Resumo: O presente trabalho volta-se para uma análise crítica acerca do princípio da isonomia em cotejo com as hipóteses legais de tratamento diferenciado conferido às microempresas e empresas de pequeno porte nas licitações públicas. A igualdade meramente formal representaria um injusta e desleal competição entre grandes e pequenos. Então, em atenção aos ditames da isonomia material, o ordenamento passou a prescrever alguns tratamentos diferenciados às microempresas e empresas de pequeno porte nas licitações públicas. Assim, o foco deste trabalho volta-se para uma análise das hipóteses legais onde esse tratamento diferenciado se sustenta.
Palavras-chave: Microempresas. Empresas de Pequeno Porte. Licitações. Tratamento Diferenciado.
1. INTRODUÇÃO
A Constituição Federal prescreve que as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, de modo que, a priori, constitui dever da Administração Pública conferir tratamento isonômico aos participantes das disputas licitatórias.
Neste toar, constitui ponto de partida nos certames licitatórios a necessidade de que os licitantes disputem em condição de igualdade, sendo vedado, por exemplo, o estabelecimento de cláusulas ou condições que comprometam, restrinjam ou frustrem o caráter competitivo da licitação ou estabeleçam preferências ou distinções em razão da naturalidade, da sede ou domicílio dos licitantes ou de qualquer outra circunstância impertinente ou irrelevante para o específico objeto do contrato. Nesta linha, o notável jurista José dos Santos Carvalho Filho assim pontua:
“A igualdade na licitação significa que todos os interessados em contratar com a Administração devem competir em igualdade de condições, sem que a nenhum se ofereça vantagem não extensiva ao outro. O princípio, sem dúvida alguma, está intimamente ligado ao da impessoalidade: de fato, oferecendo igual oportunidade a todos os interessados, a Administração lhes estará oferecendo também tratamento impessoal[1]”
Não obstante, nenhum princípio, ainda que de natureza constitucional, possui caráter absoluto. Embora a isonomia seja um primado inafastável quando se fala em licitação, há algumas situações excepcionadas em lei merecem a devida atenção da comunidade jurídica. Se é verdade que a igualde nas disputas licitatórias encontra assento constitucional, também não se pode desconsiderar que há outras situações igualmente albergadas na Lei Maior que precisam dialogar e se acomodar entre si.
Nesta perspectiva, é preciso observar que nem todo tratamento diferenciado representa ofensa à isonomia, muito pelo contrário, há algumas situações que reclamam um tratamento diferenciado justamente para preservar a isonomia. Ilustrativamente, é como se houvesse uma corrida de automóveis em que estão a competir um corredor com carro popular de mil cilindradas em face de um adversário equipado com um carro extremamente mais potente do que de seu concorrente. Certamente, nesta situação hipotética, tratar os dois competidores de forma absolutamente igual seria manter uma injusta e desigual disputa. Então, há determinadas situações onde o tratamento diferenciado na exata medida da desigualdade existente representa nada mais que aplicação da igualdade material.
Neste contexto, Celso Antônio Bandeira de Mello, em obra intitulada “Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade”, fornece de forma irretorquível critérios científicos para se saber qual a discriminação conforme com o princípio da igualdade e qual a que o afronta, indicando que diferenciações que podem ser feitas sem quebra da isonomia quando existir correlação lógica entre o critério de discrímen e o tratamento diferenciado procedido e quando a discriminação estiver em harmonia com valores constitucionalmente protegidos.
Desta forma, como a seguir se perceberá, há situações nos certames licitatórios, previstas em lei e com respaldo constitucional, onde há a necessidade de se conferir tratamento diferenciado às microempresas e empresas de pequeno porte, justamente como forma de preservar a igualdade de condições no certame.
Certamente as microempresas e empresas de pequeno porte não teriam condições de disputar em condição de igualdade com as grandes empresas se a igualdade aplicada nas disputas licitatórias fosse meramente formal.
Então, como consectário da igualdade material e diante do reconhecimento da importância econômica e social das microempresas e empresas de pequeno porte, a ordem jurídica vigente contempla algumas situações especiais no que tange à participação destas empresas nas disputas licitatórias.
2. O Tratamento Diferenciado, em espécie, Ministrado às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte nas Licitações Públicas
Como já se anunciou, a Constituição da República, em seu artigo 37, XXXI, prescreve que, ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, nos seguintes termos:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
(...)
XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações
Então, percebe-se que a Lei Maior, no que tange às licitações, assegura igualdade de condições a todos os concorrentes. Todavia, como prenunciado, isso não significa a necessidade de um tratamento formalmente igualitário, desprezando-se as diferenças existentes dentre os participantes. A alusão a “condições de igualdade” deve ser interpretada levando-se em consideração as diferenças legalmente reconhecidas às micro e pequenas empresas.
A própria Constituição Federal, em outras passagens, reconhecendo a importância social e econômica das micro e pequenas empresas, expressamente consignou a necessidade de se conferir tratamento diferenciado e favorecido para esta categorial empresarial, a exemplo dos artigos 146 e 179, que assim prescrevem:
Art. 146. Cabe à lei complementar:
(...)
d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no art. 155, II, das contribuições previstas no art. 195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o art. 239.
(...)
Art. 179. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei.
Então, sob o aspecto constitucional, a conferência de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte constitui um verdadeiro dever imposto ao legislador e à Administração Pública, evidentemente, nos termos e limites da lei e da própria Constituição.
Conforme prescrito na Lei 8.666/93, a licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração, observando-se os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos, sem prejuízo do tratamento diferenciado e favorecido às microempresas e empresas de pequeno porte na forma da lei.
Neste contexto, a Lei Complementar 126/2006 prescreve que nas contratações públicas deverá ser concedido tratamento diferenciado e simplificado para as microempresas e empresas de pequeno porte objetivando a promoção do desenvolvimento econômico e social no âmbito municipal e regional, a ampliação da eficiência das políticas públicas e o incentivo à inovação tecnológica.
Na mesma perspectiva, a Lei Complementar 123/2006, confere a possibilidade de que, nas licitações públicas, a comprovação de regularidade fiscal das microempresas e empresas de pequeno porte somente seja exigida para quando da assinatura do contrato, sendo ainda assegurado, em existindo alguma restrição na comprovação da regularidade fiscal, o prazo de 2 (dois) dias úteis, prorrogável por igual período, a critério da Administração Pública, para a regularização da documentação, pagamento ou parcelamento do débito, e emissão de eventuais certidões negativas ou positivas com efeito de certidão negativa, o que não é extensível às empresas de grande porte, nos termos seguintes:
Art. 42. Nas licitações públicas, a comprovação de regularidade fiscal das microempresas e empresas de pequeno porte somente será exigida para efeito de assinatura do contrato
Art. 43. As microempresas e empresas de pequeno porte, por ocasião da participação em certames licitatórios, deverão apresentar toda a documentação exigida para efeito de comprovação de regularidade fiscal, mesmo que esta apresente alguma restrição.
§ 1o Havendo alguma restrição na comprovação da regularidade fiscal, será assegurado o prazo de 2 (dois) dias úteis, cujo termo inicial corresponderá ao momento em que o proponente for declarado o vencedor do certame, prorrogáveis por igual período, a critério da Administração Pública, para a regularização da documentação, pagamento ou parcelamento do débito, e emissão de eventuais certidões negativas ou positivas com efeito de certidão negativa.
Na mesma linha, a referida Lei Complementar 123/2006, em seu artigo 44, estabelece que nas licitações públicas deverá ser assegurada, como critério de desempate, preferência de contratação para as microempresas e empresas de pequeno porte, entendendo-se por empate aquelas situações em que as propostas apresentadas pelas microempresas e empresas de pequeno porte sejam iguais ou até 10% (dez por cento) superiores à proposta mais bem classificada, sendo esse percentual de 5% (cinco por cento) superior ao melhor preço, quando a modalidade licitatória for pregão.
Desta forma, ocorrendo o empate, considerando a margem percentual acima indicada, a microempresa ou empresa de pequeno porte mais bem classificada poderá apresentar proposta de preço inferior àquela considerada vencedora do certame, situação em que será adjudicado em seu favor o objeto licitado.
Não ocorrendo a contratação da microempresa ou empresa de pequeno porte, na forma indicada no parágrafo precedente, serão convocadas as remanescentes que porventura se enquadrem na hipótese de empate referida, na ordem classificatória, para o exercício do mesmo direito.
Então, o legislador, além de estabelecer a preferência para contratação de microempresas ou empresas de pequeno porte, findou por criar uma margem fictícia de empate para possibilitar que as empresas desta categoria possam adjudicar o objeto do certame, acaso optem por apresentar proposta de preço igual ou inferior àquela classificada em primeiro lugar.
Ressalte-se ainda que, no caso de equivalência de valores apresentados por mais de uma microempresa ou empresas de pequeno porte, considerando a margem de empate ficta de 10%, sendo 5% no pregão, será realizado sorteio entre elas para que se identifique aquela que primeiro poderá apresentar melhor oferta.
De toda forma, é preciso registrar que, na hipótese da não contratação nos termos acima referidos, o objeto licitado será adjudicado em favor da proposta originalmente vencedora do certame, ressaltando ainda que essa sistemática de empate ficto e preferência estabelecida em favor das microempresas e empresas de pequeno porte não se aplica se a melhor proposta já tiver sido apresentada por empresa dessa categoria.
Por fim, para que se possa aplicar o tratamento diferenciado acima referido, é imprescindível que haja, mínimo, 3 (três) fornecedores competitivos enquadrados como microempresas ou empresas de pequeno porte sediados local ou regionalmente capazes de cumprir as exigências estabelecidas no instrumento convocatório.
Da mesma forma, o tratamento diferenciado e simplificado para as microempresas e empresas de pequeno porte deve ser afastado acaso reste configurada a ausência de vantajosidade para a Administração Pública ou represente prejuízo ao conjunto ou complexo do objeto a ser contratado.
Outra forma de tratameno diferenciado conferido às microempresas e empresas de pequeno porte consiste na obrigação de realização de certames licitatórios exclusivos para contratação de itens cujo valor seja de até R$ 80.000,00 (oitenta mil reais), e cota de até 25% (vinte e cinco por cento) do objeto, para a contratação de microempresas e empresas de pequeno porte, previsto no artigo 48, I e III, da Lei Complementar 123/2006, que assim dispõe:
Art. 48. Para o cumprimento do disposto no art. 47 desta Lei Complementar, a administração pública:
I - deverá realizar processo licitatório destinado exclusivamente à participação de microempresas e empresas de pequeno porte nos itens de contratação cujo valor seja de até R$ 80.000,00 (oitenta mil reais);
(...)
III - deverá estabelecer, em certames para aquisição de bens de natureza divisível, cota de até 25% (vinte e cinco por cento) do objeto para a contratação de microempresas e empresas de pequeno porte.
Neste toar, é preciso registrar que, da mesma forma que ocorre em relação à aplicação da preferência de contratação na situação de empate antes tratada, para que se possa aplicar a licitação exclusiva e a cota reservada é imprescindível que haja, mínimo, 3 (três) fornecedores competitivos enquadrados como microempresas ou empresas de pequeno porte sediados local ou regionalmente capazes de cumprir as exigências estabelecidas no instrumento convocatório, bem como que não reste configurada a ausência de vantajosidade para a Administração Pública ou haja indicativo de prejuízo ao conjunto ou complexo do objeto a ser contratado.
Embora existam outras situações legais onde é possível constatar um tratamento diferenciado às microempresas e empresas de pequeno, as principais e mais corriqueiras situações são as acima referidas.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como se viu, o legislador, atendo à importância das microempresas e empresas de pequeno para sociedade, por representarem, notadamente, o segmento empresarial que mais gera postos de emprego na economia nacional, passou a conferir, em situações bem delimitadas, tratamento diferenciado a esta categoria de empresas nos certames licitatórios.
Neste contexto, como se viu, o tratamento favorecido nas licitações ministrado aos pequenos empreendedores, representados pelas microempresas e empresas de pequeno, não significa ofensa ao princípio da igualdade, mas, pelo contrário, um mecanismo a serviço da igualdade material, possibilitando que os pequenos empreendedores possam concorrer com as grandes empresas. É a mão invisível do Estado buscando o equilíbrio da balança do mercado na área das compras públicas.
Então, os favorecimentos legais existentes nos certames licitatórios em favor das microempresas e empresas de pequeno se fazem necessários tendo em vista que, sem eles, dificilmente este segmento empreendedor teria possibilidade de disputar em condição de igualdade com as grandes empresas.
Assim, os benefícios legais apontados ao longo deste trabalho consolidam o reconhecimento da importância econômica e social das microempresas e empresas de pequenos porte, possibilitando que este segmento empresarial atue na fatia do mercado destinada às aquisições públicas, o que seria muito difícil de ocorrer se a igualdade aplicada nas disputas licitatórias fosse meramente formal.
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. 20ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Lúmen Júris, 2008.
LENZA, Pedro, Direito Constitucional Esquematizado. 11ª ed. São Paulo: Ed. Método, 2007.
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MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3ª ed., São Paulo: Ed. Malheiros, 2005.
_______. Curso de Direito Administrativo. 17ª ed., São Paulo: Malheiros, 2004.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 15ª ed., São Paulo: Ed. Atlas, 2004.
PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito Administrativo. 18ª ed., São Paulo: Ed. Atlas, 2005.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23ª ed., São Paulo: Ed. Malheiros, 2004.
VIGLIAR, José Marcelo. Interesses Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos. Salvador: Ed. Jus Podium, 2005.
[1] FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. 20ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Lúmen Júris, 2008. P. 225.
Procurador do Estado de Alagoas, ex-Procurador do Estado de Pernambuco, ex-Analista Judiciário do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, Pós-Graduado em Direito Público pela Universidade do Sul de Santa Cataria, Pós-Graduado em Direito Administrativo e Direito Processual Civil pela Universidade Anhanguera-Uniderp.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PEDROSA, Danilo França Falcão. O tratamento diferenciado ministrado às microempresas e empresas de pequeno porte nas licitações públicas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 abr 2021, 04:58. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56348/o-tratamento-diferenciado-ministrado-s-microempresas-e-empresas-de-pequeno-porte-nas-licitaes-pblicas. Acesso em: 23 dez 2024.
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