MATEUS LUCATTO DE CAMPOS
(orientador)
RESUMO: O trabalho tem por finalidade o estudo da cadeia de custódia, compreendida como o conjunto de procedimentos utilizados para garantir a rastreabilidade e confiança de um vestígio, sendo iniciada com a preservação do local de crime e se estendendo por todas as etapas desde a coleta, transporte e recebimento do vestígio. Trata-se de novidade legislativa incluída pelo Pacote Anticrime (Lei 13.964/2019), sendo disciplinada pelo Código de Processo Penal nos artigos 158-A ao 158-F. No âmbito do processo penal, a não preservação integral das provas afeta a credibilidade dos meios, implicando no comprometimento das garantias proporcionadas pelo sistema penal acusatório, ocasionando, fatalmente, o desentranhamento da prova ou até mesmo a nulidade de todo o processo. Dessa forma, preservando as informações coletadas, documentando-as e observando a ordem cronologia das evidências, a cadeia de custódia reforça o sistema de justiça acusatório, sendo que seu principal escopo é impedir manipulação indevida da prova com o propósito de incriminar, ou até mesmo isentar alguém de responsabilidade, com vistas a obter a melhor qualidade da decisão judicial e impedir uma decisão injusta.
Palavras-chave: Cadeia de Custódia. Prova penal. Valor probatório.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO; 2. SISTEMA ACUSATÓRIO E PROVAS NO PROCESSO PENAL; 3. VALOR DA PROVA; 4. CADEIA DE CUSTÓDIA; 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS; REFERÊNCIAS.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem o escopo de analisar a cadeia de custódia, instituto inserido no Código de Processo Penal através do Pacote Anticrime (Lei 13.964/2019), reputado como o procedimento de manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais do crime ou vítimas, a fim de rastrear sua posse e manuseio, a partir de seu reconhecimento até seu descarte.
A cadeia de custódia apresenta-se como relevante inovação para fins de controle e gestão probatória, especialmente com o avanço tecnológico e as múltiplas possibilidades de violação dos meios de prova existentes.
Sabe-se que o objeto da prova é toda circunstância, fato ou alegação pertinente à lide sobre os quais recaem incerteza, e que necessitam ser expostos ao magistrado, para que este profira a decisão mais justa ao caso concreto.
Sendo assim, considerando-se o sistema acusatório, aplicável no ordenamento jurídico pátrio, para que o magistrado forme sua convicção, é fundamental um conjunto probatório robusto, com provas obtidas com base no postulado da legalidade, e ainda sob o crivo do contraditório real e ampla defesa, concretizando na prática um processo penal democrático.
É imprescindível, portanto, assegurar a autenticidade da prova produzida, de modo a garantir a idoneidade e integridade das provas coletadas, certificando-se que tudo aquilo que foi coletado corresponda ao caso investigado, para que não haja possibilidade de adulterações.
Deste modo, este estudo, de início, tece esclarecimentos sobre o sistema acusatório de justiça vigente no ordenamento jurídico, elencando os princípios que o fundamentam.
Posteriormente, o segundo capítulo dedica-se à análise do valor da prova dentro do processo penal, e suas principais características.
O terceiro capítulo versa sobre o objeto da pesquisa em si, qual seja, a cadeia de custódia, pormenorizando o instituto, abordando os dispositivos legais que o fazem referência, detalhando suas peculiaridades.
Para o desenvolvimento do tema, como metodologia, foi utilizada a pesquisa bibliográfica, com fundamento na doutrina e legislação, bem como em artigos científicos, dissertações e jurisprudência relativamente ao tema, que irão contribuir para a busca de respostas precisas e adequadas ao problema de pesquisa proposto.
2. SISTEMA ACUSATÓRIO E PROVAS NO PROCESSO PENAL
No sistema acusatório, a solução dos conflitos assume caráter predominantemente público, apoiado na busca da verdade material, a partir da racionalidade dos meios de prova. A verdade é tratada como “instrumento de limitação do poder punitivo e não como recurso argumentativo apto a fundamentar práticas persecutórias arbitrárias” (KHALED, 2013, p. 16).
No íntimo do sistema criminal acusatório, a iniciativa probatória prevalece à cargo das partes, havendo distinção absoluta entre as funções de acusar, defender e julgar, sendo por este motivo, característico em Estados com regimes democráticos.
Nesse interim, “o processo, como instituição estatal é a única estrutura que se reconhece como legítima para a imposição da pena” (LOPES JR, 2020, p. 29).
Nesse modelo processual, é atribuído ao Ministério Público, nos termos do artigo 129, inciso I, da Constituição Federal de 1988, a legitimidade privativa para a propositura da ação penal pública, garantindo ao acusado, dentre outros direitos, o contraditório e a ampla defesa.
Por meio da entrada em vigor Pacote Anticrime (Lei 13.964/2019), o sistema acusatório foi efetivado no ordenamento jurídico pátrio, bastando ver o artigo 3-A, CPP: “O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação”.
A prevalência de um sistema acusatório necessita da imparcialidade absoluta do magistrado, da capacitação técnico-normativa, da independência, vinculação à lei, juiz natural, entre outros (FERRAJOLI, 2000).
Assegura-se, neste sistema, a isonomia processual, tendo em vista que a acusação e defesa devem estar em posição de equilíbrio no processo, priorizando o tratamento igualitário das partes, garantindo-lhes igualdade de oportunidades no processo, além de igual possibilidade de acesso aos meios pelos quais poderão demonstrar a veracidade de suas alegações.
Salienta-se que a Constituição Federal brasileira estabelece, no artigo 5º, inciso LIV, na fixação dos direitos e garantias fundamentais, a cláusula do devido processo nos seguintes termos: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.
Nesse contexto, o devido processo legal é uma garantia do cidadão, constitucionalmente prevista que “assegura tanto o exercício do direito de acesso ao Poder Judiciário como o desenvolvimento processual de acordo com as normas previamente estabelecidas” (PORTANOVA, 2001, p. 145).
Sob pena de arbitrariedade, o devido processo legal deve abarcar também a isonomia entre as partes no processo, o exercício do contraditório, a ampla defesa, a licitude probatória, a inafastabilidade da jurisdição, o duplo grau de jurisdição, a publicidade, a imparcialidade nos julgamentos, dentre outros.
Noutro giro, tratando-se de característica marcante do sistema acusatório, o contraditório nada mais é que uma garantia político-jurídica do indivíduo. Consiste “na necessidade de se dar às partes a possibilidade de exporem suas razões e requererem a produção das provas que julgarem importantes para a solução do caso penal” (COUTINHO, 2001, p. 43).
Em verdade, “o contraditório é um dos princípios mais caros ao processo penal, compondo verdadeiro pressuposto de validade do processo, porquanto a sua violação é suscetível de nulidade absoluta, quando em detrimento ao acusado” (OLIVEIRA, 2008, p. 28).
A respeito da ampla defesa, são meios inerentes à este corolário:
Ter conhecimento claro da imputação; poder expor alegações contra a acusação; poder acompanhar a prova produzida e fazer contraprova; ter defesa técnica por advogado; e poder recorrer da decisão desfavorável (GRECO FILHO, 2012, p. 51).
Isso posto, ao passo que o contraditório necessita assegurar a participação, o princípio da ampla defesa “vai além, impelindo a realização concreta desta participação, sob pena de nulidade, também quando prejudicial ao acusado” (OLIVEIRA, 2008, p. 29).
Quanto à relevância do contraditório e a ampla defesa dentro da sistemática acusatória vigente, que regem todo o processo penal:
[...] como cláusula de garantia instituída para a tutela do cidadão diante do aparato persecutório penal, encontra-se solidamente encastelado no interesse público da realização de um processo justo e equitativo, único caminho para a imposição da sanção de natureza penal (OLIVEIRA, 2008, p. 28).
A observância ao princípio constitucional do contraditório representa um dos fundamentos realizadores do princípio do devido processo legal (SFT – HC – Rel. Min. Celso de Mello – j. 18.2.1992 – RTJ 140/856).
O Pacto de São José da Costa Rica também prevê a garantia do contraditório em seu artigo 8º, números 1: “toda a pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial (...); e número 2, “c”: Toda pessoa acusada terá direito a concessão do tempo e dos meios necessários a preparação de sua defesa”.
Relativamente ao contraditório, importante julgado do Supremo Tribunal Federal, fixando entendimento que “basear-se a sentença, para condenar, em prova colhida exclusivamente em inquérito policial acarreta em violar a garantia do contraditório, fixada no art. 153, § 16, da CF” (STF, RT 614/369).
A Carta Magna fixa o sistema acusatório, tendo em vista que estabelece no art. 129 que a acusação incumbe ao Ministério Público. Dessa forma, demanda obrigatoriamente que as atribuições de acusação e julgamento ocorram de modos separado, não devendo ocorrer violações nesse sentido, observando-se tal regramento ao longo de toda lide.
Além disso, há observância ao sistema vigente no momento em que estabelece o mandamento do devido processo legal no art. 5º, notadamente quanto à garantia do juiz natural, e em relação à garantia do juiz natural, acatando a exigência do contraditório.
A propósito:
Toda a prova que tenha sido produzida à revelia do adversário é, em regra geral, ineficaz. Trata-se de um conjunto de garantias para que a parte contrária possa exercer o seu direito de fiscalização. (TJSP – Ap. n° 104.924-3/6 – 6ª C. – j. 30.10.1991 – Rel. Des. Márcio Bártoli – RT 689/330).
Mais do que investigar para fundamentar decisões acusatórias, o órgão acusador possui a incumbência de apresentar, à defesa, os elementos probatórios por ela apurado, sem perder de vista que, quanto à defesa concreta, "é pertinente salientar que um dos seus consectários é o direito ao tempo e, principalmente, aos meios necessários para a preparação da defesa técnica” (EDINGER, 2016, p. 237).
“O contraditório é uma abertura necessária para evitar a manipulação da prova por parte do juiz, ainda que inconscientemente” (LOPES JR, 2020, p. 540). No momento em que o sistema acusatório conserva o magistrado longe da iniciativa probatória (afastando a iniciativa de ofício da prova), consolida-se o suporte dialético e, além disso, concretiza-se a imparcialidade do julgador, evitando ativismo judicial.
3. VALOR DA PROVA
O processo penal é um instrumento de reconstrução aproximativa de um certo fato histórico, sendo as provas o meio através dos quais se fará essa reconstrução (LOPES JR., 2020).
As provas no processo penal “constituem os olhos do processo, o alicerce sobre o qual se ergue toda a dialética processual” (CAPEZ, 2012, p. 360).
O ordenamento jurídico brasileiro, à luz da imparcialidade do juiz, adotou como sistema de valoração da prova o livre convencimento motivado do juiz. Nota-se por meio do fixado no art. 155, Código de Processo Penal, in verbis:
Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.
A finalidade da prova é o convencimento do juiz, que é o seu destinatário:
O intuito da prova é tornar aquele fato conhecido do Juiz, convencendo-o da sua existência. As partes, com as provas produzidas, procuram convencer o Juiz de que os fatos existiram, ou não, ou, então, de que ocorreram desta ou daquela forma (TOURINHO FILHO, 2015, p. 500).
Por meio das provas, o processo propõe-se a conceber circunstâncias para que o magistrado aplique sua atividade recognitiva, sendo que a partir daí será elaborado o convencimento manifestado no julgamento final. Destaca-se, “é a prova que permite a atividade recognoscitiva do juiz em relação ao fato histórico (story of the case) narrado na peça acusatória” (LOPES JR, 2020 p. 342).
Em verdade, é inconcebível a total reconstrução do iter criminis, posto que uma parcela dele ocorre no mundo subjetivo, na mente do delinquente, sendo inalcançável pelo magistrado e pelo parquet, ainda que o réu confesse (ARAS, 2001). Oportuno o entendimento doutrinário a seguir:
A prova conecta-se à verdade e à certeza, que se ligam à realidade, todas voltadas, todavia, à convicção de seres humanos. O universo no qual estão inseridos tais juízos do espírito ou valorações sensíveis da mente humana precisa ser analisado tal como ele pode ser e não como efetivamente é (NUCCI, 2015, p. 18).
A doutrina classifica como objeto de prova a “a coisa, fato, acontecimento ou circunstância que deva ser demonstrado no processo” (MARQUES, 1999, p. 254). Por esse motivo, o magistrado deve conhecer o direito, obrigação essa que é imprescindível para o exercício da jurisdição (jura novit curia). À vista disso, constitui objeto de prova o que corresponde às questões de fato ocorridas no processo, ou seja, os fatos relevantes, cujo conteúdo pode influir em diferentes graus, na decisão da causa.
No que tange aos meios de prova, podem ser considerados como instrumentos ou atividades pelos quais os elementos de prova são introduzidos no processo. O Código de Processo Penal estabelece diversos meios de prova, fixando um rol meramente exemplificativo. É admitido outros meios de provas no processo penal e a partir daí, extrai-se o Princípio da Liberdade dos meios de prova, que implica a plena admissibilidade dos meios de prova idôneos a formar o convencimento do magistrado, mesmo que não estejam taxativamente previstos na legislação.
Salienta-se que a Carta Magna não permite a utilização de as provas obtidas por meios ilícitos, entendendo‐se como tais aquelas obtidas de forma contrária ao direito, pouco importando se a violação concerne ao direito material ou ao direito processual.
Dessa forma, o direito à prova abarca, notadamente, o direito à sua apreciação, ou valoração, pelo magistrado, à etapa de prolação da decisão de mérito. Sendo assim, todas as provas e alegações das partes, respaldadas pelo contraditório, devem ter o intuito de estudo e avaliação pelo juiz, sob pena de violação à garantia constitucional do contraditório.
Mister se faz ressaltar que a proibição de restrição da garantia constitucional da prova:
Deve abranger também a possibilidade de se apontar fontes de prova, de reivindicar que elas venham ao processo, da mesma forma como foram colhidas, de utilizar os mecanismos de prova, pela metodologia legalmente definida, e de exigir a valoração dos elementos trazidos (EDINGER, 2016, p. 244).
Documentos, objetos e conteúdos materiais ou virtuais, fontes de prova pericial, têm recebido significativa notoriedade no contexto decisório, assumindo o lugar da antes preponderante prova testemunhal. Surge então a necessidade de preservar as condições de fidedignidade (PRADO, 2019).
4. CADEIA DE CUSTÓDIA
A definição legal do que seja "cadeia de custódia" da prova vem dada pelo art. 158-A, Código de Processo Penal:
Art. 158-A. Considera-se cadeia de custódia o conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes, para rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte.
É possível entender esse instituto como conjunto de protocolos estabelecidos que permite registrar a identidade e integridade das fontes probatórias obtidas no local dos fatos, seu transporte ao lugar onde serão examinadas pelos responsáveis, por meio da realização de estudo e análise e, por fim, a conservação para toda a persecução penal (RUBIO, 2019, p. 161)
Trata-se de instituto de suma importância em matéria probatória penal, pelo fato de que “a prova passará por entre várias instâncias examinatórias, trafegando por diferentes órgãos, inclusive de polícia judiciária ou inspeção sanitária, até aportar no processo por meio de relatórios descritivos e interpretativos” (KNIJNIK, 2017, p. 170).
A cadeia de custódia tem como intuito certificar a autenticidade da prova. A doutrina esclarece o conceito de cadeia de custódia da seguinte forma:
Trata-se de instrumento garantidor da autenticidade das evidências coletadas e examinadas, assegurando que correspondem ao caso investigado, sem que haja lugar para qualquer tipo de adulteração. Funciona, pois, como a documentação formal de um procedimento destinado a manter e documentar a história cronológica de uma evidência, evitando-se, assim, eventuais interferências internas e externas capazes de colocar em dúvida o resultado da atividade probatória (LIMA, 2017, p. 625)
No entender de PRADO (2019, p.95), “o objeto da cadeia de custódia ampara-se na lei da mesmidade, cujo conteúdo estabelece que a prova será igualmente a mesma a ser utilizada no julgamento do magistrado, possuindo um caráter instrumental”.
Nota-se que o agente público fica responsável inicialmente pela preservação dos elementos eventualmente identificados por ele e com potencial interesse para o processo, tendo em vista que o surgimento da cadeia de custódia se dá a partir da preservação do local do crime, nos termos do art. 6º, do Código de Processo Penal, em clara relação entre procedimentos policiais ou periciais de detecção da existência de vestígios nos locais ou em vítimas de crimes (MACHADO, 2019).
A modificação das provas afeta e corrompe os meios e a não preservação da prova abala sua credibilidade. Deste modo, o resguardo das fontes de prova, por meio do cumprimento da cadeia de custódia, possui “conexão de antijuridicidade da prova ilícita”, consagrada no art. 5º, LVI, da Constituição Federal, acarretando a inadmissibilidade da prova ilícita. Deveras, é imprescindível a preservação das provas, especialmente em relação à provas cuja produção é realizada fora do âmbito processual, como na situação da coleta de DNA, interceptação telefônica, entre outros.
Outrossim, “todo indício deve ser documentado, desde seu nascimento no local de crime, até seu exame e descrição final, de forma a se estabelecer um histórico completo e fiel de sua origem” (STUMVOLL, 2019, p.10). Por isso, a quebra da cadeia de custódia pode gerar consequências irreversíveis a persecução penal judicial.
A cadeia de custódia ordena o assentamento de um procedimento regrado e formalizado, documentando toda a cronologia existencial daquela prova, para consentir a posterior validação durante a ação penal, assim como na atividade do controle epistêmico.
O procedimento a ser observado é estipulado pelo art. 158-B, Código de Processo Penal: reconhecimento, isolamento, fixação, coleta, acondicionamento, transporte, recebimento, processamento, armazenamento e descarte.
Vê-se que o instituto em comento pode ser dividido em duas fases: externa na qual “estão elencadas as etapas relacionadas aos passos entre a preservação do local do crime ou apreensões dos elementos de prova e a chegada do vestígio ao órgão pericial”; interna que “compreende todas as etapas e o ingresso do vestígio no órgão pericial até a conclusão do laudo e remessa ao órgão requisitante” (CUNHA, 2020, p. 187).
Depreende-se do artigo supracitado que a cadeia de custódia abrange todos os “atores responsáveis pela sua preservação, integridade, idoneidade e valoração”, se inicia na fase de investigação preliminar e se estende até o processo criminal, alcançando todo o caminho percorrido pela prova (MACHADO, 2020).
Constitui violação ao direito à prova, corolário da ampla defesa e do contraditório, garantidos constitucionalmente, a deficiência da proteção da integralidade do conteúdo apanhado na investigação, refletindo no próprio dever de garantia da paridade de armas das partes processuais.
O rastreamento das fontes de prova será um encargo inviável caso parte das provas obtidas de forma encadeada vier a ser danificada. Sem esse rastreamento, a identificação do elo por ventura existente entre uma prova aparentemente lícita e outra, preliminar, ilícita, de que a primeira é consequente, improvavelmente será descoberto. Os suportes técnicos, pois, têm uma importância para o processo penal que transcende a simples condição de ferramentas de apoio à polícia para execução de ordens judiciais (PRADRO, 2014, p. 79).
A preservação da cadeia de custódia exige grande cautela por parte dos agentes do estado, da coleta à análise, de modo que se exige o menor número de custódios possível e a menor manipulação do material. O menor número de pessoas manipulando o material faz com que seja menos manipulado e a menor manipulação conduz a menor exposição. Expor menos é proteção e defesa da credibilidade do material probatório (LOPES JR., 2020, p.658)
Por conseguinte, o art. 158-C versa sobre a obrigação de que o perito oficial faça a coleta dos vestígios, sendo o responsável pelo envio da evidência à central de custódia, além de qualquer outra tramitação para fins de exames complementares.
No caso de remoção de quaisquer vestígios em locais de crime antes da liberação pelo perito competente, caberá responsabilização pelo crime de fraude processual.
O art. 158-D, § 1º, estabelece que para a preservação do material recolhido, deve-se empregar recipiente adequado e compatível com as características do vestígio, além da obrigação de lacre e numeração individualizada, tudo a reforçar a possibilidade de verificação da cronologia da prova. Nesse contexto, ressalta-se a necessidade de se observar “os padrões definidos em manuais específicos, tanto dos órgãos policiais, quanto periciais, destacando a relevância da sua individualização e identificação dos responsáveis por esse processo” (CUNHA, 2020, p. 188).
Parte da doutrina entende que a quebra da cadeia de custódia não produz efeitos na seara da ilicitude ou inutilidade probatória, mas sim de menor fiabilidade da prova. O mero descumprimento da cadeia de custódia não deve gerar nulidade absoluta (NUCCI, 2020, p. 71). Isso porque “as irregularidades da cadeia de custódia não são aptas a causar a ilicitude da prova, devendo o problema ser resolvido, com redobrado cuidado e muito maior esforço justificativo, no momento da valoração” (BADARÓ, 2018, p. 535). De acordo com esse posicionamento, a prova com quebra da cadeia de custódia deve ser recebida com reservas pelo magistrado, necessitando de outros elementos de confirmação. Em síntese, o valor será maior ou menor quanto mais ou menos se respeitou o procedimento descrito na lei, de sorte que não poderá ser descartada pelo juiz, mas do contrário, deverá ser valorada.
Acerca da questão em comento, o Superior Tribunal de Justiça já se posicionou no sentido de que quando não há demonstração de prejuízo no caso concreto, não há que se falar em quebra da cadeia de custódia:
No caso em apreço, não se verifica a alegada quebra da cadeia de custódia, na medida em que o fato do objeto periciável estar acondicionado em Delegacia de Polícia e não no Instituto de Criminalística não leva à imprestabilidade da prova. (STJ – HC: 462087 SP 2018/0192763-0, Rel. Min. RIBEIRO DANTAS, Data de Julgamento: 17/10/2019, T5 – QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 29/10/2019).
No mesmo sentido:
EMBARGOS INFRINGENTES. DPU. QUEBRA DA CADEIA DE CUSTÓDIA. Embora desatendida as exigências formais, a ausência do Termo de Apreensão e das demais formalidades, por si só, não anula todo o procedimento, pois as circunstancias que envolvem o ato não constituem elementos isolados de prova, havendo farto material probante que comprovam a materialidade delitiva, não sendo o caso de quebra da cadeia de custódia. Embargos Infringentes conhecidos e não acolhidos. Decisão por maioria. (STM – EI: 70002514220197000000, Relator: ARTUR VIDIGAL DE OLIVEIRA, Data de Julgamento: 18/06/2019, Data de Publicação: 02/07/2019).
De maneira oposta entendem alguns doutrinadores pátrios como Aury Lopes Jr. (2020, p. 680), que se posiciona pela imprestabilidade da prova, tendo em vista os princípios constitucionais penais que regem a matéria probatória.
Constata-se que quando a prova não é preservada, há comprometimento da história cronológica da infração, ocorrendo a quebra da cadeia de custódia, sendo que a efetividade desse instituto sujeita-se diretamente de que se compreenda que o efeito da não preservação deve ser a supressão deste elemento” (MATIDA, 2020, p. 7). Sobre o tema, convém destacar o julgado a seguir:
Na hipótese, a forma como foi coletado e encaminhado para perícia o material supostamente adulterado (combustível), constata-se que na fase inquisitorial não se teve o cuidado necessário com a preservação da cadeia de custódia da prova, o que afeta a sua credibilidade e confiabilidade, tornando a prova ilícita, a ensejar o seu desentranhamento dos autos (TJ-MT – HC: 10051240320198110000 MT, Rel. PAULO DA CUNHA, Data de Julgamento: 09/07/2019, Primeira Câmara Criminal, Data de Publicação: 15/07/2019).
Apesar de normalmente associada à prova científica e, especialmente, à perícia laboratorial, o emprego da cadeia de custódia deve ser entendido de maneira mais ampla.
A esse respeito, também para certificar a legitimidade dos exames periciais, a cadeia de custódia é também aplicável em delitos que envolvam manuseio de amostras das provas feitas com base no DNA, sob pena de riscos danos irrecuperáveis no material coletado.
Nos crimes ambientais, a cadeia de custódia terá elementos como amostras de contaminantes ambientais.
Não se limita, pois, aos objetos materiais, como no delito de tráfico de drogas, homicídio, em que os elementos terão natureza sólida como por exemplo entorpecente, faca, arma de fogo, projétil, fragmento de munição etc.
Também é vital a observância da cadeia de custódia perante “informações imateriais registradas eletronicamente, como o conteúdo de conversas telefônicas, ou de transmissão de e-mail, mensagens de voz, fotografias digitais, filmes armazenados na internet, entre outros” (BADARÓ, 2017, p. 522).
Acrescenta-se que é fundamental que meios de obtenção de prova e o material colhido sejam preservados integralmente, principalmente quando se tratar de provas obtidas por meios ocultos, como a interceptação telefônica e telemática, em que a manutenção da cadeia de custódia se torna verdadeira condição de validade (MORAES, 2017, p. 131-132).
Em conclusão, o dever da cadeia de custodia apoia-se em designar o procedimento de prospecção e preservação das provas que deverão ser sujeitos ao contraditório e estar disponíveis para as partes.
O fato de garantir a verdade de todas as fases do processo, representa um protocolo legal, que permite assegurar a idoneidade do caminho que a amostra atravessou. Zelar pela cadeia de custódia da prova, é zelar pela integridade e pela moralidade da Justiça.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
No sistema acusatório, há afastamento das funções de acusar e julgar, mas, especialmente, há necessidade de que a iniciativa probatória seja das partes e não do juiz, afastando o ativismo judicial e dando ênfase às garantias constitucionais fundamentais como o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa.
A cadeia de custódia demonstra inovação na sistemática processual, pois permite a preservação das provas desde seu descobrimento até o emprego em juízo, concretizando-se a paridade de armas entre as partes no processo penal.
Por meio da Lei 13.964/2019 a cadeia de custódia foi introduzida pela legislação pátria, tratando-se de instituto significativo para preservar a integridade e identidade da prova penal.
A efetivação do direito de punir estatal só será adequada e justa caso desempenhado nos estritos limites do devido processo legal, observando-se, para tanto, o direito à prova - no qual se inclui a cadeia de custódia, assegurando o contraditório através da compreensão integral das fontes de provas concernentes ao processo penal.
Por envolver instrumento processual que pode resultar com a restrição da liberdade de locomoção do cidadão, o tema preservação das fontes de prova obtém ainda maior dimensão e, nesse situação, a preservação da cadeia de custódia probatória segue mesma sorte. A sua preservação, em verdade, é erigida a verdadeira condição de validade da prova.
REFERÊNCIAS
ARAS, Vladimir. Princípios do processo penal. Jus navigandi, Teresina, ano 6, n. 52, 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2416/principios‐do‐processo‐penal/1. Acesso em: 17 out. 2020.
BADARÓ, Gustavo. A cadeia de custódia e sua relevância para a prova penal. Temas atuais da investigação preliminar no processo penal. Belo Horizonte: D ́Plácido, 2018.
CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
COUTINHO, Jacinto. O papel do juiz no processo penal. Crítica a Teoria Geral do Processo Penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
DIAS FILHO, Claudemir Rodrigues. Cadeia de custódia: do local de crime ao trânsito em julgado; do vestígio à evidência. Doutrinas Essenciais - Processo Penal. v. 3. São Paulo: RT, 2012.
EDINGER, Carlos. Cadeia De Custódia, Rastreabilidade Probatória. Revista Brasileira de Ciências Criminais, 2016.
FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón.Teoria Del garantismo penal. Madrid: Trotta, 2000.
GRECO FILHO, Vicente. Manual de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2012.
KHALED, Salah. A busca da verdade no Processo Penal. São Paulo: Atlas, 2013.
KNIJNIK, Danilo. Prova pericial e seu controle no direito processual brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único. 5Ed – Salvador: JusPodivm, 2017.
LOPES JR, Aury. Direito processual penal. São Paulo: Saraiva, 2020.
MACHADO, Leonardo Marcondes. Aplicação da cadeia de custódia da prova digital. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2020-mar-31/academia-policia-aplicacao-cadeia-custodia-prova-digital>. Acesso em 15 out. 2020.
MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. Campinas: Bookseller, 1999.
MATIDA, Janaina. A cadeia de custódia é condição necessária para a redução dos riscos de condenações de inocentes. Boletim IBCCRIM, ano 28, n.331, jun-2020.
MORAES, Ana Luisa Zago de. Prova penal: da semiótica à importância da cadeia de custódia. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 132, jun./2017.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal comentado. Rio de Janeiro: Forense, 2015.
NUCCI, Guilherme de Souza. Pacote anticrime comentado. Rio de Janeiro: Forense, 2020.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 9. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
PORTANOVA, Rui. Princípios do processo civil. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
PRADO, Geraldo. Prova penal e sistema de controle epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos. São Paulo. 2014.
PRADO, Geraldo. A cadeia de custódia da prova no processo penal. São Paulo: Marcial Pons, 2019.
STUMVOLL, Victor Paulo. Criminalística. Campinas: Millennium, 2019.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. São Paulo: Saraiva, 2015.
WATSON, James D, et al. DNA Recombinante: genes e genomas. Artmed. 3a Ed. 2009.
Bacharelando do Curso de Direito da Universidade Brasil.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MATIEL, DIEGO DA SILVA ESTRELA. Cadeia de custódia e sua relevância nas provas do Processo Penal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 abr 2021, 04:55. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56331/cadeia-de-custdia-e-sua-relevncia-nas-provas-do-processo-penal. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Nathalia Sousa França
Por: RODRIGO PRESTES POLETTO
Por: LEONARDO RODRIGUES ARRUDA COELHO
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Precisa estar logado para fazer comentários.