RESUMO: Este trabalho discute as restrições impostas ao acesso a cargos públicos advindas das inspeções médicas oficiais realizadas para aferição da aptidão física e mental do candidato classificado na fase de provas ou provas e títulos dos concursos públicos. O tema ganha maior relevância diante da repercussão geral reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, em 09 novembro de 2018, no Recurso Extraordinário nº 886.131, Minas Gerais (pendente de julgamento). Na referida demanda, a Suprema Corte decidirá se é constitucional a exigência de um período de carência após o término do tratamento médico para candidatos que tenham se recuperado da enfermidade grave. Proceder-se-á a análise dos limites jurídicos impostos às inspeções médicas oficiais em concursos públicos, com ênfase na discussão acerca da viabilidade, ou não, de estabelecimento de prazo de carência de cura em doenças graves.
Palavras-chave: Concurso público – inspeção médica oficial – restrições ao acesso aos cargos públicos – prazo de carência de cura - igualdade e dignidade da pessoa humana.
ABSTRACT: This paper aims to analyse the restrictions imposed on access to public employment arising from official medical inspections carried out to measure the physical and mental conditions of the qualyfied applicant at the exams, or exams and titles stage. The topic gains greater relevance due to general repercussion aknowledged by the Federal Supreme Court, on November 9, 2018, in Extraordinary Appeal No. 886.131, Minas Gerais (judgment pending). In the above-mentioned request, the Supreme Court will decide whether the requirement for a grace period after the end of medical treatment for applicants who have recovered from serious illness is constitutional or not. The legal limits imposed on official medical inspections when applying to a public employment will be analyzed emphasizing the viability of establishing a grace period for serious illness treatments.
Keywords: Public examination - official medical inspection - restrictions on access to public employment - grace period for treatment - equality and dignity of the human being.
Sumário: 1. Introdução; 2. Concurso Público; 3. Conceito; 4. Breve histórico; 5. Princípios regentes; 6. Inspeção médica oficial; 7. Conclusão; 8. Referências.
1. INTRODUÇÃO
O princípio da ampla acessibilidade aos cargos e empregos públicos assegura aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em Lei, assim como aos estrangeiros, na forma da Lei, ocupar cargos, empregos e funções públicas. Oportuniza-se o acesso aos cargos efetivos do serviço público a todos os cidadãos que demonstrarem interesse na carreira estatal e que cumprirem as exigências legais pertinentes.[1] Na experiência brasileira, o concurso público, ao longo do tempo, tem-se mostrado ferramenta apta a assegurar que provimento de cargos públicos ocorra de forma a haver observância à impessoalidade, legalidade e igualdade de condições entre os candidatos. Constitui mecanismo adequado à seleção daqueles mais capacitados à oportunidade ofertada.
A Constituição Federal estabelece que haverá concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em Lei, sendo que, para certos cargos públicos, há exigência de fases diversas, com provas objetivas, discursivas, orais e de títulos.[2] Ultrapassada a fase de provas seletivas, os candidatos são submetidos à inspeção médica oficial de saúde, que poderá considerá-los aptos ou inaptos para o exercício da atribuição pública.
Recentemente, em 09 de novembro de 2018, o Supremo Tribunal Federal, no RE nº 886.131/MG (pendente de julgamento), entendeu haver repercussão geral na discussão se a vedação à posse em cargo público de candidato que esteve acometido de doença grave, mas que não apresenta sintomas atuais de restrição laboral, viola o princípio do amplo acesso a cargos públicos.[3] Inquestionável é a necessidade de aferição da aptidão física e mental dos candidatos a cargos públicos, porém oportuna a reflexão acerca dos limites e parâmetros da avaliação médica, com vistas ao resguardo ao justo, isonômico e amplo acesso aos cargos públicos. Propõe-se, aqui, tecer breves considerações relativas à inspeção médica oficial, procurando confrontá-la com os princípios constitucionais pertinentes.
2. CONCURSO PÚBLICO
2.1. Conceito
A Constituição Federal prescreve, em seu art. 37, II, que a investidura em cargo público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em Lei de livre nomeação e exoneração. A necessidade de realização de concurso público para acesso a cargos e empregos públicos reveste-se de caráter ético e moralizador, visando assegurar a igualdade, impessoalidade e o mérito dos candidatos, de modo que tal exigência somente pode ser excepcionada nas restritas hipóteses previstas pela própria Constituição Federal.[4]
Embora haja Projetos de Lei em trâmite[5], inexiste norma em vigor que estabeleça regras gerais para a realização de concursos públicos na Administração Pública direta e indireta. Hely Lopes Meirelles define concurso público como: [...] meio técnico posto à disposição da Administração Pública para obter-se moralidade, eficiência e aperfeiçoamento do serviço público e, ao mesmo tempo, propiciar igual oportunidade a todos os interessados que atendam aos requisitos da lei, consoante determina o art. 37, II, da CF. Pelo concurso, afastam-se, pois, os ineptos e os apaniguados, que costumam abarrotar as repartições, num espetáculo degradante de protecionismo e falta de escrúpulos de políticos que se alçam e se mantém no poder leiloando empregos públicos.[6]
Por sua vez, José dos Santos Carvalho Filho conceitua concurso público como:
[...] procedimento administrativo que tem por fim aferir as aptidões pessoais e selecionar os melhores candidatos ao provimento de cargos e funções públicas. Na aferição pessoal, o Estado verifica a capacidade intelectual, física e psíquica de interessados em ocupar funções públicas e no aspecto seletivo são escolhidos aqueles que ultrapassam as barreiras opostas no procedimento, obedecidas sempre à ordem de classificação. Cuida-se, na verdade, do mais idôneo meio de recrutamento de servidores públicos[7]
É possível visualizar o concurso público como procedimento prático-jurídico, em que oportunidades para desempenho de cargos ou empregos públicos são objeto de disputa, a fim de se selecionar o melhor servidor, necessário à execução das atribuições do cargo.[8] Na lição de Reinaldo Moreira Bruno, “o concurso público constitui-se em uma regra moralizadora e assecuratória da isonomia e da impessoalidade no recrutamento dos candidatos aos cargos da Administração Pública.”[9]
Trata-se, pois, de importante instituto direcionado à escolha, de forma idônea e isonômica, dos candidatos mais capacitados e detentores de perfis compatíveis com desempenho de determinado cargo, constituindo ferramenta que democratiza o acesso ao serviço público e premia esforço pessoal.
2.2. Breve histórico
Segundo Cretella Júnior, o instituto concurso público “se desenvolveu, na França, a partir de Napoleão, depois de renhidas lutas contra seus opositores, beneficiados por outros sistemas”[10]. Canotilho, por sua vez, ensina que o Código Civil Napoleônico trouxe a semente do princípio da isonomia, ao prever a igualdade nas relações jurídicas e que tal tendência teria influência sobre a legislação administrativa a ser elaborada posteriormente[11]. No direito interno, relativamente à previsão constitucional do instituto, temos que a Constituição imperial de 1824 trouxe previsão atinente ao amplo acesso a todos cidadãos aos cargos público, sem, no entanto, especificar como se daria tal acesso.[12] A Constituição republicana de 1991 trouxe previsão semelhante ao texto da carta anterior, inovando ao exigir para acesso “condições de capacidade especial que a Lei instituir”.[13]
A Constituição de 1934 foi a primeira a prever a figura do concurso como forma de seleção para acesso os cargos públicos, conforme previsões constantes de seus artigos 168 e 169.[14] Mais a diante, a Constituição de 1937, em seu art. 156, e a Constituição de 1946, no art. 186, mantiveram redação análoga à de 1934, prevendo o amplo acesso aos cargos públicos e o concurso público como forma seleção. Com redação semelhante à Constituição atual, a Carta de 1967 previa, em seu artigo 95, que “Os cargos públicos são acessíveis a todos os brasileiros, preenchidos os requisitos que a lei estabelecer. §1ºA nomeação para cargo público exige aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos.”
Por fim, o texto constitucional de 1988, alterado pela EC nº 19 de 1998, tratou do procedimento do concurso público de maneira mais ampla e aprofundada, ao estabelecer princípios aplicáveis à seleção; acesso a estrangeiros aos cargos públicos na forma da Lei; prazo de validade de dois anos, prorrogáveis; dentre outras inovações.
2.3. Princípios regentes
Além dos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, previstos no caput do art. 37 da Constituição, a doutrina elenca outros princípios aplicáveis ao procedimento do concurso público como: a vinculação ao edital; ampla acessibilidade aos cargos públicos; competitividade; razoabilidade; proporcionalidade; igualdade. Acerca da imprescindibilidade da observância dos princípios para que o concurso configure um procedimento justo, ensinam Joaquim José Gomes Canotilho e Vital Moreira:
A regra constitucional do concurso consubstancia um verdadeiro direito a um procedimento justo de recrutamento, vinculado aos princípios constitucionais e legais (igualdade de condições e oportunidades para todos os candidatos, liberdade das candidaturas, divulgação atempada dos métodos e provas de selecção, bem como dos respectivos programas e sistemas de classificação, aplicação de métodos e critérios objectivos de avaliação, neutralidade na composição do júri, direito de recurso). O concurso assente num procedimento justo é também uma forma de recrutamento baseado no mérito, pois o concurso serve para comprovar competências. [15]
No tocante ao princípio da legalidade, especificamente em sua aplicação nos concursos públicos, tem-se que as exigências e critérios de seleção de candidatos não podem extrapolar o previsto formalmente em Lei, sob pena se vulnerar a igualdade e o amplo acesso aos cargos públicos. De acordo com as lições de Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo:
“A legalidade traduz a ideia de que a administração pública somente tem possibilidade de atuar quando exista lei que o determine (atuação vinculada) ou autorize (atuação discricionária), devendo obedecer estritamente ao estipulado na lei, ou, sendo discricionária a atuação, observar os termos, condições e limites autorizados na lei.”[16]
Pelo princípio da impessoalidade obsta-se o tratamento diferenciado a qualquer candidato que se submeta ao certame, devendo a Administração atuar de maneira objetiva visando alcançar o interesse público.
A moralidade, por sua vez, exige que os responsáveis pela seleção pautem sua atuação em comportamentos probos, justos, éticos e leais. Sobre a violação da moralidade, leciona Maria Sylvia Zanella Di Pietro:
“sempre que a matéria administrativa se verificar que o comportamento da Administração ou do administrado que com ela se relaciona juridicamente, embora em consonância com a lei, ofende a moral, os bons costumes as regras de boa administração, os princípios de justiça e de equidade, a idéia comum de honestidade, estará havendo ofensa ao princípio da moralidade administrativa.” [17]
A publicidade exige que os todos os atos atinentes ao procedimento do concurso sejam amplamente divulgados nos meios oficiais de forma a permitir o acesso aos candidatos e sociedade, possibilitando o acompanhamento do desenrolar das fases, e sobretudo, o controle de eventuais irregularidades. A visualização do princípio da eficiência nos concursos públicos, segundo João Batista Gomes Moreira, dá-se mediante equalização entre isonomia e a seleção dos melhores candidatos para ocupar os cargos ofertados[18]. O princípio da vinculação ao edital estabelece que a Administração está plenamente adstrita às regras estabelecidas no edital do concurso público, de forma a assegurar previsibilidade e controle social. Mencionado princípio fundamenta o aforismo de que “o edital é a Lei do concurso”.
O edital da seleção vincula tanto a Administração Pública quanto os candidatos, pelo que “todos os atos que regem o concurso público ligam-se e devem obediência ao edital que não só é o instrumento que convoca candidatos interessados em participar do certame como também contém os ditames que o regerão.”[19]
Por seu turno, o princípio do amplo acesso aos cargos públicos, presente nos textos constitucionais desde a constituição de 1824, assegura aos brasileiros e estrangeiros, na forma da Lei, a possibilidade de ocuparem a condição de servidores públicos. Aludido princípio trata-se de verdadeira concreção dos princípios isonomia e igualdade, conforme ensina Cármen Lúcia Antunes:
[...] é a busca da igualdade de oportunidades que o princípio da acessibilidade aos cargos, funções e empregos públicos propicia, permitindo às pessoas e obrigando o Estado a dar concretude ao princípio da igualdade jurídica. Não se destratam os cidadãos de uma República segundo conveniências, privilégios, preconceitos ou quaisquer elementos externos à qualificação que se lhes exige para o desempenho dos encargos de que se devem desincumbir no exercício que lhes seja especificado. Mais ainda, no Estado Democrático de Direito, há que se obrigar as entidades políticas a cuidar para que todos os cidadãos se dotem das condições materiais, intelectuais, psicológicas, políticas e sociais mínimas que os habilitem à disputa do cargo, da função e do emprego público.[20]
O postulado da competitividade exige que a Administração implemente a seleção sem qualquer distinção de tratamento ou favorecimento aos concorrentes, bem como não extrapole exigências legais e edilícias, zelando pela finalidade de selecionar para os quadros da Administração os candidatos com melhor desempenho nos testes aplicados.
Relativamente à proporcionalidade temos que o concurso não deve trazer exigências desarrazoadas ou fora de contexto legal, de maneira que todas as decisões e previsões devem se direcionar ao atingimento do interesse público. Trata-se de “importante princípio constitucional que limita a atuação e a discricionariedade dos poderes públicos e, em especial, veda que a Administração Pública aja com excesso ou valendo-se de atos inúteis, desvantajosos, desarrazoados e desproporcionais.”[21]
O princípio da razoabilidade, por sua vez, segundo o professor José dos Santos Carvalho Filho, é a qualidade de ser razoável, ou seja, “aquilo que situa dentro dos limites do aceitáveis, ainda que juízos de valor que provocaram a conduta possam dispor-se de forma um pouco diversa.”[22]
O postulado da segurança jurídica constitui o sentimento de confiança nos atos da Administração. Nas lições de José Afonso da Silva:
“a segurança jurídica consiste no ‘conjunto de condições que tornam possível às pessoas o conhecimento antecipado e reflexivo das consequências diretas de seus atos e de seus fatos à luz da liberdade reconhecida’. Uma importante condição da segurança jurídica está na relativa certeza que os indivíduos têm de que as relações realizadas sob o império de uma norma devem perdurar ainda quando tal norma seja substituída.”[23]
Evidentemente, por parte daqueles que se submetem ao concurso público, há expectativa de plena observância das regras legais e edilícias. As regras do jogo devem ser publicizadas com antecedência e fielmente cumpridas durante todo o tramitar da seleção.
Por fim, o princípio da igualdade assegura tratamento equivalente, isonômico, impessoal, entre todos os concorrentes aos cargos públicos a serem preenchidos, evitando, por consequência, favorecimentos ou discriminações arbitrárias e imorais.
3. INSPEÇÃO MÉDICA OFICIAL
Ultrapassa a fase de provas, os candidatos que lograram êxito nos testes aplicados são submetidos à inspeção médica oficial que objetiva aferir a aptidão física e mental para o adequado desempenho das atribuições do cargo público com vaga em aberto.
A Lei nº 8.112 de 1990, em seu art. 14, parágrafo único, prevê que a posse em cargo público dependerá de prévia inspeção médica oficial, de modo que apenas poderá ser empossado o candidato que for julgado apto física e mentalmente para o exercício do cargo.
O exame médico tem por finalidade detectar a presença de doenças ou limitações capazes de impedir ou prejudicar o pleno exercício profissional do servidor, já que incompatível com o interesse público o servidor com baixa produtividade, que se afaste por licenças médicas constantemente, ou, ainda, que se aposente precocemente por invalidez.
Embora o interesse preponderante da inspeção de saúde seja da Administração, o servidor também possui interesse no exame, afinal, por intermédio da avaliação médica admissional, poderá comprovar que adoeceu após o início do exercício do cargo ou que contraiu doença em virtude da função desempenhada.
Por vezes, as doenças consideradas como incompatíveis com os cargos são estabelecidas nos editais de abertura ou em ato publicado juntamente com o edital do certame. Há hipóteses, porém, de órgãos públicos que normatizam internamente o tema, estabelecendo parâmetros para aferição de enfermidades que consideram comprometedoras do bom exercício profissional. Neste último caso, o candidato somente saberá as doenças incapacitantes quando for chamado para a realização dos exames médicos.
A falta de previsão expressa do rol de doenças tidas por incompatíveis com o exercício do cargo no edital do concurso, ou, ao menos, em documento publicado juntamente com edital de abertura, vulnera a previsibilidade e segurança jurídica dos candidatos.
Mostra-se adequado que o candidato tenha ciência, desde o início do procedimento, das enfermidades desclassificatórias, possibilitando eventual questionamento, administrativo ou judicial, das doenças enumeradas e, até mesmo, permitir que o interessado possa optar por sequer se submeter à seleção, caso concorde com a previsão limitativa do edital.
A falta de transparência e publicidade prévia das ‘regras do jogo’ vulnera princípios da competitividade e igualdade. O Judiciário, quando chamado a se manifestar sobre o tema, tem, como regra, resguardado o direito do candidato considerado inapto ante à falta de previsão do rol de doenças no edital, fundamentando-se nos princípios da vinculação ao edital e isonomia entre os candidatos.[24]
As doenças previstas como incompatíveis com o exercício dos cargos devem guardar pertinência com as atribuições a serem desempenhadas pelo futuro servidor, obstando, de fato, o pleno exercício de suas atribuições. Sob o prisma da razoabilidade e proporcionalidade, não se pode exigir o mesmo vigor e aptidão física de um servidor que desempenhará função meramente burocrática com a aptidão exigida de um agente policial, por exemplo.
A eleição de doenças deve ser feita com extrema cautela e cientificidade, já que, não raro, o portador de certa enfermidade, ainda que de maior gravidade, possuirá grande sobrevida, não necessitará de afastamentos constantes e terá capacidade plena de exercer bem o trabalho ao longo dos anos. Cabe considerar que doenças de mesma natureza podem ter graus de limitação diversos, o que exige que a previsão no edital relativamente a enfermidade incompatível seja feita da maneira mais específica possível.
Arbítrios e falta de razoabilidade na estipulação do rol de doenças podem - e devem - ser objeto de controle pelo judiciário já que escapam do mérito administrativo ao vulnerar a própria finalidade pública do concurso público.[25] Para que haja resguardo do princípio concorrencial, as enfermidades elencadas como impeditivas devem, de forma induvidosa, impedir ou comprometer o bom desempenho das atribuições do cargo.
Destaca-se que eliminação do candidato por reprovação na inspeção médica deve ser plenamente motivada, sob pena de nulidade do ato desclassificatório. Sobre o tema, o Superior Tribunal de Justiça, no ROMS nº 28105 2008.02.39587-8, anulou a eliminação de candidata, classificada para cargo de zeladora e eliminada no exame médico por ser portadora de Hepatite B. Entendeu-se que não foi demonstrada, fundamentadamente, a incompatibilidade da enfermidade com o exercício do cargo. Restou consignado:
No atual cenário brasileiro, em que se busca dissipar toda e qualquer forma de discriminação, não se mostra razoável, sob nenhum ponto de vista, a exclusão de uma candidata em concurso público apenas pelo fato de estar ela acometida de uma moléstia que, a despeito de inspirar cuidados permanentes, não apresenta sintomas ou risco iminente de contaminação, a não ser pelas formas já declinadas, alheias às atividades normais do cargo.[26]
As doenças graves, como aquelas previstas no art. 186, 1º§, da Lei 8.112/90[27], caso não estejam curadas e assintomáticas quando da inspeção médica admissional, levarão, certamente, à declaração de inaptidão do candidato, já que capazes de ensejar a própria aposentadoria por invalidez do servidor.
Merece reflexão a possibilidade de contratação de candidato curado de doença grave, bem como a constitucionalidade da exigência de um período de carência para candidatos que tenham se recuperado da enfermidade. Como já mencionado anteriormente, a possibilidade de estabelecimento de prazo de cura fixo será enfrentada pelo STF no RE nº 886.131/MG, com repercussão geral reconhecida.
Na referida demanda judicial, candidata aprovada na fase de provas do concurso para o cargo de oficial judiciário do TJMG, possuía histórico de doença grave, neoplasia mamária, foi tratada cirurgicamente, por quimioterapia e radioterapia, estando, na data da inspeção médica, assintomática há dezoito meses. A candidata apresentou laudos particulares apontando sua aptidão para o desempenho do cargo.
A junta médica do TJMG julgou-a inapta com base no Manual de Perícias do TJMG que exigia que o término do tratamento se desse há pelo menos cinco anos (carência de cura).
Em primeira instância, a candidata teve sentença de procedência resguardando seu direito à posse no cargo, porém a sentença foi reformada pelo Tribunal de Justiça mineiro, que reputou adequada a inaptidão apontada pela perícia oficial.
Como consignado alhures, a demanda pende de julgamento no Supremo Tribunal Federal.
O candidato com histórico de doença grave, além da avaliação normal da aptidão física e mental para o pleno exercício do cargo ofertado, será examinado pela junta médica que apontará se o avaliado pode ser considerado curado no momento do exame.
A avaliação médica para constatar a cura de doença grave e possibilidade de sua recidiva, por se tratar de aferição de evento futuro e incerto, exige cuidado extremo e verificação individualizada, amparada sempre em parâmetros científicos e com motivação satisfatória.
A título de exemplo, imaginemos a situação de um candidato que teve cardiopatia grave, foi submetido com sucesso a cirurgia corretiva e, na data do exame médico, mostrou-se assintomático e totalmente capaz fisicamente para o exercício pleno das atribuições do cargo. Mencionado candidato, a princípio, possui direito de ser empossado no cargo público, de modo que somente se poderá cogitar em eliminação com fundamento de ‘possibilidade real de recidiva ou por não ser considerado curado’, caso tais causas tenham incontroverso amparo na literatura médica e na situação pessoal do avaliado, que apontem que a doença retornará brevemente.
A falta de motivação plena do prognóstico de recidiva da enfermidade torna nula a eliminação, porquanto a Administração não pode se pautar em especulações e presunções, sem parâmetro na ciência.
De acordo com os ensinamentos do professor português José Carlos Vieira de Andrade, temos a motivação como:
“uma declaração que reúne todas as (quaisquer) razões que o autor assuma como determinantes da decisão, sejam da decisão, sejam as que exprimam uma intenção justificadora do agir, demonstrando a ocorrência concreta dos pressupostos legais, sejam as que visem explicar o conteúdo escolhido a partir dessa adesão ao fim, manifestando a composição dos interesses considerados para adoptar a medida adequada à satisfação do interesse público no caso.[28]
O estabelecimento de período fixo de tempo de cura, para fins de considerar o candidato apto, embora, num primeiro olhar, possa parecer ferramenta de objetivação do atuar administrativo, viola sobremaneira o princípio da dignidade da pessoa humana, a isonomia entre os candidatos e o amplo acesso aos cargos públicos.
Ao negar a possibilidade de trabalho no serviço público, com base em tabela temporal, sem se atendar para a individualidade do candidato, procede-se à rejeição de pessoa que pode estar plenamente apta e possuir sobrevida laborativa normal.
É lícito que a Administração busque candidatos que tenham expectativa de vida laborativa regular, sem licenciamentos frequentes ou aposentadoria precoce, contudo, como forma de se assegurar respeito à dignidade da vida humana, não se pode objetivar, cega e completamente, o exame médico admissional. Afinal, indubitável que a saúde de cada pessoa tem inúmeras peculiaridades.
O risco de objetivação excessiva, ao se fixar prazo certo de ‘carência de cura’ igual para todos os candidatos, é desprezar que a mesma doença possui inúmeras nuances e variáveis, como por exemplo: i) o tempo que a enfermidade foi diagnosticada e iniciado o tratamento; ii) a idade do portador; iii) as condições de saúde pretéritas da pessoa; iv) a existência de comorbidades; v) qual tratamento foi utilizado pelo candidato; dentre outros tantos pontos.
Tratando-se de saúde humana - e não de ciências exatas - não haverá unanimidade científica de um prazo certo que possa ser usado seguramente para todas as pessoas para que se considere o enfermo curado de certa doença. A fixação de tempo exato de recuperação como critério isolado de aferição de aptidão é capaz de vulnerar a individualidade e dignidade da pessoa humana.
Cediço que a dignidade da pessoa humana não representa apenas uma garantia negativa que tutela a pessoa frente a ofensas e humilhações, mas, também, pressupõe uma perspectiva positiva de pleno desenvolvimento da personalidade que, por sua vez, demanda uma esfera de autodisponibilidade, garantindo as possibilidades de atuação próprias de cada homem, sem interferências externas.[29]
A aferição se o candidato com histórico de doença grave está curado ou tem prognóstico de recidiva deve ser feita, não com base em parâmetro temporal fixo e inafastável, mas, sim, mediante avaliação individualizada de saúde do candidato.
Consoante ensinamentos de Aristóteles “a igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, dando a cada um o que é seu.”[30] A igualdade não deve ser confundida com homogeneidade, já que cada pessoa tem individualidade própria a ser respeitada.[31]
Cabe registar que, obviamente, na inspeção médica, poderá concluir-se pela não comprovação de cura plena, bem como pela possibilidade real de recidiva, todavia tais conclusões devem ser alcançadas com base em literatura científica e fatores individuais de saúde de cada um dos avaliado.
Foge-se da razoabilidade e proporcionalidade diferenciar, com base em tabela temporal de cura, uma pessoa que está curada há cinco anos de um câncer de outra que está curada há quatro anos do mesmo câncer, pressupondo que esta terá recidiva da doença. Tal conduta despreza as reais condições de saúde do avaliado ao se apegar isoladamente ao fator temporal tempo de cura.
Ao malferir os princípios da razoabilidade, proporcionalidade, igualdade, amplo acesso aos cargos público e dignidade da pessoa humana, a exigência de ‘carência de cura’ como fundamento de eliminação de candidato em concurso público é medida que deve ser evitada pela Administração, sob pena de nulidade do ato desclassificatório.
4. CONCLUSÃO
O concurso público é o procedimento mais idôneo e democrático para escolha isonômica de servidores para o desempenho de determinada atribuição pública. Constitui ferramenta que dá concreção ao princípio do amplo acesso aos cargos públicos e premia o esforço pessoal.
Como forma de assegurar a finalidade para a qual foi criado, o concurso público deve conduzir-se com estrita observância dos princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência, vinculação ao edital, ampla acessibilidade aos cargos públicos, competitividade, razoabilidade, proporcionalidade e igualdade.
A realização de inspeção médica oficial dos candidatos que obtiveram êxito na fase de provas visa assegurar a contratação de candidato apto e capaz de exercer plenamente as atribuições do cargo. Almeja-se a contratação de profissionais que tenham expectativa de vida laborativa regular, sem licenciamentos frequentes ou aposentadoria precoce por invalidez.
As diretrizes e forma de realização da perícia médica, bem como as listas especificadas de doenças que impedem o exercício do cargo, devem ser amplamente divulgadas pelo órgão promotor da seleção por ocasião da publicação do edital de abertura, como forma de controle e de se garantir segurança aos candidatos que terão ciência das regras que guiarão a inspeção.
As enfermidades consideradas pela Administração como incompatíveis com o exercício de determinados cargos públicos devem guardar pertinência com as funções a serem desempenhadas pelo futuro servidor, de modo que somente as doenças que obstem, de fato, o pleno exercício das atribuições ensejem a desclassificação do candidato.
A eliminação por não aprovação na inspeção médica oficial deve ser robustamente motivada e publicizada, permitindo plena ciência pelo candidato das razões que importaram sua desclassificação e, consequentemente, a possibilidade de eventual questionamento do resultado.
Observou-se, com relação aos candidatos curados de doenças graves, que a exigência de um período temporal fixo de ‘carência de cura’ viola os princípios do amplo acesso aos cargos públicos, igualdade e dignidade da pessoa humana.
Não se questiona a possibilidade de eliminação do candidato pela não comprovação de cura plena ou pela possibilidade real de recidiva, porém tais conclusões devem ser alcançadas com base em literatura científica e aferição das condições individuais de saúde dos avaliados.
A saúde de cada pessoa possui inúmeras peculiaridades e nuances, portanto o estabelecimento de período temporal fixo de cura, para fins de considerar o candidato como apto ou inapto, não encontra respaldo constitucional por desprezar a individualidade do avaliado.
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MOTTA, Fabrício. (Coord.). Concurso público e constituição. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2005.
NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 4ª ed. São Paulo: Método, 2010.
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_____. Comentário Contextual à Constituição. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
[1] Mello, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 26ª ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 246.
[2] Art. 37. [...] II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração.
[3] BRASIL. Supremo Tribunal Federal - RE 886.131/MG – RG – Relator Roberto Barroso, Tribunal Pleno, julgado em 08/11/2018, DJe-244: 16/11/2018.
[4] CUNHA JÚNIOR, Dirley. Curso de Direito Administrativo. 9ª ed. Salvador: Juspodivm, 2010, p. 287.
[5] Como exemplos citemos os PL’s 252/2003 e PL 6004/2003, Autor Jorge Bornhausen - Senado Federal - PFL/SC.
[6] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 40ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 505.
[7] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo, 25ª ed. Revista, ampliada e atualizada. São Paulo: Atlas, 2012, p. 622.
[8] GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 16ª. ed. atualizada por Fabrício Motta. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 231.
[9] BRUNO, Reinaldo Moreira. Servidor público: doutrina e jurisprudência. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 79.
[10] CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de Direito Administrativo, 13ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p. 461.
[11] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 3ª ed. Coimbra. Almedina, 1998, p. 119.
[12] Art. 179 [...] XIV. Todo o cidadão pode ser admittido aos Cargos Publicos Civis, Politicos, ou Militares, sem outra differença, que não seja dos seus talentos, e virtudes.
[13] Art. 73 - Os cargos públicos civis ou militares são acessíveis a todos os brasileiros, observadas as condições de capacidade especial que a lei estatuir, sendo, porém, vedadas as acumulações remuneradas.
[14] Art 168 - Os cargos públicos são acessíveis a todos os brasileiros, sem distinção de sexo ou estado civil, observadas as condições que a lei estatuir.
Art 169 - Os funcionários públicos, depois de dois anos, quando nomeados em virtude de concurso de provas, e, em geral, depois de dez anos de efetivo exercício, só poderão ser destituídos em virtude de sentença judiciária ou mediante processo administrativo, regulado por lei, e, no qual lhes será assegurada plena defesa.
[15] CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa anotada. v. 1. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 661.
[16] PAULO, Vicente; ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Constitucional Descomplicado. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2008, p. 194.
[17] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 22ª ed. São Paulo: Saraiva. 2009, p. 77.
[18] MOREIRA, João Batista Gomes. Princípios constitucionais da legalidade e eficiência nos concursos públicos. In: MOTTA, Fabrício (Coord.). Concurso público e Constituição. Belo Horizonte: Fórum, 2005, p. 130.
[19] MOTTA, Fabrício. (Coord.). Concurso público e constituição. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2005, p. 143.
[20] ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Princípios constitucionais dos servidores públicos. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 149.
[21] CUNHA JÚNIOR, Dirley, Curso de Direito Administrativo. 9ª ed. Salvador: Juspodivm, 2010, p. 52.
[22] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo, 25ª ed. Revista, ampliada e atualizada. São Paulo: Atlas, 2012, p. 39.
[23] SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 133.
[24] A título exemplificativo, cite-se os julgados do TJDFT: Acórdão 1221479, Relator: Alfeu Machado, DJE: 18/12/2019 e Acórdão 1040988, Relator: Romulo de Araújo Mendes, DJE: 1/9/2017.
[25] Nesse Sentido, cite-se a decisão do TJDFT, Acórdão 1103735, Relator Des. Silva Lemos, 5ª Turma Cível, DJE: 26/6/2018, em que se assegurou a posse de candidato no concurso para agente de polícia civil do DF, inabilitado na inspeção de saúde por histórico de fratura no braço, ao fundamento de que a enfermidade não compromete o exercício do cargo.
[26] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. STJ – ROMS - RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA - 28105 2008.02.39587-8, Rel. Rogerio Schietti Cruz - Sexta Turma, DJE 22/04/2015.
[27] Art. 186. [...] § 1o Consideram-se doenças graves, contagiosas ou incuráveis, a que se refere o inciso I deste artigo, tuberculose ativa, alienação mental, esclerose múltipla, neoplasia maligna, cegueira posterior ao ingresso no serviço público, hanseníase, cardiopatia grave, doença de Parkinson, paralisia irreversível e incapacitante, espondiloartrose anquilosante, nefropatia grave, estados avançados do mal de Paget (osteíte deformante), Síndrome de Imunodeficiência Adquirida - AIDS, e outras que a lei indicar, com base na medicina especializada.
[28] ANDRADE, José Carlos Vieira de. O dever de fundamentação expressa de actos administrativos, Coimbra, Separata do volume XXXVII do Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1992, p. 22.
[29] PEREZ LUÑO. Antonio Enrique. Derechos humanos, estado de derecho y constitución. 10ª ed. Madrid: Tecnos, 2010, p. 324.
[30] SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 33ª Ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 213.
Mestrando em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB), na linha de pesquisa Constituição e Democracia. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG (2007). Pós-graduado em Direito Notarial pela Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro - UGF/RJ (2009). Membro do Grupo de Pesquisa em Política e Direito da Universidade de Brasília (UnB). Analista Judiciário, Área Judiciária, do Supremo Tribunal Federal (STF).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALVARENGA, Aislan Arley Pereira de. Restrições ao acesso a cargos públicos na fase de inspeção médica oficial Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 maio 2021, 04:32. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56494/restries-ao-acesso-a-cargos-pblicos-na-fase-de-inspeo-mdica-oficial. Acesso em: 23 dez 2024.
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