RESUMO: O presente artigo busca perscrutar a disposição dos crimes contra o patrimônio no Código Penal brasileiro sob o viés da (in)disponibilidade dos bens. Observa-se, na legislação atual, que o estado, cada dia mais, passa a se impor como o titular sobre os bens, às vezes retirando o próprio poder de decisão da vítima. Os crimes contra o patrimônio encontram-se no título II da Lei 2848/40, caracterizando-se pela conduta ativa atentatória aos bens de terceiros, sejam eles pessoas físicas ou jurídicas, protegendo, é claro, bens jurídicos que possuem valores patrimoniais. Assim, neste trabalho, busca-se fomentar a discussão do tratamento dado aos bens patrimoniais na legislação penal pátria, visto sua consideração como bens indisponíveis e não disponíveis, como de fato deveria ocorrer, com a mudança da ação penal para pública condicionada, quando se tratar de crimes sem violência ou de grave ameaça à pessoa, incluindo aqui a violência imprópria. Nesse diapasão, inicia-se o trabalho com uma breve análise do contexto histórico da propriedade, desde o descobrimento do Brasil, analisando as ordenações, em especial as Filipinas, passando pelo Código Criminal do Império do “Brazil” de 1830; o Decreto n. 847 de 1890, bem como a Consolidação da Leis Penais de 1932. Avançando na discussão, este trabalho apresenta o perdão do ofendido no transcorrer da história nacional, como instigação ao tratamento da disponibilidade dos bens, chegando ao Código Penal de 1940 e suas consequentes mudanças, dentre elas, a atual mudança no crime de estelionato, em que o legislador passa a reconhecer a regra da ação penal pública condicionada. Faz-se, ainda, uma pequena comparação das ações penais nos crimes contra o patrimônio em alguns países europeus. Dessa forma, sem a pretensão de esgotar o tema, tenta-se apresentar argumentos capazes de contribuir para a percepção de mudança por parte do legislador.
1 – INTRODUÇÃO
Na proposição da presente pesquisa, o tema — da indisponibilidade à disponibilidade dos bens nos crimes contra o patrimônio sem violência ou grave ameaça à pessoa — assimilou uma abordagem instigante, visto que há, em sua fineza de existir, segundo entender deste trabalho, uma equivocada questão política, ou seja, uma opção de política criminal que escora a fragilidade e a incapacidade do poder de decidir da própria parte ofendida interessada.
Em clara percepção, agindo dessa forma, o volume de Inquéritos Policiais e Processos Criminais se perpetua na engrenagem jurídica criminal pouco resolutiva, ao argumento do combate ao crime e da proteção do cidadão. Todavia, esse modelo traz um preocupante pensamento da manutenção impositiva estatal, em que o estado, progressivamente, vem sobrepondo a vontade da coletividade e do indivíduo.
Na discussão do tema, buscou-se, então, doutrinas e estudos compatíveis e optou-se por se fazer uma análise do discurso ao longo do período histórico nacional, bem como a forma diferenciada no tratamento dos bens particulares entre os diferentes ramos do direito. Acresce que se pretende analisar, sobretudo, conteúdos que trabalhem o tema desta pesquisa, tais como: sites engajados no conhecimento jurídico, Constituição Federal, Códigos brasileiros, legislação federal, bem como artigos e estudos publicados, incluindo projetos de leis e trâmite no Congresso Nacional.
Desta feita, o trabalho se divide em sete capítulos de modo que o segundo cuida de uma breve narrativa do contexto histórico da propriedade que, por sua vez, passa a gerir as relações entre os indivíduos, principalmente a socioeconômica. Passado o período do nomadismo, o homem sedentário tem necessidade da proteção dos bens materiais para produção de riqueza. Interessante o destaque que, ainda no período das vinganças (Privada, Divina e Pública), os bens poderiam ser tratados como disponíveis, visto que, nesse período, ainda possibilitava o acordo (composição) dos danos, no que a pena ficaria superada, incluindo aqui o perdão.
O terceiro capítulo e suas subdivisões abordam a análise dos bens do Brasil Colônia à República Velha, demonstrando o tratamento nas compilações da Monarquia, dentre elas a Filipinas (1603), que trouxe a primeira influência do Código Penal brasileiro. Em que pese as severas penas, a disposição e a decisão sobre os bens eram do particular. Após 1824, com o texto constitucional pátrio, é sancionado o primeiro Código nacional, denominado como Criminal do Império (1830). Nesse período, ganha força a possibilidade do perdão do ofendido para os crimes particulares, incluindo-se aqui os crimes contra o patrimônio. Desse modo, caso houvesse o perdão antes da acusação por parte da Justiça, o ofensor seria eximido das penas, deixando a decisão nas mãos do ofendido. Ora, uma vez ocorrendo a situação exposta, o “estado não possuía a condição de procedibilidade para agir”. Concita, ainda, o fato da escolha do ofendido para ação civil contra o delinquente em detrimento da criminal. Adiante, com o decreto 847 de 1890, o perdão do ofendido passa a ter natureza jurídica de suspensão da ação penal e da condenação. É bem verdade que o primeiro código republicado passa para a regra da acusação pública, apresentando apenas oito exceções, em que há exclusividade da ação penal privada, dentre elas, o furto e o dano (TEIXEIRA 2019).
No quarto e no quinto capítulos, trabalha-se com a legislação vigente, em que, a partir de 1940, somente nos crimes que se procedem mediante queixa (crimes de ação privada), o perdão do ofendido obstará o prosseguimento da ação penal (BRASIL, 1940), o que é possível até o julgamento da sentença condenatória, extinguindo a nomenclatura dos crimes particulares. Toma-se aqui uma guinada na direção, visto que, quase em sua totalidade, os crimes contra o patrimônio passam a ser de ação penal pública incondicionada, com raras exceções, o estado deve agir de ofício, retira-se do ofendido seu poder de decisão. Nesse modelo, cria-se uma avalanche de procedimentos, incluindo aqueles em que a vítima não quer a presença estatal, ou sequer registra os fatos, gerando verazes cifras invisíveis aos olhos da sociedade e do próprio Estado. Agindo assim, segundo entender deste subscritor, rompe-se com um dos princípios penais, o da “última ratio”. Em nova direção, nas últimas mudanças legislativas, vê-se o início de um novo caminhar, com a implementação da justiça negocial, como nos casos da transação penal e do acordo de não persecução penal, e, mais recente, a mudança no crime de estelionato, passando como regra para ação pública condicionada.
No sexto capítulo, é exposta uma breve análise de alguns países desenvolvidos demonstrando que cabe à vítima o poder de disposição dos crimes contra o patrimônio, concluindo então o trabalho.
2 – BREVE ANÁLISE DO CONTEXTO HISTÓRICO DA PROPRIEDADE
Com o surgimento do homem e da necessidade de se firmar na terra, seja para exploração, seja para sua fixação em uma base territorial, surgem as demarcações e suas divisões. Segundo os socialistas, a inevitabilidade da agricultura e a imposição de controle de alguns grupos sobre outros propiciaram o surgimento da propriedade privada. Noutro giro, os liberais defendem que o desenvolvimento da sociedade somente é possível visto que o indivíduo fomenta os meios de produção naquilo que é seu, ou ao menos por ele protegido, passando a exercer direitos e poderes sobre determinados objetos, coisas ou até mesmo a terra.
A propriedade privada passa, então, a gerir as relações entre os indivíduos, principalmente a socioeconômica.
Não pairam dúvidas de que, com a agricultura e com a domesticação dos animais, por exemplo, houve a necessidade de fixação em determinados locais, sendo deixado de lado o nomadismo, por maior segurança e por estabilidade (ESTEFANI, 2021).
A sociedade romana, influenciada pelo povo grego, baseando-se no alargamento territorial para “produzir riquezas”, passa a intensificar maior proteção aos bens materiais, ainda que a economia tivesse seu cerne na agricultura, conforme menciona (MACIEL 2009):
O crescimento da cidade não se baseava em uma economia tipicamente urbana, mas sim em uma economia essencialmente agrícola, com larga utilização do trabalho escravo, fato que permitia aos proprietários viverem na cidade, com riquezas vindas do solo.
Nesse período, com a distribuição das terras, principalmente entre os componentes do exército e da nobreza, viu-se a necessidade de estruturar e de proteger a posse e a propriedade. No mesmo esteio, encontra-se a igreja com a necessidade de justificar a ampliação de seu império de bens. Surge, também, a figura da usucapião, que, segundo (CORREIA, 1988), nada mais é do que a aquisição da propriedade mediante a posse continuada durante o tempo estabelecido pela lei. A Lei das XII tábuas confirma que o domínio por dois anos de posse daria direito à usucapião.
No transcurso do tempo, a propriedade sempre guardou seu lugar de destaque nas normas, seja durante o feudalismo, o despotismo, o absolutismo, o liberalismo e, contemporaneamente, durante o capitalismo. Observa-se que a propriedade aqui mencionada figura nos bens móveis e imóveis.
No decorrer da evolução do Direito Penal, constata-se o período das vinganças (Privada, Divina e Pública). No primeiro momento (Privada), após o cometimento de um crime, a reação cabia à vítima e a seus parentes, às vezes, até à sua tribo (grupo social). Nesse ínterim, chama atenção o fato de a “providência” ser rastreada pelo próprio ofendido. Esse período ainda possibilita o acordo (composição) dos danos, no que a pena ficaria superada. No segundo momento (Divina), a pena era imposta pelos sacerdotes como representantes divinos, ainda assim, o perdão era possível para algumas condutas. E, por fim, no terceiro (Pública), essa pena passa à autoridade pública, mas que também agia em nome de “Deus”.
Dentre todas as heranças antigas, talvez a das codificações seja a mais significativa, possibilitando o surgimento dos Estados. Não se pode deixar ao esquecimento o Iluminismo, que serviu de pedra angular nesse período, a exemplo, o clássico “Dos Delitos e das Penas”, já ensinando que as leis não deveriam distanciar-se das pessoas e da sociedade. Com isso, as normas distantes da sociedade passam a ser ignoradas, e, por via de consequência, ocorrem mais delitos. Contudo, quanto mais homens entendessem e soubessem de sua existência, menos infrações ocorreriam.
Enquanto o texto das leis não for um livro familiar, uma espécie de catecismo, enquanto forem escritas numa língua morta e ignorada do povo, e enquanto forem solenemente conservadas como misteriosos oráculos, o cidadão, que não puder julgar por si mesmo as consequências que devem ter os seus próprios atos sobre a sua liberdade e sobre os seus bens, ficará na dependência de um pequeno número de homens depositários e intérpretes das leis. Colocai o texto sagrado das leis nas mãos do povo, e, quanto mais homens houver que o lerem, tanto menos delitos haverá (Beccaria, 1764).
Somado a isso, nos períodos antigos, as normas eram dotadas de uma linguagem intensamente hermética, afastando o povo do conhecimento, objetivo esse galgado pelos monarcas e até mesmo pela própria igreja que redigiam as leis.
3 – CONTEXTO DE PROPRIEDADE E DE BENS DO BRASIL COLÔNIA À REPÚBLICA VELHA
O Brasil Colônia encontrava-se sob a égide das chamadas “ordenações”, primeiro as Afonsinas (1446), depois Manuelinas (1521) e Filipinas (1603), normas essas influenciadas pelo código de Justiniano e pelas regras de direito Romano. Durante o período inicial, as terras brasileiras eram regidas, no meio rural e nas cidades que nasciam, pela mera posse, fundada no uso. Conforme Sergio Buarque de Holanda, terra onde a ideia de propriedade ainda estava intimamente vinculada à da posse dos bens (HOLANDA, 1995). ARAÚJO (2013) em sua obra cita:
Não foi introduzida junto ao texto das Ordenações Afonsinas uma diferenciação entre prescrição aquisitiva e extintiva ou, ainda, a usucapião como figura autônoma. Já o texto das Ordenações Manuelinas já dispunha sobre o assunto em seu Livro IV, Títulos XXXIII e LXXX. Pelo texto denota-se a existência de uma prescrição ordinária pelo prazo de 10 ou 20 anos, onde os requisitos para sua invocação constituem-se na posse, justo título e boa-fé. Quanto à prescrição extraordinária, a mesma se perfaz com transcurso de 30 anos, não sendo necessário o justo título. Por fim, a última parte do texto prevê a prescrição imemorial no prazo de 20 anos entre os presentes e de 40 anos entre os ausentes, sem a exigência da boa-fé. A disposição traçada junto às Ordenações sofre uma modificação no ano de 1534, por ordem de D. João III, onde se revela nítida influência do Direito Canônico, ao não se permitir, em qualquer hipótese, o benefício da prescrição aquisitiva ao possuidor de má-fé.
Essas mesmas ordenações (compilações da monarquia com os nomes dos mandantes régios) geriram as relações até 1830 — data da primeira estrutura penal —, bem como até 1917 — data do primeiro Código Civil. Segundo ANDRÉ (2021)
As Ordenações levaram o nome de seus mandantes régios e três foram essas compilações: a Afonsina de 1447, ordenada por Afonso IV possuía cinco livros que versavam sobre Direito Administrativo (Livro I), Direito Constitucional (Livro II), Processo Civil (Livro III), Direito Civil (Livro IV), e Direito e processo Criminal (Livro V); as Ordenações Manuelinas datam de 1521 e foram elaboradas no reinado de D. Manuel, mantendo a mesma sistematização das Ordenações Afonsinas; e, finalmente as Ordenações Filipinas, que, apesar de sua vigência ter iniciado em 1603, no reinado de Filipe II, sua elaboração iniciou-se em 1583, sob a égide de Filipe I. Sua sistematização de assuntos é a mesma das Ordenações anteriores, onde encontramos cinco livros, subdivididos em títulos e parágrafos (grifo nosso).
Sem embargo, foi com as ordenações do Rei Felipe II de 1603[1] que o primeiro “código penal” da colônia foi constituído. Insta observar que, nesse período, a igreja exercia forte influência sobre os reis, motivo pelo qual se destapava o temor pelas penas (cruéis), em total desproporção entre as condutas e as penas, bem como de acordo com os agentes (aplicando-se o Direito Penal do autor).
Após a proclamação da independência, e com o texto constitucional de 1824, foi sancionada a norma penal intitulada Código Criminal do Império em dezembro de 1830.
3.1 – PROTEÇÃO DADA AO PATRIMÔNIO NAS ORDENAÇÕES FILIPINAS
Conforme consta do quarto livro das ordenações Filipinas, os bens podem ser dispostos mediante compras e vendas (título I), bem como doados, incluindo-se aqui os bens móveis, em consonância com o Título LXII do livro IV (BRASIL, 1870).
As compras e vendas se podem fazer, não sómente quàndo o vendedor e comprador stâo presentes e juntos em hum lugar mas ainda que o vendedor stê em hum lugar e o comprador em outro, consentindo ambos na venda, e acordando-se per cartas, ou mensageiros, contentando-se o comprador da cousa, e o vendedor do preço. E póde-se isso mesmo (2) fazer a venda, posto que a cousa comprada não stê presente diante o comprador e vendedor, consentindo ambos na venda (3) Liv. 4 t. 23 pr.
9. E posto que as partes renunciem o beneficio desta Lei, ou digam nos contractos, que fazem doação da maioria, que a cousa mais valer: e posto que e diga, ou se possa provar, que sabiam o verdadeiro preço da cousa, todavia as partes poderão usar do beneficio desta Lei, não sendo os Officiaes, de que acima fazemos menção. E a tal renunciação, doação, ou certeza havemos por nenhuma, posto que nestes casos outra cousa seja determinada per Direito Commum (l}). M.-liv. 4 t. 30 § 6. Alv. de 19 de dezembro de 1581.
15. E se lhe forem dados em casamento bens moveis, e os ainda tiver, tral-os-ha á collação no stado, em que ao tempo da partilha stiverem (2), quer lhe fossem dado em preço certo (3), quer nao. E não os tendo para os poder trazer, trará a estimação do que valiam ao tempo que lhe foram dados em casamento, ou outros bens moveis taes (1) como elle eram ao tempo, que lhos deram, qual elle mais quizer\2) . M.-liv. 4. t. 77 § 13 (textos originais).[2]
Os bens móveis são considerados disponíveis desde o surgimento do Brasil, observando que esse tratamento é dado pelo Direito Civil, o que ocorre hodiernamente.
De outro modo, em relação ao Direito “Criminal”, o livro Cinco — Direito e Processo Criminal — traz, em seu rol de crimes, condutas que ofendem o bem jurídico patrimônio com penas severas, dentre elas a morte, o banimento e o açoitamento.
E os que na Igreja furtarem alguma cousa, posto que da Igreja não seja, nem chegue a marco de prata, sejão açoutados publicamente, e vão degradados per quatro annos para galés (3). M.-Liv. 5 t. 37 §4.
Qualquer Carreteiro, Almocreve, Barqueiro, ou outra pessoa, que houver de entregar, ou vender pão (2), ou levar de huma parte para outra e lhe lançar acintemente terra, agoa, ou outra cousa qualquer, para lhe crescer, e furtar o dito crescimento, se o damno e perda, que se receber do tal pão, valer dez mil reis, morra por isso (3). se fór de dez mil reis para baixo, seja degradado para sempre para o Brazil. M.- Livro.5 t. 87 pr. S.-p. 4t. 221. 9 (texto original) (BRASIL, 1870).
3.2 – O PATRIMÔNIO COMO BEM DISPONÍVEL NO CÓDIGO CRIMINAL DO IMPÉRIO DO BRASIL E DA “REPÚBLICA VELHA”
Em 1830, com o Código Criminal, as penas continuam sob a administração estatal, observando que a obrigação de satisfação do dano atingia os herdeiros dos delinquentes até os valores dos bens herdados, passando esse direito inclusive aos herdeiros dos ofendidos.
Art. 29. A obrigação de satisfazer o damno na fórma dos artigos antecedentes, passa aos herdeiros dos delinquentes até o valor dos bens herdados, e o direito de haver a satisfação passa aos herdeiros dos ofendidos (texto original).
O legislador deixou claro, nesse período, que a satisfação não teria lugar antes da condenação, contudo apresentou algumas exceções, dentre elas, encontrava-se a possibilidade de o ofendido preferir usar a ação civil, em detrimento da ação penal. Nesses casos, havendo a preferência da ação civil, revogados ficariam o artigo 31 do Código Criminal[3] e o parágrafo 5 do artigo 260, não se podendo questionar sobre a existência do fato e sobre quem seja o seu autor (TINÔCO 2003).
Art. 31. A satisfação não terá lugar antes da condemnação do delinquente por sentença em juizo criminal, passada em julgado. Exceptua-se: 1º O caso da ausencia do delinquente, em que se poderá demandar, e haver a satisfação por meio de acção civil. 2º O caso, em que o delinquente tiver fallecido depois da pronuncia, no qual poderá haver-se dos herdeiros a satisfação por meio de acção civil. 3º O caso, em que o offendido preferir o usar da acção civil contra o delinquente (texto original).
O código criminal de 1830 já previa o perdão do ofendido, todavia não se aplicava aos crimes públicos. No caso dos crimes particulares, também não se aplicava se já houvesse acusação por parte da justiça, conforme artigo 67 (BRASIL, 1930)
Art. 67. O perdão do offendido antes, ou depois da sentença, não eximirá das penas em que tiverem, ou possam ter incorrido, aos réos de crimes publicos, ou dos particulares, em que tiver lugar a accusação por parte da Justiça (texto original).
Ora, a contrário senso, verifica-se que o objetivo do legislador era a aplicação do perdão do ofendido aos “crimes particulares”, antes da acusação por parte da justiça, crimes esses que figuram a partir da “parte terceira” do Código Criminal. Aqui enumera-se a entrada, em casa alheia, dos crimes contra a propriedade (furto, bancarrota estelionato e outros crimes contra a propriedade e o dano), dos crimes contra a pessoa e contra a propriedade (roubo).
Outro raciocínio não há senão ser tratado o patrimônio como bens disponíveis, assim como o faz na legislação civil. A confirmação era a possibilidade de o ofendido perdoar o ofensor, desde que não tivesse lugar a acusação da justiça.
A jurisprudência da época assim dizia:
Julgam procedente a appellação interposta da sentença de fls., para revogarem a mesma sentença, porquanto tendo sido o appellante processado em virtude de queixa intentada pelo promotor publico, por ser miseravel o offendido, e sendo meramente particular o crime de que se trata, art. 201, desde que o paciente perdoou ao seu offensor, o juiz formador da culpa não devêra proseguir no processo para obrigar o appellante á prisão e. livramento. Rol. do Ceará. Ac. de 22 de Setembro de 1876; Appellante — Antônio Maria Lins e Appellada — a Justiça. Direito, vol. 12 (texto original, citado no próprio códido) (BRASIL, 1930).
A pacificação e o caráter negocial já eram demonstrados nessa época, tanto que o próprio texto constitucional de 1824, em seus artigos 161 e 162, demonstrava a indispensabilidade de reconciliação antes das ações criminais, por intermédio do então denominado Juiz de Paz[4]. (BRASIL, 1824).
É bem verdade que a pena deve possuir não apenas o efeito repressivo (retributivo), mas também o preventivo, que deve ocorrer para desestimular a prática de ilícitos penais. Sendo assim, a violência não é uma questão meramente privada, mas com danos à sociedade, motivo pelo qual o Estado também é vítima de todas as ações delitivas, mesmo porque os crimes ofendem, ainda que indiretamente, a ordem e a segurança públicas.
No entanto, com o Decreto n. 847 de 11 de outubro de 1890, o legislador permaneceu com a disponibilidade patrimonial, noticiando que o perdão do ofendido extinguia a ação penal e a condenação:
Da extinção e suspensão da ação penal e da condenação
Art. 71. A ação penal extingue-se:
1º Pela morte do criminoso;
2º Por amnistia do Congresso;
3º Pelo perdão do ofendido;
4º Pela prescrição.
Art. 77. Nos crimes pelos quais não pôde proceder senão por queixa da parte, o perdão do ofendido extingue a ação penal, mas não faz cessar a execução da sentença, si o condenado recusar aceitá-lo. (texto corrigido pela língua atual). (BRASIL, 1890).
Nesse contexto, é evidente que o legislador tentou restringir o espaço do perdão do ofendido, uma vez que, na legislação imperial, a regra era a acusação privada em todos os crimes particulares. Com isso, o primeiro código republicado passa para a regra da acusação pública, apresentando apenas oito exceções, em que há exclusividade da ação penal privada, dentre eles, o furto e o dano (TEIXEIRA 2019).
Essas exceções foram expostas no artigo 407 do Código Penal da época, que assim se transcreve:
Art. 407. Haverá lugar a ação penal:
§ 1º Por queixa da parte ofendida, ou de quem tiver qualidade para representa-la.
§ 2º Por denúncia do ministério público, em todos os crimes e contravenções.
Exceptuam-se:
1º, os crimes de furto e dano, não tendo havido prisão em flagrante. (texto corrigido pela língua atual). (BRASIL, 1890).
Em 14 de dezembro de 1932, surge a consolidação das leis penais, diploma que antecedeu o atual Código Penal, que pouco alterou o tema em relação à disponibilidade dos bens patrimoniais.
Em apertada síntese, o que se vê, até então, é a disponibilidade dos bens patrimoniais. Traz-se à baila uma real disponibilidade, em que o ofendido pode optar pela ação estatal ou não, seja por intermédio de seu perdão, seja pela escolha de outro ramo do direito, ou ainda pela expressa disposição de ação privada.
4 – PERDÃO DO OFENDIDO E “AÇÃO PENAL PATRIMONIAL” NO CÓDIGO PENAL DE 1940
O Decreto-lei 2.848 de 7 de dezembro de 1940, em vigor a partir de 1º de janeiro de 1942, revogou as disposições contrárias às normas estabelecidas, é claro, aferindo algumas exceções, conforme artigo 360[5].
O legislador apresenta uma razoável mudança em relação ao perdão do ofendido, afirmando que, somente nos crimes que se procedem mediante queixa (crimes de ação privada), obstará o prosseguimento da ação penal (BRASIL, 1940), perdão esse possível até o julgamento da sentença condenatória. A dicção do antigo artigo 107 permaneceu com a reforma de 1984, porém, no artigo 105 (BRASIL, 1984), após as inovações trazidas pela lei 7.209/84. Atualmente, sua natureza jurídica é de extinção da punibilidade.[6]
Necessária se faz a discussão entre as ações penais, uma vez que, a partir de então, a disponibilidade passa apenas para os crimes de ações privadas e, em uma análise finalística, passa a ocorrer também para os crimes de ações penais públicas condicionadas.
Desta feita, a nomenclatura dos crimes particulares é extinta do ordenamento jurídico, sendo a regra para os crimes, no contexto geral, a ação penal pública, e mais, a pública incondicionada.[7]
Em verdade, a ação penal é tratada como um direito público subjetivo exercitável pela parte para exigir do Estado a obrigação da tutela jurisdicional (THEODORO JÚNIOR, 1989)
Na ação penal pública, vigoram os princípios da obrigatoriedade e da indivisibilidade da ação penal, os quais, respectivamente, preconizam que o Ministério Público não pode dispor sobre o conteúdo ou a conveniência do processo. Porém, não é necessário que todos os agentes ingressem na mesma oportunidade no polo passivo da ação, podendo haver posterior aditamento da denúncia (STJ, HC 27119/RS, Rel. Min. Gilson Dipp, 5ª T., DJ 25/8/2003, p. 341).
A ação penal pública condicionada exige a condição objetiva de procedibilidade, a qual seja a representação, que segundo o professor GRECO (2017)
É o ato por meio do qual o ofendido ou seu representante legal manifesta seu interesse no sentido de ser dado início à persecutio criminis. Ressalte-se que a representação do ofendido ou de seu representante legal não precisa conter grandes formalismos. Nela, o ofendido ou seu representante legal simplesmente declara, esclarece a sua vontade no sentido de possibilitar ao Ministério Público a apuração dos fatos narrados, a fim de formar a sua convicção pessoal para se for o caso, dar início à ação penal pelo oferecimento de denúncia.
Dessa maneira, o ordenamento passou a adotar a regra da indisponibilidade da ação (pública incondicionada). E, assim, as exceções passaram a ser a pública condicionada (exigência expressa de representação do ofendido) e a ação privada (exigência expressa de queixa). Nesse último caso, é patente que, para certos crimes, a lei, ponderando a aflição processual e até mesmo a celeuma sob a ótica do ofendido, deixa ao arbítrio deste a iniciativa do início e do prosseguimento da ação penal.
A tendência hodierna é a extirpação dessas ações penais (privadas), tanto o é que raramente veem-se essas ações no Código Penal. No momento presente, essa modalidade de ação encontra-se nos crimes contra a honra, com exceções, é claro[8], no crime de esbulho possessório, mas também evidenciando exceções[9], no crime de dano, porém na figura do caput[10], do parágrafo único, inciso IV[11] e no caso do artigo 164[12]. Ainda se encontra a referida ação nos casos de fraude à execução[13], na violação de direito autoral[14], induzimento a erro essencial e à ocultação de impedimento[15] e no exercício arbitrário das próprias razões, na inexistência de violência[16]. Vislumbrando, desse modo, oito tipos penais de exclusividade da parte ofendida.
No mesmo giro, pouquíssimos são os tipos penais que exigem a condição objetiva de procedibilidade (representação), entretanto fica-se aqui no objeto dessa discussão. Em se analisando os crimes contra o patrimônio, constata-se que o legislador abre para a disponibilidade, ainda que com exceções, os crimes de Esbulho possessório, de dano, de introdução ou de abandono de animais em propriedade alheia e de fraude à execução, tipos penais esses já mencionados.
Em relação à representação nos crimes contra o patrimônio, ocorre no furto de coisa comum[17], nas outras fraudes[18] e agora na figura do estelionato como regra, após o advento da lei 13.964/2019, exceto nos casos quando a vítima for a Administração Pública, direta ou indireta; criança ou adolescente; pessoa com deficiência mental; maior de 70 (setenta) anos de idade ou incapaz (BRASIL, 2019).
Dessa forma, o rol da disponibilidade dos bens patrimoniais ficou muito restrito, pois é bem verdade que ainda é disponível no caso dos crimes contra o patrimônio praticados pelo cônjuge separado judicialmente, pelo irmão, pelo tio ou pelo sobrinho, com quem o agente coabita, desde que não seja crime de roubo, de extorsão, ou em geral quando haja emprego de grave ameaça ou violência à pessoa. Além disso, não seja praticado o crime contra pessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos, não se aplicando também ao estranho que participa do crime.
O que chama atenção, segundo o olhar deste trabalho, é a mudança da disponibilidade dos bens patrimoniais para indisponíveis. Ora, se, para boa parte dos crimes contra o patrimônio, o estado deve agir de ofício, retira-se do ofendido seu poder de decisão. Isso seria o mesmo que afirmar que a vítima não possui capacidade para gerir seus bens, decidir sobre providências ou não. Nessa seara, muitas vezes caímos na “ciffre noir”, ora, se a vítima não deseja providências e se a simples notícia do fato ensejará a instauração de ofício, muito ocorre de não se noticiar aos órgãos públicos, fazendo com que os números se apresentem distantes dos reais. Nesse diapasão, atrapalham-se até mesmo políticas públicas prevencionistas.
Sincronicamente, devido à ausência de material humano em boa parte das delegacias do Brasil e à dinâmica de prioridade junto aos órgãos policiais, e ainda que elaboradas, as ocorrências de menores expressões que demandem instaurações de Inquéritos Policiais, em sua maioria, ficam sem soluções. Isso ocorre, às vezes, pelo próprio desinteresse da parte ofendida, mesmo havendo suspeições e conhecimento de diretrizes que facilitariam chegar ao autor, ou ao menos nortear a linha investigativa. Isto posto, a “unspecified occorrence” bem como a without offended part´s notification” coadunam para uma cifra invisível aos olhos da sociedade e do próprio Estado.
5 – DA (IN)DISPONIBILIDADE DOS BENS NO DIREITO PENAL
O direito penal, não diferente do direito civil, regula a relação entre os indivíduos, tratando-os como sujeitos de direitos, não esquecendo suas obrigações. Nessa relação jurídica, encontram-se os bens, fonte de aspiração e de satisfação do homem. À medida que esses bens se fazem necessários ao propósito físico ou imaterial, passam a gozar de proteção estatal. Desse modo, a melhor classificação entre móveis e imóveis é o deslocamento/transporte de um lugar para outro sem modificação da estrutura ou da substância.
No ramo do direito civil, a regra é a disponibilidade dos bens móveis e imóveis, guardando, certamente, suas exceções, a exemplo dos bens legalmente inalienáveis e indisponíveis. No caso dos bens móveis de uso pessoal, esses ficam sob a lei pessoal do proprietário[19] (BRASIL, 2002), implicando dizer que possui livre disposição para dar, doar, destruir, deixar levar, dentre outros.
No direito penal, os bens que passam a gozar de proteção ganham a nomenclatura de bens jurídicos, ou seja, quando necessários e essenciais para uma vida segura e livre, que garanta a todos os direitos humanos e civis de cada um na sociedade ou para o funcionamento de um sistema estatal (ROXIN apud GOMES 2002).
No mesmo sentido, o professor Luiz Flávio Gomes afirma que somente haverá proteção se importante for para a vida social, visto que a definição de disponibilidade ou indisponibilidade é uma expressão indeterminada, abstrata:
Existe um escritor espanhol, Mir Puig, que faz uma observação muito precisa da limitação dos poderes do legislador com relação a punição de condutas. Ele entende o seguinte: o legislador, calcado na constituição , só vai proteger bem jurídico na medida em que aquela proteção seja importante para a participação do indivíduo na vida social. Esse é o limite à atuação do legislador. Portanto, a expressão bem jurídica, seja disponível ou indisponível, é uma expressão indeterminada. Assim, trata-se de um conceito abstrato. Entretanto, são considerados bens indisponíveis aqueles que dizem respeito a vida, integridade física, direitos ligados à personalidade, etc. E, por exclusão, bens disponíveis são os demais (Gomes 2002)
É nessa conjuntura que se chama atenção para o direito penal de “última ratio”, devendo ser levado ao cabo se, só e exclusivamente, for o único capaz de evitar o conflito social, ou relevância para manutenção de uma pacífica e harmoniosa convivência. Isto posto, os outros ramos do direito devem ser analisados precipuamente, para, então, buscar-se no Direito Penal a solução conflituosa.
Intervenção mínima significa que o direito penal só deve cuidar de situações graves, de modo que o juiz criminal só venha a ser acionado para solucionar fatos relevantes para a coletividade. É um princípio a ser observado prioritariamente pelo legislador na criação de leis penais. Na prática, uma decorrência do princípio da intervenção mínima foi o reconhecimento do princípio da insignificância, que considera atípico o fato quando a lesão ao bem jurídico tutelado pela lei penal é de tal forma irrisória que não justifica a movimentação da máquina judiciária. (GONÇALVES, 2003).
Do reconhecer-se o caráter subsidiário do direito penal não se segue, no entanto, que se lhe recuse autonomia cientifica, pois, como observa Maggiore, “em cada caso, a sanção imprime uma nova forma ao preceito, embora este pertença a um outro ordenamento jurídico. Ademais, convém notar que os ordenamentos jurídicos não são compartimentos estanques e incomunicáveis, e sim que se soldam uns aos outros num sistema comum de direito; coincidindo, no particular, com Zaffaroni, para quem a subsidiariedade do direito penal não afeta a sua autonomia cientifica e legislativa, mas, ao contrário, lhe permite elaborar seus próprios conceitos, a partir do particular enfoque tutelar preventivo especial ou reparador extraordinário de que carece a correção por meio da que realiza a restante tutela jurídica (QUEIROZ, 1998).
Partindo do pressuposto lógico de que o direto penal deve interferir o menos exequível na vida em sociedade, defende-se que os bens, assim como no direito civil, devem ser tratados como disponíveis e não indisponíveis. Assim analisado, o ofendido maior e capaz deve deter o poder de discernir sobre a tomada de providências ou não, motivo pelo qual os crimes contra o patrimônio sem violência (própria ou imprópria) ou grave ameaça à pessoa deve atentar para a ação penal pública condicionada. Nessa mesma linha, encontra-se o Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB, 2017) que foi favorável ao projeto de Lei 7.031/2017. O referido projeto altera os artigos 182 e 183 do Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940, que por sua vez passaria a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 182. Nos crimes previstos neste título somente se procede mediante representação, salvo se forem praticados com violência ou grave ameaça à pessoa.” (BRASIL, 2017).
Todavia, entende-se que, a bem do direito, deveriam ser mantidas as mesmas exceções do estelionato trazidas pela Lei 13.964 de 2019, as quais sejam, mantendo as ações como públicas incondicionadas se praticados os delitos contra Administração Pública, direta ou indireta; criança ou adolescente; pessoa com deficiência mental; ou maior de 70 (setenta) anos de idade ou incapaz.
Ademais, os crimes contra o patrimônio de pequena monta representam um número expressivo de Inquéritos Policiais, de ações penais e de processos junto à justiça pública, visto a instauração compulsória, travando as pautas investigativas dos crimes de maiores montas. Em muitos casos, ocorrências são registradas tão somente para fins privados, seguros e outros relativos a esse contexto.
Assimila-se também que a representação exposta, na legislação brasileira, não é um instituto puramente processual penal, mas afeta diretamente o direito de ir e vir do indivíduo, sendo assim, indubitavelmente de natureza material. E, mesmo aos defensores da natureza mista, a retroatividade se mostra patente, independentemente da fase em que se encontram as investigações, as ações penais e/ou os processos criminais. Apenas por nomenclatura doutrinária, haveria então o pleno respeito à condição objetiva de procedibilidade ou, nos casos já em andamento, o termo utilizado seria prosseguibilidade.
Com maestria, o professor Jeferson Botelho Pereira explica a diferença entre ambas:
“As condições de procedibilidade (art. 43, III, 2 partes, CPP) são exigidas pela lei para a propositura da ação penal. Condicionam o exercício da ação penal nos casos determinados pela lei”.
“As condições de prosseguibilidade distinguem-se das condições de procedibilidade, pois são aqueles que possibilitam o prosseguimento do processo, em casos determinados pela lei”. (PEREIRA, 2016).
Outro fato que se aponta aos olhos é a pena dos crimes contra o patrimônio sem violência (consideram-se aqui as violências própria e imprópria) ou grave ameaça à pessoa. Em simples análise, vislumbra-se que as condenações para esses crimes quase sempre gravitam em patamares iguais ou inferiores a quatro anos, passível, então, o regime aberto[20]. Insta observar que esse regime é cumprido em casa de albergado ou em estabelecimento adequado, este último inexistente em quase todo o Brasil, assim, ao fim e ao cabo, o condenado acaba por ficar em casa, praticamente sem fiscalização. E, mesmo havendo uma condenação superior a quatro anos e inferior a oito (raro de acontecer), esse teria o direito de cumprir sua pena no regime semiaberto[21], com execução em colônia agrícola ou industrial e em estabelecimento similar, também quase inexistente no território nacional. (BRASIL, 1940). Não obstante, segundo o STF:
Constitucional. Direito Penal. Execução penal. Repercussão geral. Recurso extraordinário representativo da controvérsia.2. Cumprimento de pena em regime fechado, na hipótese de inexistir vaga em estabelecimento adequado a seu regime. Violação aos princípios da individualização da pena (artigo 5º, XLVI) e da legalidade (artigo 5º, XXXIX). A falta de estabelecimento penal adequado não autoriza a manutenção do condenado em regime prisional mais gravoso.3. Os juízes da execução penal poderão avaliar os estabelecimentos destinados aos regimes semiaberto e aberto, para qualificação como adequados a tais regimes. São aceitáveis estabelecimentos que não se qualifiquem como “colônia agrícola, industrial” (regime semiaberto) ou “casa de albergado ou estabelecimento adequado” (regime aberto) (artigo 33, § 1º, alíneas “b” e “c”). No entanto, não deverá haver alojamento conjunto de presos dos regimes semiaberto e aberto com presos do regime fechado. 4. Havendo déficit de vagas, deverão ser determinados: (i) a saída antecipada de sentenciado no regime com falta de vagas; (ii) a liberdade eletronicamente monitorada ao sentenciado que sai antecipadamente ou é posto em prisão domiciliar por falta de vagas; (iii) o cumprimento de penas restritivas de direito e/ou estudo ao sentenciado que progride ao regime aberto. Até que sejam estruturadas as medidas alternativas propostas, poderá ser deferida a prisão domiciliar ao sentenciado (...) [RE 641.320, rel. min. Gilmar Mendes, P, j. 11-5-2016, DJE 159 de 1º-8-2016, Tema 423.[22]
Destarte, em uma análise finalística, desprende-se muita energia, valores e material humano com procedimentos e com processos longos e dispendiosos para resultar em “regime aberto”.
6 – AÇÃO PENAL NOS CRIMES CONTRA O PATRIMÔNIO NO DIREITO COMPARADO
Referente às ações penais nos crimes contra o patrimônio, constata-se que alguns países desenvolvidos já utilizam a técnica da disponibilidade dos bens patrimoniais no direito penal.
À guisa de exemplos, vale citar Portugal, origem do direito penal brasileiro. Naquele país, na legislação penal, no título II, dos crimes contra o patrimônio, boa parte dos crimes sem violência ou grave ameaça à pessoa possui, como ação penal, a privada. O furto simples[23], o abuso de confiança[24], a usurpação de coisa imóvel, a alteração de marcos, a Burla e a Usura[25], por exemplo, procedem-se mediante queixa.
Na Espanha, a prisão, nos casos de furto, condiciona a determinado valor, conforme artigo 236 do Código Espanhol, no caso em estudo, 400 euros[26].
Na Itália, vê-se, em alguns momentos, a necessidade de “querella” da vítima para alguns dos crimes contra o patrimônio, a exemplo do próprio furto. Aqui o termo, no sentido de pedido de providências, para alguns significa a própria representação. Na mesma perspectiva, há o código penal alemão, segundo André Luis Alves de Barros (2018):
Ação penal por crime de furto na Alemanha
Na Alemanha também prevalece a ação penal condicionada à representação da vítima em caso de furto simples, bem como qualificado, desde que de pouco valor, conforme está previsto no artigo 243, conforme Código Penal alemão, de 15/5/1871, com a reforma de 31 de janeiro de 1998, exceto se o Ministério Público entender que há algum interesse público maior que justifique aquela ação penal. Geralmente furtos no valor abaixo de 250 euros enquadram-se nessa situação, embora a lei não estabeleça limite objetivo (grifo nosso).
Este artigo busca demonstrar as raízes do ordenamento jurídico brasileiro ao longo do contexto histórico, trazendo desde o início da proteção da propriedade privada, aos dias hodiernos. O objetivo é demonstrar que, mesmo em períodos sombrios da humanidade, a vítima podia decidir por seus bens, ora com o perdão sobre o infrator, outrora com a suspensão da própria ação acusatória.
No código criminal do Império de 1830, pós ordenações, um momento sem democracia, é curiosa a liberdade dada ao ofendido dos bens particulares. Ora, nesse tempo, permitia-se a disponibilidade dos bens, sob o viés do perdão do ofendido, antes da acusação formada, nos casos de crimes particulares, incluindo aqui os crimes contra o patrimônio, dentre eles, o furto, a bancarrota, o dano, o estelionato, entre outros.
Mesmo em um período em que a democracia ficou longe, o próprio texto constitucional de 1824 demonstrava a indispensabilidade de reconciliação, antes de iniciadas as ações penais.
Na mesma esteira, com as mudanças de 1890, o legislador optou pela política da capacidade do proprietário dos bens privados, tanto que o perdão do ofendido tinha capacidade para extinguir e para suspender uma ação penal. Nesse período, em que pese passar para acusações públicas, ainda assim, ações de alguns crimes contra o patrimônio ficaram como privadas, a exemplo do furto e do dano.
Não se pode coadunar que, em plena era democrática, o direito de escolha do indivíduo seja usurpado pelo estado, retirando dele a capacidade de exercer a disponibilidade de seus bens. Ora, se no direito penal a ação para os crimes contra o patrimônio é ação pública incondicionada, outro raciocínio não há senão a afetação da indisponibilidade desses bens. Nessa linha, a lei pessoal do proprietário deve incidir sobre a livre disposição desses bens, não cabendo ao Estado a imposição de uma ação de ofício sob alegação de também ser vítima indireta. Nessa ocasião, a vítima indireta deve sobrepor a vítima direta ou, em um Estado Democrático de Direito, deveria ser o inverso? Agindo assim, no entender deste trabalho, o “direito decisório da vítima” é deixado para um segundo plano. Não se podem suprimir o poder, a capacidade e, ao mesmo tempo, a autoridade do indivíduo sobre seus bens, principalmente a expressão de sua vontade. Além disso, as democracias desenvolvidas já caminham nesse sentido, deixando a decisão de ver ou não a pessoa processada, com as vítimas diretas.
Conforme apresentado neste trabalho, muitos Inquéritos Policiais e Processos tramitam até mesmo com a animosidade da própria vítima, que busca, em verdade, a restituição de seus bens, e não seus vários deslocamentos para oitivas ou para importunações, por exemplo. Na mesma esteira, ofendidos de crimes contra o patrimônio deixam até mesmo de registrar os pequenos furtos, ocasionando as denominas “ciffre noir”, atrapalhando, até mesmo, políticas públicas prevencionistas.
Assim e por mais, conclui-se esta dissertação, entendendo que o ofendido maior e capaz deve deter o poder de discernir sobre a tomada de providências ou não, motivo pelo qual os crimes contra o patrimônio sem violência (própria ou imprópria) ou grave ameaça à pessoa devem atentar para a ação penal pública condicionada.
Por conseguinte, sugere-se aqui modificação ao projeto de Lei 7.031/2017, acrescentando as mesmas exceções expostas para os crimes de estelionato, os quais sejam, permanecendo pública incondicionada, quando praticados contra Administração Pública, direta ou indireta; criança ou adolescente; pessoa com deficiência mental; ou maior de 70 (setenta) anos de idade ou incapaz. Acresce que as democracias desenvolvidas já caminham nesse sentido.
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[4] Art. 161. Sem se fazer constar, que se tem intentado o meio da reconciliação, não se começará Processo algum e art. Art. 162. Para este fim haverá juízes de Paz, os quais serão eletivos pelo mesmo tempo, e maneira, por que se elegem os Vereadores das Câmaras. Suas atribuições, e Distritos serão regulados por Lei (texto corrigido segundo língua atual).
[5] Art. 360 - Ressalvada a legislação especial sobre os crimes contra a existência, a segurança e a integridade do Estado e contra a guarda e o emprego da economia popular, os crimes de imprensa e os de falência, os de responsabilidade do Presidente da República e dos Governadores ou Interventores, e os crimes militares, revogam-se as disposições em contrário. (BRASIL, 1940).
[6] Art. 107 - Extingue-se a punibilidade: (...) V - pela renúncia do direito de queixa ou pelo perdão aceito, nos crimes de ação privada;
[7] Art. 100 - A ação penal é pública, salvo quando a lei expressamente a declara privativa do ofendido. § 1º - A ação pública é promovida pelo Ministério Público, dependendo, quando a lei o exige, de representação do ofendido ou de requisição do Ministro da Justiça. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
[8] Art. 145 do CPB - Nos crimes previstos neste Capítulo somente se procede mediante queixa, salvo quando, no caso do art. 140, § 2º, da violência resulta lesão corporal. Parágrafo único. Procede-se mediante requisição do Ministro da Justiça, no caso do inciso I do caput do art. 141 deste Código, e mediante representação do ofendido, no caso do inciso II do mesmo artigo, bem como no caso do § 3o do art. 140 deste Código. (Redação dada pela Lei nº 12.033. de 2009).
[9] Art. 161 do CPB (...) II - invade, com violência a pessoa ou grave ameaça, ou mediante concurso de mais de duas pessoas, terreno ou edifício alheio, para o fim de esbulho possessório. § 2º - Se o agente usa de violência, incorre também na pena a esta cominada. § 3º - Se a propriedade é particular, e não há emprego de violência, somente se procede mediante queixa.
[10] Art. 163 - Destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia: Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.
[11] Parágrafo único - Se o crime é cometido: IV - por motivo egoístico ou com prejuízo considerável para a vítima: Pena - detenção, de seis meses a três anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
[12] Art. 164 - Introduzir ou deixar animais em propriedade alheia, sem consentimento de quem de direito, desde que o fato resulte prejuízo: Pena - detenção, de quinze dias a seis meses, ou multa.
[13] Art. 179 - Fraudar execução, alienando, desviando, destruindo ou danificando bens, ou simulando dívidas: Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa. Parágrafo único - Somente se procede mediante queixa.
[14] Art. 184. Violar direitos de autor e os que lhe são conexos: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa.
[15]Art. 236 - Contrair casamento, induzindo em erro essencial o outro contraente, ou ocultando-lhe impedimento que não seja casamento anterior: Pena - detenção, de seis meses a dois anos. Parágrafo único - A ação penal depende de queixa do contraente enganado e não pode ser intentada senão depois de transitar em julgado a sentença que, por motivo de erro ou impedimento, anule o casamento.
[16] Art. 345 - Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite: Pena - detenção, de quinze dias a um mês, ou multa, além da pena correspondente à violência. Parágrafo único - Se não há emprego de violência, somente se procede mediante queixa.
[17] Art. 156 - Subtrair o condômino, coerdeiros ou sócio, para si ou para outrem, a quem legitimamente a detém, a coisa comum: Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa. § 1º - Somente se procede mediante representação.
[18] Art. 176 - Tomar refeição em restaurante, alojar-se em hotel ou utilizar-se de meio de transporte sem dispor de recursos para efetuar o pagamento: Pena - detenção, de quinze dias a dois meses, ou multa. Parágrafo único - Somente se procede mediante representação, e o juiz pode, conforme as circunstâncias, deixar de aplicar a pena.
[19] Art. 10 do C.C - Os bens, móveis, ou imóveis, estão sob a lei do lugar onde situados; ficando, porém, sob a lei pessoal do proprietário os moveis de seu uso pessoal, ou os que ele consiga tiver sempre, bem como os destinados a transporte para outros lugares.
[20] Art. 33, 2, c) o condenado não reincidente, cuja pena seja igual ou inferior a 4 (quatro) anos, poderá, desde o início, cumpri-la em regime aberto.
[21] Art. 33, 2, b) o condenado não reincidente, cuja pena seja superior a 4 (quatro) anos e não exceda a 8 (oito), poderá, desde o princípio, cumpri-la em regime semiaberto;
[22] No mesmo sentido a súmula vinculante 56: A falta de estabelecimento penal adequado não autoriza a manutenção do condenado em regime prisional mais gravoso, devendo-se observar, nessa hipótese, os parâmetros fixados no RE 641.320/RS.
[23] Art. 203 do Código Penal Português - 1 - Quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel alheia, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa. 2 - A tentativa é punível. 3 - O procedimento criminal depende de queixa.
[24]Art. 205 do Código Penal Português 1 - Quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa. 2 - A tentativa é punível. 3 - O procedimento criminal depende de queixa.
[25] Art. 226 do Código Penal Português 1 - Quem, com intenção de alcançar um benefício patrimonial, para si ou para outra pessoa, explorando situação de necessidade, anomalia psíquica, incapacidade, inépcia, inexperiência ou fraqueza de carácter do devedor, ou relação de dependência deste, fizer com que ele se obrigue a conceder ou prometa, sob qualquer forma, a seu favor ou a favor de outra pessoa, vantagem pecuniária que for, segundo as circunstancias do caso, manifestamente desproporcionada com a contraprestação é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias. 2 - A tentativa é punível. 3 - O procedimento criminal depende de queixa.
[26] Art. 236 do Código Espanhol 1. Aquele que, sendo dono de um bem particular ou agindo com o consentimento deste, o retire de quem o tiver legitimamente em seu poder, em prejuízo de si ou de terceiro, será punido com multa de três a doze meses. 2. Se o valor do furto não ultrapassar 400 euros, será aplicada a pena de multa de um a três meses.
Graduação em Direito pela Universidade Presidente Antônio Carlos (2006), especialização em Pós-Graduação “Lato Sensu” em Direito Processual pela Universidade do Sul de Santa Catarina (2009); especialização em Pós-graduação “Lato Sensu” em Direito Público pela Faculdade de Direito de Ipatinga (2006). Atualmente é Docente do Centro Universitário do Leste de Minas Gerais, DELEGADO DE POLÍCIA da Polícia Civil de Minas Gerais e Professor de Direito Penal e Processo Penal da Faculdade de Direito de Ipatinga.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FERREIRA, Gilmaro Alves. Crimes contra o patrimônio: Da indisponibilidade à disponibilidade dos bens nos crimes sem violência ou grave ameaça à pessoa Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 abr 2021, 04:38. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56350/crimes-contra-o-patrimnio-da-indisponibilidade-disponibilidade-dos-bens-nos-crimes-sem-violncia-ou-grave-ameaa-pessoa. Acesso em: 23 dez 2024.
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