ANDREA LUIZA ESCARABELO SOTERO
(orientadora)[1]
RESUMO: A violência doméstica contra a mulher se tornou uma problemática mundial de saúde pública, ocorrendo principalmente no âmbito familiar e não se restringe a determinada raça, classe econômica, idade ou religião. Este estudo tem como objetivo pesquisar na cultura do nosso país e nos fatos já existentes, decisões judiciais embasadas nas leis brasileiras, nas quais a violência sofrida possui vários significados para a mulher, inclusive interpretações equivocadas sobre seu potencial autônomo, resultando em constante medo sobre qualquer possibilidade de restabelecimento de sua identidade, e tem acometido várias mulheres nos dias atuais. Por tal razão, várias políticas de atenção têm sido desenvolvidas para combater esta violência. Diante disso, conclui-se que a violência doméstica afeta consideravelmente a autoestima da mulher, causando prejuízos na sua autoimagem, gerando sentimento de incapacidade para o enfrentamento e perpetuando o ciclo de violência. O estudo em questão também procura demonstrar a viabilidade de fazê-lo por meio da Justiça Restaurativa, nos crimes caracterizados por violência doméstica e familiar, destacando os principais conceitos que envolvem o tema. Discute-se a política de enfrentamento desta violência no Brasil, assim como projetos em caráter preventivo e a Lei Maria da Penha.
Palavras-chave: Violência contra a mulher. Violência doméstica. Políticas Públicas.
ABSTRACT: Domestic violence against women it became a worldwide public health problem, happens mainly in family and does not refer to specific race, social class, age or religion. This work has to develop a research into the culture and the real facts of our country, judicial decisions based on Brazilian laws. The violence suffered has several meanings for women, including misinterpretations about their autonomous potential, resulting in constant fear about any possibility of reestablishing their identity and it has affected several women nowadays. For such a reason, several care policies are developed to combat this violence. Therefore, it follows that domestic violence considerably affects women's self-esteem, causing damage to their self-image, generating feelings of inability to cope, perpetuating the cycle of violence. The study in question also wants to prove the feasibility of doing so through Restorative Justice, in crimes characterized by domestic and family violence, highlighting the main concepts involving the theme. It analyses the coping policy to face this violence in Brazil, as well as preventive projects and the Maria da Penha Law.
Keywords: Violence against women. Domestic violence. Public policy.
A violência contra a mulher caracteriza-se como um grave problema de saúde pública, o ordenamento jurídico brasileiro vem sofrendo diversas mudanças no que diz respeito aos direitos das mulheres, e em especial ao tema da violência contra a mulher.
O termo violência pode ser compreendido como “uma forma de restringir a liberdade de uma pessoa ou de um grupo de pessoas, reprimindo e ofendendo física ou moralmente”, mediante está interpretação, a violência doméstica e familiar contra a mulher, bem como os mecanismos de enfrentamento desta forma de violência, analisando os desafios e as possibilidades de utilização da Justiça Restaurativa neste percurso serão o objetivo deste estudo, portanto, traçar um panorama geral da “trajetória” da legislação brasileira sobre a violência contra as mulheres, destacando os alcances e limites da lei, a partir de uma abordagem crítica sobre o que mudou o que ainda não mudou e o que deve (ou deveria) mudar na legislação nacional.
Observam-se, em número crescente, mulheres vítimas de violência, cujos próprios maridos ou companheiros são os agressores, esse tipo de violência denominada violência de gênero é compreendida como aquela onde o gênero do agressor e os da vítima estão intimamente relacionados. A explicação para esta violência vem alcançando proporções crescentes tanto nos casos documentados pela mídia quanto nas discussões emplacadas pelos estudiosos da área. A elaboração de políticas públicas visando promover a saúde da mulher também evidencia a situação de violência (FERNANDES et al., 2011).
A violência contra a mulher é um fenômeno antigo e se encontra justificado por pressupostos biológicos bem duvidosos, mas infelizmente comuns, que apontam a mulher como ser mais frágil, de menor força física e capacidade racional, que por sua própria natureza domesticável tem tendência a ser dominada, pois necessita de alguém para protegê-la e orientá-la. Este discurso naturaliza a violência de gênero de forma tal, que a desloca para todos os tempos históricos como fenômeno que sempre ocorreu e que sempre ocorrerá, ainda que em maior ou menor potencialidade. É preciso, assim, desconstruir esta naturalização e, para isso, compreender inicialmente o que se quer dizer com “violência contra a mulher”.
Sob tais fundamentos, como metodologia deste trabalho, foi realizada a metodologia de pesquisa bibliográfica, visando esclarecer o enfrentamento da violência doméstica contra a mulher até os dias atuais, trazendo as informações dos Direitos conquistados, em prol do combate a violência de gênero.
Nesse sentido, e na medida do possível, buscar-se-á também identificar os principais acertos e vitórias, bem como os principais equívocos e reveses desse percurso, apontando para os desafios a serem enfrentados no campo legislativo em relação ao tema em análise.
2. A Violência Contra a Mulher e as Políticas Públicas
Vários foram os desafios na consolidação da Cidadania Feminina “Fora do lar, as mulheres são perigosas para a ordem pública”, essas eram as palavras dos homens da revolução, conforme demonstra Badinter (1991, p. 26), quando descreve o que pensavam a maioria dos homens em suas discussões sobre os direitos das mulheres, em participar na política. Embora o movimento feminista tenha lutado desde o século XVIII por direitos iguais entre homens e mulheres. Para terem esse direito garantido elas foram para as escolas, para as academias, para os lugares onde lhes eram permitidos frequentar, buscando ultrapassar a fronteira imposta pela sociedade androcêntrica que limitava a atuação feminina ao mundo do privado.
Outro grande desafio enfrentado pela mulher é a poderosa instituição chamada Estado, forte pilar institucional que contribui para reprodução da desigualdade de Gênero na sociedade, segundo Bourdieu (1999, p.105-107). O Estado compartilha o pensamento sexista vigente nas outras instituições (Família, Escola, Igreja) quando considera a família patriarcal como modelo da ordem social e moral.
A discussão acerca das desigualdades entre homens e mulheres não é recente. Os gregos antigos já traziam a ideia de inferiorização da mulher na escala da moralidade que classificava os indivíduos, tendo os homens o direito exclusivo de exercer uma vida pública. Às mulheres restava apenas um lugar de menor destaque, onde seus direitos e deveres eram reduzidos à criação dos filhos e aos cuidados do lar (SILVA, 2010).
Em meados dos anos 60, o surgimento do movimento feminista trouxe uma grande visibilidade aos problemas que afetavam as mulheres nos países capitalistas. As mulheres foram às ruas buscando o fim das atitudes discriminatórias nas áreas sociais, econômicas e jurídicas. Era a aparição de um movimento que objetivava recriar a identidade de sexo, sob uma nova ótica em que o modelo hierarquizado era desnecessário (SOUZA, 2006).
A Organização das Nações Unidas (ONU) iniciou os seus esforços contra esta forma de violência com a criação da Comissão de Status da Mulher que formulou entre os anos de 1949 e 1962 uma série de documentos sobre todos os direitos que deviam ser aplicados igualmente a homens e mulheres, sem distinção de qualquer natureza. Somado a isso, várias ações, políticas, marcos e dispositivos legais foram implantados no sentido de tornar efetivas as medidas preventivas e protetoras da mulher, bem como para promover o seu empoderamento (Pinafi, 2012).
Este tipo de violência recebe influência cultural, social e histórica. Nesta perspectiva torna-se relevante o estudo dos marcos e dispositivos legais desenvolvidos no combate à violência contra a mulher, visto que a partir do conhecimento e reflexões sobre estes se encontram contributos para o redirecionamento de políticas e alargamento das discussões na comunidade, convidando-a para também refletir sobre tais acontecimentos, os seus efeitos e melhorias. Este estudo tem como objetivo discutir a evolução histórica dos marcos e dispositivos para o combate à violência contra a mulher no Brasil. Segundo Azevedo & Guerra (2001, p.25):
O termo violência psicológica doméstica foi cunhado no seio da literatura feminista como parte da luta das mulheres para tornar pública a violência cotidianamente sofrida por elas na vida familiar privada. O movimento político-social que, pela primeira vez, chamou a atenção para o fenômeno da violência contra a mulher praticada por seu parceiro, iniciou-se em 1971, na Inglaterra, tendo sido seu marco fundamental a criação da primeira "CASA ABRIGO" para mulheres espancadas, iniciativa essa que se espalhou por toda a Europa e Estados Unidos (meados da década de 1970), alcançando o Brasil na década de 1980.
A História nos mostra que as instituições tendem a produzir e reproduzir valores e ideias que justifiquem os mais diversos interesses de grupos dominantes. A democracia grega já reforçava a distinção entre os sexos: destinando o espaço público da polis aos homens e a esfera privada do òikos, às mulheres. A rua, o mercado, a cidade e a política foram definidas, longinquamente, como espaços masculinos. Paralelamente, se estabelece a divisão entre produção e reprodução, cabendo ao homem o papel de provedor que traz recursos provenientes da esfera pública (polis) para o âmbito doméstico (òikos), espaço destinado às mulheres e voltado à reprodução dos membros da família. Os aspectos biológicos são utilizados para reforçarem o maior envolvimento com a reprodução, pois só a mulher é capaz de gerir, parir e amamentar (no próprio peito) os recém-nascidos. Assim, ao longo da história, as mulheres foram ficando responsáveis pela reprodução diária dos indivíduos dentro da família.
3. Rompendo o Silêncio
No Brasil historicamente existem muitas formas de violência contra mulher, se perpetuando até os dias atuais como nos fala Silva (2017), afetando mulheres independente de classe social, sua cultura ou região brasileira. Após muitos anos de sofrimento no silêncio arraigado da sociedade, esse cenário obteve algumas mudanças e, na atualidade, “a violência contra as mulheres é entendida não como um problema de ordem privada ou individual, mas como um fenômeno estrutural, de responsabilidade da sociedade como um todo” (SILVA, 2017, p.8). Outros autores como Guimarães e Pedroza (2015) reforçam que essa violência em questão “tem sido um problema cada vez mais em pauta nas discussões e preocupações da sociedade brasileira.” (GUIMARÃES; PEDROSA, p.257). Não sendo um fenômeno exclusivo da contemporaneidade, a percepção é que a “visibilidade política e social desta problemática tem um caráter recente” onde:
[...] nos últimos 50 anos é que tem se destacado a gravidade e seriedade das situações de violências sofridas pelas mulheres em suas relações de afeto. As trajetórias históricas dos movimentos feministas e de mulheres demonstram uma diversidade de pautas discutidas e de lutas empreendidas por elas, sobretudo, a partir do século XVIII. No século XX, a partir da década de 60, essas mobilizações enfocaram, principalmente, as denúncias das violências cometidas contra mulheres no âmbito doméstico. (GUIMARÃES; PEDROZA, 2015, p. 257).
Na Declaração sobre a Eliminação da Violência Contra a Mulher, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1993. De acordo com a Declaração:
Todo ato de violência baseado em gênero, que tem como resultado, possível ou real, um dano físico, sexual ou psicológicas incluídas as ameaças, a coerção ou a privação arbitrária da liberdade, seja a que aconteça na vida pública ou privada. Abrange, sem caráter limitativo, a violência física, sexual e psicológica na família, incluídos os golpes, o abuso sexual às meninas, a violação relacionada à herança, o estupro pelo marido, a mutilação genital e outras práticas tradicionais que atentem contra mulher, a violência exercida por outras pessoas que não o marido - e a violência relacionada com a exploração física, sexual e psicológica e ao trabalho, em instituições educacionais e em outros âmbitos, o tráfico de mulheres e a prostituição forçada e a violência física, sexual e psicológica perpetrada ou tolerada pelo Estado, onde quer que ocorra. (OMC, 1998, p.7)
O conceito descrito, por ser amplo, possibilita aos profissionais da área de segurança publica maiores condições para identificar as pessoas que estejam na situação de vítimas de violência e, assim, permite auxiliá-las no próprio reconhecimento, contribuindo na busca ao acesso aos seus direitos. Entre as formas de violação dos direitos das mulheres, existem também às formas de violência não físicas, que se manifestam direta ou indiretamente e provocam múltiplas consequências, entre elas: depressão, isolamento social, insônia, distúrbios alimentares, entre outros.
Nesse sentido, o amparo à mulher em situação de violência é um grande desafio que se firma frente a esta realidade, solicitando uma dedicação conjunta de todos os setores sociais (SANTI; NAKANO e LETTIERE, 2010).
O reconhecimento da capacidade civil das mulheres permitiu, não só às mulheres que lutaram por este direito, uma maior liberdade destas perante seus cônjuges, companheiros ou namorados. Do mesmo modo, a Lei 11.340/06 – Lei Maria da Penha amplia de forma significativa a consciência, tão disseminada pelo movimento feminista, de que a violência doméstica é um problema de saúde pública e é dever do Estado combatê-la. Uma mulher que sofre violências sistemáticas, que se encontra sob o total controle do marido, que naturaliza as opressões diárias que vive e que reprime sua sexualidade, encontrará muito mais dificuldades para se enxergar como sujeito ativo capaz de modificar a realidade social, de lutar para sua libertação e empoderamento.
3.1 O combate à violência doméstica sob a perspectiva da Lei Maria da Penha 11.340/06
A violência de gênero no Brasil na década de 80 demonstra como era urgente o reconhecimento da igualdade entre homens e mulheres e da necessidade de se realizar recortes de gênero no sistema jurídico para que, a partir das diferenças, se combatesse as desigualdades.
Revela-se, assim, a necessidade de, no âmbito das ações para prevenção, punição e erradicação da violência contra a mulher, a criação de políticas específicas para o combate a violência doméstica. Neste sentido, ainda que tardiamente e por muita pressão dos movimentos feministas, foi promulgada em 2006, a Lei 11.340/06, mais conhecida como Lei Maria da Penha.
Ainda em 2006, como reforço à Lei Maria da Penha foi criada a Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180, um serviço oferecido pela SPM (Secretaria de Políticas para Mulheres) com o objetivo de receber denúncias ou relatos de violência, reclamações sobre os serviços da rede, bem como orientar as mulheres sobre os seus direitos e sobre a legislação vigente, encaminhando-as para os serviços quando necessário. Esse serviço permitiu que a Lei Maria da Penha fosse cumprida de forma mais homogênea, levando o serviço para mais perto das mulheres, principalmente daquelas que preferiam o anonimato. Para complementar as ações de combate à violência, aconteceu a II CNPM (Conferência Nacional de Políticas para Mulheres) em 2007, na qual foi lançado o Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência Contra a Mulher como parte da Agenda Social do Governo Federal. Este pacto consiste num acordo entre as três esferas de governo, federal, estadual e municipal do Brasil, para o planejamento de ações que ratifiquem as políticas públicas para combate à violência contra as mulheres. A partir deste pacto houve mais disseminação de informação nos meios de comunicação, o que favoreceu bastante a prevenção e a denúncia dos casos, visto que as mulheres passaram a ter maior domínio sobre os seus direitos. (GOMES, BOMFIM, DINIZ, SOUZA, & COUTO, 2012).
Embora a Lei Maria da Penha tenha grande importância e seja um marco nos direitos as mulheres, não bastou para conter outra questão que é a morte de mulheres por seus parceiros ou indivíduos que integram a família. Assim, houve a urgência na criação de outra lei, devido a esses inúmeros casos, sendo sancionada em 2015 a Lei do Feminicídio - Lei 13. 104/2015, “que altera o Código Penal Brasileiro, passando a prever o feminicídio como uma das circunstâncias qualificadoras do homicídio no Código Penal brasileiro (1940), além de incluir o feminicídio como crime hediondo” (BRASIL, 2015, p.1). Neste sentido, segundo Gomes (2012 p.40/41) “os feminicídios são a expressão letal da violência de gênero, é a última e mais cruel maneira de exterminar as mulheres”.
4. A Política de Enfrentamento da Violência Contra a Mulher no Brasil
Para que as mulheres denunciem e se sintam seguras, é essencial e importante que o Estado ofereça e possibilite condições mínimas de proteção e garantias de seus direitos. A violência doméstica é definida como:
A expressão violência doméstica costuma ser empregada como sinônimo de violência familiar e, não tão raramente, também de violência de gênero. Esta, teoricamente, engloba tanto a violência de homens contra mulheres quanto a de mulheres contra homens, uma vez que o conceito de gênero é aberto, sendo este o grande argumento das críticas do conceito de patriarcado, que, como o próprio nome indica, é o regime da dominação-exploração das mulheres pelos homens [...] (Safiotti (2011, p.44).
Segundo o art. 6º da Lei Maria da Penha (Brasil, 2006), “a violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos”, dispositivo fundamental para desvincular esse tipo de crime da Lei n. 9.099/1995, a qual o considerava como de menor potencial ofensivo. Nesse sentido, dispõe a Lei 11.340/2006, em seu art. 5º:
Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.
A Lei Maria da Penha reafirma os compromissos firmados na Constituição Federal, na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher e na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, dispondo sobre a criação de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e de medidas de assistência e proteção às mulheres vítimas desta violência.
A referida lei, também determina como deve ser realizado o atendimento da mulher nas delegacias e os procedimentos a serem seguidos no processo e no julgamento. Dispõe expressamente sobre o direito da vítima a medidas protetivas de urgência, que podem determinar ao agressor a proibição de determinadas condutas (como aproximar-se da vítima), a prestação de alimentos provisórios, ou o encaminhamento da vítima e seus dependentes a programas de proteção ou atendimento. Garante também às mulheres em situação de violência doméstica e familiar o acesso à Defensoria Pública e à Assistência Judiciária Gratuita. Prevê ainda a formação de equipe multidisciplinar nos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, para desenvolver trabalhos de orientação, encaminhamento, prevenção, acompanhamento psicológico, entre outras medidas, voltados não somente a vítima, mas também ao agressor e aos familiares.
Foi notado no ano de 2012 que as mulheres faziam a denúncia contra o agressor, mas desistiam, pois acreditavam, na maioria das vezes, no arrependimento do companheiro, o qual em seguida voltava a praticar as mesmas agressões. Essa conduta gerou uma nova ação por parte dos organismos públicos e surge a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4424 que conferiu natureza pública e incondicionada à ação penal fundada na Lei nº 11.340 7 de Agosto de 2006 (Lei Maria da Penha). Dessa forma, a mulher após a denúncia contra o companheiro por agressão não poderá mais desistir da ação, o processo fica sob responsabilidade do Ministério Público (Supremo Tribunal Federal, 2012).
Com o objetivo de integrar e ampliar os serviços públicos existentes voltados às mulheres em situação de violência foi estabelecida a criação da Casa da Mulher Brasileira no ano de 2013, um centro de articulação dos atendimentos especializados no âmbito da saúde, da justiça, da rede sócio assistencial e da promoção da autonomia financeira, é o chamado Programa Mulher: Viver sem Violência (VIVA), que entra em vigor em 30 de agosto de 2013 por meio do Decreto 8.086 (Lei nº 8.086/13 de 30 de Agosto,2013). Esse programa teve um forte impacto na efetividade dos serviços, visto que passou a ser possível fazer a integração dos serviços públicos de segurança, justiça, saúde, assistência social, acolhimento, abrigo e orientação para o trabalho, emprego e renda em todas as capitais brasileiras.
Em 2014 foi publicado o Mapa da Violência, o qual apresentou que as taxas de homicídios de mulheres passaram de 2,3 (1980) para 4,8 homicídios por 100 mil mulheres (2012). Assim, essa taxa duplicou (Waiselfisz, 2014). Diante desses dados, observou-se a necessidade da criação de uma lei específica para o combate ao feminícidio, que é uma forma grave de violência contra mulher. Assim, em 9 de março de 2015 foi sancionada a Lei nº 13.104, a qual prevê o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, sendo incluído no rol dos crimes hediondos (Lei nº 13.104/ 2015 de 09 de Março). O principal ganho com esta lei é torná-lo visível, além da punição mais grave para os que cometerem o crime contra a vida.
Diante da problemática levantada, constata-se que devido à luta de muitas mulheres, vários direitos já foram conquistados até alcançar a garantia de igualdade entre homens e mulheres expressa pela Constituição da República. Não obstante, conforme o exposto, na prática essa igualdade de direitos ainda não foi lograda. A violência contra a mulher é o reflexo de anos de desigualdade e inferioridade com que o gênero feminino foi e por vezes ainda é tratado. Que tão logo, não seja necessário que mais pessoas suscitem esta realidade, para obtermos não apenas o fim da violência contra a mulher, mas a equidade de gênero.
5. A Justiça Restaurativa
A Justiça Restaurativa atua em vários locais, como escolas, ONGs, comunidades e Sistema de Justiça, no Brasil. Com a aplicação de práticas, que se baseiam em uma metodologia que procura resgatar o diálogo e tem como princípio desarmar as pessoas e uni-las enquanto seres humanos, construindo valores, estabelecendo diretrizes, para somente depois abordar o conflito
É importante destacar que a prática restaurativa não tem por finalidade a punição, mas sim a reparação dos danos oriundos do delito causados às partes envolvidas e ao desenvolvimento do ciclo restaurativo entre elas. A justiça restaurativa pode reabilitar a família, reconstruir sentimentos e conjugar medidas reparatórias ao dano causado. Essa nova forma de justiça é um novo olhar sendo construído, e surge em decorrência das carências constatadas no sistema punitivo atual, que vem se mostrando ineficiente, especialmente, porque segrega a vítima ao mesmo tempo em que fracassa na responsabilização do autor. (PELLENZ, DEBASTIANI, p.40, 2015).
Sendo assim, o objetivo principal é o de resgatar vínculos, promover valores civilizatórios e construir soluções para reparar os traumas e perdas causadas pelo ofensor, implicando em um processo de natureza consensual e voluntária – princípios norteadores da Justiça Restaurativa – propondo compreender novas formas de solução de conflitos. O modelo retributivo, além de não atingir os fins propostos, tão pouco se preocupa com a vítima que é colocada em segundo plano. O interesse da vítima ao acionar o sistema penal na maior parte das vezes não é a punição do infrator, mas a resolução do conflito com a reparação do dano gerado pela prática delitiva.
A Justiça Restaurativa se preocupa em especial com as necessidades das vítimas de atos ilícitos, aquelas necessidades que não estão sendo adequadamente atendidas pelo sistema de justiça criminal. Não raro as vítimas se sentem ignoradas, negligenciadas ou até agredidas pelo processo penal. Às vezes os interesses do Estado são diretamente conflitantes com aqueles da vítima. Isso acontece em parte devido à definição jurídica do crime, que não inclui a vítima. O crime é definido como ato cometido contra o Estado, e por isso o Estado toma o lugar da vítima no processo. No entanto, aqueles que sofreram dano muitas vezes tem várias necessidades específicas em relação ao processo judicial. (ZEHR, 2017, p. 28).
Silvana Sandra Paz e Silvina Marcela Paz explicam ainda que a mediação penal é a busca “de uma solução, negociada livremente entre as partes, para um conflito nascido de uma infração penal, no marco de um processo voluntário, informal, e confidencial”.
Renato Sócrates Gomes Pinto traz a seguinte definição de Justiça Restaurativa:
A Justiça Restaurativa baseia-se num procedimento de consenso, em que a vítima e o infrator, e, quando apropriado, outras pessoas ou membros da comunidade afetados pelo crime, como sujeitos centrais, participam coletiva e ativamente na construção de soluções para a cura das feridas, dos traumas e perdas causados pelo crime. Trata-se de um processo estritamente voluntário, relativamente informal, a ter lugar preferencialmente em espaços comunitários, sem o peso e o ritual solene da arquitetura do cenário judiciário, intervindo um ou mais mediadores ou facilitadores, e podendo ser utilizadas técnicas de mediação, conciliação e transação para se alcançar o resultado restaurativo, ou seja, um acordo objetivando suprir as necessidades individuais e coletivas das partes e se lograr a reintegração social da vítima e do infrator.
Para a vítima o crime torna-se traumático por consistir em uma violação do ser, uma invasão daquilo que é o indivíduo, daquilo que acredita e do seu espaço privado. “A experiência de ser vítima de um crime pode ser muito intensa, afetando todas as áreas da vida”. (ZEHR, 2018, p. 31).
A vítima recebe apoio e expõe ao infrator o quanto foi lesada. Deste modo, é desenvolvido o senso de responsabilidade. Os ofensores também precisam de cura. Devem ser responsabilizados pelo que fizeram, mas essa responsabilização pode ser um passo em direção a mudança e à cura. (ZEHR, 2018)
Atualmente, o movimento em prol da Justiça Restaurativa, segue crescendo no Brasil e no mundo, juntamente com publicações, pesquisas, práticas e institucionalizações. É possível encontrar centrais inteiras de práticas restaurativas funcionando em conjunto com o sistema judiciário.
Com a recomendação da Organização das Nações Unidas (ONU) para que a temática da Justiça Restaurativa fosse implantados nas legislações estados membros, o Conselho Nacional de Justiça aprovou a Resolução 225 de 31 de maio de 2016:
A Resolução nº 225 dispõe sobre a Política Nacional de Justiça Restaurativa no Poder Judiciário, contendo diretrizes para a implementação e difusão da prática da JR. A Resolução é resultado de uma minuta desenvolvida por um grupo de trabalho instituído pelo presidente do CNJ no ano de 2016, ministro Ricardo Lewandowski (MEZZALIRA, 2018).
Diante dos sinais evidentes do esgotamento do modelo retributivo no qual o encarceramento se apresenta como a melhor solução, os procedimentos restaurativos se tornam possíveis alternativas. Neste modelo descentralizado de resolução de conflitos, a vítima é tida como personagem principal, na qual o delito encontraria sua real e desejada solução. Desta forma, a Justiça Restaurativa consistiria, basicamente, numa alternativa ao sistema tradicional criminal, trazendo consigo a promessa de se fazer justiça.
A violência doméstica por estar diretamente ligada aos conflitos de gênero os quais envolvem, além de aspectos socioculturais, também questões psicológicas e afetivas das partes envolvidas, ocorrendo na maior parte das vezes no âmbito familiar, apresentam uma maior complexidade do que as outras formas de violência.
A violência de gênero não é um fenômeno natural, baseado na maior força física do homem e na fragilidade da mulher, sequer um fenômeno isolado, próprio das classes mais baixas. Trata-se, na realidade, de um fenômeno próprio das sociedades patriarcais, as quais estabelecem uma relação de dominação-subordinação entre homens e mulheres. A desigualdade de gênero passa, assim, a ser um dos eixos estruturantes da sociedade, entrelaçando-se com a de raça e a de classe. Só haverá, assim, uma real libertação, emancipação e empoderamento das mulheres quando houver a superação desta estrutura patriarcal, racista e capitalista.
A violência foi, ao longo dos anos, deixando de ser vista como uma realidade normal da situação familiar, passando a ocupar um lugar de destaque com o desenvolvimento de políticas e leis para a sua prevenção e combate. Ressalta-se também, a importância dos momentos de discussão aberta para a sociedade que são as conferências realizadas, as quais muito contribuem para a realização de políticas dentro da realidade da mulher vítima de violência.
Verifica-se que, entre os marcos, aquele que apresentou maior relevância social foi a Lei Maria da Penha, visto que tornou mais visível o problema da violência e encorajou as mulheres a realizarem as denúncias. Merece destaque também, o Ligue 180 e o Programa Viva Mulher, os quais permitem maior privacidade à mulher para realizar a denúncia, receber informações e receber um atendimento integrado da rede.
Nesse cenário, visando o enfrentamento, redução e prevenção dos índices de violência, desponta a justiça restaurativa como um mecanismo que prioriza as necessidades da vítima, por meio de seus princípios, valores e procedimentos, com a finalidade de reparação do dano e principalmente de prevenção. Para além da cura e reparação dos danos e do rompimento dos laços do ciclo de violência, as práticas restaurativas também buscam o empoderamento da mulher, para que consiga lidar com a violência e defender seus interesses, não mais se submetendo a qualquer tipo de opressão.
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[1] Docente do curso de Direito IESB Instituto de Ensino Superior de Bauru
Acadêmica em Direito na Universidade IESB Instituto de Ensino Superior de Bauru
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, Laís Caroline dos. Violência Doméstica Contra a Mulher: Perspectivas de Combate à Violência de Gênero Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 abr 2021, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56318/violncia-domstica-contra-a-mulher-perspectivas-de-combate-violncia-de-gnero. Acesso em: 23 dez 2024.
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