ADEMIR GASQUES SANCHES
(orientador)
RESUMO: O presente artigo busca analisar a cultura do estupro, desde o seu início até os dias atuais. Esta analise se faz urgente tendo em vista que o crime de estupro é amiudadamente ocasionado por uma necessidade de confirmação do poder do homem sobre a mulher. A violência sofrida pelas mulheres sempre esteve presente desde o início da sociedade brasileira, ainda que existam os movimentos feministas, a mulher continua sendo julgada de acordo com os estereótipos e figuras do patriarcado. O artigo aguça a necessidade de frisar o quanto é propagada a regra social de como a mulher deve se portar na presença de um homem, incluindo o comportamento mais adequado para manter sua integridade física e evitar agressões. A cada 11 minutos uma mulher é vítima de estupro no Brasil, e em um grande montante destes casos o crime é cometido dentro do ambiente familiar. Esta pesquisa foi desenvolvida por meio de análise do código penal brasileiro, da Lei n° 12.015 de 2009, bibliografias, teorias e doutrinas que conduzem o tema.
Palavras-chave: Estupro. Violência. Mulher. Cultura. Vítima. Patriarcado. Estereótipos. Comportamento.
SUMARIO: INTRODUÇÃO; 2 CONCEITO INERENTE AO ESTUPRO E VIOLÊNCIA SEXUAL; 2.1 O ESTUPRO; 2.2 VIOLÊNCIA SEXUAL; 3 CULTURA DO ESTUPRO; 4 IMAGEM DA VITIMA PERFEITA; 5 A ESTRUTURA DO ESTUPRADOR; 6 O CIRCULO DA PROSTITUIÇÃO; 7 CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.
INTRODUÇÃO
A “cultura do estupro” se baseia, em termos gerais, na normalização dos comportamentos sexuais violentos dos homens, aos olhos da sociedade. Esta expressão é utilizada para descrever uma esfera na qual o estupro é preponderante na mídia e cultura popular, assim como a violência sexual contra as mulheres.
Busca-se aguçar a atenção para a necessidade em se falar nesta cultura, há tempos nutrida por hábitos e comportamentos machistas, sexistas e misóginos naturalizados e encorajados pela etiqueta corporal e comportamental estabelecida às mulheres.
A análise do tema se faz urgente tendo em vista que o crime de estupro é, frequentemente, movido pela necessidade de confirmação do poder masculino sobre a mulher, taxando como usual e corriqueira as condutas sexuais afrontosas à sua dignidade, sob a perspectiva de que esta pertence ao homem, tal como seu corpo.
Para desenvolver este trabalho a metodologia utilizada, na abordagem deste tema, é de uma pesquisa pura e básica, baseada em conceitos gerais mais amplos, qualitativa, apresentando resultados já existentes e, além disto, exploratória e bibliográfica, proporcionando uma visão geral das doutrinas e principais teorias que norteiam o tema.
No primeiro tópico serão abordados os conceitos e definições do estupro e violência sexual, assim como um breve relato da evolução histórica conforme o passar dos anos. Na sequência o artigo retratara casos concretos e desfechos da pratica deste crime, expondo também qual o comportamento fundamental para se encaixar no papel de vítima perfeita, e o quanto a sociedade fantasia a imagem de um estuprador. Por fim falaremos sobre o quão comum se torna a violência sexual e os casos de estupro no círculo da prostituição.
O presente artigo tem como objetivo analisar a Lei n° 12.015 de 2009, em seu artigo 213 do Código Penal Brasileiro, bem como discorrer sobre a cultura do estupro no Brasil, apresentando casos de pratica deste crime, e também demonstrar o porquê a sociedade normaliza a prática sexual violenta dos homens.
2 CONCEITO INERENTE AO ESTUPRO E A VIOLÊNCIA SEXUAL
2.1 O estupro
A origem da palavra estupro vem do termo romano “strupum” que significa vergonha, desonra. O Código Penal Brasileiro em seu artigo 213 (na redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009), define o estupro como constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.
Um dos crimes mais violentos de extrema gravidade, sendo hoje considerado como crime hediondo, o estupro se enquadra na categoria de agressão sexual, geralmente envolvendo relação sexual ou atos libidinosos praticados contra uma pessoa sem o seu consentimento. O ato pode ser realizado por força física, coerção, abuso de autoridade ou contra uma pessoa incapaz de oferecer um consentimento válido, tal como quem está inconsciente, incapacitado, tem uma deficiência mental ou está abaixo da idade de consentimento.
Em virtude da nova redação constante do título VI do Código Penal podemos apontar como bens, juridicamente protegidos, pelo artigo 213, a liberdade e a dignidade sexual. A lei, portanto, tutela o direito de liberdade que qualquer pessoa tem de dispor sobre o próprio corpo, no que diz respeito aos atos sexuais. O estupro atingindo a liberdade sexual agride, simultaneamente, a dignidade do ser humano, que se vê humilhado com o ato sexual (GRECO, 2017, p.77).
O Código Penal Imperial (1830) entendia que o estupro era um crime contra a segurança da honra da mulher, e estava ligado com o defloramento da mulher virgem e com a violação sexual violenta da mulher honesta. O defloramento da mulher virgem só seria aceito com o casamento, como forma de exclusão da punibilidade, assim qualquer ofensa sexual, havendo o casamento, seria automaticamente camuflada. Nestes casos de estupro de mulheres honestas, o agressor era obrigado a pagar um dote para redimir a honra da família da vítima. A reforma da legislação em 1940 alterou o título do crime de estupro, passando a ser tratado como “Dos crimes contra os costumes”, apesar de refletir ininterruptamente contra a liberdade sexual, o estupro ainda era tido como um crime que feria os costumes e não contra a pessoa.
A nova legislação se preocupou, principalmente, com o respeito à dignidade da pessoa humana, pilar do Estado Democrático de Direito, pois não há dúvidas sobre a intensidade da violação que as vítimas dessa espécie de infração sofrem, observando-se a tentativa de combate às diversas espécies de violência sexual, não reguladas de forma eficaz pela legislação anterior (NUCCI, 2014, p. 2).
O estupro é considerado um crime material, e se consuma com a produção do resultado naturalístico, consistente na conjunção carnal ou outro ato libidinoso. Consuma-se, portanto, após o constrangimento da vítima. O elemento subjetivo deste crime é o dolo, consistente na vontade livre e consciente de constranger alguém.
Por ser um crime periodicamente praticado, estima-se que 527 mil pessoas são estupradas por ano no Brasil, em um cenário de que a cada 11 minutos uma destas é estuprada; e a mulher, mesmo representando metade da população, é o alvo majoritário da execução do delito, figurando 89% das vítimas (CERQUEIRA e CRUZ, 2014, p. 26).
Este crime pode ser praticado nos mais variados ambientes, incluindo a própria casa da vítima, o trabalho, o temido “beco escuro”, espaços e vias públicas, escolas e, inclusive, hospitais. Esta variação mostra-se também na imagem do estuprador, que está presente em todos os lugares e classes sociais. Geralmente, associamos esta imagem a pessoas desconhecidas e estranhas, no entanto, ordinariamente, o estuprador convive dentro do ambiente familiar, podendo ser o marido, o namorado, o tio, um vizinho e/ou um parentesco da família.
Por muito tempo a legislação entendia que o estupro se concretizava apenas nos casos de penetração vaginal comprovada e conjunção carnal certificadamente forçada. A lei n° 12.015 ampliou este conceito do estupro, introduzindo condutas e atos que não houvesse o consentimento da vítima, os chamados atos libidinosos, como a caricia e o toque. Outra mudança trazida pela redação da Lei 12.015 foi a de quem poderá ser sujeito passivo no crime de estupro, a palavra “mulher” foi substituída pela palavra “alguém”, entendendo que ambos os sexos se encaixam no papel de vítima.
Deve-se analisar a subjetividade da conduta, isto é, o dolo do agente, como por exemplo, os esbarrões e esfregões. Um exemplo clássico é a do indivíduo que acaba se esfregando em uma mulher dentro de um ônibus ou metrô superlotado. Não se devem generalizar os atos libidinosos, pois o indivíduo pode estar inocentemente espremido, pela quantidade de pessoas, causando assim o atrito (SANTOS, 2012, p. 4).
Vale também ressaltar que o parágrafo primeiro desta Lei trouxe o agravamento das situações de estupro que resultem em lesão corporal de natureza grave e também o agravamento dos casos em que a vítima for menor de 18 anos e maior de 14 anos, a pena agora varia entre 8 a 12 anos dependendo das agravantes, e se resultar em morte a pena irá variar entre 12 a 30 anos. A ação penal que anteriormente era promovida por ação privada, hoje, dependendo do crime sexual se tratar, deverá ser promovida por ação penal pública condicionada ou incondicionada, da mesma forma que foi acrescido pela redação desta lei o estupro de vulnerável. Através de tais mudanças, foi reconhecida a proteção estendida da vítima que antes não se via amparada pela Lei de estupro.
2.2 Violência sexual
A palavra violência tem sua origem do latim violentia (impetuosidade), e está ligada ao termo violare, que significa: potencia, força, descumprir, infligir. Em termos gerais ‘violência’ significa operar a agressividade de forma descomunal e intencional, contra uma pessoa ou grupo, resultando, em muitos dos casos, em morte, dano psicológico, ou qualquer tipo de ferimento.
Existem diversas formas de violência, subdividindo-se em: violência física, violência institucional, violência intrafamiliar, violência moral, violência patrimonial, violência psicológica e violência sexual. Cada uma delas é manifestada através de atos como violar, abusar, agredir, ofender, desrespeitar, entre outros.
Dentre tais formas de violência, a abordada neste estudo é a violência sexual, conceituada como qualquer ato sexual não consentido, obtido por meio de coação, fraude, assédio, constrangimento mediante violência grave ou ameaça, e outros mais.
A violência sexual, praticada sob forma de abuso (ato sexual entre um adulto e uma criança), estupro (conjunção carnal forçada por meio de violência), ou do atentado violento ao pudor (prática de ato libidinoso diverso da conjugação carnal mediante coerção), ocorre em todos os tipos de sociedade, e afeta pessoas de qualquer idade, classe social e etnia. Os autores da violência sexual podem ser conhecidos ou desconhecidos. No caso da violência contra mulheres, com muita frequência os autores são os parceiros (VILELA, 2006, p. 4)
As agressões sexuais contra a mulher são consideradas violência de gênero, uma arguição extrema de governança do homem a fim de caucionar a submissão da vítima a sua vontade, abordando a ideia de que o poder sexual está no homem, e que este poderá usá-lo sem antes ter um consentimento. Como fatores associados a este crime está o baixo índice de formação profissional, ter um ou mais parceiros íntimos, consumir bebida alcoólica, baixa escolaridade e uso de drogas, aumentando 18,9% à chance de uma mulher sofrer violação sexual.
A História de violência sexual contra as mulheres vai além do que se imagina, no período colonial, por exemplo, a esposa ficava submissa às regras do marido, que limitava seu modo de agir e portar, de acordo com seu grau social, hierarquia ou raça. Já a sociedade escravista da época, permitia o estupro das escravas negras pelos seus senhores do engenho. Ainda além, o Código Civil de 1916 definia a imagem do homem como “chefe da família” enquanto a mulher era classificada como “relativamente incapaz”.
Portanto a violência sofrida pelas mulheres sempre esteve presente desde o início da sociedade brasileira, ainda que existam os movimentos feministas, a mulher continua sendo julgada de acordo com os estereótipos e figuras do patriarcado. O ato sexual é pensado para os homens, de acordo com tais estereótipos, como forma de posse ou dominação, ficando a mulher a mercê e submissa a tal situação, dificilmente podendo expressar as suas verdadeiras vontades.
Em complementação com o Código Penal Brasileiro, a discrição na Lei Maria da Penha auxilia a evidenciar as vastas formas de violência sexual existentes, indo além do estupro, ocupando um papel importantíssimo visto que, muitas das vezes, os estereótipos relacionados aos papeis sexuais de cada gênero fazem com que uma violência desta gravidade não seja reconhecida gerando uma falsa expectativa sobre os comportamentos das pessoas.
3 CULTURA DO ESTUPRO
Primordialmente é valido entender sobre o significado da palavra cultura, que em geral, remetemos a algo positivo e verdadeiro. No entanto neste tema abordado, “cultura” significa comportamentos, não necessariamente bons, mas que estamos acostumados a aceitar, já que crescemos vivenciando e aprendendo a repeti-los, tendendo a julga-los como naturais. E é a partir desta conceituação que surge a problematização deste estudo.
O termo “Cultura do estupro” é utilizado desde os anos de 1970, época chamada de segunda onda feminista, nos Estados Unidos, com o objetivo de conscientizar a sociedade sobre a prevalência do estupro. Tal conceito assumia o papel de que o estupro seria normal e natural na cultura americana, e que as mulheres eram vistas como individuo inferior, objeto de propriedade e desejo do homem.
Outro fator importante acerca da cultura do estupro é entender o papel do poder e do sexo dentro da sociedade. Não se trata de confundir a atividade sexual consentida com a violação sexual, nada disso, mas é importante compreender como os dois se cruzam na concepção do estuprador, da vítima, do Estado e da sociedade em geral, mesmo que estes não se deem conta disso. Uma grande parte desse problema está na notável repressão sexual sofrida pela mulher, em contraposição ao incentivo sexual recebido pelos homens (FLOREANO, 2017).
A cultura do estupro também esteve ligada diretamente com a guerra, os homens eram incentivados a violentarem as mulheres sexualmente como forma de elevar sua moral perante a tropa. Desde muito cedo se ensina as mulheres a não andarem sozinhas e a se portarem adequadamente, como se o comportamento delas servissem para evitar tal atrocidade. Quando um modelo esperado do comportamento feminino é de não tomar iniciativa do ato sexual, ser discreta e seduzir o desejo do homem tornam-se duvidosas as alegações do estupro que ela sofreu, já que a resistência e a provocação trazem a ideia de que “ela queria” o ato sexual.
Desde o seu nascimento, os homens são ensinados a utilizarem a agressividade de maneira violenta, serem fortes e sempre corajosos, não chorar e nem sofrer, enquanto as mulheres são estimuladas a serem sempre delicadas, representando o papel de vítima, objeto de disputa ou conquista, são como scripts pré-determinados para cada gênero. A sociedade estimula que os homens hipervalorizem o sexo e sua maior responsabilidade social será de conquistar o maior número possível de mulheres, enquanto elas devem se manter o mais virginal possível.
Tal cultura do estupro moldada desde muito cedo, exige que os meninos exerçam uma sexualidade incontrolável, enquanto às meninas caberá se submeter aos desejos destes, portanto, a mulher sempre será culpabilizada pelo ato da violência que sofreu, ora pela roupa que vestia, ora pelo local que andara sozinha. Em um passado não distante a sociedade tolerava que o marido fosse sujeito ativo do crime de estupro contra sua mulher, pois era dever dos cônjuges manter relações sexuais.
A partir desta distinção de o que é para homem e o que é para mulher, regras culturais passam a reforçar os padrões comportamentais certos para cada indivíduo, distinguindo cada vez mais o papel de cada um na sociedade. As mulheres sempre representadas como coadjuvantes, seres inferiores, sempre elogiadas por sua aparência, orientadas a ficarem caladas e de pernas fechadas, enquanto os homens serão os protagonistas, heróis, guerreiros, a serem sempre campeões, aprendendo desde cedo a resolver suas pendencias com a violência.
Neste sentido de divisão dos papéis de gênero, esta cultura patriarcal facilita a opressão das mulheres, tal como na mídia televisiva que a sexualiza descomunalmente. Os corpos das mulheres surgem repentinamente objetificados, sujeitos a insinuações ultrajantes a sua sexualidade e moral, aparecendo de forma provocativa aos homens, como meio de lhes chamar atenção. São vistas e tratadas como chamariz, para promover a venda de produtos e serviços.
Se pensarmos nos últimos comerciais assistidos a figura da mulher aparece, na grande maioria, para agradar aos homens, exemplo as propagandas de cerveja, que utilizam os corpos de mulheres, quase sem roupa alguma, para prender a atenção, como se apenas o corpo, e toda a sexualidade envolvida, é que servisse para vender o produto. Esta representação se dá o nome de objetificação, reforçando a ideia de que a mulher seria uma coisa valorizada por seu uso, e não um ser humano como o homem. Esta opressão e objetificação feminina se baseiam nos valores machistas e patriarcais que visam à mulher como submissa.
Apesar da mudança no Código penal com relação aos crimes sexuais, dada pela Lei 12.015, o maior índice de vítimas continua sendo as mulheres com agressores homens, embora a luta seja grande, esta realidade ainda é resultado de uma enorme desigualdade dos gêneros, juntamente com a soma de uma sociedade machista que acredita que a mulher não deve se portar da mesma maneira que um homem, e que sua forma de agir, seus modos de vestimentas, e até mesmo os locais que frequenta contribuem para que seja violentada.
A cultura do estupro funciona como um mecanismo de controle informal, que mantém as mulheres reféns do medo da violência sexual, ao responsabilizar a vítima e propagar a ideia de que a forma mais eficaz de proteção seria não desviar das regras de comportamento impostas. Comportamento este que deve priorizar o recato, a negação da própria sexualidade, a passividade e a reclusão. Lembrando que 1/3 dos brasileiros acredita que “mulheres que não se dão ao respeito merecem ser estupradas”. Dessa forma, julgamentos são proferidos muito antes de a questão chegar às instituições, e o judiciário, complementarmente, se encarrega de realizar o controle formal, reproduzindo os mesmos estigmas e os consolidando através de atos processuais (REIS, 2020).
No dia 21 de maio do ano de 2016, uma jovem de 16 anos foi violentada sexualmente por mais de 30 homens na cidade do Rio de Janeiro, o estupro coletivo ocorreu por pelo menos duas vezes entre o sábado e o domingo, e além do mais os agressores também divulgaram fotos e vídeos da jovem nua e sendo violentada. Em fevereiro do ano de 2019 uma adolescente de 15 anos de idade teve seu útero dilacerado após ser abusada por 5 homens em Manaus, a vítima relatou que a caminho de sua escola foi convencida por um colega a ir até uma casa, e que ao chegar no local, se deparou com outros 4 rapazes prontos para estupra-la, os abusos duraram por mais de 4 horas.
Na cidade de Carlinda estado do Mato Grosso, uma criança de 6 anos de idade foi estuprada por seus pais e por vizinhos da família, a vítima relatou que seu próprio pai a colocava para assistir vídeos e cenas pornográficas para depois violenta-la sexualmente. No dia 10 de setembro de 2020 um padrasto foi preso no estado do Ceará acusado de estuprar sua enteada de 14 anos de idade. No ano de 2017 a escritora Clara Averbuck foi estuprada ao voltar de uma festa, dentro de um carro da empresa Uber pelo próprio motorista, ela afirmou que estava bêbada e que o agressor se aproveitou de tal situação para tocar suas partes intimas, Clara relatou também que já foi vítima de estupro aos 13 anos de idade.
Outro caso repugnante que se torna cada dia mais comum neste meio de violação sexual é a ocorrência de pais que estupram suas próprias filhas, regados por um sentimento de posse, pois em seu discernimento carregam a certeza de que elas o pertencem, assim como seus corpos. No ano de 2016 um pai praticou o estupro em sua filha de 9 anos, e alegou que a culpa seria toda da vítima, pois por dias ela teria o seduzido, ficando assim quase impossível de resistir.
Estes relatos são apenas uma breve parte de um vasto e extenso meio onde a cada 11 minutos uma mulher é vítima de estupro no Brasil, e em diversos destes casos nenhuma providência é tomada. Segundo estudos apenas 10% das vítimas denunciam, geralmente por carregarem um sentimento de culpa após o fato, além de ter sua vida destrinchada a procura de indícios que fundamentem o estupro sofrido, o senso comum tende a buscar uma responsabilidade na vítima por não ter sido capaz de evitar tal atrocidade.
4 A IMAGEM DA VITIMA PERFEITA
Quando somos comunicados de um roubo, furto, ou assalto, a tendência é acreditarmos tão facilmente na vítima do que duvidar dela, guiados por um sentimento de justiça, em tais casos de violação de propriedade, o que não acontece no caso do estupro. Não basta apenas a constatação do estupro, mas também a averiguação da reputação da vítima, e qual era o seu comportamento antes da pratica deste crime, é levado em consideração o seu histórico, tal qual como a sociedade julga a sua moral.
A estrutura social da imagem da vítima perfeita surge do princípio de que, a castidade da mulher é um selo de bons antecedentes familiares e bons costumes, bem como uma mulher com a vida sexual abundantemente ativa seja reconhecida como pessoa de “má índole” e escandalizada. A reputação serve como definição de quem realmente é inocente, e também representa a honra familiar, pois uma mulher “deflorada” torna-se, todavia, uma mulher perdida, assim para ser reconhecida como vítima, antes do acontecido, é preciso estar classificada e encaixada nos padrões de castidade que a sociedade impõe.
Existe um imaginário sobre a vítima de estupro, a qualidade da pessoa aumenta ou diminui o crime, assim como a sua condição, portanto um estupro cometido contra uma prostituta tem um peso quase nulo se comparado ao de uma “mulher de família” aos olhos da sociedade, a violência contra uma doméstica é menos grave se comparada a uma moça de condição social maior. Esta condição modula a escala de gravidade deste crime, rotulando quem realmente se encaixa no papel de vítima. Não basta sofrer a violência física, há a necessidade de comprovação da aceitação da sociedade, e se encaixar nos padrões definidos para ser uma vítima.
Outro fator relevante se dá no local de cometimento do crime, na maioria dos casos dentro do ambiente familiar. O lugar que a mulher deveria se sentir segura e protegida é também o lugar onde presumivelmente ela será vitimizada, sem ter a quem recorrer, já que a tendência é que a família oculte o crime para não “manchar” a índole do agressor perante as pessoas, e muita das vezes este é tido como a própria vítima do acontecido.
Não existe um perfil especifico para a vítima e também para o agressor dos crimes sexuais, mas é difícil acreditar que um homem “trabalhador” e “honesto” seria capaz de cometer tal barbárie. Na maioria das vezes a responsabilização por este crime recai sobre a mulher, tanto por seu comportamento, quanto por suas roupas, que segundo alegam, influenciam para instigar o agressor na prática deste delito, ou até mesmo incentiva-o a não controlar seu apetite sexual. Logo a vítima estuprada sofre duas vezes, primeiro por ter sua dignidade sexual violentada e segundo por ter que comprovar a sua inocência.
É comum buscar uma justificativa para este crime em algum feito da vítima, visto que em grande parte dos casos elas se calam, com medo do julgamento, e como não falam, facilitam para que seu agressor saia empune. Nos casos envolvendo embriagues ou uso de drogas pela vítima, os agressores utilizam destes pretextos para justificarem seus atos, não levando em consideração à baixa habilidade de tomada de decisão (devido ao uso de drogas e álcool), e, além disto, existem hoje substancias psicotrópicas usadas especialmente para se cometer abusos sexuais, já que a vítima, após consumi-las, posteriormente, não se lembrara de nada.
O comportamento esperado para ser uma vítima perfeita do crime de estupro, portanto, é que, a mulher forçada a ter relação sexual contra sua vontade, lute com seu agressor, saindo deste ato com hematomas que comprovem que ela realmente foi vítima do crime, que ela resistiu bravamente contra as investidas do agressor. O problema é que nem sempre são estas as circunstancias que envolvem o estupro, mas que estão no imaginário das pessoas. Uma mulher ou jovem que resistiu ao estupro bravamente cumpre, segundo a sociedade, corretamente o papel de vítima.
5 A ESTRUTURA DO ESTUPRADOR
Da mesma forma que a sociedade constrói qual tipo de mulher pode ou não ser considerada uma vítima, também é projetada uma ideia de quem se encaixa para ser um estuprador. Geralmente o estuprador comum é tido como um homem que possui distúrbios mentais, que seja louco e que use a força física para violentar sexualmente as mulheres. Esta imagem geralmente é retratada em filmes e novelas, e além de tudo, demonstram que os ataques ocorreram por falta de cuidado da vítima, por exemplo, por sair à noite sozinha, tornando-se um alvo fácil. Constrói-se então uma percepção de que tanto os comportamentos e gestos da vítima influenciam totalmente para que esta seja violentada, diminuindo a culpa exclusiva do agressor.
Portanto é propagada uma regra social de como a mulher deve se portar na presença de um homem, incluindo o comportamento mais adequado para manter sua integridade física e evitar agressões, porem esta regra social não se vale para os homens, mesmo julgando ser errado e repugnante que um homem vá até um beco escuro e estupre alguém, esta regra social não considera errado que este mesmo homem use de artifícios como embebedar alguém para depois cometer o ato sexual com este alguém que esta inconsciente.
Diante de crimes hediondos, é comum pensar que o criminoso “só pode ser doente”. É preciso enterrar o senso comum: não é necessário ter algum distúrbio mental para cometer um estupro ou assassinato cruel. Pessoas comuns são capazes de atos monstruosos. A maior parte dos agressores atendidos no PAV Alecrim cometeu violência sexual contra alguém da própria família. Os discursos dos estupradores têm muito em comum: eles costumam justificar seus atos acusando a vítima. “Ela estava de saia; sentou no meu colo [no caso de crianças]; ela me olhou de um jeito diferente; não disse ‘não’; ela estava sozinha num beco escuro” (MENEZES, 2019).
O senso comum trata a imagem do estuprador como a de um homem mal, com sérios problemas psiquiátricos facilmente percebíveis, e jamais associam a imagem de um vizinho, um amigo da família ou até mesmo um parentesco. Porem a maioria dos casos de estupro não são cometidos por maníacos que atacam a noite em uma rua abandonada e escura, mas são, geralmente, pessoas comuns tendendo a serem próximas da vida da vítima, não existindo um perfil especifico. Um estudo realizado pelo IPEA em 2014 mostra que um 24,1% dos agressores das crianças são os próprios pais ou padrastos. Além disto, não existe uma patologia para identificar o que leva alguém a cometer tal atrocidade, as justificativas variam entre não ver tal ato como violência sexual, feito como forma de punição por algum ato da vítima, ou até por não conseguirem controlar o seu instinto.
Segundo o relatório Estupro no Brasil, uma radiografia segundo os dados da saúde (Ipea, 2014), 24% dos agressores das crianças são os próprios pais ou padrastos e 32% são amigos ou conhecidos da vítima. O agressor desconhecido passa a configurar como principal autor do estupro à medida que a idade da vítima aumenta, respondendo por 61% dos casos de estupro de pessoa adulta (GALVÃO, 2019)
Uma das medidas tomadas a fim de prevenir que os acusados de crime de estupro não tenham sua identidade resguardada, permitindo o acesso a todos sobre tal informação, foi à aprovação da Lei 14.069/20 que criou o Cadastro Nacional de Pessoas Condenadas por Crime de Estupro. Tal cadastro deve conter as características físicas, fotos, DNA e dados digitais sobre os estupradores. Para os casos de condenado em liberdade condicional o cadastro deverá contar informações de sua moradia e de trabalho nos últimos três anos.
6 O CIRCULO DA PROSTITUIÇÃO
Chamada de “profissão mais antiga do mundo”, a prostituição teve sua origem do latim prostitutio que significa inicialmente em “se expor publicamente a algo”. Logo prostituição consiste em uma atividade utilizada para oferecer satisfação sexual a alguém em troca de remuneração, baseia-se também em valores culturais diferentes em cada região das diversas sociedades e se refere geralmente ao comercio sexual das mulheres para a satisfação de clientes masculinos.
A relação comercial que se estabelece com a prostituição é marcada por opressões e violências, regadas por um pensamento de que as prostitutas negam as normas e os padrões pré-estabelecidos usando seu corpo como mercadoria. Com a baixa legalização desta profissão as mulheres são expostas a diversos riscos impedindo o acesso ao direito básico como os de qualquer outra profissão. Vale ressaltar que nesta profissão não é vendido somente à relação sexual convencional, mas diversas praticas intimas a depender do que foi concordado.
A violência neste meio de prostituição é comum e constante, geralmente por que não se escolhe o cliente, e uma vez que seu corpo é transformado em objeto sexual, o abuso e a exploração se tornam normais, regados por uma justificativa de que o dinheiro pago por este trabalho garante o direito de satisfação de todos os seus desejos. Tais violências sofridas são muitas das vezes, invisibilizadas devido aos preconceitos que rodeiam tal profissão.
O cliente ao pagar por uma prostituta adquire o uso de seu corpo, pouco importando o quanto insultante seja os seus desejos, e o que realmente a mulher esteja sentindo, praticamente tratam a mulher como se ela não fosse um ser humano. Casos de violências sexuais, psicológicas e morais se tornam comuns nestes meios, justificados também pela falta de voz que as prostitutas tendem a ter devido ao seu trabalho, quem acreditaria que ela seria vítima de um estupro já que seu papel é a satisfação do desejo de seu cliente? Este fato de a sociedade fechar os olhos para as violências sofridas na prostituição também tem ligação à repressão do comportamento da mulher e a sua submissão, já que crescem sendo educadas a agradar o outro, ensinando cada vez mais as mulheres a renunciar sua autonomia.
7 CONCLUSÃO
Compreende-se então que mesmo com o passar dos tempos à sociedade resiste à abolição da dominação do homem sobre a mulher, tornando-se enraizada a cultura machista que abre portas para o estupro. A objetificação das mulheres só reforça a ideia de que seus corpos são valorizados pelo uso, resultante da realidade de desigualdade de gêneros ainda tão presente.
Em virtude dos fatos mencionados combater a cultura do estupro implica não somente em abolir a culpabilização da vítima, mas também em liquidar toda e qualquer atitude cotidiana que agrida a liberdade sexual e moral destas, baseando-se na ideia de que repartir parte da culpa do crime com a própria vítima automaticamente se atenua a ação do agressor, devendo desde o princípio ser o único e total culpado.
Por todos estes aspectos a dignidade sexual da mulher deve ser respeitada incondicionalmente, sem questionamentos e julgamentos, ela deve se sentir livre e segura, em qualquer lugar. É preciso romper a ideia que alimenta a cultura do estupro, dando espaço a liberdade igualitária de comportamentos. Ninguém tem autoridade sobre o corpo de outrem. O que uma mulher faz com seu corpo é uma decisão exclusiva e única dela, e deve ser respeitada.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Bacharelanda do Curso de Direito da Universidade Brasil
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Beatriz Ribeiro da. Cultura do estupro: prática e incitação à violência sexual contra as mulheres Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 maio 2021, 04:49. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56468/cultura-do-estupro-prtica-e-incitao-violncia-sexual-contra-as-mulheres. Acesso em: 23 dez 2024.
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