RESUMO: Abordar-se-ão, inicialmente, os elementos necessários, a fim de que reste caracterizado o concurso de pessoas no âmbito penal. Após, serão analisadas as teorias relativas à autoria, apontando-se a adotada pelo ordenamento jurídico. Em seguida, far-se-á breve estudo sobre o crime de estupro de vulnerável, bem como os requisitos para a sua configuração, à luz de casos julgados pelo STJ. Ao final, será estudado caso recente da Corte Superior e a possibilidade da sua análise com base na teoria do domínio do fato.
Palavras-chaves: Concurso de pessoas. Autoria. Teoria do domínio do fato. Estupro de vulnerável. STJ.
Sumário: 1. Introdução. 2. Concurso de pessoas. 3. Autoria. 4. Estupro de vulnerável. 5.A ausência de contato físico e o estupro de vulnerável. 6. Teoria do domínio do fato e sua possível aplicação ao julgamento do HC Nº 47831/PA. Conclusão. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Muitas vezes, a infração penal não é praticada por apenas um agente, o que pode possibilitar a ocorrência de concurso de pessoas, caso presentes os requisitos estabelecidos para a doutrina. Assim, quando há mais de um envolvido, surge a dúvida de quem será autor e partícipe, ou mesmo se existe essa diferenciação. Ademais, questiona-se, também, se mesmo não praticando diretamente o núcleo do tipo, o agente pode ser responsabilizado.
Dessa forma, buscar-se-á analisar, inicialmente, os requisitos, para que exista concurso de agentes no âmbito penal, pormenorizando cada elemento que compõe o caso. Após, serão analisadas as teorias que buscam diferenciar o autor do partícipe, apontando, na oportunidade, a teoria adotada pelo Código Penal. Em seguida, a fim de realizar uma análise prática das divergências produzidas por essa diferenciação de autor e partícipe, estudar-se-á o crime de estupro de vulnerável.
Na sequência, serão pormenorizadas as situações delituosas presentes em julgados do Superior Tribunal de Justiça, nos quais houve a divergência sobre a responsabilidade do agente, em razão de não praticar, propriamente, o núcleo do tipo penal. Por fim, abordar-se-á caso paradigmático, envolvendo estupro de vulnerável, recentemente julgado pelo STJ, à luz da teoria do domínio do fato.
Para o presente trabalho, utilizou-se, como metodologia, da análise de diversos julgados do Superior Tribunal de Justiça sobre a matéria. Além disso, também foram estudadas as produções doutrinárias relativas ao tema. Baseou-se, ainda, nas disposições legais e constitucionais concernentes à matéria.
2. CONCURSO DE PESSOAS
Inicialmente, importante destacar que o concurso de pessoas ocorre quando duas ou mais pessoas concorrerem para praticar a infração penal. Para que reste caracterizado esse instituto, é necessário que estejam presentes alguns requisitos, quais, sejam a pluralidade de agentes culpáveis, a relevância das condutas praticadas, a unidade da infração penal perpetrada e o vínculo subjetivo dos agentes.
2.1. Pluralidade de agentes culpáveis:
O nome do instituto já antevê (concurso de pessoas): é preciso que exista mais de um agente, para que ocorra essa concorrência de condutas. As duas condutas podem ser principais (coautoria) ou principal e acessória (partícipe). Além disso, a doutrina exige a culpabilidade dos executores. Isso decorre do fato de que, caso não exista culpabilidade, restará apenas a autoria imediata (culpável) e mediata (agente não culpável utilizado como instrumento).
Entretanto, é importante destacar, segundo MASSON (2017), que o raciocínio sobre a necessidade de culpabilidade apenas se aplica aos crimes unissubjetivos ou de concurso eventual. Esses crimes são aqueles, em regra, praticados apenas por uma pessoa, porém admitem o concurso eventual.
Já nos crimes plurissubjetivos ou de concurso necessário, é prescindível a culpabilidade, basta que exista a concorrência de mais de um agente. É o que ocorre, por exemplo, no crime de associação criminosa, mesmo que um dos concorrentes seja um menor de 18 anos, restará caracterizado o crime. Há, também, os crimes acidentalmente coletivos, os quais, geralmente, são praticados por uma única pessoa, mas é previsto aumento, caso haja o envolvimento de outras pessoas. Destaque-se que, nesses dois tipos de crime, a norma de extensão do art. 29 do Código Penal não é necessária, tendo em vista que o próprio tipo já dispõe sobre a pluralidade. Por esse motivo, a doutrina impõe o requisito da culpabilidade apenas nos casos dos crimes unissubjetivos.
2.2. Relevância das condutas praticadas:
Para que o agente seja responsabilizado, é preciso que ele pratique uma conduta relevante que proporcione a consumação do crime, sem essa conduta a infração penal não ocorreria do mesmo modo. Caso a participação não tenha relevância, será inócua, a qual não enseja concurso de pessoas. Essa exigência decorre do art. 29 do Código Penal, o qual dispõe que “quem, de qualquer modo, concorre para o crime”.
2.3. Unidade da infração penal perpetrada
O art. 29 do Código Penal menciona, expressamente, o “crime”. Dessa forma, interpreta-se que o diploma penalista adota, como regra, a Teoria Monista, qual seja, todos respondem pelo mesmo tipo penal, à luz da teoria da equivalência das causas.
2.4. Vínculo subjetivo dos agentes
É preciso que exista a vontade de contribuir, ocorra, assim, um nexo psicológico entre os agentes. Os desígnios dos agentes precisam ser homogêneos, é o princípio da convergência. Destaque-se, no entanto, que é dispensável o prévio ajuste, sendo necessário, apenas, que a concorrência dos agentes se desenvolva antes da consumação e que se tenha a ciência de que se está contribuindo para a empreitada de terceiro.
3. AUTORIA
Analisados os requisitos para o concurso de pessoas, passa-se ao estudo do conceito de autor. Importante ressaltar que há diversas teorias sobre o conceito de autor, expostas em sequência:
3.1. Teoria subjetiva (unitária):
À luz da teoria da equivalência dos antecedentes causais, essa teoria expõe que não há diferenciação entre partícipe e autor, uma vez que ambos contribuem para a consumação do crime. Assim, autor será aquele que proporciona a produção de um resultado penalmente relevante. Ressalte-se que, na redação originária do Código Penal, adotava-se essa teoria.
3.2. Teoria extensiva:
Não há, também, nessa teoria, diferença entre autor e partícipe. Entretanto, admite uma diferenciação no quantum de pena aplicável a cada um com base no grau de participação para a consumação do feito.
3.3.Teoria objetiva (dualista):
Diferente das teorias anteriores, realiza distinção entre o autor e o partícipe. Ela passou a ser adotada pelo Código Penal, após a reforma da Parte Geral. Essa teoria se divide em três:
3.3.1. Teoria objetivo-formal:
O autor será aquele que realiza o núcleo do tipo penal, já o partícipe será aquele que realiza condutas acessórias (instigar, auxiliar ou induzir), sem realizar o verbo nuclear, ainda assim contribui para a consumação. Aponta-se que essa é a teoria adotada atualmente pelo Código Penal. Veja-se que, caso não existisse a norma de extensão do art. 29 do CP, não seria possível responsabilizar o partícipe pela conduta, há uma subordinação mediata/indireta.
As críticas a essa teoria ocorrem em dois pontos principais: autoria mediata e autor intelectual. No caso do autor intelectual, como ele não pratica o núcleo do tipo penal, ele será partícipe, adotando-se essa teoria. Já em relação a autoria mediata, a qual ocorre quando agente faz uso de instrumento inculpável, não será possível sua responsabilização por essa teoria.
3.3.2. Teoria objetivo-material:
Para essa teoria, autor será aquele que presta a contribuição objetiva mais importante para a realização do resultado, mesmo que não execute o núcleo do tipo. Já o partícipe será aquele, por consequência, que não pratica a conduta mais relevante. A maior problemática dessa teoria é a grande subjetividade de que ela dispõe, o que ocasiona insegurança jurídica.
3.3.3. Teoria do domínio do fato:
Essa teoria foi criada por Hans Welzel (responsável pela criação do Finalismo Penal). Autor será aquele que tem o domínio final do fato. O autor é o “senhor do fato”, ele tem a capacidade de continuar e de impedir a perpetração da conduta criminosa, usufruindo, portanto, do poder decisório. O partícipe será aquele que não pratica o núcleo do tipo penal e não possui o controle final do fato.
A vantagem dessa teoria é ampliar o conceito de autor da teoria objetivo-formal, abrangendo, assim, a autoria mediata e intelectual. A problemática, no entanto, envolve os crimes culposos, pois, na culpa, não há um controle final do fato, o que enseja a prática do resultado criminoso. Essa teoria foi adotada, expressamente, pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Penal nº 470 (“mensalão”).
4. ESTUPRO DE VULNERÁVEL
Na redação originária do Código Penal, não existia a previsão desse tipo penal. A partir dos crimes previstos no antigo nomeado Título VI “DOS CRIMES CONTRA OS COSTUMES”, havia a previsão de presunção de violência em algumas hipóteses, as quais se assemelham aos vulneráveis do art. 217-A do Código Penal, veja-se a redação anterior:
Art. 224 - Presume-se a violência, se a vítima: (Revogado pela Lei nº 12.015, de 2009)
a) não é maior de catorze anos; (Revogado pela Lei nº 12.015, de 2009)
b) é alienada ou débil mental, e o agente conhecia esta circunstância; (Revogado pela Lei nº 12.015, de 2009)
c) não pode, por qualquer outra causa, oferecer resistência. (Revogado pela Lei nº 12.015, de 2009)
Entretanto, houve a reforma desse título do Código Penal com a Lei nº 12.015/09, tendo, entre outras mudanças, revogado o art. 224 e introduzido o art. 217-A no diploma penalista, o qual dispõe:
Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
§ 1° Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
§ 2º (VETADO) (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
§ 3º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena - reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
§ 4º Se da conduta resulta morte: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
§ 5º As penas previstas no caput e nos §§ 1º, 3º e 4º deste artigo aplicam-se independentemente do consentimento da vítima ou do fato de ela ter mantido relações sexuais anteriormente ao crime. (Incluído pela Lei nº 13.718, de 2018)
Dessa forma, a prática de conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso com menor de 14 anos ou com alguém que não possa consentir ou oferecer a resistência devida, no momento da prática do ato, incide no artigo mencionado acima. O tipo penal dispõe de elementos normativos que necessitam da interpretação pelo aplicador, o que gera diversos debates jurisprudenciais e doutrinários sobre a sua incidência ou de outro crime contra a dignidade sexual no caso concreto.
5. A AUSÊNCIA DE CONTATO FÍSICO E O ESTUPRO DE VULNERÁVEL
Em razão da ampla proteção à criança e ao adolescente constitucionalmente prevista (art. 227 da Constituição Federal) e materializada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, o Superior Tribunal de Justiça entende que, para a caracterização do estupro de vulnerável, não é necessário que o agente tenha qualquer contato físico direto com a vítima, veja-se:
RECURSO EM HABEAS CORPUS. ESTUPRO DE VULNERÁVEL EM CONTINUIDADE DELITIVA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA E ATIPICIDADE DA CONDUTA. CONTEMPLAÇÃO LASCIVA DE MENOR DESNUDA. ATO LIBIDINOSO CARACTERIZADO. TESE RECURSAL QUE DEMANDA REEXAME FÁTICO-PROBATÓRIO. AUSÊNCIA DE FLAGRANTE ILEGALIDADE. RECURSO DESPROVIDO. O Parquet classificou a conduta do recorrente como ato libidinoso diverso da conjunção carnal, praticado contra vítima de 10 anos de idade. Extrai-se da peça acusatória que as corrés teriam atraído e levado a ofendida até um motel, onde, mediante pagamento, o acusado teria incorrido na contemplação lasciva da menor de idade desnuda. Discute-se se a inocorrência de efetivo contato físico entre o recorrente e a vítima autorizaria a desclassificação do delito ou mesmo a absolvição sumária do acusado. A maior parte da doutrina penalista pátria orienta no sentido de que a contemplação lasciva configura o ato libidinoso constitutivo dos tipos dos arts. 213 e 217-A do Código Penal - CP, sendo irrelavante, para a consumação dos delitos, que haja contato físico entre ofensor e ofendido. O delito imputado ao recorrente se encontra em capítulo inserto no Título VI do CP, que tutela a dignidade sexual. Cuidando-se de vítima de dez anos de idade, conduzida, ao menos em tese, a motel e obrigada a despir-se diante de adulto que efetuara pagamento para contemplar a menor em sua nudez, parece dispensável a ocorrência de efetivo contato físico para que se tenha por consumado o ato lascivo que configura ofensa à dignidade sexual da menor. Com efeito, a dignidade sexual não se ofende somente com lesões de natureza física. A maior ou menor gravidade do ato libidinoso praticado, em decorrência a adição de lesões físicas ao transtorno psíquico que a conduta supostamente praticada enseja na vítima, constitui matéria afeta à dosimetria da pena, na hipótese de eventual procedência da ação penal. In casu, revelam-se pormenorizadamente descritos, à luz do que exige o art. 41 do Código de Processo Penal - CPP, os fatos que, em tese, configurariam a prática, pelo recorrente, dos elementos do tipo previsto no art. 217-A do CP: prática de ato libidinoso diverso da conjunção carnal com vítima menor de 14 anos. A denúncia descreve de forma clara e individualizada as condutas imputadas ao recorrente e em que extensão elas, em tese, constituem o crime de cuja prática é acusado, autorizando o pleno exercício do direito de defesa e demonstrando a justa causa para a deflagração da ação penal. Nesse enredo, conclui-se que somente após percuciente incursão fática-probatória seria viável acolher a tese recursal de ausência de indícios de autoria e prova de materialidade do delito imputado ao recorrente. Tal providência, contudo, encontra óbice na natureza célere do rito de habeas corpus, que obsta a dilação probatória, exigindo que a apontada ilegalidade sobressaia nitidamente da prova pré-constituída nos autos, o que não ocorre na espécie. Assim, não há amparo para a pretendida absolvição sumária ou mesmo o reconhecimento de ausência de justa causa para o prosseguimento da ação penal para apuração do delito. Recurso desprovido. (STJ - RHC: 70976 MS 2016/0121838-5, Relator: Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, Data de Julgamento: 02/08/2016, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 10/08/2016 RSTJ vol. 243 p. 876) (grifou-se)
Dessa forma, observa-se que a ofensa a dignidade sexual da vítima (bem jurídico protegido pelo tipo penal) não ocorre apenas com lesões de natureza física, podendo realizar-se a conduta por outros meios igualmente violadores do bem jurídico. Esse também é o entendimento da doutrina, a qual dispensa qualquer contato físico direto por parte do agente, a fim de que reste configurado o crime do art. 217-A do CP, veja-se MASSON (2014):
“Na prática de atos libidinosos, a vítima também pode desempenhar, simultaneamente, papeis ativo e passivo. Nessas duas últimas condutas - praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso é dispensável o contato físico de natureza erótica entre o estuprador e a vítima”.
Seguindo, assim, essa tendência de entendimento mais protetiva ao vulnerável, a Corte Superior, em recente, julgado manteve a condenação de agente que não teve qualquer contato físico com a vítima. No caso, o réu utilizava-se, na qualidade de mentor intelectual, de duas mulheres, incitando-as a praticarem atos libidinosos com crianças e a lhe enviarem as imagens correspondentes, observe-se:
HABEAS CORPUS. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. QUALQUER ATO DE LIBIDINAGEM. CONTATO FÍSICO DIRETO. PRESCINDIBILIDADE. CONTEMPLAÇÃO LASCIVA POR MEIO VIRTUAL. SUFICIÊNCIA. ORDEM DENEGADA. 1. É pacífica a compreensão, portanto, de que o estupro de vulnerável se consuma com a prática de qualquer ato de libidinagem ofensivo à dignidade sexual da vítima, conforme já consolidado por esta Corte Nacional. 2. Doutrina e jurisprudência sustentam a prescindibilidade do contato físico direto do réu com a vítima, a fim de priorizar o nexo causal entre o ato praticado pelo acusado, destinado à satisfação da sua lascívia, e o efetivo dano à dignidade sexual sofrido pela ofendida. 3. No caso, ficou devidamente comprovado que o paciente agiu mediante nítido poder de controle psicológico sobre as outras duas agentes, dado o vínculo afetivo entre eles estabelecido. Assim, as incitou à prática dos atos de estupro contra as infantes (uma de 3 meses de idade e outra de 2 anos e 11 meses de idade), com o envio das respectivas imagens via aplicativo virtual, as quais permitiram a referida contemplação lasciva e a consequente adequação da conduta ao tipo do art. 217-A do Código Penal. 4. Ordem denegada. (STJ - HC: 478310 PA 2018/0297641-8, Relator: Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Data de Julgamento: 09/02/2021, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 18/02/2021)
Consoante disposto pelo Ministro Relator em seu voto, é prescindível o contato físico direto do réu com a vítima, uma vez que se deve priorizar o nexo causal entre o ato praticado pelo réu, destinado à satisfação da sua lascívia, e o efetivo dano à dignidade sexual sofrido pela vítima. Ademais, ainda de acordo com o Ministro, “a ênfase recai no eventual transtorno psíquico que a conduta praticada enseja na vítima e na real ofensa à sua dignidade sexual, o que torna despicienda efetiva lesão corporal física por força de ato direto do agente, como no caso dos autos”.
6. TEORIA DO DOMÍNIO DO FATO E SUA POSSÍVEL APLICAÇÃO AO JULGAMENTO DO HC Nº 47831/PA
O julgado apontado no capítulo anterior considerou a possibilidade de o mentor intelectual, o qual não pratica diretamente o núcleo do tipo penal do art. 217-A do Código Penal, ser responsabilizado pela conduta. A Corte Superior adotou, no caso, a prevalente teoria objetivo-formal, tanto é assim que o Ministro Relator menciona:
“Por fim, cumpre registrar precedente em que esta Corte Superior também já reconheceu a prática do delito de estupro no qual o agente concorre na qualidade de partícipe, tese que se coaduna com parte da fundamentação lançada pelo Juízo de origem e que, igualmente, se amolda ao caso dos autos. Confira-se:
PROCESSO PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. ESTUPRO. PRISÃO PREVENTIVA. REVELIA. ART. 366 DO CPP. EFETIVAÇÃO DA PRISÃO 11 ANOS, APÓS A DECRETAÇÃO DA CUSTÓDIA. APLICAÇÃO DA LEI PENAL. GRAVIDADE CONCRETA DA CONDUTA DELITUOSA. MODUS OPERANDI. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO CARACTERIZADO. RECURSO NÃO PROVIDO. [...] 4. Hipótese em que o recorrente, além de ser o autor de um estupro, concorreu, na condição de partícipe, para mais duas conjunções carnais com a mesma vítima, tendo como autores seu irmão e um amigo. 5. Segundo reiterada jurisprudência desta Corte, a periculosidade do agente, evidenciada no modus operandi do delito, é fundamento idôneo para justificar a medida extrema, tendo como escopo o resguardo da ordem pública. 6. Recurso não provido. (RHC n. 110.301/PR, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, 5ª T., DJe 11/6/2019, grifei)”.
Dessa forma, o STJ entendeu que a subsunção ao art. 217-A do CP ocorreu, no caso, de forma mediata, em decorrência da aplicação da norma de extensão do art. 29 do diploma penalista. Entretanto, apesar de não ser o tema central do julgado, a Corte Superior poderia ter adotado a teoria do domínio do fato exposta anteriormente, a qual já foi acolhida pela jurisprudência em outras oportunidades.
Ao se analisar o caso à luz da teoria do domínio do fato, observa-se que o agente tinha o controle final do fato, sendo o autor intelectual. Isso ocorre, pois, as demais envolvidas na empreitada criminosa praticavam os atos libidinosos seguindo as determinações do agente principal. Assim, mesmo não praticando, diretamente, o núcleo do tipo penal, ele tinha a capacidade de continuar ou de impedir a conduta penalmente ilícita, o que o caracteriza como autor.
Portanto, acaso o STJ tivesse acolhido essa teoria, não haveria as dúvidas, as quais foram suscitadas pela defesa com o objetivo de afastar a responsabilização penal do agente. Como a Corte optou pela análise do caso à luz da teoria objetivo-formal, surgiram os questionamentos, uma vez que ela é falha no caso do mentor intelectual, consoante já apontado.
CONCLUSÃO
Apesar de existirem diversas teorias sobre a autoria, nenhuma delas é suficiente para explicar todas as situações que podem ensejar a responsabilização penal. Nesse contexto, a jurisprudência brasileira se inclina pela adoção da teoria objetivo-formal. Consoante já apontado, a grande problemática envolvendo essa teoria são os casos em que o autor não prática diretamente o núcleo do tipo penal.
Em decorrência da adoção dessa teoria, nos casos de autoria intelectual e mediata, o julgador não consegue enquadrar o agente como autor, mas apenas como partícipe, por meio da norma de extensão do art. 29 do Código Penal. A dificuldade é, portanto, encaixar as condutas do autor como acessórias, quando, na verdade, é notório que o seu agir é principal, ainda que sem praticar o núcleo do tipo.
Essa problemática pode ensejar até mesmo em uma dificuldade na defesa do réu, que, muitas vezes, será tratado, materialmente, como autor nas decisões, embora seja formalmente, à luz da teoria objetivo-formal, um partícipe. Dessa forma, o julgador tenta enquadrar o agente como partícipe, apesar de o tratar com a mesma gravidade e reprovabilidade de um autor.
Dessa forma, a teoria do domínio do fato surge como uma possibilidade, a qual, apesar de não ser adequada para os crimes culposos, soluciona as situações que envolvem crimes dolosos. A sua utilização evita “malabarismos” jurídicos, a fim de aquedar a teoria objetivo-formal para o tratamento como autor do mentor intelectual, como no caso apontado acima do HC nº 47831/PA.
REFERÊNCIAS
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BRASIL. Código Penal. DECRETO-LEI No 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm >. Acesso em: 08/03/2021.
BRASIL. Código de Processo Penal. DECRETO-LEI Nº 3.689, DE 3 DE OUTUBRO DE 1941.Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm>. Acesso em: 08/03/2021.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: < https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Inicio>. Acesso em: 08/03/2021.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/principal/principal.asp>. Acesso em: 08/03/2021.
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. O mentor intelectual dos atos libidinosos responde pelo crime de estupro de vulnerável. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/46dce5f2f0e61edb70931a00d00a464e>. Acesso em: 09/03/2021
CUNHA, Rogério Sanches. 685: O mentor intelectual dos atos libidinosos responde pelo crime de estupro de vulnerável. Meu site jurídico. Disponível em: < https://meusitejuridico.editorajuspodivm.com.br/2021/03/01/685-o-mentor-intelectual-dos-atos-libidinosos-responde-pelo-crime-de-estupro-de-vulneravel/>. Acesso em: 09/03/2021.
MASSON, Cleber. Código Penal comentado. 2ª edição, São Paulo: Método, 2014.
MASSON, Cléber. Direito Penal – Parte Geral. vol.1. 11ª edição. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2017.
MASSON, Cléber. Direito Penal – Parte Especial. vol.3. 8ª edição. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2018.
formada em Direito na UFC, pós-graduada em Direito Constitucional e Processual Civil.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VASCONCELOS, Brenda Aguiar. Teoria do domínio do fato e julgamento do STJ sobre a responsabilização do mentor intelectual por atos libidinosos no estupro de vulnerável Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 mar 2021, 04:38. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56245/teoria-do-domnio-do-fato-e-julgamento-do-stj-sobre-a-responsabilizao-do-mentor-intelectual-por-atos-libidinosos-no-estupro-de-vulnervel. Acesso em: 23 dez 2024.
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