mas também por lhe atribuir ampla liberdade interpretativa. Conforme a lição de Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira, enquanto no paradigma liberal a “atividade do magistrado é mecânica” e “o ato de decisão é a realização de um raciocínio silogístico”, na concepção social o juiz exerce verdadeira atividade de produção normativa (2016, p. 112-113). Neste sentido, afirma o citado autor (2016, p. 113):
A essa compreensão do liberal se contrapõe, em princípio, as visões típicas do paradigma do Estado Social. Ao negarem o que seria um caráter meramente cognitivo da aplicação jurisdicional, liberta-se o magistrado para a discricionariedade decisória. E, aqui, a linguagem das cláusulas gerais ou dos conceitos jurídicos indeterminados pode apenas reforçar essa perspectiva. As teorias da interpretação de Kelsen (1987, p. 363-371) e de Hart (1996, p. 137-161) são representativas de tal assertiva, pois, para eles, seja em razão da relativa indeterminação normativa, seja em razão da chamada textura aberta do Direito, não haveria, para além da própria discricionaridade judicial, critério jurídico capaz de avaliar a aplicação ou produção válidas das normas jurídicas. Toda decisão se fundamenta no caráter discricionário de todo processo de produção/aplicação jurídica. Nesses termos, interpretar é decidir sobre o sentido dos textos normativos partindo-se do pressuposto segundo o qual o legislativo não é capaz de prever todas as hipóteses de aplicação, reconhece-se um poder discricionário aos aplicadores para decidir em face de situação de relativa indeterminação [....].
Bülow atribui ao juiz a tarefa de combater a mazelas do sistema causado pelo liberalismo processual, tomando-o como “um porta voz avançado do sentimento jurídico do povo” (NUNES, BAHIA, PEDRON, 2020, p. 99), apto a, através do processo, atingir objetivos metajurídicos.
A teoria do processo como relação jurídica teve ampla acolhida no Brasil e serviu de base para a tese da “Instrumentalidade do processo”, de Cândido Rangel Dinamarco, apresentada em obra publicada em 1987, segundo a qual o processo é “uma espécie de relação jurídica que serve como mero instrumento da função jurisdicional na consecução de escopos axiológicos tidos como metajurídicos” (OLIVEIRA, 2016, p. 109). Para Dinamarco, o processo é “o instrumento através da qual a jurisdição opera”, “com vista ao objetivo de eliminar conflitos e fazer justiça mediante a atuação da vontade da lei” (CINTRA, GRINOVER, DINAMARCO, 2015, p. 317).
Dinamarco, tal como Bülow, confere protagonismo ao juiz, caracterizando-o como “o canal privilegiado de captação dos valores sociais, devendo estes aparecerem assimilados na sentença”, além de permitir que o julgador, ao decidir, possa contrariar o texto da lei quando este não satisfizer seu “sentimento de justiça” (STRECK, 2017, p. 49). Nesta linha:
Assim, a atividade de aplicação jurisdicional do Direito possuiria um papel corretivo da falta de virtudes da legislação (“envelhecida” ou “mal feita”), através do apelo aos compromissos éticos do juiz, às finalidades políticas do processo e a um uso alternativo do direito. (OLIVEIRA, 2016, P. 160-161)
Em que pese a adoção da teoria do processo como relação jurídica pela maior parcela da doutrina pátria (CINTRA, GRINOVER, DINAMARCO, 2015, p. 322-325), esta não se revela adequada ao Estado Democrático de Direito, conforme será exposto a seguir.
4. PROCESSO E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Após a Segunda Guerra Mundial e, sobretudo, no início da década de 1970, o Estado de Bem-Estar Social entra em crise, revelando-se inadequado à maior complexidade da sociedade, a reclamar efetivo respeito aos direitos fundamentais (incluídos, agora, os interesses difusos e coletivos) e a ampliação da participação dos cidadãos (fundada na ideia de soberania popular), elementos centrais do Estado Democrático de Direito, que conferem legitimidade ao exercício do poder jurídico-político[6].
Nesta perspectiva, temos que a teoria do processo como relação jurídica não se adequada ao paradigma do Estado Democrático de Direito. Se no liberalismo processual o monopólio das partes impunha a prevalência dos interesses privados, a concentração de poderes no juiz trouxe problemas de outra ordem, abrindo o caminho a subjetivismos ao introduzir “componentes éticos ou morais do julgador no ato decisional” (LEAL, 2002, p. 87) e ao atribuir à “boa escolha dos juízes” a tarefa de aprimorar o sistema jurídico (STRECK, 2017, p. 48). Na contramão da perspectiva democrática da participação[7], o protagonismo judicial faz da atividade decisória um ato solitário de um sujeito solipsista.
Conforme afirma André Cordeiro Leal (2002, p. 102), neste novo paradigma:
[...] o ato judicante não mais pode ser abordado como instrumento posto à disposição do Estado para atingir objetivos metajurídicos por via de atividade solitária do julgador. A justiça não mais é a do julgador, mas a do povo (fonte única do Direito), que a faz inserir em leis democraticamente elaboradas.
Nosso ponto de partida para a identificação do modelo de processo adequado ao paradigma do Estado Democrático de Direito será a apresentação da Teoria Discursiva de Jürgen Habermas, com enfoque nos elementos que se relacionam ao direito processual.
4.1. A TEORIA DISCURSIVA DO DIREITO E O PROCESSO JURISDICIONAL
Em “Direito e Democracia: entre facticidade e validade”, de 1992, Jürgen Habermas apresenta sua Teoria Discursiva do Direito e do Estado Democrático de Direito. Seu ponto de partida é a “guinada linguística” (HABERMAS, 1997a, p. 27), que promove a superação da filosofia da consciência – segundo a qual, em apertada síntese, a atribuição de sentidos é feita pela consciência do sujeito (“esquema sujeito-objeto”), conforme lição de Lenio Streck (2017, p. 14) – pela filosofia da linguagem, transferindo-se o conhecimento para o âmbito da linguagem, a qual, por sua vez, é intersubjetiva, compartilhada.
Neste contexto, ante a insuficiência da razão prática nas sociedades cada vez mais complexas, Habermas (1997a, p. 17-29) propõe sua substituição pela razão comunicativa, transportando para o meio linguístico o conceito de razão:
A razão comunicativa distingue-se da razão prática por não estar adscrita a nenhum ato singular nem a um macrossujeito sociopolítico. O que torna a razão comunicativa possível é o medium linguístico, através do qual as interações se interligam e as formas de vida se estruturam. Tal racionalidade está inscrita no telos linguístico do entendimento, formando um ensemble de condições possibilitadoras e, ao mesmo tempo, limitadoras. Qualquer um que se utilize de uma linguagem natural, a fim de entender-se com um destinatário sobre algo no mundo, vê-se forçado a adotar um enfoque performativo e a aceitar determinados pressupostos. Entre outras coisas, ele tem que tomar como ponto de partida que os participantes perseguem sem reservas seus fins ilocucionários, ligam seu consenso ao reconhecimento intersubjetivo de pretensões de validade criticáveis, revelando a disposição de aceitar obrigatoriedades relevantes para as consequências da interação e que resultam de um consenso. E o que está embutido na base de validade da fala também se comunica às formas de vida reproduzidas pela via do agir comunicativo. A racionalidade comunicativa manifesta-se num contexto descentrado de condições que impregnam e formam estruturas, transcendentalmente possibilitadoras; porém, ela própria não pode ser vista como uma capacidade subjetiva, capaz de dizer aos atores o que devem fazer. (HABERMAS, 1997a, p. 20)
Conforme sintetizam Alvim, Granado e Schmitz (2015, p. 468), no agir comunicativo habermasiano “o sujeito que pronuncia qualquer ato de fala (afirmações, ordens, interjeições) inevitavelmente pretende que sua proposição seja aceita como verdadeira”; havendo discordância entre falante e receptor, surge a necessidade de se “lançar mãos de justificativas para demonstrar a validade de sua proposição”; a esta argumentação, ou seja, à problematização da questão, dá-se o nome de discurso, de modo que “os agentes envolvidos na discursividade têm, todos, participação dialética em forma de discussão, até que se chegue a um consenso sobre a validade, ou não, de determinado enunciado de fala”.
O princípio do discurso, segundo o qual “são válidas as normas de ação às quais todos os possíveis atingidos poderiam dar seu assentimento, na qualidade de discursos racionais” (HABERMAS, 1997a, p. 142), é a base da teoria do direito de Habermas (1997a, p. 24). Incorporado ao direito, o princípio do discurso converte-se em princípio da democracia, “de modo a proporcionar uma compreensão de que o Direito emana do povo, possibilitando a todo sujeito de direito igual liberdade comunicativa de se posicionar sobre qualquer pretensão” (NUNES, 2006, p. 135). Neste sentido:
[...] a teoria do direito, fundada no discurso, entende o Estado democrático de direito como a institucionalização de processos e pressupostos comunicacionais necessários para uma formação discursiva da opinião e da vontade, a qual possibilita, por seu turno, o exercício da autonomia política e a criação legítima do direito. (HABERMAS, 1997b, p. 181)
Em contraposição aos paradigmas do Estado liberal – no qual, como visto, preponderava a autonomia privada – e do Estado de Bem-Estar Social – com a prevalência da autonomia pública -, Habermas apresenta uma concepção procedimentalista do direito[8], adequada ao paradigma do Estado Democrático de Direito, apta a “dar conta da complexidade da sociedade contemporânea, bem como ao papel exercido pelo Estado na efetivação dos direitos fundamentais” (SCOTTI, 2017, p. 8). Neste paradigma, há relação de complementariedade entre autonomia privada e pública:
A partir de uma compreensão procedimental do Estado de Direito, a Teoria Discursiva busca desfazer o aparente paradoxo ente Estado de Direito e Democracia (ou entre Direitos Humanos e Soberania Popular) perceptível nos paradigmas jurídicos anteriores. Com base nas tradições políticas do Liberalismo e do Republicanismo, respectivamente, cada um destes paradigmas conferia primazia seja à lógica individualista das garantias jurídicas, seja à dimensão coletiva da autodeterminação política dos cidadãos, numa necessária relação de subordinação. Habermas sustenta que Estado de Direito e Democracia são co-originários, guardam entre si uma relação não de subordinação, mas de necessária complementariedade. (SCOTTI, 2017, p. 9).
Para os fins do presente trabalho, importa destacar a questão da legitimidade do direito no paradigma do Estado Democrático de Direito.
Habermas identifica no direito uma tensão interna entre facticidade e validade, ou, como expõe Scotti (2017, p. 2): “entre a positividade do direito, seu caráter coercitivo que independe da aceitação do destinatário para sua aplicação (facticidade), e a pretensão de legitimidade do direito, condição necessária para sua validade em um Estado Democrático de Direito”. No âmbito do processo jurisdicional, esta tensão se revela “como a pretensão de que a um só tempo as decisões judiciais sejam coerentes com o direito vigente e adequadas aos casos submetidos à apreciação judicial” (OLIVEIRA, 2016, p. 116).
Apoiado no princípio do discurso, “no paradigma do Estado Democrático o Direito precisa legitimar-se por meio de procedimentos, que devem estar de acordo com os direitos fundamentais e com o princípio da soberania do povo” (NUNES, 2006, p. 137-138). Segundo Habermas (1997b, p. 153):
A teoria do discurso explica a legitimidade do direito com o auxílio de processos e pressupostos da comunicação - que são institucionalizados juridicamente - os quais permitem levantar a suposição de que os processos de criação do direito levam a resultados racionais. Do ponto de vista do conteúdo, as normas emitidas pelo legislador político e os direitos reconhecidos pela justiça são racionais pelo fato de os destinatários serem tratados como membros livres e iguais de uma comunidade de sujeitos de direito, ou seja, em síntese: sua racionalidade resulta do tratamento igual das pessoas jurídicas protegidas em sua integridade.
O paradigma procedimental “formula as condições necessárias segundo as quais os sujeitos do direito podem, enquanto cidadãos, entender-se entre si para descobrir os seus problemas e o modo de solucioná-los” (HABERMAS, 1997b, 190). Nesta linha, de acordo com Barros (2013, p. 6), a partir é Habermas é possível:
[...] a identificação do Estado Democrático de Direito como um conjunto de princípios jurídicos fundamentais cuja observância garante ao cidadão reconhecer-se, ao mesmo tempo, como autor e destinatário da norma jurídica. Esse reconhecimento é que permite a compatibilização de legalidade com legitimidade no exercício do poder jurídico-político estatal.
Essencial à legitimidade do direito, portanto, é a efetiva a participação do cidadão, sendo indispensável, pois, a construção do espaço discursivo, o que, no processo jurisdicional, somente é possível através de uma concepção comparticipativa do processo, afastando-se do solipsismo judicial. Neste sentido, a lição de Dierle Nunes (2006, p. 142):
Assim, a partir de Habermas percebe-se que a estruturação do processo democrático passa pela adoção de uma visão policêntrica que não pode, nem deve, privilegiar nenhum dos sujeitos processuais. Nem as partes (processo como coisa das partes) como no processo liberal, nem o juiz como no processo social.
Deve haver uma articulação dialógica da técnica processual seguindo os comandos institutivos da principiologia processual constitucional que não reduza o papel institucional nem dos juízos e nem das partes (e seus advogados).
4.2. O PROCESSO COMO PROCEDIMENTO EM CONTRADITÓRIO
Contrapondo-se à teoria do processo como relação jurídica, Elio Fazzalari apresentou, em 1958, sua teoria do processo como procedimento em contraditório, assim sintetizada por Aroldo Plínio Gonçalves (2016, p. 98):
Há processo sempre onde houver o procedimento realizando-se em contraditório entre os interessados, e a essência deste está na “simétrica paridade” da participação, nos atos que preparam o provimento, daqueles que nele são interessados porque, como seus destinatários, sofrerão seus efeitos.
Para Fazzalari, o processo é uma espécie do gênero procedimento, conceituado este último como atividade preparatória do provimento (ato dotado de caráter imperativo), na qual “os atos e as posições subjetivas são normativamente previstos e se conectam de forma especial para tornar possível o advento do ato final, por ele preparado” (GONÇALVES, 2016, p. 93)[9]. Ainda segundo o autor italiano, a existência, a validade e a eficácia deste ato final dependem do “correto desenvolvimento do procedimento” (GONÇALVES, 2016, p. 94).
O elemento caracterizador do processo, que confere estrutura dialética ao procedimento, é o contraditório, não mais concebido como mero direito de participação no processo, mas sim como um conceito mais amplo, assim apresentado por Fazzalari (2006, p. 119-120):
Tal estrutura consiste na participação dos destinatários do ato final em sua fase preparatória; na simétrica paridade das suas posições; na mútua implicação das suas atividades (destinadas, respectivamente, a promover e impedir a emanação do provimento); na relevância das mesmas para o autor do provimento; de modo que cada contraditor possa exercitar um conjunto – conspícuo ou modesto, não importa – de escolhas, de reações, de controles e deva sofrer os controles e as reações dos outros, e que o autor do ato deva prestar conta dos resultados.
Ao juiz incumbe promover e garantir o contraditório, bem como, em que pese não ser contraditor, observar ele próprio o contraditório, na medida em que este se caracteriza, como se extrai do trecho acima transcrito, como verdadeiro direito de influência, de modo que, ao decidir, o julgador deve levar em consideração todos os argumentos apresentados pelas partes. Não há, pois, um retorno ao liberalismo processual, mas sim “uma interação dialógica de todos os sujeitos processuais”, quebrando-se a assimetria entre eles (NUNES, 2006, p. 140). Nesta linha, Dierle Nunes (2006, p. 53) afirma que o juiz “não pode mais se apresentar como Führer, que tudo pode fazer, em detrimento das partes, que ficariam à mercê de sua discrição e arbitrariedade”.
Registre-se que, ao contrário do que sustentam os adeptos da teoria de Bülow (CINTRA, GRINOVER, DINAMARCO, 2015, p. 325), o processo como relação jurídica é incompatível com a ideia de processo como procedimento em contraditório, eis que este, definido como participação em simétrica paridade, não é conciliável com o conceito de relação jurídica, que pressupõe “vínculo de exigibilidade, de subordinação, de supra e infraordenação, de sujeição” (GONÇALVES, 2016, p. 113)[10].
5. CONCLUSÃO
A Teoria Discursiva de Habermas, como se procurou demonstrar, tem entre seus elementos principais a participação do cidadão[11]. No paradigma do Estado Democrático de Direito, essencial, portanto, que o processo jurisdicional seja uma “estrutura balizadora dos discursos, em que se deve permitir e garantir espaços para a formação intersubjetiva e essencialmente dialógica dos provimentos judiciais” (NUNES, 2006, p. 58), sem o que a decisão carecerá de legitimidade.
Com isso, temos que a concepção de Elio Fazzalari melhor se amolda ao paradigma do Estado Democrático de Direito, eis que, ao garantir a efetiva participação dos interessados na formação do provimento, permite a produção de decisões legítimas e funciona como mecanismo de controle do poder estatal (NUNES, BAHIA, PEDRON, 2020, p. 243). Há, pois, forte relação entre as ideias de Habermas e Fazzalari:
Na teoria da democracia habermasiana não se trata da escolha promovida pelo juiz, em seu feudo soberano, alheio e descomprometido com o debate processual argumentativo efetuado em contraditório, com ampla defesa e isonomia, mas o contrário, acolhendo, ademais, o ‘giro linguístico’, ou seja, é pós-metafísica. (ROSA, 2006, p. 224)
O contraditório, elemento central do conceito fazzalariano, é também essencial à teoria procedimental da democracia, proporcionando, “quanto às oportunidades de pronunciamento, uma atuação equitativa dos partícipes nos procedimentos judiciais” e garantindo, “em conexão com o princípio (requisito) da fundamentação das decisões jurisdicionais, que a decisão se fundamente no Direito debatido pelas partes e nos fatos por elas reconstruídos” (LEAL, 2002, p. 77).
Indispensável destacar, por fim, que a Constituição da República, de 1988, adota expressamente o Estado Democrático de Direito (artigo 1º, caput) e elenca uma série de princípios, para além do contraditório, que se entrelaçam e compõem o denominado “modelo constitucional de processo”. O processo constitucionalizado não mais pode ser visto como instrumento da jurisdição, mas sim como “o próprio direito de participação dos cidadãos na construção dos conteúdos do direito” (BARROS, 2013, p. 23). Neste sentido:
O direito fundamental que veicula a participação dos afetados na construção das decisões e da normatividade jurídica é o processo. Não é demais repetir que o processo consiste na garantia informada pelos princípios do contraditório, da ampla argumentação, da fundamentação das decisões por terceiro imparcial, conformadores de uma base uníssona e coerente, sem o qual o cidadão não atinge, sequer, a discussão sobre os conteúdos da normatividade, não é coautor do ordenamento jurídico. Como se percebe, a ausência de processo é anti-democrática e, mais uma vez, abre possibilidade para construções jurídicas decisionistas-solipsistas. (BARROS, 2013, p. 20)
Concluímos, portanto, com a afirmação de Barros (2013, p. 34), segundo o qual “lidas e interpretadas assim conjunta e completamente, as lições de Habermas e Fazzalari embasam a adoção do modelo constitucional de processo no Estado Democrático de Direito”.
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[1] O Código de Processo Civil italiano, de 1865, é um exemplo de legislação processual liberal. Michele Taruffo (2018, p. 168-169), ao apresentar seus caracteres, ensina que o papel do juiz “se reduz, essencialmente, à decisão das questões, processuais e de mérito, alegadas pelas partes”, sem ter “qualquer poder de estímulo, de iniciativa, de controle e de direção do processo”; por outro lado, há completa liberdade das partes, “não apenas ao ‘que coisa’ fazer no processo, mas também no que tange ao ‘quando’ e ao ‘como’ fazê-lo”, inexistindo uma sequência pré-ordenada de atos a serem seguidos.
[2] Conforme leciona Paulo Bonavides (2009, p. 229), “no Estado liberal do século XIX a Constituição disciplinava somete o poder estatal e os direitos individuais (direitos civis e direitos políticos) ao passo que hoje o Estado social do século XX regula uma esfera muito mais ampla: o poder estatal, a Sociedade e o indivíduo”.
[3] “[...] a passagem para o modelo do Estado social se impôs, porque os direitos subjetivos podem ser lesados, não somente através de intervenções ilegais, mas também através da omissão da administração.” (HABERMAS, 1997b, p. 170)
[4] Importante registrar, conforme afirmam Nunes, Bahia e Pedron (2020, p. 91-92), que o aumento do protagonismo judicial e assunção do controle do processo pelo juiz contribuía para a maior celeridade do processo, o que atendia às necessidades do empresariado, que, com o aumento da atividade industrial e comercial, precisava de uma resposta mais rápida para os conflitos. A intervenção estatal no processo, portanto, não se justificava apenas do ponto de vista de uma assistência às partes mais fracas.
[5] Sobre o caráter público do processo, Taruffo (2018, p. 221-222) assim expõe o pensamento de Giuseppe Chiovenda: “Segue-se que o Estado não pode permanecer indiferente às modalidades com que a tutela jurisdicional é atuada: o direito substancial continua privado, mas o processo em que esse é afirmado é ‘público’, sendo o seu correto funcionamento erigido no interesse público – antes e além do simples interesse de cada uma das partes. Daí a acentuação do papel do juiz como portador e realizador da função do Estado na administração da Justiça [...]”.
[6] “Liberdade e igualdade são retomados como direitos que expressam e possibilitam uma comunidade de princípios, integrada por membros que reciprocamente se reconhecem pessoas livres e iguais, co-autores das leis que regem sua vida em comum. Esses direitos fundamentais adquirem uma conotação de forte cunho procedimental que cobra de imediato a cidadania, o direito de participação, ainda que institucionalmente mediatizada, no debate público constitutivo e conformador da soberania democrática do novo paradigma, o paradigma constitucional do Estado Democrático de Direito e de seu Direito participativo, pluralista e aberto.” (CARVALHO NETTO, 2004, p. 37)
[7] Sobre a teoria do processo de Bülow, Vinícius Diniz Monteiro de Barros (2013, p. 21), com base nas ideias de André Cordeiro Leal, alerta: “o que não se percebe no senso comum jurídico é que, com tal proposta, o barão não mirava perspectiva democrática alguma - nem de abertura do hermético discurso jurídico à participação de todos os afetados pela norma, nem de controle dos exercentes de função pública a qualquer título. O processo, em Von Bülow, ‘não fora concebido como meio de controle judicial, mas como técnica de atuação de juízes em relação ao reforço de convicções nacionais alemãs (LEAL, 2008, p. 29)’”.
[8] “O paradigma procedimentalista do direito procura proteger, antes de tudo, as condições do procedimento democrático. Elas adquirem um estatuto que permite analisar, numa outra luz, os diferentes tipos de conflito. Os lugares abandonados pelo participante autônomo e privado do mercado e pelo cliente de burocracias do Estado social passam a ser ocupadas por cidadãos que participam de discursos políticos, articulando e fazendo valer interesses feridos, e colaboram na formação de critérios para o tratamento igualitário de casos iguais e para o tratamento diferenciado de casos diferentes.” (HABERMAS, 1997b, p.183)
[9] Para os adeptos da teoria do processo como relação jurídica, o procedimento é “apenas o meio extrínseco pelo qual se instaura, desenvolve-se e termina o processo” (CINTRA, GRINOVER, DINAMARCO, 2015, p. 317).
[10] No mesmo sentido: “Ainda diferentemente do que ocorre na concepção relacionista, em que o processo é visto como um mecanismo no qual o Estado-juiz implementa sua posição de superioridade, de modo que o debate processual é relegado a um segundo plano, Fazzalari maximiza a militância das partes e dos demais interessados que laboram comparticipativamente na formação do provimento que lhes afetará. Nessa tarefa, o processo se desgarra da concepção de mecanismo de dominação e passa ser percebido em perspectiva democrática – garantidora de direitos fundamentais.” (NUNES, BAHIA, PEDRON, 2020, p. 242-243)
[11] “Uma ordem jurídica é legítima na medida em que assegura a autonomia privada e autonomia cidadão de seus membros, pois ambas são co-originárias; ao mesmo tempo, porém, ela deve sua legitimidade a formas de comunicação nas quais essa autonomia pode manifestar-se e comprovar-se. A chave da visão procedimental do direito consiste nisso. Uma vez que a garantia da autonomia privada através do direito formal se revelou insuficiente e dado que a regulação social através do direito, ao invés de reconstruir a autonomia privada, se transformou numa ameaça para ela, só resta como saída tematizar o nexo existente entre formas de comunicação que, ao emergirem, garantem a autonomia pública e a privada.” (HABERMAS, 1997b, p. 147)
Mestrando em Processo Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Defensor Público do Estado de São Paulo.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BARBOSA, Guilherme Diniz. As contribuições da teoria discursiva do direito para a teoria do processo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 fev 2021, 04:51. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56145/as-contribuies-da-teoria-discursiva-do-direito-para-a-teoria-do-processo. Acesso em: 23 dez 2024.
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