ADALBERTO MARTINS(1)
(coautor)
Resumo: O presente artigo tem como objetivo analisar brevemente a aplicação da lei geral de proteção de dados (Lei n. 13.709/2018) na seara trabalhista, focando-se na nova disposição sobre a inversão do ônus de prova que trouxe novo requisito para a aplicação. Assim, utilizando o método hipotético-dedutivo, é possível depreender que a aplicação da lei geral de proteção pode ser benéfica aos trabalhadores e pode ser interpretada como um reforço no princípio da proteção nessa era digital.
Palavras-chave: Lei geral de proteção de dados. Inversão do ônus da prova. Direitos fundamentais trabalhistas.
Abstract: This article aims to briefly analyze the application of the general data protection law (Law n. 13.709/2018) in labor relations, focusing on the new provision on the inversion of the burden of proof that brought a new requirement for the app. Thus, using the hypothetical-deductive method, it is possible to conclude that the application of the general protection law can be beneficial to workers and can be interpreted as reinforcing the principle of protection in this digital age.
Key-words: General data protection law. Reversal of the burden of proof. Fundamental labor rights.
Sumário: 1. Introdução. 2. A LGPD e sua aplicação nas relações de trabalho. 3. Dificuldades aparentes na aplicação da LGPD nas relações de trabalho. 4. A inversão do ônus da prova e sua previsão na LGPD. 5. Considerações finais. 6. Referências
1 Introdução
A Lei 13.709/2018, também conhecida como Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), foi idealizada a partir da necessidade de melhor regulamentação da proteção dos dados com a promulgação do Marco Civil da Internet (Lei n. 12.965/2014), sendo publicada em 15 de agosto de 2018. Para os objetivos deste trabalho, usaremos indistintamente as expressões “Lei 13.709/2018” e “LGPD” ao longo do texto.
Trata-se de inovação legislativa que mudou os paradigmas que eram utilizados quanto ao tratamento dos dados pessoais, tendo gerado muitas discussões desde a sua publicação, tanto que teve o início de vigência adiado algumas vezes. Entrou em vigor no dia 18/09/2020, ficando excetuados apenas os artigos que disciplinam a fiscalização e as multas administrativas por descumprimento de suas disposições, os quais entrarão em vigor no dia 01/08/2021.
Diversos dispositivos trazem requisitos específicos que devem ser observados por quem realiza o tratamento de dados, bem como o consentimento e a autonomia da vontade do titular são aspectos intrínsecos preservados e valorizados.
A lei supramencionada teve uma “vacatio legis” extremamente prolongada, e não trouxe a afirmação clara e específica sobre sua aplicação no âmbito do direito material do trabalho, e daí a importância dos estudos e debates em torno da questão.
Além disso, a LGPD trouxe uma nova previsão sobre inversão do ônus da prova que poderá ser ajustada e aplicada na seara trabalhista, tendo como norte a proteção dos trabalhadores que, via de regra, são os titulares dos dados que são tratados nas relações de trabalho.
Nessa vereda, foi utilizado o método hipotético-dedutivo, bem como referências bibliográficas e artigos científicos para construir e analisar a melhor aplicação da LGPD possível no âmbito trabalhista. Assim, objetiva-se analisar brevemente a aplicação da Lei n. 13.709/2018 nas relações de trabalho e também a aplicação da disposição sobre a inversão do ônus de prova no processo do trabalho.
Dessa forma, analisaremos os aspectos iniciais da LGPD e as dificuldades aparentes em relação a sua aplicação nas relações de trabalho, passando posteriormente a análise do significado da inversão do ônus da prova, bem como da nova previsão trazida no art.42, §2º, da Lei 13.709/2018.
2. A LGPD e sua aplicação nas relações de trabalho
A preocupação com a proteção de dados no Brasil surgiu em 2010, a partir de consulta pública realizada pelo Ministério da Justiça que, anos mais tarde, deu origem ao Projeto de Lei n. 5.256/2016. (FINKELSTEIN, FINKELSTEIN, 2020, p. 294).
Como dito antes, a LGPD foi idealizada a partir da necessidade de melhor regulamentação da proteção dos dados com a promulgação do Marco Civil da Internet (Lei n. 12.965/2014), bem como da necessidade de cumprir o requisito da aprovação de uma lei que protegesse dados das pessoas naturais para que o Brasil fosse aceito na Organização para Cooperação e Desenvolvimento Socioeconômico (OCDE). (FINKELSTEIN, FINKELSTEIN, 2020, p. 294), o que reforça a ideia de que a fonte material da LGPD não consiste apenas na proteção da intimidade ou privacidade da pessoa natural.
Em rápido paralelo com a Europa, há na doutrina quem afirme que a preocupação com a proteção dos dados no antigo continente subsista desde 1970 (FINKELSTEIN, FINKELSTEIN, 2020, p. 294). O fato é que desde 2000 a União Europeia entende que a proteção de dados pessoais é um direito fundamental autônomo previsto na Carta de Direitos Fundamentais da Comunidade Europeia. (BARROS, BARROS, OLIVEIRA, 2017, p. 22)
No Brasil, conforme dissemos alhures, a LGPD teve o início de sua vigência adiado em algumas oportunidades e, portanto, ainda não conta com muitos aportes doutrinários e jurisprudenciais. Contudo, o elastecido prazo de “vacatio legis” previsto para a maioria dos artigos (era previsto a entrada em vigor apenas em maio de 2021 diante da Medida Provisória n. 959/2020) foi derrubado pelo Senado, sendo mantido o veto do Presidente da República, transformando a Medida Provisória n. 959 na Lei n. 14.058/2020 em 18 de setembro de 2020, pacificando o tema a partir de então. Neste sentido, a Lei 13.709/18 entrou em vigor no dia 18/09/2020, remanescendo apenas as disposições que estabelecem as penalidades administrativas, que entrarão em vigor no dia 01/08/2021.
Quanto a análise da lei, logo no seu art. 1º, é possível verificar que se preocupa com os dados pessoais, nos meios físicos ou digitais, tratados por pessoa natural ou jurídica, pública ou privada, tendo como objetivo a proteção dos direitos fundamentais de liberdade, privacidade e livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural. Não se ocupa, portanto, da proteção de dados da pessoa jurídica.
Dessa forma, a LGPD veio para instituir um mecanismo que possibilita a proteção dos dados que acaba sendo a “expressão direta de sua própria personalidade.” (DONEDA, 2011, p. 91). Diante disso, há entendimentos que consideram o próprio tratamento de dados como uma atividade de risco, diante do seu potencial de causar danos dos mais diversos, discussão que remete ao dever de indenizar independentemente de culpa.
Nessa vereda, considerando tratar-se de uma expressão da personalidade, a proteção no tratamento de dados pessoais pode ser compreendida como um direito fundamental ou, pelo menos, mecanismo que protege os direitos da personalidade. E desse contexto não escapam as relações de trabalho, já que possuem um grande fluxo de informações pessoais.
Malgrado, é necessário ressaltar que a LGPD não menciona expressamente a possibilidade de incidência na seara trabalhista, mas isso não significa que não seja aplicável no ambiente das relações laborais (REIS, 2019, p. 136-137). Em verdade, o grande fluxo de dados nas relações de trabalho permite-nos concluir que o direito do trabalho deve ser uma das áreas mais impactadas e que poderá ampliar as discussões no âmbito do processo do trabalho.
Reforça a afirmação acerca da possibilidade de aplicação da Lei 13.709/2018 na seara trabalhista o que dispõe o art. 3º da referida lei que, quando conjugado com o art. 1º, permite depreender a grande rede de aplicação da lei, que alude a qualquer operação de tratamento de dados, independentemente do meio a ser utilizado. Assim, é possível dizer que a relação laboral também é encampada por esses termos, pois o empregador tem acesso a quase todos os aspectos da vida de seu empregado. A propósito, o art.5º, II, da Lei 13.709/2018, quando alude aos dados pessoais sensíveis, inclui a informação acerca da filiação ao sindicato, a qual apresenta relevância na relação entre empregado e empregador.
Ademais, não é possível negar que a Justiça do Trabalho vem caminhando para a aplicação da LGPD na seara trabalhista, sendo possível encontrar a primeira decisão que faz menção expressa a Lei n. 13.709/2018 na ementa abaixo disposta:
RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. INDEFERIMENTO DO PEDIDO DE TRAMITAÇÃO DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA ORIGINÁRIA EM SEGREDO DE JUSTIÇA. DOCUMENTOS CONFIDENCIAIS DA IMPETRANTE ANEXADOS AO PROCESSO MATRIZ. NÃO COMPROVAÇÃO. PRETENSÃO GENÉRICA. INCIDÊNCIA DA DIRETRIZ CONSAGRADA NA OJ 144 DA SBDI-2. 1. Cuida-se de mandado de segurança no qual se postula a concessão da ordem para se determinar que a ação civil pública ajuizada pelo Parquet contra a Impetrante, na origem, tramite em segredo de justiça. 2. Embora a regra seja a inadmissão do mandado de segurança contra decisão passível de recurso próprio (OJ 92 da SBDI-2 do TST), deve ser permitida a utilização da ação mandamental na hipótese examinada, excepcionalmente, pois o percurso da via ordinária tornaria inócua a irresignação da empresa. Afinal, se a irresignação da parte, quanto ao indeferimento da decretação de sigilo do processo matriz, somente fosse apreciada após o encerramento da instrução probatória e a prolação da sentença, é evidente que os prejuízos alegados pela Impetrante já estariam consumados. 3. Quanto ao mérito, reconhecida a proteção ao patrimônio moral também de pessoas jurídicas, eventuais danos causados pela divulgação indevida ou abusiva de informações que afetem os negócios da empresa ou mesmo a sua imagem perante o mercado consumidor podem ensejar, em tese, demandas reparatórias em face dos responsáveis, a teor dos artigos 52 e 186 do CC e 5º, XXXV, da CF. Nesse sentido, a Súmula 227 do STJ: "A pessoa jurídica pode sofrer dano moral". 4. Todavia, no caso, a prova pré-constituída que acompanhou a inicial do writ não indica quaisquer documentos empresariais relevantes ou informações confidenciais que foram anexados à ação civil pública originária, capazes de colocar em risco o desenvolvimento das atividades da Impetrante. 5. A simples alegação de que a divulgação da existência de ação civil pública, que investiga irregularidades trabalhistas supostamente praticados pela empresa, causará prejuízos à imagem da Impetrante não justifica a necessidade de decretação de sigilo do processo matriz. A impetrante não apresenta provas concretas que apontem a iminência de veiculação de informações confidenciais da empresa. 6. Desse modo, não demonstrado pela Impetrante seu direito líquido e certo ao afastamento, no caso, da regra geral de publicidade dos atos processuais (art. 189, caput, do CPC de 2015) e diante da não comprovação da existência de documentos confidenciais anexados ao processo matriz, mostra-se inviável a concessão de segurança. 7. Ademais, a salvaguarda buscada pela Impetrante quanto a eventuais documentos que possam ser juntados à referida ação civil pública, ao longo da instrução, igualmente não viabiliza a concessão da segurança pleiteada porque se refere a eventos futuros e incertos. Incide, no ponto, a diretriz prevista na OJ 144 da SBDI-2 do TST, segundo a qual "O mandado de segurança não se presta à obtenção de uma sentença genérica, aplicável a eventos futuros, cuja ocorrência é incerta" . Precedentes. 8. Embora relevante, a nova informação trazida nas razões do recurso ordinário também não autoriza, neste instante, a concessão da ordem. Segundo relatado pela Impetrante, foi determinada, no curso da instrução da ação matriz e após a propositura do presente mandado de segurança, a exibição do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED) da empresa, relativos aos anos de 2013 a 2017. A análise específica e objetiva da necessidade de concessão de sigilo aos referidos documentos (que contém dados pessoais dos trabalhadores - data de nascimento, números do CPF, do PIS e da CTPS, grau de instrução, raça, cor, endereço e se é ou não portador de necessidades especiais), à luz do art. 8º, § 2º, do Decreto 8373/2014, do art. 3º, II, da Lei 12.965/2014 (Marco Civil da Internet) e da Lei 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados), há de ser postulada pela empresa ao juízo natural da causa, para apenas em seguida, se o caso, adotar as medidas de salvaguarda necessárias à defesa do direito que afirma possuir . Portanto, sem que se vulnere o devido processo legal (CF, art. 5º, LIV), não se mostra possível nesta sede revisional ordinária, considerar a circunstância de fato superveniente e autônoma relatada nas razões do recurso ordinário, para compor a questão incidental que se instalou com fundamento em premissas de fato e de direito específicas e em momento certo e determinado da relação processual matriz. Recurso ordinário conhecido e não provido" (RO-21961-34.2018.5.04.0000, Subseção II Especializada em Dissídios Individuais, Relator Ministro Douglas Alencar Rodrigues, DEJT 28/10/2019).
Finalmente, digno de nota é o fato de que o art.5º, II, da Lei 13.709/2018 apresenta um rol meramente exemplificativo, aos quais outros podem ser somados, a exemplo da questão tratada no Incidente de Resolução de Recursos Repetitivos n. 1 do Tribunal Superior do Trabalho, no qual restou consagrado que as exigências de atestados criminais podem gerar dano moral “in re ipsa” (independentemente de dano). Isto porque, ao contrário do inciso I, que se ocupa em definir nominalmente o dano pessoal (“informação relacionada a pessoa natural identificada ou identificável”), no inciso II, a definição é ostensiva, com uma sequência de exemplos.
3. Dificuldades aparentes na aplicação da LGPD nas relações de trabalho
No tópico anterior, já foi possível constatar que aplicação da LGPD não está perfeitamente delineada na seara trabalhista, motivo pelo qual poderemos encontrar alguns conflitos que deverão ser resolvidos pela doutrina e pela jurisprudência a partir de apreciação de situações concretas.
O art.4º da Lei n. 13.709/2018, por exemplo, consagra que não poderá ser aplicada por pessoa natural para fins exclusivamente particulares e não econômicos, disposição que gera controvérsias acerca do cabimento em diversas relações de trabalho em que não se encontram presentes os fins econômicos.
A conjugação dos arts.2º e 3º da Consolidação das Leis do Trabalho permite inferir que nas relações de emprego devem estar presentes a pessoalidade, onerosidade, subordinação e continuidade na prestação dos serviços, sem jamais olvidar que o empregado é pessoa natural. Malgrado, a relação de emprego não resume todo o estudo do direito do trabalho, mas sim uma espécie do gênero relação de trabalho.
Observa-se que a própria relação de trabalho, que é o continente da relação de emprego, abarca diversas outras relações em que não se encontram presentes todos os requisitos de caracterização da relação empregatícia, a exemplo das relações de emprego doméstico (art. 1º da Lei Complementar n. 150/2015) e do trabalho voluntário (art. 1º da Lei n. 9.608/98). Conforme bem se depreende na relação doméstica, o trabalho é desempenhado com a finalidade não lucrativa e o trabalho voluntário é desempenhado para entidade pública ou instituição privada de fins não lucrativos, que tenha objetivos cívicos, culturais, educacionais, científicos, recreativos ou de assistência à pessoa.
Nos casos supramencionados, verifica-se que próprio legislador retirou o intuito econômico em relação à perspectiva do tomador dos serviços, situação que representa aparente dificuldade para aplicação da LGPD, e que demanda uma atenção especial para superação.
Nesse aspecto, deve-se buscar na interpretação teleológica, a compreensão de que a expressão “não econômicos”, contida no dispositivo da LGPD, não tem relação com a atividade desempenhada pelo trabalhador.
Outro aspecto que pode suscitar dúvidas, quanto à aplicação nas relações de trabalho, reside na referência do art.7º, I, da Lei 13.709/2018, que consagra a necessidade de consentimento do titular para que haja o tratamento dos dados, sendo possível depreender que o “titular dos dados pessoais deve ser empoderado com o controle de suas informações pessoais e, sobretudo, na sua autonomia da vontade.” (BIONI, 2019, p. 186)
Esse inciso é reforçado com o art. 18, IX, da Lei 13.709/2018, que atribui ao titular dos dados o direito de revogar o consentimento junto ao controlador, cumprindo assinalar que a revogação mencionada pode ocorrer a qualquer momento, mediante expressa manifestação do titular (art.8º, §5º, Lei 13.709/2018).
Contudo, as relações de emprego, permeadas pela subordinação jurídica do trabalhador, apresentam o poder diretivo como contraponto, e que legitima o empregador como aquele que toma as decisões para o desempenho da prestação de serviços e sua continuidade. Nesse sentido, a relação de emprego sempre foi vista de uma forma dicotômica não equânime, ou seja, a força dessa relação sempre pendente em prol do empregador.
Na maioria das vezes, o próprio contrato de trabalho é uma forma bem clara dessa relação não igualitária, já que o empregado, via de regra, não possui o poder negocial das cláusulas mais intrínsecas e importantes do trabalho, tanto que é compreendido como contrato de adesão por parte da doutrina.
Além disso, o próprio tratamento dos dados pessoais seria conexo à relação de emprego, inclusive dados pessoais sensíveis em algumas situações. Por isso, o consentimento acaba sendo rarefeito, e pode até decorrer do próprio comportamento do trabalhador, ao não apresentar qualquer oposição, e que consubstancia o consentimento tácito, a exemplo das próprias condições do contrato de trabalho.
Na doutrina contemporânea, praticamente não encontramos opositores ao reconhecimento de que o contrato de trabalho, na maioria das situações, muito se identifica com o contrato de adesão, e daí a nossa conclusão de que um consentimento genérico e padronizado implicaria violação da própria LGPD, impondo ao aplicador da norma a necessidade de utilizar o tratamento de dados na dimensão estritamente necessária para determinada finalidade, nos termos do art.6º da Lei 13.709/2018, que alude aos princípios que devem ser observados tais como a boa-fé, a finalidade, a adequação e a necessidade, dentre outros.
Portanto, é visível a aplicação da referida lei na seara trabalhista diante do grande fluxo de informações e dados trocados todos os dias, fato este que gera mais uma proteção aos trabalhadores que devem estar amparados pelo princípio da proteção que é “um princípio geral que inspira todas as normas de Direito do Trabalho e que deve ser levado em conta na sua aplicação” (RODRIGUEZ, 2000, p. 85), ou seja, inclusive quanto ao tratamento de dados.
4. A inversão do ônus da prova e sua previsão na LGPD
Segundo o “caput” do art. 373 do Código de Processo Civil vigente, o autor possui o ônus de provar fatos constitutivos do direito alegado e o réu deverá provar fatos impeditivos, modificativos ou extintivos em face do direito do autor e alegados como matéria de defesa.
Esse regramento é baseado em antigo texto do Código revogado (art.333 do CPC/1973), e expressa a mais pura e simples teoria estática do ônus da prova que, durante muito tempo, foi a única máxima prevista sobre a distribuição de encargos probatórios.
Esse modelo estático é pautado no princípio do interesse que deixa certo que incumbe a parte que possui interesse no reconhecimento do fato a ser provado, a qual deverá provar os fatos que garantam o seu resultado favorável. (MARCASSA FILHO, 2015, p. 61).
Nesse caso, segundo esse critério não caberia ao juiz questionar ou confrontar o que está disposto no texto legal, já que confrontaria também a igualdade formal e a legalidade. Esse modelo tem como base os ideais do liberalismo, cujos preceitos fundamentam-se na legalidade e na igualdade formal (perante a lei).
Sendo assim, a lei determina indistintamente o que e quem deve exercer o ônus da comprovação das alegações (ônus subjetivo), sendo ao juiz vedado o “non liquet”, ou seja, no caso de insuficiência de prova, o juiz deve julgar contra quem possuía o ônus da prova e não o cumpriu – ônus objetivo. (BALDINI, p. 87)
Essa antiga regra imposta há muito tempo vinha sofrendo críticas, já que o alicerce do sistema estático é a maior segurança jurídica de acordo com a previsibilidade do encargo. Entretanto, em alguns casos a produção probatória recaia na parte, atribuindo de forma difícil ou impossível de produção o que chamavam de prova diabólica. (RODRIGUES, MONTEIRO NETO, 2016, p. 509)
As críticas, portanto, eram geradas principalmente pelo fato da não observância do caso concreto, podendo gerar desigualdades ou fatos extremamente difíceis de serem provados.
Neste cenário, a doutrina acabou percebendo que havia uma valorização da igualdade formal, desprezando as peculiaridades do caso, a relação de direito material e as condições que circundavam a demanda (como é o caso das materias, técnicas, sociais e informacionais) o que ocasionou na necessidade de outras formas de distribuição do ônus, como é o caso da inversão judicial e da distribuição dinâmica. (BALDINI, 2013, p. 88)
A inversão do ônus da prova veio para mitigar a rigidez da teoria estática e, como o próprio nome já deixa claro, apenas transfere o encargo probatório de uma parte para a outra parte, analisando os conceitos e critérios objetivos, ou seja, pré-determinados. (RODRIGUES, MONTEIRO NETO, 2016, p. 522)
Esse é o caso da previsão do próprio art. 6º, VIII, da Lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor) que prevê a necessidade de algum dos dois requisitos para que a inversão seja determinada pelo juiz: verossimilhança da alegação do consumidor ou quando houver hipossuficiência (técnica ou econômica) do consumidor. A presença de um dos requisitos legais é imprescindível para a inversão do ônus da prova pelo juiz (taxatividade da disposição). (SCHIAVI, 2014, p. 89)
Nesse sentido, o juiz transfere o encargo que pertencia a uma parte para a outra, assim, “se ao autor pertence o ônus da prova do fato constitutivo do seu direito, ele se transfere ao réu, ou seja, o réu deve comprovar a inexistência do fato constitutivo do direito do autor.” (SCHIAVI, 2014, p. 89)
Diferentemente da distribuição dinâmica que, nesse caso, pelo princípio da aptidão da prova e análise do caso concreto, distribui livremente o encargo probatório.
Já para a teoria da carga dinâmica da prova os critérios para a flexibilização do ônus da prova são subjetivos, e é da essência dessa doutrina que assim o sejam. A incorporação legislativa da técnica por requisitos taxativos poderia inviabilizar a aferição sensível do magistrado à hipótese do caso concreto, apartando a dinamização de seu escopo primordial, segundo a expressão utilizada pela doutrina argentina: a justiça do caso concreto. (RODRIGUES, MONTEIRO NETO, 2016, p. 523-524)
Sobre esse aspecto, a teoria da inversão do ônus da prova foi “concebida para corrigir insuficiências e inadequações em matéria de distribuição do ônus da prova, a teoria da distribuição dinâmica representa uma contraposição à chamada 'concepção estática' do ônus probatório.” (RODRIGUES, MONTEIRO NETO, 2016, p. 514)
Contudo, o próprio Código de Processo Civil, promulgado em 2015, acolheu a possibilidade da inversão do ônus da prova em situações específicas, contempladas no art.373, §1º, nas situações prevista em lei (a exemplo das situações contempladas no Código de Defesa do Consumidor), mas também para atender algumas peculiaridades do caso concreto, em que se constata a impossibilidade ou dificuldade excessiva para que a parte possa de desincumbir de seu encargo probatório.
No âmbito do processo do trabalho, a possibilidade de inversão do ônus da prova foi concebida inicialmente pela jurisprudência, a exemplo da Súmula 338 do Tribunal Superior do Trabalho, em que se assegura que o empregador com mais dez empregados registrados possui o ônus de comprovar o controle de jornada, e que deve ter leitura adaptada ao teor do art.74, §2º, CLT, com redação da Lei 13.874/2019, que alude a mais de 20 empregados.
No inciso segundo da súmula supracitada, assegura-se a presunção de veracidade da jornada, caso não ofertados os controles de ponto. Por fim, o inciso terceiro relata que horários de entrada e saída uniformes são inválidos como meio de prova, invertendo-se o ônus da prova.
A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), antes da reforma de 2017, possuía um regramento pautado na teoria estática, entretanto, de forma mais simplista. Assim, era comum a necessidade de complementação do dispositivo consolidado pelo procedimento previsto no processo comum por meio aplicação supletiva, conforme autorizado pelos art. 769 da CLT e art. 15 Código de Processo Civil.
Assim, não obstante o regramento geral ainda esteja pautado na distribuição estática que, por sua vez, de maneira abstrata disciplina quem tem o dever de comprovar a alegação, atribuindo apenas critérios formais de acordo com a posição na relação jurídica processual, com a natureza jurídica e com o interesse processual (BALDINI, 2013, p. 87), já é possível vislumbrar situações em que a regra geral cede lugar à teoria dinâmica.
Nesse sentido, a jurisprudência e a doutrina, com suas duras críticas, mitigaram a regra estática do ônus da prova, como é o caso da teoria da inversão do ônus da prova, e que também acabou acolhida na atual redação do art.818 da Consolidação das Leis do Trabalho, trazida com a Reforma Trabalhista (Lei n. 13.467/2017).
Na atualidade, já não subsiste a discussão acerca do cabimento da inversão do ônus da prova no processo do trabalho, não se cogitando da aplicação subsidiária do Código de Processo Civil, tampouco do Código de Defesa do Consumido. Isto porque a Lei n. 13.467/2017, ao atribuir nova redação ao art.818 da CLT, praticamente replicou as disposições do art.373 do CPC. Nesse sentido, o disposto no art.818, §§1º e 2º, CLT:
“O ônus da prova incumbe:
§1º Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos deste artigo ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juízo atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído”.
§2º A decisão referida no §1º deste artigo deverá ser proferida antes da abertura de instrução e, a requerimento da parte, implicará o adiamento da audiência e possibilitará provar os fatos por .qualquer meio em direito admitido
É certo, no entanto, que a inversão do ônus da prova não tem o objetivo de prejudicar ou colocar a parte numa situação de extrema dificuldade, mas de agilizar a entrega da prestação jurisdicional, com maior qualidade e menos incidentes. (SILVA, 2015, p. 238), tanto que o §3º do art.818 da CLT, que coincide com art.373, §2º, CPC, dispõe que o comando judicial de inversão do ônus da prova “não pode gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil”.
A Lei n. 13.709/2018 (LGPD) veio nessa linha de raciocínio, trazendo nova previsão sobre a inversão do ônus de prova:
Art. 42, § 2º, - O juiz, no processo civil, poderá inverter o ônus da prova a favor do titular dos dados quando, a seu juízo, for verossímil a alegação, houver hipossuficiência para fins de produção de prova ou quando a produção de prova pelo titular resultar-lhe excessivamente onerosa.
Observa-se, pois, que a inversão somente é possível quando for favorável ao titular dos dados, restando evidente que a LGPD inaugura um novo requisito alternativo para aplicação da inversão do ônus da prova. Nesse raciocínio, além dos dois requisitos alternativos já previstos pelo próprio CDC (verossimilhança ou hipossuficiência), foi consagrada a situação em que a produção da prova pelo titular dos dados for excessivamente onerosa.
No entanto, poderá existir alguma discussão quanto ao alcance da mencionada disposição da LGPD, pois há referência expressa a sua aplicação ao processo civil, silenciando quanto ao trabalhista, o que não deve impressionar o intérprete, pois não é a primeira vez que o legislador não se ocupa de referência ao processo do trabalho, talvez por supor que se trata de um capítulo do direito processual civil, sem qualquer autonomia científica[2]. Assim, a resposta para a dúvida suscitada não pode desconsiderar o fato de que o fluxo de dados recebidos pelo empregador nas relações trabalhistas é tão grande quanto qualquer outra relação de natureza pública ou privada, e que esse fato vai desaguar em demandas judiciais.
Por todo o exposto, é possível dizer que a previsão de inversão de ônus da prova, prevista no art.42, §2º, da Lei 13.709/2018 se revela aplicável no âmbito do processo do trabalho, pois se trata de um reflexo da própria relação de trabalho, a qual possui intenso fluxo de dados e depende da proteção especial. A inversão probatória vem para trazer celeridade na prestação jurisdicional justa, não se podendo olvidar que o art. 769 da Consolidação das Leis do Trabalho alude à possibilidade de aplicação subsidiária do direito processual comum, e não apenas do Código de Processo Civil, o que atrai a aplicação, na seara laboral, do arcabouço utilizado no processo civil, ainda que não codificado, desde que se verifique a omissão da legislação processual trabalhista e a necessária compatibilidade com os princípios que são próprios ao processo do trabalho. Pensamos, igualmente, que também seria plenamente defensável a interpretação extensiva do disposto no art.42, §2º, da Lei n. 13.709/2018, para incluir o processo do trabalho, pois carece de sentido supor que o legislador não pretendeu a aplicação da referida disposição normativa no processo perante a Justiça do Trabalho, pois fez referência a um dado sensível do trabalhador, que consiste na filiação ao sindicato de sua categoria profissional (art.5º, II, da Lei n. 13.709/2018).
4 Considerações finais
Como pode ser observado, buscou-se com o presente artigo analisar brevemente a aplicação da Lei Geral de Proteção de Dados na seara trabalhista e as possíveis controvérsias quanto ao alcance de suas disposições.
Observamos que a Lei 13.709/2018 não possui referência expressa às relações de trabalho, mas por ser de natureza privada, o tratamento de dados realizados sob esse aspecto também deve observar as regras nela contidas, pois possui espectro amplo, com vistas a abarcar os diversos ramos da ciência jurídica.
A nova possibilidade de inversão do ônus da prova (art.42, §2º, da Lei n. 13.709/2018), a despeito da referência expressa apenas ao processo civil, comporta aplicação no processo do trabalho, seja por interpretação extensiva da referida disposição normativa, seja sob o fundamento da aplicação subsidiária autorizada pelo art.769 da Consolidação das Leis do Trabalho. Não se pode perder de vista que, no processo do trabalho, o titular dos dados será, via de regra, o trabalhador, fato que mais justifica a necessidade de aplicação da inovação legislativa na seara trabalhista.
Conclui-se, pois, que Lei 13.709/2018 é aplicável no âmbito das relações de trabalho, sempre com observância dos princípios norteadores do direito do trabalho, a exemplo do princípio da proteção; e que a inversão do ônus da prova em favor do trabalhador, na hipótese do art.42, §2º da lei mencionada, é compatível com o processo trabalhista, já que traz celeridade e uma divisão mais equânime do ônus de prova em determinadas situações, estando em perfeita sintonia com o art. 769 da Consolidação das Leis do Trabalho, se não se preferir a interpretação extensiva referida alhures.
São essas as nossas breves considerações para um tema novo, e que demanda reflexão aprofundada, a partir do cotejo da eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações de trabalho.
5. Referências
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[1] : Desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 2º Região. Professor doutor da Faculdade de Direito da PUC-SP, Pós-doutor pela Universidad Nacional de Córdoba (Argentina). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Social Cesarino Júnior e da Asociación Iberoamericana de Derecho del Trabajo y de la Seguridad Social)
[2] No art.62, alínea “b”, da Constituição da República, acrescentada pela Emenda Constitucional n.32/2001, consta a vedação de edição de medidas provisórias para tratar de “direito penal, processual penal e processual civil”, mas a doutrina compreende que a referência ao “processo civil” se estende ao processo do trabalho.
Graduado pelo Centro Universitário Eurípides de Marília. Especialista em direito do trabalho pela Universidade de São Paulo. Mestrando em direito do trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
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