FRANCIELE BARBOSA SANTOS
(coautora)[1]
RESUMO: O presente trabalho tem como escopo verificar da possibilidade ou não da aplicação da Lei Maria da Penha aos casos de violência doméstica contra a mulher transexual. Para tanto, partiu-se da análise do contexto da criação da Lei Maria da Penha a fim de avaliar seus objetivos fundamentais e sua relação com o princípio da igualdade, fazendo, após, um exame, através da interpretação extensiva, acerca da possibilidade e dos requisitos para a aplicação da referida Lei às mulheres transexuais, bem como do entendimento do Poder Judiciário acerca do tema. Para isso, utilizou-se do método dedutivo, com pesquisas bibliográficas, estudo de leis e jurisprudências. No decorrer do trabalho, constatou-se ser perfeitamente possível a aplicação da Lei Maria da Penha aos casos de violência doméstica contra a mulher transexual, ainda que estas não tenham realizado a cirurgia de redesignação sexual ou a retificação do prenome e gênero no seu registro civil, uma vez que são, sobretudo, socialmente vulneráveis.
Palavras-Chave: Lei Maria da Penha. Mulher Transexual. Violência Doméstica.
ABSTRACT: The present effort aims to verify the possibility of applying the Maria da Penha Law to cases of domestic violence against transgender women. To this end, it started from the analysis of the context of the creation of the Maria da Penha Law, it is fundamental objectives and the observance of the principle of equality, after making an examination, through extensive interpretation, about the possibility and requirements for it is application to transgender women and the understanding of the judiciary on the subject. For this, had been used the deductive method, with bibliographical research, study of laws and jurisprudence. In the course of this work, it was found to be perfectly possible to apply the Maria of Penha Law to cases of domestic violence against transgender women, even if they did not undergo sexual reassignment surgery or rectification of their first names and gender in their civil registry, since they are, above all, socially vulnerable, which is the primary objective of the assign law.
Key-words: Maria of Penha Law. Transgender Women. Domestic Violence.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Breve introdução à Lei Maria da Penha. 3. Lei Maria da Penha à luz do princípio da igualdade. 4. Aplicação da Lei Maria da Penha às mulheres transexuais. 5. Dos requisitos para aplicação da Lei Maria da Penha e a jurisprudência pátria. 6. Considerações finais. 7. Referências.
1. INTRODUÇÃO
A violência doméstica e familiar é um fenômeno que permeia toda a sociedade sendo fruto de um sistema patriarcal de gênero o qual acarreta em situações de vulnerabilidade e inferioridade às mulheres. Assim, visando a proteção daqueles que são mais frágeis socialmente é que foi promulgada, em 2006, sob forte pressão internacional, a Lei Maria da Penha que tem como principal objetivo a prevenção e repressão da violência doméstica e familiar contra a mulher.
Entretanto, o comportamento e os valores sociais estão em constantes mudanças, assim como há cada vez mais novas configurações familiares de forma que se mostra necessário a análise acerca das formas de violência perpetradas no âmbito da convivência familiar doméstica.
Nesse sentido, o presente artigo possui como finalidade demonstrar a possibilidade ou não da aplicação da Lei Maria da Penha às mulheres transexuais no âmbito da violência doméstica, sendo que, para isso, utilizou-se do mérito dedutivo, com pesquisas bibliográficas, análise de leis e jurisprudências.
O trabalho foi estruturado em quatro capítulos. O primeiro abordará o contexto de criação da Lei Maria da Penha e seus objetivos. O segundo tratará sobre a aplicação da Lei Maria da Penha à luz dos princípios da igualdade. O terceiro analisará a aplicação da Lei às mulheres transexuais e, por fim, o quarto capítulo cuidará da análise acerca dos requisitos de aplicação e entendimento da jurisprudência pátria.
2. BREVE INTRODUÇÃO À LEI MARIA DA PENHA
A Lei 11.340/2006, mais conhecida como Lei Maria da Penha, foi sancionada no dia 07 de agosto de 2006 e nasceu a partir dos anseios de uma sociedade cansada da impunidade dos autores de agressões físicas e psicológicas que violentavam as mulheres no ambiente doméstico e da pressão dos órgãos internacionais responsáveis pela defesa dos direitos humanos.
Observa-se que, muito antes da Lei Maria da Penha, o Brasil já havia firmado vários compromissos internacionais com o intuito de coibir a violência doméstica perpetrada sobretudo contra as mulheres. A partir da análise do preâmbulo da Lei depreende-se que os dois documentos mais importantes foram a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Cedaw) e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.
O Supremo Tribunal Federal firmou a tese, por ocasião do julgamento do RE 466.343-SP, de que os tratados de direitos humanos celebrados antes da Emenda Constitucional 45/2004 possuem hierarquia superior a lei ordinária atingindo, assim, um status normativo supralegal que é o caso de ambas as Convenções supracitadas.
A Lei Maria da Penha foi fruto do Relatório n.º 54/2001, no qual consta a recomendação dirigida à República Federativa do Brasil, a fim de que fosse realizada uma profunda mudança legislativa de modo a proporcionar um efetivo combate aos casos de violência praticada contra a mulher. Referido Relatório foi elaborado após a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, órgão da Organização dos Estados Americanos (OEA), ter tomado conhecimento acerca da violência perpetrada contra a senhora Maria da Penha Maia Fernandes.
Em 29 de maio de 1983, Maria da Penha foi vítima, enquanto dormia, de um disparo de arma de fogo praticado por seu ex-marido, Marco Antônio Heredia, o qual a deixou paraplégica. Não satisfeito, Marco Antônio Heredia atentou novamente contra a vida da Maria da Penha ao tentar eletrocuta-la durante o banho. O réu só foi submetido a prisão em setembro de 2002, ou seja, mais de dezenove anos depois da prática do crime (TEIXEIRA, MOREIRA, 2011, p. 275).
Importante ressaltar que a Lei Maria da Penha não se baseia tão somente nos tratados internacionais, mas decorre do próprio texto constitucional conforme se depreende do artigo 226, parágrafo 8º, da Constituição Federal: “o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”.
Assim, o legislador, por meio da referida Lei, não só cumpre com a sua obrigação como integrante da OEA, mas, principalmente, exerce o compromisso constitucional de criar mecanismos que coíbam a violência no âmbito das relações familiares (SILVA apud TEIXEIRA, MOREIRA, 2011, p. 276).
Antes da referida Lei, a violência perpetrada contra mulher no ambiente doméstico era tratada como um crime de menor potencial ofensivo, podendo ser imposto ao agressor, quando muito, penas restritivas de direitos de conteúdo econômico ou multas. Nesse contexto, a Lei Maria da Penha trouxe dispositivos complementares ao Código Penal a fim de excluir os institutos despenalizadores e punir com penas mais severas os casos de violência doméstica (TEIXEIRA, MOREIRA, 2011, p. 277).
Assim, referido diploma objetiva erradicar a violência contra a mulher, trazendo, para tanto, mecanismos com repercussão nas esferas administrativa, civil, penal e trabalhista que visam coibir e prevenir a violência perpetrada no âmbito doméstico e familiar contra a mulher.
3. LEI MARIA DA PENHA À LUZ DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE
O princípio da igualdade encontra-se entre os objetivos da República Federativa do Brasil, conforme se extrai do artigo 3º, inciso IV, da Constituição Federal: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: [...] IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer formas de discriminação”.
Da mesma forma, o artigo 5º da Constituição Federal dispõe que: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.
Segundo José Canotilho e Vital Moreira (apud SARLET, MARIONI, MITIDEIRO, 2017, p. 615), “o princípio da igualdade é um dos princípios estruturantes do sistema constitucional global, conjugando dialeticamente as dimensões liberais, democráticas e sociais ao conceito de Estado de direito democrático e social”.
O princípio da igualdade possui duas acepções: a formal e a material. A igualdade formal é compreendida sob a perspectiva das normas e sua aplicação, no sentido de que todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza (BARCELLOS, 2018, p. 147).
Já a igualdade material surgiu como uma reação à percepção de que a igualdade formal, pois esta, por si só, não era capaz de afastar as situações de injustiças. Assim, a igualdade material passou a ser tida como uma forma de compensação das desigualdades e, sendo assim, se volta para a situação real em que as pessoas se encontram (SARLET, MARIONI, MITIDEIRO, 2017, p. 620).
Em um primeiro momento, a constitucionalidade da Lei 10.340/2006 foi questionada sob o argumento de que feriria o princípio da igualdade, uma vez que, conforme se extrai do artigo 5º, os seus mecanismos de proteção somente se aplicam à mulher vítima de violência familiar e doméstica.
Diante disso, alguns doutrinadores defendem que referida Lei é discriminatória sob o argumento de que ao prever sanções ao homem e proteção especial à mulher, sem reciprocidade, a lei estaria “transformando o homem em um cidadão de segunda categoria em relação ao sistema de proteção contra a violência doméstica, ao proteger especificamente a mulher, numa aparente formação de casta feminina” (SANTIN apud JÚNIOR, 2011, p. 505).
No entanto, prevalece o entendimento de que a Lei Maria da Penha é constitucional, uma vez que se trata de um mecanismo que tem o intuito de coibir a violência no âmbito das relações familiar, conforme preconiza o artigo 226, §8º, da Constituição Federal. Nesse sentido, cita-se Maria Berenice Dias (apud JÚNIOR, 2011, p. 506):
É exatamente para pôr em prática o princípio constitucional da igualdade substancial, que se impõe sejam tratados desigualmente os desiguais. Para as diferenciações normativas serem consideradas não discriminatórias, é indispensável que exista uma justificativa objetiva e razoável. E justificativas não faltam para que as mulheres recebam atenção diferenciada. O modelo conservador da sociedade coloca a mulher em situação de inferioridade e submissão tornando-a vítima da violência masculina. Ainda que os homens também possam ser vítimas da violência doméstica, tais fatos não decorrem de razões de ordem social e cultural. Por isso se fazem necessárias equalizações por meio de discriminações positivas, medidas compensatórias que visam remediar as desvantagens históricas, consequências de um passado discriminatório. Daí o significado da lei: assegurar à mulher o direito à sua integridade física, psíquica, sexual, moral e patrimonial.
Assim, ao tratar de maneira diferenciada da violência doméstica perpetrada contra a mulher, a Lei 10.340/2006 objetivou alcançar a igualdade material e não só a formal, de modo que não trouxe qualquer discriminação, mas tão somente reconheceu o desequilíbrio existente o homem e a mulher, criando mecanismos a fim de equilibrar essa relação.
Insta ressaltar que o legislador ordinário apenas se referiu a “mulher”, mas não esclareceu de fato se o conceito de mulher estaria relacionado apenas ao gênero ou a um contexto social. Diante disso, se torna necessário aumentar o grau de aplicação da Lei Maria da Penha, a fim de que se torne um instituto de proteção aplicado também as mulheres transexuais.
Trata-se, portanto, de uma interpretação extensiva na qual “as hipóteses normativas são ampliadas pelo jurista, de tal modo que as previsões originalmente não estipuladas passam a ser compreendidas no âmbito de implicações de uma determinada norma” (MASCARO, 2015, p. 174).
Nesse sentido, a interpretação extensiva da Lei Maria da Penha objetiva garantir um maior alcance àqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade, observando assim os preceitos constitucionais e servindo como um instrumento de efetivação dos direitos humanos.
4. APLICAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA ÀS MULHERES TRANSEXUAIS
Considerando o viés constitucional de proteção e garantia dos Direitos Humanos bem como a proteção e necessidade de implementação de medidas que combatam a discriminação em âmbito nacional e internacional, um importante tema a ser tratado é acerca da possibilidade ou não da aplicação da Lei Maria da Penha às mulheres transexuais.
É de notório conhecimento a situação que perpassa o Brasil no que tange aos grupos de minorias, tal como é o caso das mulheres transexuais. Apesar da proteção dada às mulheres pela Lei Maria da Penha, não há qualquer dispositivo que traga clareza sobre a sua aplicação ou não às mulheres transexuais seja antes ou depois de se submeterem a cirurgia para a mudança de sexo ou alteração de seu registro civil.
Quando se depara com tais situações tem-se que o Direito, muitas vezes, não possui respostas ou qualquer proteção positivada, ficando a vítima à mercê das decisões dadas pelo Poder Judiciário. Isso evidencia, cada vez mais, a fragilidade do direito positivado e, dessa forma, se faz necessário que se exerça a melhor interpretação da norma, com intuito de assegurar o maior dos fundamentos da República Federativa do Brasil, qual seja: a dignidade da pessoa humana.
Tem-se que o critério puramente biológico para a conceituação de homem e mulher não é suficiente diante da diversidade e infinitas particularidades que permeia os seres humanos e que se evidencia em nossos dias. Pode-se afirmar, acima de tudo, que a questão de gênero é, principalmente, uma questão social.
Nesse sentido traz Jaqueline Gomes de Jesus (2012, p.6):
Para a ciência biológica, o que determina o sexo de uma pessoa é o tamanho das suas células reprodutivas (pequenas: espermatozóides, logo, macho; grandes: óvulos, logo, fêmea), e só. Biologicamente, isso não define o comportamento masculino ou feminino das pessoas: o que faz isso é a cultura, a qual define alguém como masculino ou feminino, e isso muda de acordo com a cultura de que falamos.
[...] Ser masculino ou feminino, homem ou mulher, é uma questão de gênero. Logo, o conceito básico para entendermos homens e mulheres é o de gênero.
Sexo é biológico, gênero é social. E o gênero vai além do sexo: O que importa, na definição do que é ser homem ou mulher, não são os cromossomos ou a conformação genital, mas a auto-percepção e a forma como a pessoa se expressa socialmente.
Nesse viés, tem-se que a questão de gênero transcende os aspectos biológicos, e, sendo o Direito uma ciência social, deve trazer proteção efetiva a todos os grupos e acompanhar a evolução social se adequando às suas normas. Dessa forma, a Lei Maria da Penha, ao estabelecer proteção à mulher, abrange – e não discrimina – toda mulher, não devendo, na prática, restringir a aplicação da referida lei. Isso se justifica, principalmente, diante do intuito para a qual a lei foi criada, justamente para proteger aquelas que são mais frágeis socialmente.
Saliente-se, que a diversidade sexual e a identidade de gênero são aspectos fundamentais da dignidade da pessoa humana, sendo protegidos pelos Direitos Humanos e como Direito Fundamental, sendo a dignidade humana princípio basilar e regente de todos os demais princípios da Constituição Federal Brasileira.
A Lei Maria da Penha protege a mulher contra a violência de gênero e traz em seu artigo 5º o que configura, in verbis: “para os efeitos dessa Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”.
Aline Bianchini no livro Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo (2011, p. 419-420) coordenado pela autora Maria Berenice Dias, ressalta o parágrafo único do artigo supracitado e o artigo 2º da mesma lei, e salienta que a Lei avança ao estabelecer que mulher e sexo feminino não consistem na mesma coisa. E traz que é “de se notar, portanto, que o conceito de mulher trazido na Lei Maria da Penha suplanta o perfil biológico (sexo feminino; sexo masculino) para alcançar a concepção sociológica de gênero”.
Assim, referida autora traz que a Lei Maria da Penha tem como intuito assegurar efetiva proteção à mulher que sofre violência pelo seu gênero e o gênero que assume socialmente. Bianchini (2011, p. 420) ainda cita que:
A violência de gênero envolve uma determinação social dos papéis masculino e feminino. Toda sociedade pode (e talvez até deva) atribuir diferentes papéis ao homem e à mulher. Até aí tudo bem. Isso, todavia, adquire caráter discriminatório quando a tais papéis são atribuídos pesos com importâncias diferenciadas. No caso da nossa sociedade, os papéis masculinos são supervalorizados em detrimento dos femininos.
Dessa forma, ao supervalorizar um papel em detrimento de outro, tem-se que se estabelece uma relação de dominação e subordinação, se exteriorizando com a submissão da mulher que é reforçada pelo patriarcado e a sua ideologia. A autora ainda traz que (BIANCHINI, 2011, p. 420):
Os papéis sociais atribuídos a homens e a mulheres são acompanhados de códigos de conduta introjetados pela educação diferenciada que atribui o controle das circunstâncias ao homem, o qual as administra com a participação submetida por cultura, mas ativa das mulheres, o que tem significado ditar-lhes, e elas aceitarem e cumprirem, rituais de entrega, contenção de valores, recato sexual, vida voltada a questões meramente domésticas, priorização da maternidade. Resta tão o equilíbrio de poder entre os sexos, que sobra não interdependência, mas hierarquia autoritária.
Assim, o cenário atual, pautado na supremacia masculina, acaba por legitimar a dominação do gênero masculino sobre o gênero feminino que, por muitas vezes, faz uso da violência contra as mulheres.
É comum mulheres sofrerem violência por seus companheiros ou maridos por diversos anos e muitas delas, ainda que tomem alguma atitude, acabam por se reconciliar com os mesmos e isto decorre da submissão na qual se encontram. Bianchini (2011, p. 421) afirma que tal submissão se dá por diferentes fatores como a condição física, psicológica, social e econômica, a qual a mulher se encontra submetida, justamente por conta do papel que lhe é atribuído socialmente.
Isto posto, considerando o aspecto constitucional e, partindo da premissa de que o que não é proibido é permitido, deve-se aplicar a Lei Maria da Penha aos transexuais. Tal medida ainda se justifica, justamente, diante do objetivo com qual tal lei foi promulgada, qual seja, estabelecer proteção especial àqueles que são socialmente mais frágeis.
Dessa forma, conclui-se que a aplicação da Lei Maria da Penha às mulheres transexuais nada mais é do que a efetivação da proteção trazida na referida lei, bem como de princípios constitucionais que regem o ordenamento pátrio com intuito de assegurar a igualdade estabelecida na Magna Carta.
5. DOS REQUISITOS PARA APLICAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA E A JURISPRUDÊNCIA PÁTRIA
Em que pese não seja unânime na doutrina e jurisprudência pátria, tem-se que muito se avançou quanto a aplicação da Lei Maria da Penha às transexuais femininas. Há uma corrente que afirma a impossibilidade da aplicação da referida lei, justificando que mesmo com o sexo modificado, geneticamente, ainda continua homem e a lei fala em “mulher”. Além do mais, aplicar referida lei seria permitir punir com mais rigor os casos de violência doméstica caracterizada analogia in malam partem.
Alguns autores entendem que o gênero feminino se dá com a questão hormonal, outros como Greco, citado por Cunha e Pinto (2008, p.31), defende que a partir do momento do trânsito em julgado da decisão que determina a modificação da condição sexual de alguém deve haver a repercussão em todos os aspectos e, assim, deve aplicar a Lei Maria da Penha.
Por sua vez, Lauria (2009) entende que para a aplicação da Lei é imprescindível a alteração do sexo do transexual no registro civil para que se configure como sujeito passivo da Lei e traz:
[...] o art. 155 do Código de Processo Penal define que, no juízo penal, a prova quanto ao estado das pessoas obedecerá às restrições probatórias estabelecidas na lei civil. Como exemplo, tem-se o casamento, o parentesco, a menoridade, etc. Logo, também a prova quanto ao sexo estará sujeita às mesmas restrições. Diante disso, se não houver a alteração do sexo do transexual no registro civil o mesmo não poderá ser considerado mulher para fins penais, não se aplicando as disposições da Lei Maria da Penha.
E ainda cita:
“Transexual. Retificação de Registro Civil. Cirurgia realizada no exterior. Mero atestado médico constatando sua realização. Ausência de cumprimento das normas brasileiras sobre o tema. Procedimento que precede a análise da mudança de sexo no registro civil. Indeferimento da alteração do sexo no assento de nascimento. Recurso a que dá provimento. (...) Nas razões de fls. 103/116, requer o Ministério Público do Estado de Minas Gerais seja parcialmente reformada a sentença, para que seja indeferida a modificação da indicação do sexo masculino no registro civil do autor, mantendo-se, entretanto, a determinação da alteração do prenome”. (TJMG. Número do processo: 1.0543.04.910511. Relator Des. Roney Oliveira. Data da publicação: 18/08/2006).
Por fim, a posição que se entende por mais acertada por ser a que garante a efetivação dos fundamentos previstos na Constituição Federal, como o da Dignidade da Pessoa humana, defende ser possível a aplicação da Lei Maria da Penha às mulheres transexuais, pois se a ratio da lei é tratar de proteger o hipossuficiente, o mais frágil, se a mulher historicamente é alvo de preconceito, o transexual o é com mais razão.
Dessa forma, entende-se que a expressão “mulher” deve compreender tanto o sexo feminino (definido biologicamente) quanto o gênero feminino (que pode ser escolhido pelo sujeito ao longo de sua vida), de modo que seria incoerente qualquer posicionamento que afaste a aplicação da lei que justamente garante maior proteção “às mulheres”. Assim, a aplicação da Lei Maria da Penha às mulheres transexuais objetiva justamente proteger um grupo ainda mais fragilizado.
Ainda, em consonância com tal entendimento, há um projeto de lei (PL 8031/14) que visa acrescentar ao artigo 2º da Lei Maria da Penha a expressão “identidade de gênero”, a fim de que se insira, expressamente, a possibilidade de aplicação da Lei a transexuais e transgêneros.
Com relação a necessidade da cirurgia de transgenitalização e alteração do registro civil, a jurisprudência pátria tem entendido que independentemente da realidade biológica, o registro civil deve retratar a identidade de gênero psicossocial da pessoa transexual, de quem não se pode exigir a cirurgia de transgenitalização para o gozo de um direito.
Nesse sentido, foi o entendimento adotado pela quarta turma do Superior Tribunal de Justiça no REsp 1626739, cujo relator foi Ministro Luis Felipe Salomão na data de 01/08/2017:
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE RETIFICAÇÃO DE REGISTRO DE NASCIMENTO PARA A TROCA DE PRENOME E DO SEXO (GÊNERO) MASCULINO PARA O FEMININO. PESSOA TRANSEXUAL. DESNECESSIDADE DE CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO. [...] 10. Consequentemente, à luz dos direitos fundamentais corolários do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, infere-se que o direito dos transexuais à retificação do sexo no registro civil não pode ficar condicionado à exigência de realização da cirurgia de transgenitalização, para muitos inatingível do ponto de vista financeiro (como parece ser o caso em exame) ou mesmo inviável do ponto de vista médico. 11. Ademais, o chamado sexo jurídico (aquele constante no registro civil de nascimento, atribuído, na primeira infância, com base no aspecto morfológico, gonádico ou cromossômico) não pode olvidar o aspecto psicossocial defluente da identidade de gênero autodefinido por cada indivíduo, o qual, tendo em vista a ratio essendi dos registros públicos, é o critério que deve, na hipótese, reger as relações do indivíduo perante a sociedade.
Outrossim, observa-se o próprio Supremo Tribunal Federal, na ocasião do julgamento do RE 670442, consolidou o entendimento de que “o transgênero tem direito fundamental subjetivo à alteração de seu prenome e de sua classificação de gênero no registro civil, não se exigindo, para tanto, nada além da manifestação de vontade do indivíduo, o qual poderá exercer tal faculdade tanto pela via judicial como diretamente pela via administrativa” (tema 761).
Tal posicionamento objetiva garantir o cumprimento e a efetividade do princípio da dignidade da pessoa humana, da intimidade, da personalidade e da cidadania. Nesse sentindo, destaca-se o recente julgamento do Recurso Especial n. 1860649/SP, de 12/05/2020, cujo relator foi o Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva.
RECURSO ESPECIAL. ALTERAÇÃO DE REGISTRO PÚBLICO. LEI Nº 6.015/1973. PRENOME MASCULINO. ALTERAÇÃO. GÊNERO. TRANSEXUALIDADE REDESIGNAÇÃO DE SEXO. CIRURGIA. NÃO REALIZAÇÃO. DESNECESSIDADE. DIREITOS DE PERSONALIDADE. 1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 2015 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ). 2. Cinge-se a controvérsia a discutir a possibilidade de transexual alterar o prenome e o designativo de sexo no registro civil independentemente da realização da cirurgia de alteração de sexo. 3. O nome de uma pessoa faz parte da construção de sua própria identidade. Além de denotar um interesse privado, de autorreconhecimento, visto que o nome é um direito de personalidade (art. 16 do Código Civil de 2002), também compreende um interesse público, pois é o modo pelo qual se dá a identificação do indivíduo perante a sociedade. 4. A Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015/1973) consagra, como regra, a imutabilidade do prenome, mas permite a sua alteração pelo próprio interessado, desde que solicitada no período de 1 (um) ano após atingir a maioridade, ou mesmo depois desse período, se houver outros motivos para a mudança. Os oficiais de registro civil podem se recusar a registrar nomes que exponham o indivíduo ao ridículo. 5. No caso de transexuais que buscam a alteração de prenome, essa possibilidade deve ser compreendida como uma forma de garantir seu bem-estar e uma vida digna, além de regularizar uma situação de fato. 6. O uso do nome social, embora não altere o registro civil, é uma das maneiras de garantir o respeito às pessoas transexuais, evitando constrangimentos públicos desnecessários, ao permitir a identificação da pessoa por nome adequado ao gênero com o qual ela se identifica. Ele deve ser uma escolha pessoal do indivíduo e aceito por ele como parte de sua identidade. 7. O direito de escolher seu próprio nome, no caso de aquele que consta no assentamento público se revelar incompatível com a identidade sexual do seu portador, é uma decorrência da autonomia da vontade e do direito de se autodeterminar. Quando o indivíduo é obrigado a utilizar um nome que lhe foi imposto por terceiro, não há o respeito pleno à sua personalidade. 8. O Código Civil, em seu artigo 15, estabelece que ninguém pode ser constrangido a se submeter, principalmente se houver risco para sua vida, a tratamento médico ou intervenção cirúrgica, caso aplicável à cirurgia de redesignação de sexo. 9. A cirurgia de redefinição de sexo é um procedimento complexo que depende da avaliação de profissionais de variadas áreas médicas acerca de sua adequação. 10. A decisão individual de não se submeter ao procedimento cirúrgico tratado nos autos deve ser respeitada, não podendo impedir o indivíduo de desenvolver sua personalidade. 11. Condicionar a alteração do gênero no assentamento civil e, por consequência, a proteção da dignidade do transexual, à realização de uma intervenção cirúrgica é limitar a autonomia da vontade e o direito de o transexual se autodeterminar. Precedentes. 12. Recurso especial provido.
No que tange a aplicação da Lei Maria da Penha às mulheres transexuais, destaca-se o julgamento da segunda turma criminal do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, cujo relator foi Silvanio Barbosa dos Santos, na data de 14/02/2019, segundo o qual:
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. APLICAÇÃO DA LEI 11.340/06 (MARIA DA PENHA). VÍTIMA TRANSEXUAL. APLICAÇÃO INDEPENDENTE DE ALTERAÇÃO DO REGISTRO CIVIL. COMPETÊNCIA DO JUIZADO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. RECURSO PROVIDO. 1. Diante da alteração sexual, comportando-se a recorrido como mulher e assim assumindo seu papel na sociedade, sendo dessa forma admitida e reconhecida, a alteração do seu registro civil representa apenas mais um mecanismo de expressão e exercício pleno do gênero feminino pelo qual optou, não podendo representar um empecilho para o exercício de direitos que lhes são legalmente previstos.
Dessa forma, se comportando como mulher, é mulher, não se exigindo alteração do registro de identidade ou da cirurgia da trangenitalização, que são apenas opções disponíveis para que exerça de forma mais plena essa liberdade de escolha. Assim, diante de todo exposto, considerando que não se configura analogia in malam partem, pois, sendo a questão de gênero uma questão primordialmente social e não biológico, a aplicação às mulheres transexuais nada difere da aplicação da lei àquelas biologicamente mulheres.
Além do mais, trata-se de efetivar os mais basilares da República Federativa Brasileira, promovendo a igualdade entre os gêneros, a sua devida proteção, bem como a dignidade da pessoa humana. Dessa forma, não há óbices à sua aplicação, sendo nada mais do que a efetivação dos Direitos Humanos.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de todo exposto, considerando os objetivos da Lei Maria da Penha, principalmente no que tange a proteção do mais frágil socialmente, bem como a promoção da igualdade material entre os gêneros, a aplicação da referida lei às transexuais é a exteriorização dos objetivos trazidos nas disposições preliminares da Lei.
Além do mais, trata-se de promover a igualdade formal entre os gêneros feminino e masculino nada se diferenciando aquela que é biologicamente mulher daquela que socialmente é mulher, pois a questão de gênero e, principalmente, a violência contra o gênero feminino é uma questão social, reforçada pelo patriarquismo, machismo e ideologia de supremacia do gênero masculino sobre o feminino.
Dessa forma, não deve haver diferenciação quanto da aplicação da Lei Maria da Penha às mulheres transexuais ou para a biologicamente mulher, pois ambas carregam o estigma do gênero feminino, devendo ser protegidas pelo ordenamento pátrio de forma igualitária.
7. REFERÊNCIAS
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______, Lei. n. 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, D.F., 7 ago. 2006.
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[1] Advogada. Pós-graduada em Direito Empresarial pela Faculdade Legale; Pós-graduanda em Direito Penal e Processo Penal Econômico pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná; Pós graduada em Lei Geral de Proteção de Dados pela Faculdade Legale; Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL).
Advogada. Aluna especial pelo Programa de Mestrado e Doutorado da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Pós graduada em e Processo Penal Econômico pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR). Pós graduada em Direito Extrajudicial pela Faculdade Legale; Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, LILLIAN ZUCOLOTE DE. Da proteção destinada à mulher transexual nos casos de violência doméstica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 mar 2021, 04:33. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56279/da-proteo-destinada-mulher-transexual-nos-casos-de-violncia-domstica. Acesso em: 23 dez 2024.
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