RESUMO: A autora aborda análise da aplicação das teorias da imprevisão e da onerosidade excessiva, em âmbito contratual, durante o período de pandemia advindo do COVID-19; em decorrência da avalanche de ações, com tutelas de urgência, que se avolumavam em ordem exponencial nas distribuições eletrônicas do Poder Judiciário, em face das alterações nas relações contratuais no período pandêmico que foram afetadas por acontecimentos não previstos no momento da formação do contrato, motivo pelo qual sua execução se torne desproporcional e as vezes impossível.
PALAVRAS- CHAVES: TEORIA DA IMPREVISÃO. TEORIA DA ONEROSIDADE EXCESSIVA. CONTRATOS. PANDEMIA. COVID-19. IMPREVISIBILIDADE. EXCEÇÃO. VANTAGEM EXCESSIVA. REVISÃO. RESOLUÇÃO. PACTA SUNT SERVANDA AUTONOMIA DA VONTADE. BOA-FÉ. LIBERDADE DE CONTRATAR.
Abstract: The author discusses the analysis of the application of theories of unpredictability and excessive burdens, in a contractual context, during the pandemic period arising from COVID-19; as a result of the avalanche of actions, with urgent protection, which increased exponentially in the electronic distributions of the Judiciary, in view of the changes in contractual relations in the pandemic period that were affected by events not foreseen at the time of the formation of the contract, reason by which its execution becomes disproportionate and sometimes impossible.
KEYWORDS: THEORY OF IMPREVISION. THEORY OF EXCESSIVE ONEROSITY. CONTRACTS. PANDEMIC. COVID-19. IMPREVISIBILITY. EXCEPTION. EXCESSIVE ADVANTAGE. REVISION. RESOLUTION. PACTA SUNT SERVANDA AUTONOMY OF THE WILL. GOOD FAITH. FREEDOM TO CONTRACT.
FUNDAMENTAÇÃO
As teorias da Imprevisão e da Onerosidade Excessiva, são instrumentos de pacificação social e eticidade nas relações contratuais privadas, com destaque para os artigos 317, 478, 479 e 480 do Código Civil.
I- Conceito da teoria da imprevisibilidade
Para Venosa, “Quando o ser humano usa de sua manifestação de vontade com a intenção precípua de gerar efeitos jurídicos, a expressão dessa vontade constitui-se num negócio jurídico”. (VENOSA, 2019, p.1)
A regra do nosso sistema legal é a liberdade na pactuação entre as partes, mais conhecida como princípio da pacta sunt servanda. Em face de eventos imprevisto ou previsto, mas com consequências excessivamente imprevistas, abre-se a possibilidade de rediscutir a relação contratual; em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, podem resultar obrigação/obrigações, excessivamente, onerosa(s), o que por consequência pode-se mitigar o princípio da pacta sunt servanda.
Segundo o professor Daniel Carnacchioni o princípio da pacta sunt servanda “(...) tal princípio, o contrato, formado pela exteriorização de vontades de pessoas livres, se torna obrigatório. O conteúdo do contrato passa a ser intangível. Entretanto, essa concepção de “obrigatoriedade” suportou consideráveis mutações através dos tempos, principalmente quando se compara o caráter deste princípio no Estado Liberal do século XIX, com sua roupagem assumida no início do século XX até a consolidação de um Estado Social no final do século passado. (...)”
Convém ressaltar que a regra geral é a da força obrigatória quanto ao fiel cumprimento dos contratos celebrados. Em que pese tal força, esta pode ser mitigada visando a garantia do equilíbrio entre as partes, para que não haja ou não possa resultar em eventual onerosidade e/ou desproporcional a uma das partes, em face de situações imprevistas ou imprevisíveis.
A melhor doutrina entende que para a caracterização e aplicação da teoria da imprevisão alguns pressupostos que devem estar presentes no momento de sua aplicação, tais como: 1) configuração de eventos extraordinários e imprevisíveis; 2) comprovação da onerosidade excessiva como causa da insuportabilidade do cumprimento do acordo para um dos contratantes; 3) que o contrato seja de execução continuada ou de execução diferida.
II- Conceito da teoria da onerosidade
Ressalte-se que nos casos dos contratos que estabelecem obrigações apenas uma das partes poderá pleitear a redução ou alteração contratual ou o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva.
Tal Teoria, em divergência com a teoria da imprevisão, esta observa a lesão originada ao mesmo tempo da formação do pacto, observando o desrespeito por um dos contratantes da boa-fé objetiva e demais deveres anexos, em detrimento da outra parte.
O Código de Defesa do Consumidor- CDC considera prática abusiva a exigência do consumidor vantagem manifestamente excessiva, nos termos do artigo 39, V, do CDC “Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: (...) V - exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva”
III- Diferenciação entre a teorias
A teoria da onerosidade excessiva possui aplicação mais simples e objetiva, pois cabe a parte prejudicada demonstrar a desvantagem ocorrida, sem a sua culpa, para pedir sua revisão.
A teoria da imprevisão, com foco mais restrito, requer que a parte demonstre que a “onerosidade excessiva” decorreu de fato superveniente, extraordinário e imprevisível, dificultando seu manejo na prática, ou seja, o que nem sempre é fácil demonstração e/ou comprovação processual.
Convém ressaltar que o se o resultado pretendido for a revisão dos contratos, proposta sob fundamento da teoria da imprevisão, em conformidade com o disposto no artigo 317 do Código Civil, ou seja, busca-se a primazia a manutenção do negócio jurídico. Em contraponto, a teoria da onerosidade excessiva visa, prioritariamente, a resolução dos contratos, em conformidade com o artigo 478 do mesmo dispositivo legal.
IV- Aplicação das teorias da imprevisão e da onerosidade excessiva e a pandemia do COVID-19
Dentre as muitas incertezas e inseguranças trazidas pela situação de pandemia, algumas estão relacionadas as obrigações; se estas devem se manter, enquanto as condições para sua formação não sofram impactos de situações externas imprevisíveis, supervenientes, que ensejem em uma manifesta desproporção em sua execução; principalmente questionamentos de quando estas são alteradas ou não; e se eventuais alterações causariam onerosidade excessiva em face de uma vantagem extrema aos integrantes da relação contratual; qual a legislação deveria ser aplicada ao contexto pandêmico.
Demasiados questionamentos para um período de dúvidas e incertezas, em que muitos alegavam haver um “hiato” jurídico ou se a construção doutrinária e princiológica do direito seria capaz subsidiar as inúmeras ações que chegavam nos “escaninhos virtuais” dos magistrados do Brasil a fora.
Realizando breve retrospectiva histórica, em primeiro de abril de 2020 foi editada a Medida Provisória- MP nº936, na qual instituiu o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego; em paralelo foi sancionada a Lei nº 13.982/2020 que, alterou a Lei nº 8.742/1993, adicionando medidas excepcionais para fins de elegibilidade ao benefício de prestação continuada durante a situação emergencial de saúde pública que afeta o Estado Brasileiro.
Em 10 de junho de 2020 foi sancionada a Lei nº 14.010/2020, com data de 20 de março de 2020 para o início da pandemia; tal lei prevê no seu art. 3º que os prazos prescricionais ficam suspensos, a partir da data da entrada em vigor da lei, 20 de março de 2020, até o dia 30 de outubro de 2020; assim, enquanto perdurarem as hipóteses específicas de impedimento, suspensão e interrupção dos prazos prescricionais previstos na lei supramencionada; igualmente se aplica à decadência, com a ressalva do artigo 207 do CC de 2002.
Cumpre ressaltar que a Lei nº 14.010/2020 sofreu vários vetos presidenciais, sob justificativa de procurar prestigiar o direito de propriedade, a liberdade e o direito de autodeterminação das pessoas. Em que pesem todas as alterações legais advindas do período pandêmico, nenhuma teve o condão de alterar a literalidade do CC.
Mas a grande questão era, mesmo antes da edição do arcabouço legal acima descrito, as ações com tutelas de urgência que se avolumavam em ordem exponencial nas distribuições eletrônicas do Poder Judiciário. O que fazer? Qual a melhor ponderação?; Qual o melhor tratamento aos casos de acontecimentos imprevisíveis decorrentes da propagação do COVID-19?
Considera-se como fato imprevisível os efeitos inflacionários sobre a economia, conforme Informativo de Jurisprudência nº 0352 do Superior Tribunal de Justiça- STJ que afasta, nesses casos, a teoria da imprevisão, pois “não se mostra razoável o entendimento de que a inflação possa ser tomada, no Brasil, como álea extraordinária, de modo a possibilitar algum desequilíbrio na equação econômica do contrato[...]”. Logo, se há fatos supervenientes e imprevisíveis, torna-se possível, então, que os sujeitos da relação jurídica pleiteiem uma mitigação dos efeitos do contrato para que possam adequar as obrigações contratuais à realidade atual, mas em tratando da realidade tupiniquim, segundo o STJ, a inflação não seria uma causa extraordinária, passível de ser enquadrada na teoria da imprevisão contratual.
Por óbvio a pandemia pelo COVID-19 vem sendo tratada pelo poder público como evento imprevisível que modificou todas as condições de normalidade anteriormente presentes nas relações sociais, econômicas e políticas da sociedade. Ademais a situação não é um problema local, mas mundial, de consequências ainda não previstas ou mensuráveis.
Cumpre destacar, de acordo com o Presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Ministro João Otávio de Noronha, afirmou em debate virtual que o juiz tem espaço para criar soluções destinadas a conciliar interesses sob os efeitos econômicos da pandemia do novo coronavírus, mas um suposto "princípio da Covid-19" não pode se transformar em pretexto para interferência nas relações contratuais. Os conflitos econômicos decorrentes da crise sanitária podem ser resolvidos com repactuação de acordos, porém os juízes não devem atender automaticamente aos pedidos de empresas sem demonstração real de desequilíbrio financeiro.
Diante do exposto acima, as Cortes Superiores mantiveram o mesmo entendimento já adotado no caso da soja futura - REsp nº 860277/GO, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO DIREITO CIVIL E COMERCIAL. COMPRA DE SAFRA FUTURA DE SOJA. ELEVAÇÃO DO PREÇO DO PRODUTO. TEORIA DA IMPREVISÃO. INAPLICABILIDADE. ONEROSIDADE EXCESSIVA. INOCORRÊNCIA), qual seja, “(...) Ademais, a venda antecipada da soja garante a aferição de lucros razoáveis, previamente identificáveis, tornando o contrato infenso a quedas abruptas no preço do produto. Em realidade, não se pode falar em onerosidade excessiva, tampouco em prejuízo para o vendedor, mas tão-somente em percepção de um lucro aquém daquele que teria, caso a venda se aperfeiçoasse em momento futuro”
Em um Acórdão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, o Desembargador SANDOVAL OLIVEIRA, 2ª turma cível (Acórdão Nº 1298744) demostrou não só seu temor quanto à possibilidade de concessão da tutela de urgência no caso concreto “(...) A teoria da imprevisão consiste na possibilidade de revisão ou resolução do contrato quando ocorrerem, durante a execução, situações que, à época da celebração da avença, não eram previsíveis pelos contratantes e que ocasionam onerosidade excessiva a uma das partes, com extrema vantagem à outra. 4. Sem olvidar do pacta sunt servanda, princípio que torna obrigatórias as cláusulas contratuais livre e previamente pactuadas, tem-se que a pandemia de COVID-19 perfaz verdadeiro caso fortuito, capaz de ensejar a intervenção do Poder Judiciário, devendo ser reformada a decisão agravada para conceder a tutela de urgência vindicada.5. Recurso conhecido e provido.”
O Presidente de honra do Fórum Nacional de Juízes de Competência Empresarial - FONAJEM menciona “A situação exige ser realista. Estamos numa situação de guerra, com um inimigo invisível, mas que fere tanto como uma bala", disse Noronha, acrescentando que os desdobramentos econômicos da Covid-19 passarão necessariamente pelo Judiciário. Em igual sentido o conselheiro do Conselho Nacional de Justiça- CNJ Henrique Ávila apontou a importância do uso da mediação e incentivou a proatividade do Judiciário para evitar processos judiciais de falência e recuperação judicial de empresas no período pandêmico.
CONCLUSÃO
Faz-se necessária para uma melhor compreensão do tema, um amplo conhecimento da relação negocial alicerçada na autonomia da vontade, boa-fé objetiva e função social do contrato, mas embora tenhamos a liberdade de contratar, as partes se vinculam ao cumprimento das obrigações decorrentes do instrumento. Cumpre destacar, que no curso da relação jurídica o adimplemento da avença pode ficar prejudicado por acontecimentos não previstos no momento da formação do contrato, motivo pelo qual sua execução se torne desproporcional e as vezes impossível para o devedor.
Em que pese a situação de pandemia ocasionada pelo COVID-19, convém lembrar que este não causou fatos supervenientes e imprevisíveis somente para os devedores, mas como para os credores das relações contratuais, fazendo-se necessária uma análise detida caso a caso, e não uma decisão padrão legal para aplicação geral, sob pena de sopesamentos de valores e princípios fundamentais.
BIBLIOGRAFIA
CARNACCHIONI, Daniel. Manual de Direito Civil- Volume Único. 3ª edição- Salvador. Editora Juspodivm, 2020.
GRAU, Eros Roberto. Um novo Paradigma dos contratos? Revista Trimestral de Direito Civil, São Paulo, n. 05, p. 73-82, /mar. 2001.
GRINOVER, Ada Pellegrini et. al. Código de Proteção e Defesa do Consumidor Comentado. Rio de Janeiro: Forense, 2000.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: contratos / Sílvio de Salvo Venosa. – 19. ed.– São Paulo: Atlas, 2019.
https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3261
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l13982.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/L14010.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm
Servidora do TJDFT. Bacharel em Direito e em Administração. Especialista em Direito Público e Direitos Indisponíveis. Conciliador e Mediadora no TJDFT. Aluna da Escola da Magistratura TJDFT.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, MAGDA FERNANDA XAVIER DA. Teoria da imprevisão x teoria da onerosidade excessiva, aplicação na seara contratual, no período da Covid-19 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 maio 2021, 04:21. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56447/teoria-da-impreviso-x-teoria-da-onerosidade-excessiva-aplicao-na-seara-contratual-no-perodo-da-covid-19. Acesso em: 23 dez 2024.
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