RESUMO: O presente estudo aborda a possibilidade de fixar danos morais coletivos no bojo de um processo criminal, nos termos do art. 387, IV, do Código de Processo Penal.
PALAVRAS-CHAVE: direito processual penal. ressarcimento da vítima. valor mínimo de indenização. dano moral coletivo
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Da reparação do dano decorrente de um ilícito penal. 3. Do tipo de dano passível de fixação pelo juízo criminal. 4. Da possibilidade de fixação de indenização por danos morais coletivos. 5. Conclusão. 6. Bibliografia.
1. INTRODUÇÃO
A vítima de um crime tem o direito de ser indenizada civilmente pelos danos sofrido. Para facilitar esse ressarcimento, a Lei nº 11.719/2008 modificou o Código de Processo Penal para incluir a nova redação do art. 387, IV, na qual estabelece que o juiz, ao proferir sentença condenatória, fixará o valor mínimo para a reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos experimentos pelo ofendido.
Com esse novo regramento jurídico, a vítima não é mais obrigada a ajuizar uma ação cível para ser ressarcida. Tem a faculdade de ajuizar diretamente uma ação de execução de título executivo judicial a partir do valor mínimo indenizatório fixado na sentença penal condenatória.
Acontece que ao instituir essa nova forma de ressarcimento da vítima, o legislador não estabeleceu os limites dos danos a serem fixados e nem o procedimento a ser adotado. Essa tarefa coube à doutrina e à jurisprudência que desde a referida modificação legislativa tem sanado algumas polêmicas sobre o assunto.
Um dos mais recentes questionamentos sobre o tema é a possibilidade de o juiz criminal fixar danos morais coletivos pela prática da conduta delituosa. Assim, o presente artigo busca analisar e discutir a viabilidade da fixação de dano moral coletivo no juízo criminal, a partir de um estudo realizado pela metodologia descritiva e qualitativa, por método hipotético-dedutivo, por meio de revisão bibliográfica e estudo das decisões de algumas Cortes de Justiça do país.
2. DA REPARAÇÃO DO DANO DECORRENTE DE UM ILÍCITO PENAL
Alguns fatos da vida possuem múltipla incidência jurídica. A conduta tipificada pelo legislador como crime também pode configurar um ilícito civil, o que ensejará, além da responsabilização penal, a civil. Desse modo, verificado a ocorrência de um crime, nasce não apenas a pretensão punitiva estatal, mas também o direito da vítima ser ressarcida pelos danos sofridos.
O ordenamento jurídico brasileiro adotou, como regra geral, o sistema de independência relativa das instâncias cíveis e penais[1]. Assim, as decisões do juízo criminal não vinculam o juízo cível, exceto as que versem sobre a existência do fato e da autoria. Nesses dois casos, há uma eficácia vinculante, para o juiz cível, da decisão proferida pelo juiz penal.[2]
Nesse sentido, o art. 935 do Código Civil dispõe que:
Art. 925: A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal.
O Código de Processo Penal, por sua vez, estabelece que:
Art. 66. Não obstante a sentença absolutória no juízo criminal, a ação civil poderá ser proposta quando não tiver sido, categoricamente, reconhecida a inexistência material do fato.
Desse modo, a vítima tem duas opções para buscar o ressarcimento pelos prejuízos sofridos: ajuizar diretamente a ação cível ex delicto ou aguardar a decisão no processo criminal para, posteriormente, ajuizar uma ação de execução.
Na primeira opção, prevista no art. 64 do CPP, a principal vantagem é que a vítima não precisa aguardar a resolução do processo criminal, podendo propor, imediatamente, a ação ordinária de indenização para obtenção do título executivo cível. Além disso, pode ajuizar a ação cível não apenas contra quem é ou pode ser réu na ação penal, mas contra todos os civilmente responsáveis. Por outro lado, há o risco do magistrado da vara cível suspender a ação até o julgamento definitivo da ação penal, conforme autoriza o parágrafo único do art. 64 do CPP.
Já na ação de execução ex delicto, tratada no art. 63 do CPP, a vítima terá de aguardar o trânsito em julgado da condenação penal para, depois, executá-la no cível, eis que um dos efeitos extrapenais da sentença penal condenatória é tornar certa a obrigação de indenizar dano causado pelo crime e a sentença penal funciona como um título executivo judicial, nos moldes do art. 91, I, do CP c/c art. 515, VI, do CPP. Nesse caso, não será preciso discutir a culpa do réu, uma vez que a ação executiva, limita-se a auferir o valor indenizatório.
Na busca por facilitar o ressarcimento cível da vítima de crime, a Lei nº11.719/08 alterou o art. 387, IV, do CPP para estabelecer que o juiz deve fixar na sentença penal condenatória um valor mínimo de indenização, sem prejuízo da liquidação para a apuração da integralidade do dano efetivamente sofrido no juízo cível.
Essa modificação atenuou a separação das instâncias cíveis e penais. Antes da reforma do Código de Processo Penal, o quantum indenizatório era de incumbência exclusiva do magistrado do juízo cível e ao juiz criminal reservava-se tão somente a tarefa de verificar os aspectos inerentes ao direito penal. Atualmente, permite-se que no bojo do próprio processo criminal seja fixado o valor mínimo da reparação cível e a vítima pode, se desejar, pleitear valor maior em fase de liquidação do dano na esfera cível.
Para Guilherme Nucci, apesar de tímida, essa modificação é importante para garantir um ressarcimento da vítima de forma mais célere e não sobrecarregar a esfera cível com uma nova discussão sobre o mesmo tema:
Não mais se discutirá se esta é devida (na debeatur), mas tão somente o quanto é devido pelo réu (quantum debeatur). Facilita-se o processo, impedindo-se o reinício da discussão em torno da culpa, merecendo debate somente o valor da indenização, o que é justo, pois o retorno ao debate a respeito da ocorrência do crime ou não somente iria causar o desprestígio da Justiça (Nucci, 2015, 225/226) [3]
O art.387, IV, do CPP, contudo, foi omisso acerca do procedimento para a apuração dos danos e da legitimidade ativa para pleitear a reparação dos danos, cabendo à doutrina e à jurisprudência disciplinar esses aspectos.
No que pese a existência de pensamento doutrinário em contrário[4], o Superior Tribunal de Justiça pacificou o entendimento de que a fixação de um valor mínimo de reparação na sentença condenatória depende de pedido expresso pela vítima ou pelo Ministério Público para que seja observado o contraditório e a ampla defesa.
AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PENAL E PROCESSO PENAL. VIOLAÇÃO DO ART. 387, IV, DO CPP. REPARAÇÃO CIVIL. DANO MORAL. PEDIDO EXPRESSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. CABIMENTO. ACÓRDÃO RECORRIDO EM DESACORDO COM O ENTENDIMENTO DOMINANTE DO STJ. AGRAVO REGIMENTAL PROVIDO. 1. Nos termos do entendimento desta Corte Superior a reparação civil dos danos sofridos pela vítima do fato criminoso, prevista no art. 387, IV, do Código de Processo Penal, inclui também os danos de natureza moral, e para que haja a fixação na sentença do valor mínimo devido a título de indenização, é necessário pedido expresso, sob pena de afronta à ampla defesa. 2. Agravo regimental provido.AgRg no AREsp n. 720.055/RJ,relator Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 26/6/2018, DJe 2/8/2018 (Grifo nosso)
PENAL E PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. ART. 272 DO CP. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DE NOCIVIDADE AO ORGANISMO OU REDUÇÃO DO VALOR NUTRITIVO NA DEFORMAÇÃO DO ÓLEO DE SOJA DEGOMADO UTILIZADO PARA A PRODUÇÃO DE ALIMENTOS. ABSOLVIÇÃO.
REPARAÇÃO DE DANOS MORAIS. PEDIDO EXPRESSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO.AUSÊNCIA DE INSTRUÇÃO ESPECÍFICA. VIOLAÇÃO DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.
[...]
4. A reparação de danos, além de pedido expresso, pressupõe a indicação de valor e prova suficiente a sustentá-lo, possibilitando ao réu o direito de defesa com indicação de quantum diverso ou mesmo comprovação de inexistência de prejuízo material ou moral a ser reparado. Necessário, portanto, instrução específica para apurar o valor da indenização. In casu, verifica-se que, apesar de ter havido pedido expresso do Ministério Público na denúncia para a fixação de valor para a reparação do dano, nos termos do art. 387, inciso IV, do CPP, não houve instrução específica, o que afastou do acusado a possibilidade de se defender e produzir contraprova.
5. Agravo regimental desprovido.
(AgRg no AREsp 1361693/GO, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 02/04/2019, DJe 23/04/2019) (Grifo nosso)
Além disso, a fixação de um valor indenizatório mínimo somente pode ser feita nas ações penais que apurem a responsabilidade por crime cometido após a vigência da Lei nº 11.719/08. Trata-se de lei de natureza mista – material (a reparação
do dano) e processual (requisitos da sentença) – de modo que não pode retroagir em desfavor do Acusado, em razão da vedação do art. 5º, XL, CR/88.
3. DO TIPO DE DANO PASSÍVEL DE FIXAÇÃO PELO JUÍZO CRIMINAL
O art. 387, VI, também foi silente quanto ao grau de abrangência do dano, ou seja, não há previsão se o dano a ser fixado pelo juiz refere-se apenas ao dano material ou se é admitido o dano moral.
Alguns doutrinadores entendem que o mencionado artigo autoriza apenas a fixação do dano material, pois o dano moral é questão de extrema complexidade, sem critério objetivo para sua quantificação e por isso não deve ser tratado dentro do juízo criminal, sob pena de prejudicar a apreciação do ilícito penal, que é o objetivo central de uma ação penal.
Nesse sentido, cita-se o pensamento dos seguintes autores:
Para verificar a abrangência deste dano, não é o juiz penal a melhor pessoa, mas sim o juiz cível, mais familiarizado com essas questões. O que quis a lei foi somente permitir que o dano material facilmente aferível possa ser, de igual sorte, reparado, sem maiores delongas. Questões mais controversas, como as que envolvem o dano moral, não são alcançadas pela norma legal. [5]
Parece-nos que a Lei não se reportou aos danos de natureza moral, limitando-se àqueles valores relativos aos danos materiais, de fácil comprovação (do prejuízo) no processo. O arbitramento do dano moral implicaria: a) a afirmação de tratar-se de verba indenizatória, isto é, de natureza civil; e b) a necessidade de realização de todo o devido processo penal para a sua imposição, o que não parece ser o caso da citada Lei nº 11.719⁄08. [6]
Em posição divergente, NUCCI defende a possibilidade de fixação do dano moral ao afirmar que “o valor mínimo deve ser, em verdade, amplo, abrangendo tanto a reparação visível (dano material) quanto a psicológica (dano moral), pois ambas são passíveis de discussão e demonstração durante o trâmite criminal.”[7]
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça contempla a viabilidade de indenização para as duas espécies de dano – o material e o moral – desde que tenha pedido na denúncia ou na queixa, conforme interpretação dos trechos do voto da Exma. Ministra Relatora Maria Thereza de Assis Moura no julgamento do REsp 1.585.684-DF:
O juiz, ao proferir sentença penal condenatória, no momento de fixar o valor mínimo para a reparação dos danos causados pela infração (art. 387, IV, do CPP), pode, sentindo-se apto diante de um caso concreto, quantificar, ao menos o mínimo, o valor do dano moral sofrido pela vítima, desde que fundamente essa opção. De fato, a legislação penal brasileira sempre buscou incentivar o ressarcimento à vítima.
[...]
Dentro desse novo panorama, em que se busca dar maior efetividade ao direito da vítima em ver ressarcido o dano sofrido, a Lei n. 11.719/2008 trouxe diversas alterações ao CPP, dentre elas, o poder conferido ao magistrado penal de fixar um valor mínimo para a reparação civil do dano causado pela infração penal, sem prejuízo da apuração do dano efetivamente sofrido pelo ofendido na esfera cível.
[...]
Assim, ao impor ao juiz penal a obrigação de fixar valor mínimo para reparação dos danos causados pelo delito, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido, está-se ampliando o âmbito de sua jurisdição para abranger, embora de forma limitada, a jurisdição cível, pois o juiz penal deverá apurar a existência de dano civil, não obstante pretenda fixar apenas o valor mínimo. Dessa forma, junto com a sentença penal, haverá uma sentença cível líquida que, mesmo limitada, estará apta a ser executada.
E quando se fala em sentença cível, em que se apura o valor do prejuízo causado a outrem, vale lembrar que, além do prejuízo material, também deve ser observado o dano moral que a conduta ilícita ocasionou. E nesse ponto, embora a legislação tenha introduzido essa alteração, não regulamentou nenhum procedimento para efetivar a apuração desse valor nem estabeleceu qual o grau de sua abrangência, pois apenas se referiu à "apuração do dano efetivamente sofrido". Assim, para que se possa definir esses parâmetros, deve-se observar o escopo da própria alteração legislativa: promover maior eficácia ao direito da vítima em ver ressarcido o dano sofrido. Assim, considerando que a norma não limitou nem regulamentou como será quantificado o valor mínimo para a indenização e considerando que a legislação penal sempre priorizou o ressarcimento da vítima em relação aos prejuízos sofridos, o juiz que se sentir apto, diante de um caso concreto, a quantificar, ao menos o mínimo, o valor do dano moral sofrido pela vítima, não poderá ser impedido de o fazer.( REsp 1.585.684-DF, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 9/8/2016, DJe 24/8/2016.) (Grifos nossos)
Cabe ainda destacar que, em março de 2018, o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial Repetitivo n. 1.675.874/MS (tese 983), fixou a compreensão de que a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher implica a ocorrência de dano moral in re ipsa, de modo que uma vez comprovada a prática delitiva, é desnecessária maior discussão sobre a efetiva comprovação do dano para a fixação de valor indenizatório mínimo.
Nos casos de violência contra a mulher praticados no âmbito doméstico e familiar, é possível a fixação de valor mínimo indenizatório a título de dano moral, desde que haja pedido expresso da acusação ou da parte ofendida, ainda que não especificada a quantia, e independentemente de instrução probatória.
Verifica-se, portanto, que é amplamente reconhecida a possibilidade de o juiz, caso se sinta apto, fixar o valor mínimo da indenização pelo dano moral sofrido, ainda que o dano moral seja dotado de particularidades que dificultam a sua identificação e quantificação.
4. DA POSSIBILIDADE DE FIXAÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS COLETIVOS[8]
Evoluindo na discussão da fixação de danos moral pelo juízo criminal diante de uma sentença condenatória, alguns doutrinadores e julgadores passaram a defender que a previsão do art. 387, IV, do CPP também autoriza a fixação de indenização a título de danos morais coletivos.
A 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Penal 1002, de relatoria do Min. Edson Fachin, julgado em 9/6/2020, reconheceu, por maioria, que réu que praticou corrupção passiva pode ser condenado, no âmbito do próprio processo penal, a pagar danos morais coletivos. De acordo com o informativo nº 981 do STF:
O ministro Celso de Mello reputou ser legítima a condenação, especialmente ao se considerarem a natureza e a finalidade resultantes do reconhecimento de que se revestem os danos morais coletivos cuja metaindividualidade, caracterizada por sua índole difusa, atinge, de modo subjetivamente indeterminado, uma gama extensa de pessoas, de grupos e de instituições.
Vencido, no ponto, o ministro Ricardo Lewandowski, que afastou a possibilidade de se processar a condenação ao dano moral no próprio processo penal, no que foi acompanhado pelo ministro Gilmar Mendes. Segundo o ministro Ricardo Lewandowski, o processo coletivo situa-se em outro âmbito, no qual não se leva em consideração o direito do indivíduo, e sim os direitos coletivos de pessoas que pertençam a determinado grupo ou ao público em geral. Na espécie, inexiste ambiente processual adequado para a análise de dano moral coletivo, o que recomenda o exame da querela em ação autônoma
Apesar dessa decisão, o assunto da fixação de danos morais coletivos em uma sentença penal condenatória é ainda bastante incipiente não se tendo um conjunto de julgados sobre o tema do qual se possa extrair efetivamente a possibilidade de condenação por danos morais envolvendo outros crimes. As informações divulgadas no site do Supremo Tribunal Federal não permitem auferir se a fundamentação utilizada tem aplicabilidade apenas aos casos de corrupção ou se admite extensão para outros delitos. No mais, a decisão acima não tem força vinculante e foi tomada por maioria dos votos, evidenciando que há divergência sobre o tema entre os próprios Ministros integrantes da 2º Turma do Supremo Tribunal Federal.
Não há dúvidas de que o ordenamento jurídico brasileiro tutela o dano moral não apenas na esfera individual como também na coletiva. A progressiva tutela de direitos coletivos vem, necessariamente, acompanhada de uma responsabilização para aqueles que causam danos a direitos de uma coletividade.
Segundo Flávio Tartuce:,
O dano moral coletivo surge como outro candidato dentro da ideia de ampliação dos danos reparáveis. O seu conceito é controvertido, mas ele pode ser denominado como o dano que atinge, ao mesmo tempo, vários direitos da personalidade, de pessoas determinadas ou determináveis (danos morais somados ou acrescidos). [9]
Com efeito, o sistema jurídico teve que se adaptar de modo a não mais restringir a proteção somente do indivíduo, passando a reprimir situações que configuram lesões a interesses extrapatrimoniais do qual a coletividade é titular, como o meio ambiente, a moralidade administrativa, dentre outros.
Essa tutela ao dano moral coletivo decorre da previsão do inciso X do art. 5º da Constituição Federal e no art. 186 do Código Civil.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Destaque-se ainda a previsão do inciso VIII do art. 1º da Lei de Ação Civil Pública:
Art. 1º Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados:
[...]
VIII – ao patrimônio público e social.
Cabe, ainda, frisar que o Código de Defesa do Consumidor expressamente prevê a reparação por dano moral coletivo
Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
[...]
VI - a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos;
No âmbito da legislação processual penal, não há qualquer limitação feita pelo art. 387, VI, do CPP sobre a natureza do dano a ser fixada. Todavia, mesmo não existindo vedação nesse sentido, é preciso considerar que o dano moral coletivo apresenta particularidades que desestimulam sua fixação na esfera penal.
A transindividualidade do dano moral coletivo e sua aferição no caso concreto é matéria bastante complexa que deveria ser abordada em ação própria e não incluída dentro de uma ação penal, uma vez que põe em risco um valor tão importante para o indivíduo: a sua liberdade.
É importante considerar que o art. 387, IV, do CPP foi idealizado legislador para garantir a reparação dos prejuízos sofridos pela vítima. No caso do dano moral coletivo, o fruto da condenação não ressarce ninguém especificamente, é revertido supostamente à coletividade com sua destinação a um fundo. Com efeito, a condenação em dano moral coletivo acaba por não indenizar ou compensar ninguém diretamente - não há distribuição/repartição de dinheiro entre as vítimas – e, com isso, perde a sua função indenizatória para se assemelhar cada vez mais a uma sanção pecuniária.
E, ainda, que seja cabível a condenação do réu ao pagamento de danos morais coletivos, há de se questionar a respeito da legitimidade para execução da sentença penal condenatória. O art. 63 do CPP estabelece que cabe à vítima, ou a seu representante legal, ajuizar a execução cível ex delicto. Não há previsão legal de atuação por parte do Ministério Público ou de qualquer outro órgão para o ajuizamento dessa ação executiva a partir de uma sentença condenatória penal.
Outro fator que desestimula a fixação de dano moral coletivo pelo juízo criminal é quantificação desse dano, ainda que o valor a ser fixado reflita apenas um patamar indenizatório mínimo. A indeterminabilidade do sujeito passivo e a indivisibilidade da ofensa e da reparação dificultam a atribuição prática de um valor indenizatório razoável, notadamente por um juízo que não costuma lidar com essas discussões.
Nesse contexto, verifica-se que são inúmeras as discussões incluídas na ação penal que não têm direta e imediata relação com a apuração da materialidade e da autoria de um fato criminoso, alargando-se de maneira indesejada o objeto da ação penal.
As pesquisas jurisprudenciais realizadas indicam que, afora o julgado do Supremo Tribunal Federal (AP 1002), não há um conjunto de julgados que permitam concluir sobre efetiva aceitação da condenação por danos morais coletivos no bojo de uma ação penal. No âmbito do Superior Tribunal de Justiça não foram localizados julgados relevantes sobre a questão e nos Tribunais de segunda instância parece existir um histórico pela rejeição da tese de fixação de danos morais coletivos no processo penal:
PENAL. PROCESSO PENA. TRÁFICO DE DROGAS. CONSTITUCIONALIDADE DO TRÁFICO PRIVILEGIADO. PENA MANTIDA, DANO MORAL COLETIVO NEGADO. RECURSO DESPROVIDO.
Não acolhido opleito recursal pelo afastamento do tráfico privilegiado (art. 33, §4º, Lei de Drogas), em razão da inconstitucionalidade do mencionado dispositivo. A Suprema Corte declarou a inconstitucionalidade de parte do texto do aludido dispositivo, no que tange à impossibilidade de substituição da pena, mantendo a validade e a eficácia da causa de diminuição de pena. O Colendo Superior Tribunal de Justiça tem balizado suas decisões atinentes ao tema com base na imprescindibilidade de se debater o dano moral coletivo, decorrente de práticas criminosas, em Ações Civis Coletivas específicas, oportunidade em que será apurada a proporção dos prejuízos causados à vítima, leia-se coletividade, durante o regular decurso processual. Pedido de indenização por dano moral coletivo não acolhido. (TJ-ES-APR: 00036960420188080038, Relator: Willian Silva, Data de Julgamento: 04:03:202, Primeira Câmera Criminal, Data de Publicação: 16/03/2020) (Grifos nossos)
APELAÇÃO CRIMINAL. TRÁFICO DE DROGAS E ASSOCIAÇÃO. CRIME DE ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO DEVIDAMENTE CONFIGURADO. ATUAÇÃO CONJUNTA, ESTÁVEL E PERMANENTE DEMONSTRADA. DOSIMETRIA DA PENA. AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE. MANUTENÇÃO. PAGAMENTO DE INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL COLETIVO. IMPOSSIBILIDADE. EXCLUSÃO. NEGATIVA DO DIREITO DE RECORRER EM LIBERDADE JUSTIFICADA NA GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. RECALCITRÂNCIA DELITIVA. RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO.
[...]
O art. 387 do Código de Processo Penal admite que o juiz ao proferir a sentença condenatória estabeleça um valor mínimo para reparação de danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido. Ocorre que quando o prejuízo for causado à coletividade, como no crime de tráfico de drogas, inviável tal aferição em sede de ação penal. Sendo assim, a condenação dos recorrentes ao pagamento de indenização por danos morais coletivos deve ser excluída. 4. A negativa do direito de recorrer em liberdade está fundamentada na garantia da ordem pública, porquanto os acusados Leonardo da Conceição Silva e Auires Vieira da Silva possuem outros registros criminais, inclusive por crime de tráfico de drogas, o que demonstra a possibilidade concreta de reiteração criminosa e justifica a manutenção da constrição nos termos do art. 312 do Código de Processo Penal. 5. Apelo conhecido e parcialmente provido apenas para excluir a condenação dos recorrentes ao pagamento de indenização por danos morais coletivos, mantendo-se a sentença em seus demais termos. (TJ-PI - ACr 0706482-81.2019.8.18.0000; Segunda Câmara Especializada Criminal; Rel. Des. Erivan José da Silva Lopes; Julg. 25/10/2019; DJPI 30/10/2019; Pág. 30)
APELAÇÃO CRIMINAL. TRÁFICO DE DROGAS. DOSIMETRIA. PENABASE NO MINIMO LEGAL. IMPOSSIBILIDADE. NATUREZA E QUANTIDADE DA DROGA APREENDIDA. DANOS MORAIS COLETIVOS. NÃO CABIMENTO. ESFERA CÍVEL. RECURSOS IMPROVIDOS. 1. Não há que se falar em redução da pena-base, tendo em vista a natureza e quantidade da droga apreendida (maconha e cocaína), que possuem alto poder viciante, nos termos do que dispõe o art. 59 do CP e art. 42 da Lei 11.343/2006. 2. Diante da complexidade que a matéria exige, a fixação de indenização a título de danos morais coletivos deve ser analisada na esfera cível. Recursos Improvidos. (TJ-ES - APL: 00056095520178080038, Relator: PEDRO VALLS FEU ROSA, Data de Julgamento: 31/10/2018, PRIMEIRA CÂMARA CRIMINAL, Data de Publicação: 12/11/2018). (Grifo nosso)
TRÁFICO DE DROGAS. DECOTE DA MINORANTE PREVISTA NO ART. 33, § 4º, DA LEI Nº 11.343/06. DEDICAÇÃO A ATIVIDADES CRIMINOSAS NÃO COMPROVADA. ÔNUS DA PROVA DO PARQUET. DECOTE DA PENA DE MULTA. OFENSA AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. INADMISSIBILIDADE. REPARAÇÃO CIVIL DECORRENTE DE DANO 5 CENTRO DE APOIO OPERACIONAL DAS PROMOTORIAS CRIMINAIS, DO JÚRI E DE EXECUÇÕES PENAIS MORAL COLETIVO. IMPOSSIBILIDADE. 1- Não incumbe ao réu o ônus de comprovar a sua primariedade, seus bons antecedentes ou a dedicação exclusiva a atividade lícitas, mas sim ao Órgão Ministerial, inclusive como decorrência do sistema acusatório adotado pela Constituição Federal e pelo Código de Processo Penal. Assim, preenchendo os requisitos elencados no § 4º do art. 33 da Lei nº 11.343/06, considerando-se a pequena quantidade de entorpecentes apreendidos na posse do acusado e sem provas de que se dedique às atividades criminosas ou que integre organização criminosa, incabível o decote da referida minorante. 2- A pena de multa prevista no preceito secundário do tipo penal não pode ser excluída da condenação, pois esta compõe a cominação legal do tipo pelo qual restou condenado o réu, sendo que discussões acerca da forma de pagamento devem ser dirimidas junto ao Juízo da Execução. 3- Não se pode transmudar a finalidade do disposto no art. 387, inc. IV, do CPP, com o intuito de se fixar valores mínimos a título de dano moral coletivo em razão da prática do delito de tráfico de drogas, pois, assim, estaria se desvirtuando a lógica do processo penal, buscando a satisfação de uma pretensão que é completamente alheia à sua função, estrutura e princípios informadores. Ademais, sabe-se que o referido dispositivo foi incorporado ao ordenamento jurídico como forma de reparar, ainda que minimamente, os danos causados pelos delitos materiais à própria vítima, sendo impossível a sua aplicação a título de indenização a vítimas indeterminadas ou indetermináveis, tal como na espécie, em decorrência de o delito de tráfico de drogas não possuir vítima certa e individualizada, pois o tipo penal visa tutelar a saúde pública. 4- Recurso ministerial não provido e recurso defensivo parcialmente provido. (TJ-MG - APR: 10338110080201001 MG, Relator: Antônio Armando dos Anjos, Data de Julgamento: 21/05/2013, Câmaras Criminais / 3ª CÂMARA CRIMINAL, Data de Publicação: 03/06/2013). (Grifo nosso)
É compartilhando dessas premissas que se defende a impossibilidade de fixar danos morais coletivos dentro de uma ação penal. Não se pode, a pretexto de obter uma reparação do dano global e célere, acabar por prejudicar a discussão acerca da responsabilização penal. Ademais, a opção por não fixar na sentença penal o dano moral coletivo de forma alguma impede que essa reparação seja buscada em ação própria, resguardando, assim, os bens jurídicos tutelados por esse tipo de dano.
5. CONCLUSÃO
Ao longo do presente trabalho foi analisado que há um esforço do legislador de garantir um ressarcimento integral e célere à vítima de um crime. Com isso, a doutrina e a jurisprudência têm reconhecido que o valor mínimo indenizatório a ser fixado, na forma do art. 387, IV, do CPP, deve ser amplo, incluindo dano material e moral.
Em decisão publicada em junho de 2020, o Supremo Tribunal Federal reconheceu, no julgamento da Ação Penal nº 1002, deu um novo passo sobre o tipo de dano a ser fixado pelo juízo criminal ao estabelecer uma condenação por dano moral coletivo diante da prática do crime de corrupção.
Todavia, no que pese a existência dessa decisão, verificou-se, a partir de pesquisas bibliográficas e jurisprudenciais, que a fixação de dano moral coletivo pelo juízo criminal é matéria ainda polêmica e que não é suficientemente reconhecida pela doutrina e pelos Tribunais do país.
Ao final, esta pesquisa defende a impossibilidade de fixar dano moral coletivo dentro de um processo criminal. Entende-se que o dono moral coletivo tem aspectos teóricos e práticos peculiares que demandam maior cautela por parte do aplicador do direito no momento da sua fixação e quantificação, as quais são melhores tratadas no âmbito cível. Incluir essas discussões na ação penal pode acabar por desvirtuar sua primordial função de apurar a responsabilidade criminal do acusado.
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PACELLI, Eugênio e FISCHER, Douglas. Comentários ao Código de Processo Penal e sua jurisprudência. São Paulo: Editora Atlas, 2013.
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TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 21ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 1999. vol. 2.
[1] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 21ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 1999. vol. 2. P.24
[2] LIEBMAN, Enrico Túlio Eficácia e autoridade da sentença e outros escritos sobre a coisa julgada, 4ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2006, p. 259.
[3] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 12. ed. rev., atual. e ampl., Rio de Janeiro: Forense, 2015. P. 225/226
[4]SANTOS, Leandro Galluzzi. Procedimentos – Lei 11.719, de 20.06.2008. As Reformas no Processo Penal. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
[5]SANTOS, Leandro Galluzzi. Procedimentos – Lei 11.719, de 20.06.2008. As Reformas no Processo Penal. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. P. 300/301
[6] PACELLI, Eugênio e FISCHER, Douglas. Comentários ao Código de Processo Penal e sua jurisprudência. São Paulo: Editora Atlas, 2013, p. 806
[7]NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 12. ed. rev., atual. e ampl., Rio de Janeiro: Forense, 2015. P. 224.
[8] Não se desconhece a distinção doutrinária feita entre os conceitos de dano moral coletivo e dano moral social (vide TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. 7.ed.rev., atual. e ampl. – São Paulo: Método, 2017. P. 365/369). Todavia, no presente artigo, opta-se por utilizar a expressão dano moral coletivo para tutelar bens difusos, em harmonia com as expressões utilizadas no julgamento da AP 1002 pelo Superior Tribunal de Justiça, julgamento que contribuiu para a elaboração do artigo.
[9] TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. 7.ed.rev., atual. e ampl. – São Paulo: Método, 2017. P 365.
Graduada pela Universidade Federal de Pernambuco. Pós Graduada em Direito Penal e Processo Penal pela Faculdade Damas
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BERNARDO, Amanda Buarque. A fixação do dano moral coletivo na sentença penal condenatória Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 abr 2021, 04:37. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56324/a-fixao-do-dano-moral-coletivo-na-sentena-penal-condenatria. Acesso em: 23 dez 2024.
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