GUSTAVO OCTAVIANO DINIZ JUNQUEIRA: Doutor e Mestre em Direito Penal pela PUC/SP. Professor de Direito Penal da PUC-SP. Defensor Público do Estado de São Paulo
RESUMO: O presente artigo analisa a medida cautelar do julgamento da ADPF 779/DF sob a perspectiva de uma criminologia crítica feminista, e de um panorama histórico das formas de tratamento das mulheres na legislação, demonstrando a ineficácia do direito penal simbólico para proteger a violência de gênero no âmbito doméstico. Coloca em foco a falta de delimitação do termo “legítima defesa da honra” pelo julgado, o que gera insegurança jurídica, ao permitir que qualquer tese levantada pela defesa que destaque contexto de traição pela mulher, seja levada a anulação, caso haja absolvição; sem demarcar que o que se pretendia evitar era o discurso de ódio relacionado ao gênero. Aponta o erro da decisão do Supremo Tribunal Federal por violar as garantias constitucionais do Tribunal do Júri, especialmente a competência exclusiva para julgar crimes dolosos contra a vida, a plenitude de defesa, e a soberania dos vereditos; demonstrando ser a medida cautelar inconstitucional.
Palavras-chaves: ADPF 779/DP. Medida Cautelar. STF. Legítima defesa da honra. Direito Penal. Criminologia crítica. Feminismo. Inconstitucionalidade. Garantias do Tribunal do Júri.
Sumário: 1. Introdução. 2. A legítima defesa da honra. Definição do termo e limitação. 3. Olhar crítico sobre a evolução legislativa da tutela de violência de gênero. 4. Da ineficácia do direito penal para solução da violência contra a mulher. 5. Da ineficácia da decisão e sua inconstitucionalidade. 6. Conclusão. 7. Referências.
1. INTRODUÇÃO
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADPF 779/DF, concedeu medida liminar para afastar a tese da legítima defesa da honra como tese de absolvição em processos que mulheres sejam vítimas de homens no ambiente de violência doméstica.
O objetivo do presente trabalho é demonstrar o erro da decisão que, além de ineficaz por não instrumentalizável, não contribui para a tutela da dignidade da pessoa humana das mulheres ou mesmo para a diminuição da violência de gênero, além de ser inconstitucional, na medida em que viola a plenitude de defesa assegurada nos casos de júri.
Como objetivos secundários, o trabalho buscará analisar a ilegitimidade do direito penal simbólico e sua ineficácia para a diminuição da violência de gênero, mormente quando divorciada de práticas que sirvam para combater a cultura machista impregnada no condenado e na sociedade. É ainda objetivo do presente trabalho demonstrar que há diferença entre um crime praticado por ciúme ou sentimento de posse e o discurso de ódio relacionado ao gênero, que poderia caracterizar a legítima defesa da honra. Por fim, o trabalho busca esclarecer que a plenitude de defesa é garantia individual e fundamental no julgamento pelos pares, que é a essência do Tribunal do Júri, e a decisão oriunda do Supremo Tribunal Federal, órgão composto por juízes togados que não deve ter poder de condenar o cidadão nos crimes dolosos contra a vida, é inconstitucional por usurpar o poder dos juízes leigos e, ainda, por restringir a plenitude da defesa que passa a ter limites ainda mais tímidos que a mera ampla defesa.
No primeiro capítulo, o trabalho busca uma definição do que seria a legítima defesa da honra, tentando delimitar o sentido da vedação ora imposta pelo STF. No capítulo seguinte, o texto analisa criticamente a evolução legislativa da tutela de violência de gênero, partindo das Ordenações Filipinas e chegando na Lei Maria da Penha e na qualificadora do feminicídio. No terceiro capítulo, o objetivo é criticar o emprego do Direito Penal predominantemente simbólico que, sob a promessa de diminuir a violência de gênero, acaba por incrementá-la. No quarto e último capítulo, desnuda-se a ineficácia da decisão e sua inconstitucionalidade, uma vez que será impossível o controle técnico dos limites da tese defensiva e dos votos dos jurados, dada a incompatibilidade da vedação imposta, na decisão liminar, com o espírito do comando constitucional de atribuição de poder jurisdicional aos jurados, e à plenitude da defesa.
O método utilizado será descritivo, partindo da pesquisa bibliográfica e legislativa, e ainda crítico e exploratório, na medida em que buscará valorar a eficácia da medida e testar sua compatibilidade com a Constituição.
2. DA LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA. DEFINIÇÃO DO TERMO E LIMITAÇÃO.
Recentemente houve a publicação da liminar conferida pelo Ministro Dias Toffoli na arguição de descumprimento de preceito fundamental número 779/DF. A medida ainda não é definitiva, mas já traz grandes discussões no meio jurídico. Se por um lado setores feministas elogiaram a medida por entender que há, de acordo com a medida liminar, um reconhecimento de proteção maior aos direitos das mulheres, por outro lado, estudiosos e profissionais que atuam perante o Tribunal do Júri veem com preocupação a medida adotada, sustentando violação às garantias constitucionais do Tribunal do Júri.
A referida ADPF pretende que seja dada interpretação conforme a Constituição Federal dos artigos 23, II, 25, caput e parágrafo único, todos do Código Penal, bem como do art. 65, do Código de Processo Penal, a fim de que seja afastada a tese da legítima defesa da honra como tese de absolvição a ser trazida pela defesa, em processos criminais que sejam réus homens a que sejam imputados crimes contra as mulheres em contexto de violência doméstica. E, requer, segundo a petição inicial, “se achar necessário”, que também seja conferida interpretação conforme a Constituição do art. 483, III, §2º, do CPP. Aduz para tanto, que há violação dos artigos 1º, caput e inciso III; 3º, inciso IV, e 5º, caput e inciso LIV, da Constituição Federal.
É importante ressaltar que o pedido referente ao art. 483, III, §2º, do CPP, coloca em discussão o quesito genérico de absolvição, em que se defende que os jurados podem, por qualquer motivo, consubstanciados em sua intima convicção, absolver o acusado sem qualquer fundamento; inclusive por clemência.
Assim, nesta toada, o voto publicado do Ministro Dias Toffoli, em resumo, argumenta que a legítima defesa da honra não seria propriamente a causa de excludente de ilicitude trazida no art. 25, do Código Penal por não se coadunar com o referido instituto jurídico. Defende que a tese da legitima defesa da honra se aproximaria mais dos institutos mencionados no art. 28 do Código Penal, que explicitamente afastam a possibilidade de inimputabilidade penal. Segue nesta linha de raciocínio, traçando a honra como atributo pessoal, e que sua ofensa através do adultério, não configura injusta agressão a ser repelida.
A partir do entendimento de que não configuraria legitima defesa propriamente dita, aponta que se trata de retórica e argumento de defesa que transfere às vítimas a responsabilidade por sua própria morte, e define tal tese como “odiosa, desumana e cruel”, e que vem “contribuindo imensamente para a naturalização e a perpetuação da cultura de violência contra as mulheres no Brasil.”
O julgado segue, ainda, abrindo abre três tópicos para analisar a questão.
No primeiro deles, aponta que há violação à dignidade da pessoa humana, à vedação de discriminação e aos direitos à igualdade e à vida, e por isso a tese da legítima defesa da honra não pode ser veiculada dentro do sistema criminal, inclusive, no Tribunal do Júri. Traz contexto histórico sobre o patriarcado, e aponta dispositivo constitucional que prevê a criação de mecanismos para evitar a violência doméstica, (art. 226, §8º, CFRB).
Posteriormente, no segundo tópico, enfrenta o impacto da proibição do uso da tese sob a garantia constitucional, cláusula pétrea, da plenitude de defesa. De maneira superficial, conclui que a plenitude de defesa não pode servir de salvaguarda para o cometimento de feminicídio ou qualquer violência contra mulher no país.
Por último, traz à tona também a cláusula pétrea da soberania do veredicto. Neste sentido, aponta que ainda defende seu voto em decisão anteriormente proferida em caso individual, no qual entendeu que o Ministério Público não poderia recorrer da sentença de absolvição no Tribunal do Júri, com fundamento desta ser manifestamente contrária a prova dos autos, quando a improcedência da ação penal foi conferida em reposta ao quesito genérico sobre absolvição, terceiro a ser formulado, conforme dispõe o Código de Processo Penal.
Isto porque, a reforma do CPP, em 2008, trouxe a possibilidade de os jurados votarem de acordo com sua intima convicção, sem a necessidade de fundamentação, o que leva a não certeza dos motivos que ensejaram o voto de absolvição dos jurados, e por isso, não há possibilidade de se delimitar o que teria sido manifestamente contrário à prova dos autos, que desse azo ao recurso da acusação.
No entanto, contraditoriamente, o voto decide que a tese da legitima defesa da honra, se for veiculada direta ou indiretamente pela defesa, e houver absolvição declarada pelos jurados no quesito genérico inserido pós reforma de 2008, o recurso cabível a ser utilizado pela acusação é com fundamento na alínea d, inciso III, do art. 583, do CPP, com fundamentação na decisão manifestamente contrária à prova dos autos.
Diante de todo voto apresentado, não se nega o louvável esforço do STF em colocar luz sob o direito das mulheres, mas o resultado pode e deve ser criticado sob o prisma da criminologia crítica feminista, e ainda por argumentos garantistas e abolicionistas.
De antemão, no que tange ao conceito de legitima defesa da honra, é preciso trazer à tona que não houve qualquer preocupação pela Corte Constitucional em delimitar seu preciso alcance, fazendo com que essa incerteza sobre o conteúdo da tese amplie ainda mais a preocupação quanto ao julgado.
A “honra” está no Código Penal dentro capítulo V, que enuncia os “Crimes contra a Honra”, e traz os crimes de calúnia, injúria e difamação. Do ponto de vista penal está ligada a atributos pessoais do cidadão, e que possui tutela jurídica. Conforme Bittencourt: honra é valor imaterial, insuscetível de apreciação, valoração ou mensuração de qualquer natureza, inerente à própria dignidade e personalidade humanas, (BITENCOURT, 2020, p. 1024-1025).
Por outro lado, a honra ligada ao homem submetido ao patriarcado se aproximaria mais da virilidade, da sua masculinidade, que tem como pressuposto dentro da sociedade machista, um nível estruturante superior aos das mulheres, e seria esse conceito de honra, que atingido, legitimaria a morte da companheira afetiva. Esse conceito de honra está intimamente ligado a um discurso de ódio, em que mulheres são colocadas em patamar inferior, e por consequência objetificadas, com autorização do sistema jurídico para serem mortas.
Dentro desta visão acima exposta, o que parece que pretende a decisão do Supremo Tribunal Federal, é limitar discursos de ódio no plenário do Tribunal do Júri, ou especificamente casos que envolvam violência contra a mulher dentro do âmbito doméstico. Pretende evitar um discurso de ódio contra minorias, em que se diga que mulheres merecem morrer simplesmente serem mulheres, da mesma forma, que seria inconcebível que se dissesse que judeus merecem morrer por serem judeus; negros por serem negros, e comunidade LGBTQI+, por serem LGBTQI+.
Dentro desta perspectiva, é de fato inconcebível qualquer discurso neste sentido.
Ocorre que a decisão não traça de forma certeira o que se pretende coibir, fazendo entender ao país, e ao sistema de justiça como um todo, que qualquer situação em que haja traição por parte da mulher dentro da dinâmica conflitiva do casal não possa ser levantada, sequer citada, dentro do contexto fático a ser explanado na tribuna, ou em qualquer outro julgado. Assim, se lançado em plenário, que dentro daquele crime a ser discutido e defendido houve uma traição por parte da mulher, o Ministério Público poderia se insurgir, requerendo que conste em ata de julgamento a menção à traição, e tal desiderato já faria com que houvesse motivos para cassação da decisão caso houvesse absolvição no quesito genérico. Seria uma arma ao dispor da acusação para anular casos quando discordasse do veredicto não pelo uso do argumento, mas pelo resultado absolutório.
Mesmo se tratando de menção necessária fática para explicar o contexto de como se deu o crime, não poderia ser mencionado, sequer tangencialmente, muito menos para afirmar situações de violenta emoção, que são expressamente previstas como causas de diminuição de pena nos crimes de homicídio; ou casos de ciúmes, em que muitas vezes vem elencado como qualificadora do crime, e precisam ser discutidos pela defesa sobre o alcance dessa circunstância como qualificadora ou não.
Ao se pretender, ao que tudo indica, coibir um discurso de ódio contra o gênero feminino, não se define o que seria legítima defesa da honra propriamente dita, e deixa um vácuo que será preenchido casuisticamente em cada julgamento, a depender dos entendimentos dos atores de justiça.
3. OLHAR CRÍTICO SOBRE A EVOLUÇÃO LEGISLATIVA DA TUTELA DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO
O conceito de que foi o comportamento da mulher que levou a fatalidade da sua própria morte, é estreitamente veiculado ao conceito de mulher honesta, que segue vitimizando mulheres nos crimes relacionados à violência de gênero (vitimização primária) como no processo penal (vitimização secundária).
Conforme trazido no próprio corpo do voto da medida liminar, os ordenamentos jurídicos desde a colonização portuguesa, sempre reforçaram o patriarcado, colocando as mulheres como objetos do sistema penal, sem autodeterminação.
Renata Davis aponta que nas Ordenações Filipinas, primeiro documento que pode ser analisado como vinculante de responsabilização no Brasil (ainda colônia), as mulheres poderiam ser mortas, assim como seus amantes, por decisão dos seus maridos, em caso de adultério. As Ordenações Filipinas sequer possibilitavam que o homem fosse sujeito ativo do mesmo crime, de adultério, cabendo tão somente às mulheres a conduta criminosa. Além disso, no tratamento dos crimes sexuais, somente as mulheres poderiam ser vítimas, traçando diferenças entre as ofendidas, podendo ser mulheres honestas, ou prostitutas, e outras categorias ali fomentadas. Davis aponta uma preocupação muito maior com o impacto dessas violações nas ordens familiar do que no direito sexual da mulher violado (2018, p. 184-185).
Posteriormente, o Código Criminal do Império, do ano de 1830, também continua na mesma linha das Ordenações Filipinas a diferenciar as mulheres entre virgens, honestas, e prostitutas; inclusive, a categorização trazia impacto na quantidade da pena a ser imputada ao autor do crime (maior para aqueles que cometessem o crime contra mulheres honestas, do que aqueles que cometessem contra mulheres prostitutas). Além disso, no que se refere o crime de adultério, apesar de poder ser praticado, aqui, também por homens, havia diferença no tipo penal, eis que para estes últimos era exigido a elementar do concubinato; diferente das mulheres que até mesmo adultérios eventuais eram criminalizados. Em seguida, o Código Penal da República, também seguiu dividindo as mulheres, e seguiu na mesma lógica de diferenciar o adultério praticado por homens daqueles praticados por mulheres, (DAVIS, 2018, p. 185-186).
Mesmo com o advento do Código Penal atual, datado de 1940, houve a sistematização que diferenciava a qualidade das mulheres, que permaneceu até 2005 nos crimes como posse sexual mediante fraude e atentado violento ao pudor mediante fraude. O ponto 50 da Exposição de Motivos do Código Penal, em 1984, trazia que o pouco recato da vítima, nos crimes contra os costumes, deveria ser considerado no momento de aplicação da pena, em conformidade com o art. 59 do Código Penal, (DAVIS, 2018, p. 187-188).
É importante demonstrar que a própria doutrina à época construía conceitos de “mulher honestas” para integrar a norma penal. Assim, NELSON HUNGRIA e MAGALHÃES NORONHA traziam, em suas clássicas doutrinas de Direito Penal, conceitos de “mulher honesta”, sempre relacionados com a vida sexual regrada.
O conceito de mulher honesta, enraizado na nossa dogmática jurídica desde a colonização, permeia até hoje a validação da mulher como vítima de crimes, e conforme demonstra MELLO, tal conceito acabava sendo visitado para as vítimas dos crimes de estupro e de homicídio, mesmo não estando incluído nestes tipos penais, (2010, p. 139).
A indevida atenção à vida sexual das vítimas de crimes contra a dignidade sexual pôde ser facilmente demonstrado com o caso da MARIANA FERRI, que causou bastante espanto na sociedade em geral - que não está acostumada a lidar com o sistema de justiça penal em seu dia-a-dia. A divulgação da mídia da audiência que colhia as declarações da vítima em juízo escancarou a perversidade da revitimização das mulheres que depõem como ofendidas nos referidos crimes, e deixou claro que o conceito de mulher honesta ainda está incutido no sistema de justiça, pois de outra forma o advogado não se daria ao trabalho de performar daquela maneira com as fotos retiradas das redes sociais de Mariana.
Em 2006, nasceu a Lei Maria da Penha, peça de resistência no arcabouço trazido pelo sistema penal, com luz patriarcal, inserido em um machismo estrutural e institucional. A edição da Lei Maria da Penha cumpriu um papel constitucional e de tutela de direitos humanos ao dar efetividade à Convenção do Belém do Pará, após a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em 2001, ter concluído que o Brasil teria violado artigos da Convenção Americana, ao negligenciar a condução do caso específico daquela que deu nome à lei, demorando mais de 15 (quinze) anos para dar uma resposta efetiva do sistema de justiça.
A Lei Maria da Penha não pretendeu criar tipos penais, mas trouxe uma gama de inovações para efetivar o direito das mulheres e frear as situações de violência no âmbito doméstico. Neste aspecto, introduziu conceitos sobre violência doméstica, abrindo os horizontes para as violências psicológicas e patrimoniais, art. 5º, LMP. Também trouxe mandados de prevenção no art. 8º, LMP, e elencou medidas protetivas de urgência que obriguem ao agressor, e aquelas que se dirijam especificamente à mulher para sua proteção nos arts. 22 e 24, da lei 11.343/06. Exigiu, ainda, audiência especial no caso de crimes condicionados à representação, em que as mulheres queiram renunciar à representação, art. 16, da lei 11.343/06. Além disso, trouxe o mandamento de lesão corporal advinda do âmbito de violência contra a mulher, mesmo que leves, devem ter natureza de ação pública incondicionada, e também a proibição da aplicação da lei 9099/95 para crimes no âmbito da violência doméstica.
Essa inovação legislativa trouxe impacto na condução dos casos de violência doméstica dentro do judiciário. Marília Montenegro, em estudo empírico realizado na cidade de Recife, demonstra que, com a ausência da aplicação da lei 9.999/95 no âmbito da violência doméstica, as prisões dos agressores aumentaram, trazendo um efeito colateral sério: muitas mulheres, segundo a pesquisa, não buscavam o cerceamento de liberdade dos seus agressores, com os quais possuem um vínculo íntimo muito forte, e muitas vezes familiar. A consequência é que, para conseguir livrar aquele homem do cárcere, as mulheres, quando ouvidas, amenizavam o fato criminoso. Tal cenário, faz com que os atores do sistema de justiça coloquem essas mulheres como malucas, irresponsáveis, e muitas vezes, inclusive, imputando a elas, o crime de denunciação caluniosa, que tem pena mais alta que os crimes de lesão corporal, e ameaça, por exemplo (MONTENEGRO, 2015, p. 169-194).
Este aspecto dialoga fortemente com a questão exposta acima sobre quem é a mulher que pode ser vítima, ou seja, a mulher honesta, que tem todo um condão de idoneidade para que possa ser ouvida, e falar a verdade sobre os fatos. A narrativa da mulher que não colabora com a justiça, é a mulher louca, e que não consegue se autodeterminar, violando novamente os direitos das mulheres, e as objetificando.
Segundo a pesquisa, a maior reclamação das mulheres é a falta de espaço para serem ouvidas. Todo contexto de violência doméstica tem alicerces muito mais profundos que tão somente o fato criminal imputado ao homem, se irradia dentro do direito das famílias, dentro do direito civil, e dentro de questões sociais, econômicas e estruturais, que vivem aquele núcleo familiar, mas que não tem qualquer acolhimento dentro do sistema de justiça criminal, (MONTENEGRO, 2015, p. 169-194).
A pesquisa também aponta quem são essas vítimas, trazendo dados importantes, que dialogam com a questão de classe, eis que a maior parte possui baixa escolaridade, baixo poder aquisitivo, tratando-se a maioria de trabalhadoras domésticas, idade entre 31 e 40 anos, e relações entre vítima e agressor de 15 a 30 anos de convívio. Ou seja, se tenta solucionar tão somente com o Direito Penal questões enraizadas há tantos anos dentro de um núcleo familiar, (MONTENEGRO, 2015, p. 169-194). A condenação criminal é pontual, suspende o conflito, e é inadequada para resolver relações perenes.
Ana Flauzina, em perspectiva do feminismo negro, aponta que as maiores vítimas das violências de gênero seriam as mulheres negras, trazendo à tona estudos que demonstram que mulheres negras tem três vezes mais chances de sofrerem violências de gênero, do que as mulheres brancas. E não deixa de apontar a falta de resposta do sistema de justiça aos casos de violências de gênero, que é o segmento mais afetado com a política punitivista, (FLAUZINA, 2018, p. 116-118).
A autora apesar de conclamar as medidas trazidas pela Lei Maria da Penha demonstra que o sistema de justiça, dentro do âmbito dos Juizados de violência doméstica, não é satisfatório. Uma das críticas gira em torno do art. 16, da Lei 11.340/06, que por um lado buscou proteger as mulheres das investidas do agressor em que retirassem as representações ofertadas contra eles, por outro, gerou um confisco do direito das mulheres na gerência e condução dos casos. Desta forma, mais uma vez, fica claro que uma das maiores problemáticas enxergadas hoje no sistema da LMP, dentro do âmbito do sistema de justiça, especialmente nos juizados de violência doméstica, é a ausência de capacidade de escuta das mulheres, e até a falta de compreensão dessas quanto a dinâmica processual e opções fornecidas às vítimas, (FLAUZINA, 2018, p. 126-128).
FLAUZINA propõe que uma boa alternativa não prisional, que dialoga com a pretensão das mulher vítimas, é a utilização do instituto da suspensão condicional do processo, eis que é célere – fugindo dos processos morosos que se instalam, e das consequentes prescrições do direito de punir -, e se aplicado de forma lúcida, para casos que de fato possam ser trabalhados desta forma (excluídos as violências mais exacerbadas, que sequer se encaixariam na possibilidade), permitem que o agressor seja monitorado durante todo o período de provas, possibilitando que o réu tenha acesso as equipes multidisciplinar do Juizado de Violência Doméstica, e que a vítima, se forem ameaçadas/agredidas novamente, ou se houver descumprimento da medida protetiva que lhes foi conferida, informem prontamente nos autos do processo; e levando a continuidade da colheita de provas para eventual futura condenação, (2018, p. 133-136).
O uso da suspensão condicional do processo teve êxito no Distrito Federal, conforme pesquisa empírica realizada[1], e a possibilidade do uso do instituto do artigo 89 da lei 9.999/95 seria fruto da interpretação de que o instituto se aplica a qualquer crime da justiça comum, e por isso, não estaria abarcado pela ADI 4424, do STF, que declarou a constitucionalidade do artigo 41, da lei 11.340/06, (FLAUZINA, 2018, p. 133-136).
Um dos pontos exitosos na sua utilização, é justamente evitar que a vítima tente por meios próprios, em juízo, retificar o dito em delegacia, a fim de livrar seu agressor das penas advindas dos crimes perpetrados, muitas vezes, caindo no crime de denunciação caluniosa. Acaba facilitando a solução do conflito, e ainda evita o cárcere, (FLAUZINA, 2018, p. 116-118).
Resta evidente que a efetivação dos direitos das mulheres, e a luta feminista, deve dialogar com a crise penal que se enfrenta na atualidade. Neste sentido, Ana Flauzina escrevendo sobre a inovação legislativa da qualificadora do feminicídio no crime do artigo 121, do Código Penal, aponta como o incremento de encarceramento de homens traz uma função especial, e de dependência do Estado quanto as mulheres, objetificando mais uma vez as mulheres, e as tratando de forma utilitarista (FLAUZINA, 2016, p. 99-100).
Dentre os aspectos que revitimizam a mulher com a exacerbação do encarceramento é possível destacar o sustento material dos presos, pois o Estado espera que a família – ou seja, as mulheres - arque solidariamente com os custos e manutenção dos presos no cárcere. Há ainda exploração sexual das mulheres quando são submetidas a revistas vexatórias, com um sofrimento equivalente ou maior do que uma sanção. São também instrumentalizadas quando, servem de instrumento para controle dos presos quando se condiciona à visita íntima ao bom comportamento e obediência do preso. São, por fim, o elo do preso com o sistema de justiça penal, pois são as mulheres familiares daqueles presos que buscam informação, levam documentos necessários às repartições públicas, etc., com especial destaque para as mulheres negras, (FLAUZINA, 2016, p. 99-100).
4. DA INEFICÁCIA DO DIREITO PENAL PARA SOLUÇÃO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER
A ineficácia do encarceramento como instrumento para contenção da violência de gênero é ainda demonstrada dados, que indicam (IPEA/FBSP, 2018; 2019; CNJ, 2018) que a mudança na percepção social da violência doméstica e familiar não significou sua diminuição. O sistema penal não é instrumento para solução de conflitos, uma vez que o Estado confisca o conflito e não permite que os envolvidos possam buscar uma solução. Aliás, é irracional imaginar que enjaular o agressor em uma cela lotada, na qual a agressividade e a violência são armas de sobrevivência e o machismo é cultuado, possa propiciar uma solução consensual do conflito de gênero com a soltura. É visível a união de um dos movimentos mais conversadores dentro da criminologia, o movimento LEI e ORDEM como aliado a um dos setores mais progressistas também da criminologia, que seria o setor feminista. No entanto, o sistema penal não pode ser aliado na luta feminista, porque, no fim, gera ainda mais exclusão e preconceito, (ANDRADE, 1997, p. 43).
A criação da qualificadora do feminicídio, em que seu poder simbólico, não teve eficácia na redução da violência de gênero, conforme já previa ANA FLAUZINA, quando afirmou: “Ao que tudo indica, o tempo de reclusão imposto aos homens não tem servido como forma de coibir os hematomas, os espancamentos, as lacerações, as queimaduras, a morte. A receita propagada de mais cárcere cheira a comida requentada: não há ingrediente novo para se alterar substancialmente “solução” já em vigor.” (FLAUZINA, 2016, p. 97).
Repita-se: o sistema penal é ineficaz para proteger as mulheres contra a violência, porque não previne e resolve os conflitos, não transforma as relações de gênero, e não cria um canal de oitiva das vítimas. Além disso, acaba por revitimizar a mulher, ao coloca-la para ser ouvida em juízo, e ser submetida, dentro do processo, à análise de seu comportamento sexual, de suas relações com a vizinhança e seu sucesso ou fracasso profissional, quando já não rotuladas como possíveis mentirosas a descreverem crimes que não teriam ocorrido. (ANDRADE, 1997, p. 46-47).
É necessário investir em outras frentes, como educação nas escolas sobre o tema, mas tal óbvio caminho é hoje barrado por política educacional que vê nas lições sobre direitos das mulheres algo reprovável que seria qualificado como “ideologia de gênero”. Em outras palavras, educa-se o homem para o preconceito de gênero, aguardando o momento de puni-lo pela violência de gênero, como se o objetivo fosse a pena, e não a prevenção da violência. É alarmante que técnicas não penais para prevenir a violência contra as mulheres em âmbito doméstico sejam rejeitadas por uma onda conversadora instalada, e que o direito penal, sempre torturador e seletivo, seja colocado como a única salvação do direito das mulheres.
A discussão sobre a admissibilidade da legítima defesa da honra deve ser permeada pela premissa de ineficácia da solução penal para cumprir a promessa de conter a violência. O STF acaba por desenvolver um anúncio e criar um lobby de uma pauta que não se mostra efetiva ao evocar para o direito penal a solução dos conflitos das mulheres vítimas de violência, e que, ainda, desrespeita os enunciados constitucionais e legais do Tribunal do Júri.
5. DA INEFICÁCIA DA DECISÃO E SUA INCONSTITUCIONALIDADE
Sabe-se que a tese que se pretende extirpar através da ADPF aqui discutida caiu em desuso ao longo dos anos, conforme afirma Carmen Hein de Campos e Kelly Gianezini:
“No âmbito jurídico, o entendimento da violência doméstica também vem sendo alterado. Se na década de setenta havia o acolhimento da tese da “legítima defesa da honra masculina” (PIMENTEL, PANDJIARJIAN, BELLOQUE, 2006) para homens que matavam mulheres por suposto adultério, hoje tem-se como inaceitável.” (HEIN E GIANEZINI, 2019, p. 254)
Diante desta perspectiva, não se pode deixar de citar artigo da defensora pública Renata Tavares, atuante no Tribunal do Júri, que discute um limite ético na defesa dos acusados, e com isso, descarta teses que sirvam para estigmatizar as mulheres vítimas de violência, em especial a tese da legítima defesa da honra, ou qualquer outra tese que sirva a violar direitos humanos[2], permitindo concluir que há uma busca por um discurso defensivo ético e promovedor de Direitos Humanos, (COSTA, 2015, p. 207)
Se antes a tese era utilizada de forma indiscriminada, e teria sido inclusive fundamento para absolver, no primeiro julgamento, o famoso Doca Street, responsável pela morte de Ângela Diniz -, que teve, atualmente, ampla divulgação através do podcast Praia dos Ossos, divulgado pela Rádio Novelo -, hoje não se coaduna mais com as pautas e avanços existentes no tema.
Assim, trazer a proibição de levantar a tese no plenário, acaba mais por abrir precedentes para ferir o direito de plenitude de defesa, do que por ajudar propriamente as mulheres, eis que conforme já afirmado, a tese encontra-se completamente anacrônica.
Um ponto nevrálgico que vem de encontro à garantia constitucional da plenitude de defesa é sobre a extensão da vedação da tese da legitima defesa da honra, já que a decisão expressa que a tese não poderia ser avocada direta ou indiretamente. O último termo “indiretamente” ainda causa maior incerteza jurídica.
Como exposto no voto, e também pelo que se entende de legitima defesa da honra, tal tese se refere a possibilidade de se matar ou lesionar a vítima em razão de traição afetiva praticada pela mulher. No entanto, a prática do crime pelo homem pungindo por tal desiderato, mesmo que reprovável, muitas vezes vai fazer parte da narrativa sobre aquele crime, para explicar a própria dinâmica dos fatos, até mesmo as testemunhas relatando que houve traição previamente.
Mesmo que a defesa não sustente a legitima defesa da honra, pode em sua narrativa demonstrar que houve uma traição prévia, e mesmo sem desqualificar de qualquer a forma a vítima, conseguir por razões outras, que nunca estarão declaradas pelos jurados, em razão da íntima convicção que caracteriza o julgamento no júri.
A título de exemplo, crimes que ocorreram há muito tempo, em processos em prisão cautelar, levam a uma inclinação maior dos jurados em absolver, ainda mais se aquela pessoa a ser julgada já constituiu nova família, possui trabalho lícito, e nunca mais teve o peso da justiça sobre a suas costas desde o cometimento do crime antigo. Imbuídos por esse aspecto, no que se pode chamar de clemência, os jurados podem absolver o réu. No entanto, o Ministério Público insatisfeito com o resultado pode recorrer alegando que houve sustentação indireta da tese da legitima defesa da honra, eis que a defesa nos debates disse que o crime foi cometido após traição. Narrar os fatos que embalaram aquele crime e que traga traição por parte da mulher sempre será argumento para legitimar um recurso infundado da acusação.
É preciso com isso, ainda, relembrar o art. 28 do Código Penal já trazido neste artigo, e trazer à tona, o art. 121, §1º, também do Código Penal. É certo que emoção e paixão não excluem a imputabilidade penal, porém, o legislador, especificamente no que toca ao crime de homicídio, trouxe expressamente a hipótese de diminuição da pena, em caso de violenta emoção após injusta provação da vítima, é o que se chama pela doutrina de homicídio privilegiado.
A violenta emoção é definida como excitação de um sentimento, de amor, ódio, rancor, que levar a perda do autocontrole da pessoa que acaba por cometer o crime, (NUCCI, 2020, p. 848). O Código Penal expressamente traz hipóteses em que a pena pode ser diminuída diante da emoção desproporcional que é tomada aquela pessoa, o que por si só, poderia trazer para dentro da tese jurídica da defesa, a traição da esposa como ímpeto para uma violenta emoção. No entanto, diante do julgado posto na medida cautelar, se põe a dúvida se a traição prévia da vítima como fator de violenta emoção seria mais um caso de uso indireto da tese legitima defesa da honra. Se a defesa alegar o privilégio passional em razão de traição, o desate absolutório dos jurados poderia provocar a anulação, já que não se saberia a razão do veredicto?
Em primeiro momento, pode-se pensar que não, eis que a legitima defesa da honra como posta no julgado busca evitar discursos de ódio contra gênero feminino dentro plenário, enquanto por outro lado, tecnicamente, a causa de diminuição de pena foi expressamente prevista pelo legislador, e se refere a dogmática penal e legislativa, o que não permitiria anulação. No entanto, a ausência de definição da tese da legítima defesa da honra, levaria acusadores e julgadores a levantar, durante os debates, o uso da tese legítima defesa da honra, de forma indireta, aniquilando a garantia máxima da plenitude de defesa.
O Tribunal do Júri previsto constitucionalmente foi trazido pelo constituinte originário com suas garantias previstas na Carta Magna, para que seja substancialmente válido, e não somente formalmente previsto. Para assegurar a forma especial do Tribunal do Júri, e determinar a essência do Tribunal Popular, foram elencados no texto constitucional as garantias da plenitude de defesa; o sigilo das votações; a soberania dos veredictos; a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. (DAPINÉ, 2008, 66).
A plenitude de defesa, que como o próprio nome acentua, assegura uma maior proteção ao direito de defesa do que a própria ampla defesa. Esta garantia foi prevista no Tribunal do Júri porque os destinatários da prova, e como consequência, julgadores da causa, são juízes leigos, que não tem fundamentam suas decisões; o que leva a necessidade de se garantir a defesa uma atuação de forma perfeita e completa, para que seja dada plena viabilidade defensiva ao réu, (NUCCI, 2020, 154-155).
Sob a luz da garantia da plenitude de defesa, é possível a defesa técnica alegar mais que teses jurídicas, e buscar no âmbito extrajurídico teses que sejam de ordem social, emocional, econômica, religiosa, e que extrapolem a tecnicidade do Direito, (LIMA, 2020, p. 1.442).
A limitação que impõe o STF sobre a tese da legítima defesa honra, que, mais uma vez, possui conceito jurídico indefinido, traz implicação no cerceamento a essa defesa plena garantida no Tribunal do Júri, de ordem constitucional, prevista dentro do rol do art. 5º que faz parte do Título dos Direitos e Garantias Fundamentais, e por isso, evidente cláusula pétrea, conforme prescreve o art. 60, §4º, IV, da CRFB.
A indefinição da amplitude da tese da legitima defesa da honra e vedação de levantar qualquer forma indireta da tese, que por consequência cerceiam a plenitude de defesa, não pode ser sustentada pela existência do art. 478, do CPP, que segundo os peticionantes da ADPF também seria limitante do direito de defesa, e, consequentemente, da plenitude de defesa.
Lendo detidamente o art. 478 e seus incisos, é fácil verificar que as proibições de uso do plenário da (i) decisão de pronúncia, às decisões posteriores que julgaram admissível a acusação ou à determinação do uso de algemas como argumento de autoridade que beneficiem ou prejudiquem o acusado; e (ii) ao silêncio do acusado ou à ausência de interrogatório por falta de requerimento, em seu prejuízo, - dizem respeito a uma vedação muito maior à acusação do que a própria defesa, eis que tentam evitar que discursos sem conexão com os fatos sejam utilizadas em prejuízo do autor; especialmente a vedação as referências em plenário do uso de algemas e do silêncio do acusado.
No que tange a proibição de utilizar a decisão de pronúncia e decisões posteriores que julgaram admissível a acusação, também se refere a uma proibição muito maior para a acusação, eis que pretendem que o acusador se utilize de fundamentos trazidos pelo juiz togado para que convençam o juiz leigo, verdadeiro julgador da causa no Tribunal do Júri, por meio de argumentos que se revestiriam de maior técnica e saber jurídico, utilizando tal argumentação como autoridade para convencer os jurados de que devem votar no sentido do entendimento do juiz togado. Tal prática se afastaria por completo da instituição do júri, que pretende que pessoas do povo, daquela comarca que ocorreu o crime, julguem de acordo com seus pontos de vista e suas histórias de vida, conhecedores das características da localidade e de seus habitantes, se afastando da postura completamente imparcial e distante do juiz togado.
Outro ponto que merece ser sublinhado no que tange a vedação do artigo 478, do CPP de referência à pronúncia e as decisões que as confirmaram, é que não significa que a defesa não possa utilizar a mesma para que seja imposto os limites dos debates em plenário, e principalmente na formulação da quesitação. Isto porque o art. 482, parágrafo único, do CPP, expressamente dispõe:
Os quesitos serão redigidos em proposições afirmativas, simples e distintas, de modo que cada um deles possa ser respondido com suficiente clareza e necessária precisão. Na sua elaboração, o presidente levará em conta os termos da pronúncia ou das decisões posteriores que julgaram admissível a acusação, do interrogatório e das alegações das partes.
Neste ponto pretende que os termos da votação sigam o que ficou estabilizado na pronúncia, e com isso, respeitem a máxima de que o acusado deve saber por que fatos está sendo julgado, e a pronúncia, conforme explica NUCCI, “passou a ser a fonte básica do questionário, pois é ela a peça judicial a fornecer os limites da acusação.” (NUCCI, 2015, p. 1015). Não fica proibida a defesa de se referir à pronúncia, tanto para impugnar a formulação dos quesitos quanto para demonstrar, em sede de argumentação, que o Ministério Público diverge das razões da condenação daquela enunciada na pronúncia ou suas decisões confirmatórias posteriores. Sendo assim, a plenitude de defesa continua a existir mesmo diante da vedação imposta no art. 487, do CPP.
E mesmo que assim não o fosse, traz à baila parte da doutrina que trata como inconstitucional o art. 487, do CPP, justamente por impor vedação de argumentações, e por isso macular, inclusive, a plenitude de defesa. E neste prisma, argumenta o autor que, se até mesmo provas ilícitas podem ser utilizadas em benefício do réu, a depender do caso, da mesma forma, a pronúncia e suas decisões confirmatórias posteriores deveriam poder ser utilizadas, (NUCCI, 2015, p. 992).
Não há, sob qualquer lente, a possibilidade de mitigar a plenitude de defesa, e se a mitigação ocorrer, é patente a inconstitucionalidade, como no caso da decisão da medida cautelar da ADPF tema do presente artigo.
Outra garantia que é alicerce constitucional para que o Tribunal do Júri se revista do seu caráter constitucional, é a competência de julgamento dos crimes dolosos contra a vida, art. 5º, XXXVIII, d, da CRFB. Ao mesmo tempo, a Constituição assegura que ninguém ser processado e nem sentenciado, senão pela autoridade competente, art. 5º, LIII. Conclui Paulo Rangel:
“Se a Constituição assegura ao júri a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida e de que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente (princípio do juiz natural), não pode a lei ordinária entregar o processamento do fato a outro juízo que não do Tribunal do Júri. Trata-se de competência constitucional que por tal é absoluta, não sendo lícito ao legislador infraconstitucional usurpar a competência do júri.” (RANGEL, 2018, p. 181).
Ao mesmo passo, não é válido o Tribunal Constitucional pretender retirar a competência dos jurados, e avocar para si o julgamento de todas as causas do país que haja discussão de violência contra mulher no âmbito doméstico, ao limitar a tese da legítima defesa da honra, e pretender com isso, que haja condenação nos casos que homens matem mulheres por essas terem tido relacionamentos afetivos diversos. A decisão que impõe a proibição de direta ou indiretamente de citar a tese da legítima defesa da honra, e que permite, por consequência, que haja recurso por parte da acusação quando a tese for levantada, e haja, ao final, absolvição através do quesito genérico (que, como já dito, é desvinculado de qualquer fundamentação escrita e expressa), ao fim e ao cabo, retira a competência constitucional dos jurados de julgar os crimes dolosos contra a vida, pois impõe limitação no julgamento dos juízes leigos através de decisão advinda de um corpo de juízes togados, mesmo que vindo da mais alta corte do país; impede, por via transversa, a absolvição por parte do Conselho de Sentença.
Nessa toada, um dos pontos que se mostra completamente contraditório na decisão é a pretensão de que haja recurso fundando na prova manifestamente contrária à prova dos autos, fundado no art. 593, III, d, CPP quando houver absolvição por parte do Conselho de Sentença, e entender o Ministério Público que houve sustentação da tese, seja de forma direta e indireta. Apesar de ter havido uma tentativa de se coadunar a hipótese com o julgamento do HC nº 178.777/MG, da lavra também do Tribunal Constitucional, é certo que as teses não admitem uma interpretação que as mantenham alinhadas, lado a lado. O referido Habeas Corpus já julgado, e provido em sua maioria para restabelecer a absolvição do paciente, trata do mesmo ponto do RE nº 1.225.185-RG/MG, que teve repercussão geral reconhecida e pende de julgamento. O tema é a impossibilidade de o Ministério Público recorrer fundado na alínea d, inciso III, do art. 583, do CPP, ou seja, em julgamento contrário a prova dos autos, quando houver absolvição fundada no quesito genérico.
Toda esta discussão jurídica que chegou a ser admitida como repercussão geral no STF tem seus alicerces fincados na importante mudança legislativa ocorrida em 2008, em que os jurados passaram a ser quesitados, obrigatoriamente, se absolvem ou não o réu, e a resposta a esta pergunta é somente realizada com “sim” ou “não”, sem necessidade de vincular a fundamentação utilizada pelo jurado para sua conclusão.
A ausência de necessidade de fundamentação parte justamente da característica da íntima convicção, decorrente da soberania dos veredictos. Neste sentido, se o veredicto é soberano, como garantia do Tribunal do Júri assinalada na Constituição Federal, não há razão para trazer à tona qualquer necessidade de fundamentação dos jurados. Essa inclusive, foi a ratio da alteração legislativa em 2008, ao retirar a necessidade de qualquer tipo de fundamentação por parte dos jurados.
Sendo tema caro as discussões jurídicas e jurisprudencial do país, a vedação de recurso por parte da acusação, nos termos do art. 583, III, d, do CPP, quando houver absolvição fundado no quesito genérico, traz à tona a importância da soberania dos veredictos, e de seu respeito.
Mas, de acordo com a Medida Cautelar proferida no julgamento do STF, poderia,o Ministério Púbico se valer do referido recurso quando houvesse absolvição por parte do Conselho de Sentença, se a tese da legítima defesa da honra (que não se sabe sua extensão, conforme já demonstrado neste artigo) fosse, de acordo com o entender da acusação, utilizada diretamente ou indiretamente pela defesa. A decisão ora criticada abre uma fissura em toda a discussão que será travada em sede de repercussão geral, ao admitir uma possibilidade de recurso exitoso para acusação que esbarraria na garantia constitucional da soberania dos veredictos.
6. CONCLUSÃO
A APDF 779/DF trouxe discussão quanto ao direito das mulheres, tratando do tema da legítima defesa da honra, que há muito vem sendo questionado por setores feministas, e que defendem o fim da violência de gênero, em especial no âmbito doméstico. Ao mesmo, tempo situou a discussão dentro do Tribunal do Júri, por se dirigir especificamente aos crimes de feminicídio, seja tentado, ou consumado, que é o palco em que a tese foi criada e já foi utilizada ao longo dos anos.
O presente trabalho demonstrou que a violação dos direitos das mulheres através da violência doméstica é um dado verídico, mas sob a lente de uma criminologia feminista crítica, concluiu-se que o Direito Penal não é a resposta efetiva para o que se busca através da pauta colocada na ADPF 779, que conta com a medida cautelar deferida. Restou claro que o uso do Direito Penal, e seu consequente encarceramento, ao invés de proteger as mulheres, na verdade, as estigmatiza e as coloca como objeto de um sistema cruel e torturador, destacando ainda um recorte de classe e de raça, que aumenta ainda mais essa estigmatização.
Foi demonstrado através de pesquisas realizadas que em que pese o recrudescimento penal da lei maria da penha, os números de violência contra mulher não diminuíram. O Direito Penal simbólico, que troca o grande encarceramento pela promessa não cumprida de redução da violência, é ilegítimo.
O presente artigo demonstrou que as violações às garantias constitucionais do Tribunal do Júri são patentes, eis que a limitação da tese como posta no julgado criticado viola a plenitude de defesa pela imprecisão de seus termos, pois não traça contorno claro para o discurso de ódio que seria o cerne da chamada legítima defesa da honra. Ao analisar esse ponto, especificamente, restou claro que ao tentar coibir um discurso de ódio contra gênero, o Supremo Tribunal Federal, dentro de um conceito aberto, acabou por coibir o discurso da defesa em outras esferas e teses, como por exemplo, o homicídio privilegiado, a discussão e argumentos sobre suposta qualificadora fundada em ciúmes, dentre outros.
A inconstitucionalidade da decisão ainda é cristalina ao violar a garantia da soberania dos veredictos, ao retirar do Tribunal do Júri, e de seus reais julgadores, leigos, a possibilidade de votarem de acordo com a sua intima convicção. Ainda, permite a utilização, pela acusação, de recurso de Apelação fundado na decisão dos jurados ter sido manifestamente contrária a prova dos autos quando houver absolvição pelo Conselho de Sentença, no quesito genérico, implementado pela reforma do CPP de 2008; o que remete um verdadeiro retrocesso em toda discussão, inclusive com repercussão geral reconhecida, quanto a viabilidade do manejo de tal recurso pela acusação, conforme se verifica no RE nº 1.225.185-RG/MG.
Verifica-se, então, que a decisão liminar não merece ser mantida, ante a patente ineficácia do Direito Penal para solucionar questões como a exposta através da ADPF 779/DF, e por violar a constitucionalidade das garantias do Tribunal do Júri, que são cláusulas pétreas.
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[1] MORATO, Alessandra Campos et al. Lei Maria da Penha, ciclo da violência e a suspensão condicional do processo: percepções da prática experimentada no Distrito Federal. Revista do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, Brasília, v. 1, n. 5, p. 101-120. 2011.
[2] O artigo analisa o caso julgado pela Corte Interamericana conhecido como Campo Algodoneiro, em que o Estado do México foi condenado por violação aos Direitos Humanos dentro de uma perspectiva de gênero. No referido caso, três moças desapareceram na Cidade Juarez, e quando as autoridades policiais foram acionadas pelas famílias das desaparecidas, foram tratadas com descaso, e ainda, submetidas a falas machistas, em que os policiais afirmaram que provavelmente fugiram com os namorados, ou que, se fossem boas moças estariam em casa. Diante do descaso, e falta de resposta eficaz por parte do Estado Mexicano, entendeu a Corte que houve uma violação de Direitos Humanos, estrutural, que é aquela de gênero. Diante desse recorte, a autora busca o comando constitucional da Defensoria Pública de expressão do regime democrático (art. 134, CRFB), e de maneira muito lúcida, aponta que a instituição não pode agir incrementando situações violadoras de Direitos Humanos, e por isso, deve ter limites éticos impostos a sua atuação.
Mestranda em Direito Penal pela PUC-SP. Defensora Pública do Estado do Rio de Janeiro
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BEZERRA, Ana Carolina Carneiro Barde. Legítima Defesa da Honra e a ADPF 779/DF: uma perspectiva crítica, feminista e de violação das garantias do Tribunal do Júri. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 mar 2021, 04:50. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56258/legtima-defesa-da-honra-e-a-adpf-779-df-uma-perspectiva-crtica-feminista-e-de-violao-das-garantias-do-tribunal-do-jri. Acesso em: 23 dez 2024.
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