RESUMO: O presente trabalho irá analisar os aspectos relativos à Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, a sua previsão legal e a sua origem no ordenamento jurídico brasileiro. Após, serão estudados os institutos despenalizadores da suspensão condicional do processo e da transação penal. Em seguida, será abordado o habeas corpus, bem como as hipóteses do seu cabimento no âmbito do processo penal. Encerar-se-á o trabalho com a análise do uso do remédio constitucional para o trancamento de processo sob o rito sumaríssimo e as divergências na jurisprudência sobre o tema. O estudo será feito com base em trabalhos científicos e julgados dos tribunais superiores.
Palavras-chaves: Juizados especiais. Suspensão condicional do processo. Transação penal. Habeas corpus. Trancamento processo penal. STF. STJ.
Sumário: 1. Introdução. 2. Procedimento comum sumaríssimo. 3. Habeas corpus e o trancamento da ação penal. Conclusão. Referências.
1. INTRODUÇÃO
A Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais objetivou concretizar a previsão constitucional sobre o tema, sendo importante forma de garantir a celeridade processual e a solução consensual dos conflitos. Ela é fruto da justiça restaurativa, que almeja a reparação dos danos sofridos pela vítima, não sendo centrada na punição ao réu. Com o advento da referida lei, foram regulamentados os institutos despenalizadores. No entanto, ainda restam algumas divergências sobre a matéria, como a possibilidade ou não de cabimento de habeas corpus no caso de concessão de alguns desses institutos.
Dessa forma, o presente trabalho busca, inicialmente, analisar aspectos do procedimento comum sumaríssimo, o qual foi regulamentado pela Lei nº 9.099/95, destacando os princípios que o regem. Após será conceituada a transação penal, expondo sua natureza jurídica, os requisitos para a sua incidência, bem como sua regulamentação legal. Em seguida, analisar-se-á a suspensão condicional do processo, apontando, na oportunidade, a sua natureza jurídica e os seus requisitos, além de sua previsão legal.
Na sequência, será conceituado habeas corpus, destacando-se a sua previsão constitucional e sua natureza jurídica. Ademais, abordar-se-á as espécies desse remédio para a proteção da liberdade de locomoção, à luz do entendimento doutrinário. Será apontado, também, o cabimento do habeas corpus, excepcionalmente, como hipótese de trancamento do processo. Por fim, será feito um estudo da jurisprudência e doutrina sobre o cabimento do habeas corpus trancativo nos casos de concessão de suspensão condicional do processo e transação penal.
Para o presente trabalho, utilizou-se, como metodologia, da análise de diversos julgados do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria. Além disso, foram estudadas as produções doutrinárias relativas ao tema. Baseou-se, também, nas disposições legais e constitucionais concernentes à matéria.
2. PROCEDIMENTO COMUM SUMARÍSSIMO
A Lei dos Juizados Especiais, Lei nº 9.099/95, foi promulgada em 26 de setembro de 1995, buscando concretizar a previsão constitucional do art. 98, I. Almejou-se, com a criação dos juizados, conferir maior celeridade e informalidade à prestação jurisdicional, consoante art. 2º da referida Lei Federal. Ademais, também à luz do mencionado artigo, priorizou-se a solução consensual dos conflitos. É importante destacar que a criação dos juizados especiais se pautou nas ondas renovatórias de Cappelletti, primordialmente na 3ª Onda Renovatória, em razão de se buscar, por meio desse instituto, proporcionar maior efetividade a justiça.
BRASILEIRO (2015) dispõe que, com a criação dos juizados especiais, a tradicional jurisdição conflitiva cede espaço para uma jurisdição de consenso, que objetiva um acordo entre as partes. Ademais, segundo o autor, os princípios tradicionais da jurisdição conflitiva, como os da inderrogabilidade do processo e da pena, da obrigatoriedade e da indisponibilidade da ação penal pública, são colocados em segundo plano. Surgem, assim, o destaque a princípios da oportunidade, disponibilidade, discricionariedade regrada e busca do consenso.
Consoante art. 98, I, da Constituição Federal, a competência dos juizados é apenas para as infrações penais de menor potencial ofensivo. Nesse sentido, de acordo com o art. 61 da Lei dos Juizados Especiais, as infrações de menor potencial ofensivo são as contravenções penais e os crimes com penas máximas não superiores a 2 anos, cumulada ou não com multa.
A Lei nº 9.099/95 regulamenta o instituto da transação penal, o qual é previsto expressamente na Constituição Federal no art. 98, I. Além disso, cria, também, a suspensão condicional do processo. Ambos institutos buscam a solução consensual e a despenalização, sendo exceções, respectivamente, aos princípios da obrigatoriedade e indisponibilidade, os quais são aplicáveis a ação penal pública. O princípio da obrigatoriedade dispõe que o Ministério Público deverá oferecer a ação penal, quando vislumbrar indícios de autoria e prova da materialidade. Já o princípio da indisponibilidade apregoa que, uma vez ajuizada a ação penal, não poderá o parquet desistir dela.
2.1. TRANSAÇÃO PENAL
Consoante BRASILEIRO (2015), “a transação penal consiste em um acordo celebrado entre o Ministério Público (ou querelante, nos crimes de ação penal privada) e o autor do fato delituoso, por meio do qual é proposta a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, evitando-se, assim, a instauração do processo”. Nesse sentido, veja-se o art. 76 da Lei nº 9.099/95:
Art. 76. Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta.
§ 1º Nas hipóteses de ser a pena de multa a única aplicável, o Juiz poderá reduzi-la até a metade.
§ 2º Não se admitirá a proposta se ficar comprovado:
I - ter sido o autor da infração condenado, pela prática de crime, à pena privativa de liberdade, por sentença definitiva;
II - ter sido o agente beneficiado anteriormente, no prazo de cinco anos, pela aplicação de pena restritiva ou multa, nos termos deste artigo;
III - não indicarem os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, ser necessária e suficiente a adoção da medida.
§ 3º Aceita a proposta pelo autor da infração e seu defensor, será submetida à apreciação do Juiz.
§ 4º Acolhendo a proposta do Ministério Público aceita pelo autor da infração, o Juiz aplicará a pena restritiva de direitos ou multa, que não importará em reincidência, sendo registrada apenas para impedir novamente o mesmo benefício no prazo de cinco anos.
§ 5º Da sentença prevista no parágrafo anterior caberá a apelação referida no art. 82 desta Lei.
§ 6º A imposição da sanção de que trata o § 4º deste artigo não constará de certidão de antecedentes criminais, salvo para os fins previstos no mesmo dispositivo, e não terá efeitos civis, cabendo aos interessados propor ação cabível no juízo cível.
Dessa forma, à luz do artigo destacado, para que possa ser concedida a transação penal pelo parquet, é necessário que a infração seja de competência dos Juizados Especiais (infração de menor potencial ofensivo), bem como que não seja o caso de arquivamento do feito. Ademais, é preciso que o agente não tenha sido condenado por pena privativa de liberdade, em decorrência de prática de crime, por meio de sentença definitiva. Exige-se, também, que ele não tenha sido beneficiado pelo instituto nos últimos cinco anos, bem como que os antecedentes, a conduta social, a personalidade do agente, os motivos e as circunstâncias indiquem ser a medida necessária e suficiente.
A proposta de solução consensual feita pelo Ministério Público precisa ser aceita pelo ofensor e, após, será submetida a apreciação do magistrado. Caso o parquet não ofereça a transação penal, consoante entendimento doutrinário, podem-se remeter os autos ao Procurador-Geral de Justiça, que poderá designar outro Promotor, propor a transação ou concordar com o não oferecimento. Aplica-se, subsidiariamente, o art. 28 do Código de Processo Penal. Há, no caso, a incidência do raciocínio da súmula nº 696 do Supremo Tribunal Federal analogicamente:
Súmula 696 do STF: Reunidos os pressupostos legais permissivos da suspensão condicional do processo, mas se recusando o promotor de justiça a propô-la, o juiz, dissentindo, remeterá a questão ao Procurador-Geral, aplicando-se por analogia o art. 28 do Código de Processo Penal.
Ressalte-se que acolhida a proposta de transação penal pelo agente não haverá a ocorrência da reincidência, apenas obsta que ele se beneficie novamente do instituto nos 5 anos seguintes, conforme §4º do art. 76 da Lei nº 9.099/95. Por fim, aceita a proposta e homologada por sentença, dessa será cabível apelação. Caso o agente descumpra os termos da transação, é possível a continuidade da ação penal, veja-se:
Súmula Vinculante nº 35: A homologação da transação penal prevista no artigo 76 da Lei 9.099/1995 não faz coisa julgada material e, descumpridas suas cláusulas, retoma-se a situação anterior, possibilitando-se ao Ministério Público a continuidade da persecução penal mediante oferecimento de denúncia ou requisição de inquérito policial.
Isso ocorre em razão de, conforme disposto na súmula, a decisão que concede a transação penal não fazer coisa julgada material, apenas formal. Para que haja o efetivo exaurimento do ius puniendi, é preciso que o acordante cumpra as condições propostas pelo Ministério Público.
2.2. SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO
A suspensão condicional do processo é um instituto despenalizador oferecido pelo Ministério Público ao acusado, o qual tenha sido denunciado por crime cuja pena mínima seja igual ou inferior a 1 ano. Precisa-se, também, que ele não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, observados os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 77 do Código Penal).
Consoante BRASILEIRO (2015), “a natureza da suspensão condicional do processo é de nolo contendere, que consiste numa forma de defesa em que o acusado não contesta a imputação, mas não admite culpa nem proclama a sua inocência. Por isso, não se confunde com o guilty plea, nem tampouco com o plea bargaining”. No guilty plea, o acusado expressamente declara sua culpa e, em contrapartida, recebe uma compensação. Já no plea bargaining, há uma “negociação de declaração de culpa”, em troca de alguma benesse, o acusado admite sua culpa. Dessa forma, em ambos há a admissão de culpa, diferente do que ocorre na suspensão condicional do processo.
O referido instituto está presente no art. 89 da Lei dos Juizados Especiais que dispõe:
Art. 89. Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 77 do Código Penal).
§ 1º Aceita a proposta pelo acusado e seu defensor, na presença do Juiz, este, recebendo a denúncia, poderá suspender o processo, submetendo o acusado a período de prova, sob as seguintes condições:
I - reparação do dano, salvo impossibilidade de fazê-lo;
II - proibição de freqüentar determinados lugares;
III - proibição de ausentar-se da comarca onde reside, sem autorização do Juiz;
IV - comparecimento pessoal e obrigatório a juízo, mensalmente, para informar e justificar suas atividades.
§ 2º O Juiz poderá especificar outras condições a que fica subordinada a suspensão, desde que adequadas ao fato e à situação pessoal do acusado.
§ 3º A suspensão será revogada se, no curso do prazo, o beneficiário vier a ser processado por outro crime ou não efetuar, sem motivo justificado, a reparação do dano.
§ 4º A suspensão poderá ser revogada se o acusado vier a ser processado, no curso do prazo, por contravenção, ou descumprir qualquer outra condição imposta.
§ 5º Expirado o prazo sem revogação, o Juiz declarará extinta a punibilidade.
§ 6º Não correrá a prescrição durante o prazo de suspensão do processo.
§ 7º Se o acusado não aceitar a proposta prevista neste artigo, o processo prosseguirá em seus ulteriores termos.
Assim, com a finalidade de que seja admitida a suspensão condicional, é preciso que o crime tenha a pena mínima cominada igual ou inferior a 1 ano, mesmo que não esteja abrangido pela Lei nº 9.099/95. Não pode o agente estar sendo processado ou ter sido condenado por outro crime, bem como é preciso que estejam presentes os requisitos do art. 77 do Código Penal:
Art. 77 - A execução da pena privativa de liberdade, não superior a 2 (dois) anos, poderá ser suspensa, por 2 (dois) a 4 (quatro) anos, desde que:
I - o condenado não seja reincidente em crime doloso;
II - a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias autorizem a concessão do benefício;
III - Não seja indicada ou cabível a substituição prevista no art. 44 deste Código.
Consoante súmula nº 696 do Supremo Tribunal Federal já mencionada, caso haja discordância entre magistrado e parquet sobre o oferecimento do instituto despenalizador, incidirá o art. 28 do Código de Processo Penal. Ressalte-se que durante o curso das condições da suspensão não correrá a prescrição.
3. HABEAS CORPUS E O TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL
O habeas corpus está previsto no art. 5º, LXVIII, da Constituição Federal, sendo remédio constitucional que será concedido quando alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder. Ele também está previsto no Código de Processo Penal nos art. 647 a 667. Trata-se de meio de impugnação autônomo que busca a proteção do direito à liberdade de locomoção, não sendo, portanto, recurso.
O referido remédio constitucional poderá ter o viés liberatório, ou seja, que se volta contra ato já perpetrado que viole a liberdade de locomoção. Há, também, a possibilidade de ser impetrado preventivamente, quando não existe ainda a violação ao direito de liberdade, porém há uma ameaça, visa-se, assim, impedir a concretização da violação. Por fim, pode-se destacar o habeas corpus trancativo, o qual almeja o trancamento do processo penal ou do inquérito policial. Segundo BRASILEIRO (2015), “sua existência pode ser extraída a partir de uma interpretação a contrario sensu do art. 651 do CPP”.
Em relação ao habeas corpus como instrumento para o trancamento da ação penal, é importante ressaltar que o entendimento do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal é de que, por demandar prova pré-constituída e dotada de absoluta certeza, somente poderá ser o instrumento apto para trancar a ação penal excepcionalmente. Para que seja utilizado, é necessário, segundo os Tribunais Superiores, manifestarem-se, de forma inequívoca e patente a inocência do acusado, a atipicidade da conduta ou a extinção da punibilidade.
3.1. RITO SUMARÍSSIMO E HABEAS CORPUS TRANCATIVO
Consoante já apontado, a suspensão condicional do processo almeja, como o nome indica, impor certas condições, a fim de que o processo seja suspenso, caso presentes os requisitos. A aceitação desse benefício não obsta o ajuizamento de habeas corpus visando o trancamento da ação penal. Nesse sentido, BRASILEIRO (2015):
Anterior aceitação da proposta de suspensão condicional do processo e sujeição ao período de prova não implica renúncia ao interesse de agir para impetração de habeas corpus com o fim de questionar a justa causa do processo. É bem verdade que, com a aceitação da proposta, o processo ficará suspenso por um período de prova que pode variar de 2 (dois) a 4 (quatro) anos (Lei nº 9.099/95). Porém, como a Lei dos Juizados prevê várias causas de revogação do benefício, é evidente que subsiste risco à liberdade de locomoção, o que autoriza a impetração do remédio heroico, caso à infração penal seja cominada pena privativa de liberdade.
Esse também é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal sobre o tema, os quais ressaltam remanescer o interesse jurídico que justifica a impetração do habeas corpus, veja-se:
O fato de o denunciado ter aceitado a proposta de suspensão condicional do processo formulada pelo Ministério Público (art. 89 da Lei nº 9.099/95) não constitui empecilho para que seja proposto e julgado habeas corpus em seu favor, no qual se pede o trancamento da ação penal. Isso porque o réu que está cumprindo suspensão condicional do processo fica em liberdade, mas ao mesmo tempo terá que cumprir determinadas condições impostas pela lei e pelo juiz e, se desrespeitá-las, o curso do processo penal retomará. Logo, ele tem legitimidade e interesse de ver o HC ser julgado para extinguir de vez o processo. (STJ. 5ª Turma. RHC 41527-RJ, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 3/3/2015.)
HABEAS CORPUS. Condição da ação. Interesse processual ou de agir. Caracterização. Alegação de falta de justa causa para ação penal. Admissibilidade. Processo. Suspensão condicional. Aceitação da proposta do representante do Ministério Público. Irrelevância. Renúncia não ocorrente. HC concedido de ofício para que o tribunal local julgue o mérito do pedido de habeas corpus. Precedentes. A aceitação de proposta de suspensão condicional do processo não subtrai ao réu o interesse jurídico para ajuizar pedido de habeas corpus para trancamento da ação penal por falta de justa causa.
(STF - RHC: 82365 SP, Relator: CEZAR PELUSO, Data de Julgamento: 27/05/2008, Segunda Turma, Data de Publicação: DJe-117 DIVULG 26-06-2008 PUBLIC 27-06-2008 EMENT VOL-02325-02 PP-00309)
Ocorre que, em relação à transação penal, há divergência entres as duas Cortes. O Superior Tribunal de Justiça entende que não é possível a impetração do remédio heroico, uma vez aceita a transação penal. Isso decorre do fato de que, segundo o STJ, quando se aceita a transação penal, não haverá mais processo penal, pois se trata de instituto que ocorre na fase pré-processual. Portanto, não restará, assim, mais processo para sofrer o trancamento, veja-se:
A transação penal, prevista no art. 76 da Lei n. 9.099/1995, prevê a possibilidade de o autor da infração penal celebrar acordo com o Ministério Público (ou querelante), mediante a imposição de pena restritiva de direitos ou multa, obstando, assim, o oferecimento da denúncia (ou queixa). Trata-se de instituto cuja aplicação, por natureza e como regra, ocorre na fase pré-processual. Por conseguinte, visa impedir a instauração da persecutio criminis in iudicio. E é por esse motivo que não se revela viável, após a celebração do acordo, pretender discutir em ação autônoma a existência de justa causa para ação penal. Trata-se de decorrência lógica, pois não há ação penal instaurada que se possa trancar. Por fim, vale asseverar que a impossibilidade de impetração de habeas corpus neste caso não significa malferimento à garantia constitucional insculpida no art. 5º, LXVIII, da Constituição Federal. Tal entendimento decorre da constatação de que, por acordo das partes, em hipótese de exceção ao princípio da obrigatoriedade da ação penal, deixou-se de formular acusação contra o acusado, possibilitando a solução da quaestio em fase pré-processual, de forma consensual. Portanto, seria incompatível e contraditório com o instituto da transação permitir que se impugne em juízo a justa causa de ação penal que, a bem da verdade, não foi deflagrada. (HC 495.148/DF, j. 24/09/2019).
Já o Supremo Tribunal Federal proclama que a aceitação da transação penal não obsta o uso do remédio para proteção da liberdade de locomoção. Para a Corte Suprema, não há nenhuma disposição legal que limite o direito de acesso à Justiça nos casos em que o agente decide aderir à proposta de transação penal. Ademais, é possível que o acordo disponha de máculas a direitos fundamentais, o que não pode afastar o controle judicial, veja-se:
A aceitação do acordo de transação penal não impede o exame de habeas corpus para questionar a legitimidade da persecução penal. Embora o sistema negocial possa trazer aprimoramentos positivos em casos de delitos de menor gravidade, a barganha no processo penal pode levar a riscos consideráveis aos direitos fundamentais do acusado. Assim, o controle judicial é fundamental para a proteção efetiva dos direitos fundamentais do imputado e para evitar possíveis abusos que comprometam a decisão voluntária de aceitar a transação. Não há qualquer disposição em lei que imponha a desistência de recursos ou ações em andamento ou determine a renúncia ao direito de acesso à Justiça. (STF. 2ª Turma. HC 176785/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 17/12/2019.)
Dessa forma, há divergência entre as duas Cortes sobre a possibilidade ou não do uso da ação de impugnação autônoma no caso de transação penal. Ressalte-se, porém, que a decisão do Supremo é posterior a do Superior Tribunal de Justiça, o que pode indicar uma prevalência do entendido pelo STF. Ademais, as duas decisões foram prolatadas pelas turmas de ambos os Tribunais, não se podendo dizer que existe, atualmente, um entendimento firmado sobre a matéria.
CONCLUSÃO
A entrada em vigor da Lei nº 9.099/95 revolucionou o entendimento tradicional sobre o processo penal, tendo em vista ter mitigado princípios basilares da ação penal pública. Ademais, implementou uma justiça voltada a reparação da vítima e não apenas na punição daquele que infringiu a lei. Para tanto, pautou-se nos princípios da celeridade, da reparação integral e da consensualidade. Um dos meios de implementação selecionados pela referida Lei Federal foi a utilização dos institutos penais despenalizadores.
Apesar de a Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais estar há mais de vinte anos em vigor no ordenamento jurídico brasileiro, ainda remanescem dúvidas práticas. Como no caso de o agente aceitar a transação penal ou a suspensão condicional do processo e, posteriormente, almejar impetrar habeas corpus. Consoante apontado, em relação a suspensão condicional do processo, não há mais dúvidas sobre a possibilidade do uso do remédio heroico, uma vez que ainda há processo, apenas está suspenso.
A divergência existente entre as Cortes Superiores relaciona-se com a transação penal, uma vez que, para o STJ, não restaria processo penal que justificasse a impetração do remédio. Já o STF centraliza-se no direito de acesso à justiça que não pode ser relativizado em desfavor do réu, o qual é beneficiado com a transação penal.
Dessa forma, não há um entendimento prevalente, haja vista as decisões terem sido posicionamentos firmados pelas Turmas de cada Corte. No entanto, uma vez que cabe ao Supremo Tribunal Federal interpretar a Constituição Federal, dando a última palavra sobre o tema no âmbito do Poder Judiciário, além de a decisão da Corte Suprema ser mais favorável ao réu (princípio do in dubio pro reo), acredita-se pela prevalência do decisum dessa.
É essencial, ainda, considerar a circunstância de que os institutos previstos pela Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais visarem proporcionar ao agente um tratamento despenalizador. Portanto, seu objetivo, obviamente, é trazer vantagens ao réu, não podendo ser utilizado como um óbice para o exercício de direitos constitucionalmente garantidos, como o da utilização do habeas corpus e o amplo acesso à justiça (inafastabilidade do Poder Judiciário). Ademais, é de se notar, também, que, conforme entendimento vinculante do STF, a transação penal não faz coisa julgada material, podendo o processo penal ser retomado, restando a possibilidade de ameaça à liberdade de locomoção caracterizada.
REFERÊNCIAS
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BRASIL. Código Penal. DECRETO-LEI No 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm >. Acesso em: 08/03/2021.
BRASIL. Código de Processo Penal. DECRETO-LEI Nº 3.689, DE 3 DE OUTUBRO DE 1941.Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm>. Acesso em: 08/03/2021.
BRASIL. Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais. LEI Nº 9.099, DE 26 DE SETEMBRO DE 1995. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9099.htm>. Acesso em: 08/03/2021.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: < https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Inicio>. Acesso em: 08/03/2021.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/principal/principal.asp>. Acesso em: 08/03/2021.
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Habeas corpus para trancamento de ação penal. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/283085d30e10513624c8cece7993f4de>. Acesso em: 08/03/2021
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. A concessão do benefício da transação penal impede a impetração de habeas corpus em que se busca o trancamento da ação penal?. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/3f78fa1cdb0e2fda88c2a935950ffdf1>. Acesso em: 08/03/2021
LIMA, Renato Brasileiro, Manual de Processo Penal: Volume Único. 3ª edição: revista, ampliada e atualizada. JusPodivm, 2015.
formada em Direito na UFC, pós-graduada em Direito Constitucional e Processual Civil.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VASCONCELOS, Brenda Aguiar. Habeas Corpus para o trancamento da ação penal no âmbito dos Juizados Especiais Criminais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 mar 2021, 04:54. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56249/habeas-corpus-para-o-trancamento-da-ao-penal-no-mbito-dos-juizados-especiais-criminais. Acesso em: 23 dez 2024.
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