VANUZA PIRES DA COSTA
(orientadora)
RESUMO: É inegável que a tecnologia avança diariamente e que o uso da internet se tornou parte do cotidiano. Com o avanço tecnológico as pessoas constroem, ainda que inconscientemente, o seu patrimônio de bens virtuais com e sem valoração pecuniária. Por isso, a presente pesquisa bibliográfica, de método dedutivo, buscou analisar se o ordenamento jurídico brasileiro detém de disposições legais capazes de solucionar demandas relacionadas à herança digital. Para tanto, foi necessário primeiramente verificar o aumento de pessoas conectadas a internet, compreender conceitos essenciais ao direito sucessório, o que é a herança digital e quais as classificações dos bens que a integram, estudar a possibilidade de lesões aos direitos da personalidade e se existe insegurança jurídica como consequência à ausência de legislação específica. Ao final, percebeu-se que o testamento é o meio recomendado para que o proprietário manifeste sua vontade sobre o destino dos bens digitais, que é necessária a proteção póstuma dos direitos personalíssimos e por essa razão, não se deve admitir a transferência irrestrita dos bens digitais. Constatou-se, ainda, que o Judiciário nacional se posicionou divergentemente quando chamado a solucionar controvérsias semelhantes, assim, outra não poderia ser a conclusão senão pela existência de insegurança jurídica.
Palavras-chave: Herança Digital. Sucessão. Bens Digitais. Projetos de Lei. Insegurança Jurídica.
ABSTRACT: It is undeniable that technology advances daily and that the use of the internet has become part of everyday life. With technological advancement, people build, even unconsciously, their patrimony of virtual goods with and without monetary value. Therefore, the present bibliographic research, using a deductive method, sought to analyze if the Brazilian legal system has legal provisions capable of solving demands related to digital heritage. To do so, it was necessary first to verify the increase of people connected to the internet, understand concepts essential to inheritance law, what is the digital inheritance and what are the classifications of the assets that compose it, study the possibility of injuries to personality rights and if there is legal uncertainty as a consequence of the absence of specific legislation. In the end, it was realized that the testament is the recommended mean for the owner to express his will on the destination of digital assets, that posthumous protection of personal rights is necessary and for that reason, the unrestricted transfer of digital assets should not be allowed. It was also found that the national judiciary was positioned differently when called upon to solve similar disputes, thus, the conclusion could not be anything other than the existence of legal uncertainty.
Keywords: Digital Heritage. Sucession. Digital Goods. Law Projects. Legal Uncertainty.
SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Internet: Do Primórdio À Convergência Em Aldeia Global. 3 Direito Das Sucessões. 3.1 Dos Conceitos Essenciais Do Direito Sucessório: 3.1.1 Da Classificação Da Sucessão, Da Herança E Do Legado; 3.1.2 Do Princípio Da Saisine. 4 Eminente Necessidade De Regulamentação Da Herança Digital No Ordenamento Jurídico Brasileiro. 4.1 Patrimônio Virtual. 4.2 Proteção Dos Direitos Da Personalidade vs Garantia Ao Direito De Herança. 4.3 Como Podem Os Bens Digitais Ser Herdados? 4.4 Projetos De Lei Em Trâmite. 4.5 Insegurança Jurídica Frente Aos Casos Levados Ao Poder Judiciário Brasileiro. 5 Considerações Finais. Referências.
Apesar de possuir a árdua missão de acompanhar as mudanças sociais, o Direito nem sempre obtém êxito. Em se tratando das evoluções que dizem respeito ao meio digital, esse atraso se mostra com maior clareza, pois a velocidade com que as transformações tecnológicas acontecem dificulta que o Poder Legislativo consiga acompanhar o ritmo das inovações e legisle sobre as mesmas.
Com toda essa imersão social ao espaço cibernético, muitas mensagens de texto, fotos, vídeos, áudios, arquivos contendo informações pessoais ou mesmo profissionais, compra e venda de bens e serviços acabam por formar, mesmo que sem a consciência imediata da pessoa, o seu patrimônio digital composto por bens passíveis de valoração econômica ou não.
Assim, com o evento morte e o início das discussões acerca da herança, não se pode mais apenas preocupar-se com a herança composta pelo conjunto de direitos e obrigações tangíveis que estavam vinculados à personalidade do falecido, pois há também o patrimônio construído no meio virtual.
Certo é que nada importa para o Direito das Sucessões se o morto construiu em vida um volumoso capital de bens palpáveis ou não. Somente interessa o falecimento da pessoa que deixa relações jurídicas patrimoniais, pois, o que foi construído, respeitando os dispositivos legais previstos no Código Civil, será transferido para os herdeiros.
Desse modo, diante da inegável imersão da sociedade para o espaço digital e a importância do estudo jurídico voltado para preencher as lacunas que surgem conforme progride a sociedade, visando assim, atingir o escopo de um ordenamento jurídico que acompanhe o desenvolvimento social, se fez necessária a realização deste trabalho.
Através de metodologia exclusivamente bibliográfica, observou-se a escassez de obras doutrinárias sobre o tema, o que serve para demonstrar que se trata de um assunto relevante e pouco abordado pelos juristas. De tal modo, reforça-se o ideal de contribuir com o estudo de outros acadêmicos e demais pessoas que se interessem sobre o tema da herança digital, e que queiram ter a noção, ainda que breve, do que poderá ocorrer com seus bens digitais após a sua morte.
Em razão do alicerce exclusivamente bibliográfico, foi efetuada a pesquisa em doutrinas nacionais, legislação aplicada ao tema e jurisprudência pátria atualizada. Os meios de busca necessários para realização deste trabalho foram doutrinas físicas e digitais, bem como, sites que disponibilizam conteúdos jurídicos. É preciso ainda pontuar que este possui técnica de análise qualitativa, vez que se baseia na coleta e confrontação de dados informativos.
No que concerne ao método de pesquisa, neste foi utilizado o método dedutivo, posto que se trata de um estudo realizado a partir de princípios e ensinamentos do direito sucessório, visando alcançar a conclusão da necessária legislação sobre a herança digital.
O problema que se pretende elucidar nesta pesquisa é se o ordenamento jurídico brasileiro atende à demanda criada pela herança digital. Desse modo, o estudo visa esclarecer se o direito de herdar, garantido constitucionalmente, contempla todos os bens digitais que compõem o patrimônio virtual do falecido e como pode ser realizada a transmissão dos bens exclusivamente digitais após a morte de seu proprietário.
Para tanto, este trabalho é dividido em três sessões. Na primeira sessão aborda-se o contexto histórico do surgimento da internet, são apresentados dados que comprovam o crescente uso da rede mundial de computadores pelos brasileiros e como o aumento de pessoas conectadas resulta na denominada aldeia global.
Na segunda sessão, são abordadas algumas definições de suma importância para a compreensão do direito sucessório. Dessa maneira, há explanação sobre a morte para o direito civil brasileiro, as espécies de sucessão, o entendimento sobre os institutos jurídicos da herança e do legado, bem como apontamentos acerca do princípio da saisine.
A terceira sessão se volta a atingir os objetivos específicos traçados para este, quais sejam: entender o que são bens digitais, quais as suas classificações, o que é a herança digital, qual o destino dos bens digitais após a morte de seu proprietário, como o patrimônio virtual pode ser herdado e qual o impacto que a transmissão da herança digital de maneira irrestrita pode acarretar aos direitos da personalidade.
Além disso, na terceira sessão também há análise dos projetos de lei sobre a herança digital que atualmente estão tramitando, bem como demonstração da insegurança existente no ordenamento jurídico pátrio diante da ausência de legislação regulamentadora sobre o tema. Tal insegurança é demonstrada através das decisões proferidas em casos concretos que foram levados ao Poder Judiciário.
Precipuamente faz-se necessário tratar acerca do desenvolvimento histórico da internet, a grande rede que atualmente conecta milhares de pessoas. Dos ensinamentos da doutrinadora Pinheiro (2016) extrai-se que a origem da internet se deu em meados dos anos 60, ápice da Guerra Fria, sendo criada para atender aos anseios de militares americanos e denominada como “Arpanet”.
A criação norte-americana, a partir dos ensinamentos de Pinheiro (2016), possuía como escopo a proteção de informações, posto que, tratava-se de um sistema que interligava, de maneira descentralizada, redes dos computadores militares. Assim, na ocorrência de ataque inimigo às bases americanas, os dados não seriam perdidos, pois não se encontravam armazenados em um local físico passível de destruição.
Em que pese à rede descentralizada de transmissão de dados tenha sido criada na década de 60, Teixeira (2020) pontua que apenas no ano de 1980 é que a tecnologia passa dos fins estritamente militares, à rotina dos civis em universidades americanas, possibilitando a troca de conhecimento entre professores e estudantes. A propósito, leciona Teixeira (2020) que no final de 1980 é que a tecnologia expandiu-se, de maneira a estabelecer comunicação entre os computadores presentes nas universidades e os laboratórios de pesquisas, o que tornou possível a troca de informações mediante um sistema de protocolos.
A partir do protocolo, internet protocol, ou simplesmente IP, como é popularmente denominado, é que surge a definição da internet. Teixeira (2020) explica que, os IP’s interligados entre milhares de dispositivos tecnológicos espalhados pelo mundo, resulta em uma rede que possibilita a transmissão de dados, sons e imagens de forma rápida.
Não obstante a definição de internet supramencionada, a especialista em direito digital, Pinheiro (2016), catequiza que o ano de 1987 foi o grande marco dessa tecnologia, diante da possibilidade de utilizá-la comercialmente, quando então a interligação de milhares de dispositivos espalhados por todo o mundo recebeu o nome de internet.
Hodiernamente a internet é precisamente caracterizada por sua agilidade. Maneira simples e eficaz de constatar a veracidade desta característica é recordar que houve uma época em que as pessoas esperavam dias e por vezes até meses para comunicar-se através de cartas, comunicação esta que, nos dias atuais, é feita em segundos por mensagens em aplicativos.
Essencial ainda pontuar neste contexto histórico o que ensina Cadamuro (2019). De acordo com o autor, a história da internet no Brasil apenas teve início em 1988, quando pesquisadores, alunos e professores tiveram contato com a rede de computadores através de e-mails e bases de dados de universidades estrangeiras.
Nesse caminho à convergência, é nítido o fato de que com o passar dos dias mais pessoas se conectam a internet, sendo cada vez mais frequente encontrar a mencionada conexão não só em áreas urbanas, mas também em zonas rurais, o que nos leva a necessidade de observar os resultados de pesquisa realizada pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br)
A supracitada pesquisa monitora a adoção das tecnologias da informação e comunicação (TIC) no Brasil. Através da pesquisa TIC Domicílios (2019), alcançou-se a conclusão de que três a cada quatro brasileiros utilizam internet, o que equivale a 134 milhões de pessoas conectadas no Brasil.
De acordo com a pesquisa TIC Domicílios (2019) supramencionada, mais da metade da população que vive em zona rural no Brasil declarou ter acesso à rede mundial de computadores. Além disso, a TIC Domicílios ainda constatou que a internet está presente em 71% dos domicílios no território nacional e que dentre as principais atividades realizadas online, 39% dos usuários de internet efetuaram compras de produtos e serviços virtualmente no período de doze meses anteriores à pesquisa.
O caminho da convergência da sociedade para resultar em uma aldeia global, segundo as orientações de Pinheiro (2016), tem início com a evolução da transmissão de simples pacotes de dados para compartilhamento de conteúdo multimídia, áudio e vídeo, o que passa a exigir equipamentos atualizados e redes que gozem de maior velocidade.
No entanto, segundo a autora, o caminho para a convergência salta das conexões por computadores para aparelhos de TV e celulares, de modo a abranger interatividade com toda comunidade móvel, sendo que alcançaríamos a convergência total quando chips conversarem entre si, de modo que um eletrodoméstico conectado a rede possa, por exemplo, constatar a iminência de um defeito e contatar por si próprio à assistência técnica.
A ideia central da aldeia global pautada na interatividade entre pessoas dos mais diversos locais do mundo é facilmente percebida atualmente. Pessoas interligadas tecnologicamente tem acesso rapidamente aos mais diversos acontecimentos mundiais independentemente dos quilômetros de distância que separam quem tem acesso à informação e quem presta a informação estando no local onde ocorrera o fato.
Cadamuro (2019) ensina em sua obra que a grande maioria dos estudos realizados com foco no uso da tecnologia resulta em constatar que as pessoas têm aumentado o tempo em que passam na internet, em especial, nas redes sociais. Bem verdade que, as redes sociais conectam milhares de pessoas que sequer se conhecem pessoalmente, mas que compartilham as mais variadas informações.
Considerando o caminho histórico do surgimento e desenvolvimento da internet e que, como ensina Zampier (2021) “o ser atual é hiperconectado, sendo que muitos vivem mais tempo diante de seus gadgets do que do mundo concreto que os cercam”, surge a importância do estudo jurídico voltado à destinação post mortem do acervo digital, de modo preencher as lacunas existentes causadoras da insegurança jurídica.
Nesta linha, Leal (2020) pontua que a maneira como o uso da internet se dá atualmente, sem sombra de dúvidas, reflete em discussões jurídicas extremamente relevantes, pois se concretizam tanto na esfera patrimonial quanto na esfera existencial, sendo que essa última pode acarretar em ferimentos aos direitos da personalidade do morto e de terceiros, assunto este que adiante será abordado.
Na esfera civilista, o Código Civil de 2002 regula a partir do artigo 1.784 as disposições concernentes ao direito das sucessões. A priori, é importante esclarecer que a palavra sucessão em sentido lato, de acordo com Gonçalves (2021), significa o ato em que uma pessoa passa a ocupar lugar que pertencia a outra, de modo que a primeira substitui a titularidade dos bens da última.
Entretanto, strictu sensu, o mencionado doutrinador leciona que no direito das sucessões o vocábulo sucessão designa unicamente a transmissão do patrimônio, tanto ativo quanto passivo, de uma pessoa para outrem em razão do evento morte. Esse entendimento também é partilhado por Venosa (2020, p. 1.537) ao ensinar que juridicamente, “está-se tratando de um campo específico do direito privado: a transmissão de bens, direitos e obrigações em razão da morte”.
Gagliano e Filho (2020) definem o direito das sucessões como o especial ramo do direito civil que dispõe acerca da transferência de patrimônio em razão da morte de uma pessoa. Essa mudança de titularidade quanto aos bens é o objeto de estudo desta esfera civilista.
Portando, para o estudo que ora se faz deste ramo do direito, interessa apenas a transmissão patrimonial do de cujus, ou simplesmente autor da herança, a seus herdeiros e legatários. Em que pese seja possível haver sucessão inter vivos, cuida-se aqui, exclusivamente da sucessão mortis causa.
No presente contexto, Cadamuro (2019) destaca que o ordenamento jurídico nacional adota a consideração presente na Resolução nº 1.480/1997 do Conselho Federal de Medicina, a qual estabelece que a morte ocorre quando é constatada a total e irreversível cessação das funções cerebrais.
Cumpre ainda pontuar que a compreensão de que com o evento morte o patrimônio do autor da herança é transmitido de maneira automática aos herdeiros, entendimento advindo da expressão “desde logo” presente na literalidade do artigo 1.784 do CC, é entendimento consolidado. Assim, Tartuce (2021, p. 17) define o direito das sucessões como sendo:
“[...] o ramo do Direito Civil que tem como conteúdo as transmissões de direitos e deveres de uma pessoa a outra, diante do falecimento da primeira, seja por disposição de última vontade, seja por determinação da lei, que acaba por presumir a vontade do falecido”. Grifo nosso.
Ademais, Tartuce (2021) ainda erude que a base do direito sucessório encontra-se prevista no direito de propriedade e na função social da mesma, tendo por pilar o texto constitucional do artigo 5º, incisos XXII e XXIII. Tal entendimento é o que também ministra Gomes (2019) ao afirmar em sua obra que a sucessão é modo de aquisição da propriedade.
Ao estudar o direito das sucessões, assim como os outros ramos do direito, esse possui conceitos próprios os quais são de essencial compreensão antes de adentrar ao estudo da herança digital e entender porque existe a necessidade imperiosa de que seja legislada. Por tamanha relevância, adiante serão abordados os conceitos essenciais para o direito das sucessões.
Lôbo (2021) explica que no direito brasileiro existem dois tipos de sucessão em razão da morte, quais sejam: a sucessão legítima e a sucessão testamentária. O mencionado autor educa que a sucessão legítima, como o próprio o nome já remete ao entendimento, é a que se encontra definida pela própria lei, diferentemente da sucessão testamentária, que decorre da manifestação da vontade do autor da herança, ou seja, do de cujus.
Ainda quanto a classificação da sucessão hereditária, Gagliano e Filho (2020) orientam que, a sucessão hereditária legítima encontra-se disciplinada no Código Civil Brasileiro, nos artigos 1.829 a 1.856. Por sua vez, as disposições acerca da sucessão hereditária testamentária encontram-se previstas nos artigos 1.857 a 1.990 da mesma codificação legal.
Gagliano e Filho (2020, p. 43) definem a sucessão testamentária da seguinte maneira: “aquela em que a transmissibilidade da herança é disciplinada por um ato jurídico negocial, especial e solene, denominado testamento”. Nessa espécie de sucessão, o testador goza da sua autonomia e liberdade para escolher não só o sucessor, mas a quantidade que o escolhido herdará, desde que respeitados os preceitos dos artigos legais supramencionados.
A herança é composta dos bens móveis e imóveis, das obrigações e dos direitos que não se extinguiram quando se findou o ser humano, ou como bem sintetiza Gomes (2019, p. 6) “herança é o patrimônio do defunto”. O legado, por sua vez, corresponde a um bem ou um conjunto de bens que integram a herança, mas que serão certos e determinados através do testamento e destinados ao legatário que sucede a título singular, enquanto que o herdeiro é quem recebe a integralidade dos bens da herança e por isso, sucede a título universal.
Arremata Tartuce (2021) ao doutrinar que o artigo 1.788 do CC leva ao seguinte raciocínio jurídico: primeiro há de se investigar se existe disposição de última vontade feita pelo morto, bem como se essa é válida e eficaz. Caso não haja testamento, ou sendo o mesmo ineficaz ou nulo, a sucessão legítima toma espaço de modo a presumir a vontade do morto.
É possível concluir que a sucessão legítima impera no ordenamento jurídico pátrio, o que reforça ainda mais a compreensão de que é necessário haver introdução de disposições que tratem do destino do patrimônio digital do defunto, pois como ensina Gagliano e Filho (2020), a cultura brasileira não abrange preocupação com o destino do patrimônio em momento post mortem a ponto de proceder à confecção de testamento.
Uma particularidade do direito das sucessões que precisa ser compreendida é o momento em que se transmite a herança, o que juridicamente se representa pelo princípio da saisine. Em ambas as formas de sucessão que foram expostas anteriormente, o fundamento da transmissão da herança encontra-se disposto no artigo 1.784 do Código Civil e é entendimento pacífico no direito brasileiro.
O artigo citado dispõe que no momento da abertura da sucessão, a herança se transmite desde logo aos herdeiros, sejam legítimos ou testamentários. Gonçalves (2021) explica que o entendimento do princípio da saisine, é que o próprio de cujus transmite ao sucessor tanto a propriedade quanto a posse da herança.
O jurista Venosa (2020) traz em sua obra a etimologia da palavra saisine provinda do verbo saisir que significa agarrar, prender, apoderar-se. De acordo com Venosa, o princípio em tela possui origem germânica e também se faz presente no direito francês. Não se trata, portanto, de instituto que possui fonte romana e que significa apreensão autorizada da posse.
Bem esclarece Lôbo (2021) que o direito civil brasileiro se diferencia de outros sistemas jurídicos quando admite que a transmissão da herança ocorre automaticamente, ou seja, sem que haja a necessidade de aceitação dos herdeiros. Desse modo, desde o exato momento em que ocorre o falecimento, ainda que o herdeiro sequer tenha conhecimento do ocorrido, por força de lei, aquilo que herdou ingressa de modo automático em seu patrimônio.
Por fim, tendo em vista que a morte é o marco para transmitir a herança, é preciso verificar os valores dos bens que compõe o espólio para delimitar qual o montante a ser partilhável pelos herdeiros, bem como o imposto incidente na transmissão causa mortis, assim ensina Gonçalves (2021) em consonância com o disposto na Súmula 112 do STF. Diante das informações já apresentadas, é chegado o momento de ingressar ao estudo da herança de bens digitais.
É inegável que os avanços tecnológicos, principalmente no que diz respeito a internet, tem acarretado diversas mudanças na vida das pessoas. Se antes, era comum herdar livros, diários e álbuns de fotos, hoje é preciso se preocupar com o patrimônio que se constrói dia a dia na rede mundial de computadores sem que nem mesmo se tenha a consciência imediata disso.
Cadamuro (2019) afirma que cada pessoa cria e coleciona rico conjunto de bens digitais e que provavelmente pelo fato de tais bens não ocuparem espaço físico essa construção de acervo sequer é notada por quem o constrói e o aumenta a cada dia. O autor que ora se cita ainda menciona o estudo realizado pela empresa do ramo tecnológico McAfee, no qual foi observado que os brasileiros atribuem ao seu patrimônio digital o valor de R$ 200.000,00 (duzentos mil reais).
É primordial para entender o que vem a ser o patrimônio virtual, analisar o que dizem alguns autores sobre este tema. Inicialmente, bens digitais são definidos por Lara (2016) como instruções binárias capazes de serem processadas em dispositivos eletrônicos, como os computadores, tablets e os próprios smartphones.
Em sua obra, Zampier (2021) destrincha a categoria de bens digitais em três espécies. Os bens tecnodigitais existenciais que são os compostos de informações sem fim econômico, tais como as fotos, vídeos e mensagens de texto. O bem digital patrimonial sendo aquele que agrega utilidade para o proprietário e é capaz de gerar repercussão econômica e o bem digital patrimonial-existencial que é o dotado de características tanto do bem existencial quanto do bem patrimonial, de modo a situar-se entre as duas espécies.
Zampier (2021) ainda alerta que os bens existenciais, apesar de não deterem fim econômico, podem vir a precisar da segurança conferida aos direitos da personalidade. Esse entendimento também é abordado por Leal (2020) que define os bens digitais existenciais como nada mais do que os próprios direitos da personalidade que precisarão de proteção pelo ordenamento jurídico quando se encontrem dispostos na internet, proteção esta que adiante será mais bem explicada.
Partindo do entendimento sobre o conceito de herança, abordado no capitulo anterior, como sendo o conjunto de bens e obrigações daquele que morreu e tendo em vista a classificação dos bens digitais, é chegado o momento de compreender o conceito de herança digital. Esta, de acordo com o entendimento de Cadamuro (2019), é o montante de conteúdos imateriais, intangíveis e incorpóreos que pertenciam ao falecido e que se encontram localizados em ambiente virtual.
Parte dos estudiosos entende que apenas os bens passíveis de valoração econômica, ou seja, os bens digitais patrimoniais poderão ser transferidos a título de herança para os herdeiros e legatários, tendo em vista que os denominados bens digitais existenciais, por estarem diretamente ligados aos direitos da personalidade, se herdados, acarretaria em lesões aos mencionados direitos, tanto do morto quanto à personalidade de terceiros.
Por este motivo, adiante será abordada a discussão que permeia o assunto da herança digital e sua transmissão. Afinal, o direito de herdar, garantido constitucionalmente, contempla todos os bens digitais que compõem o patrimônio virtual do falecido? Há que se falar em direitos da personalidade após a morte?
O estudo da herança digital, sua possibilidade de transmissão, bem como a insegurança jurídica que se forma pela ausência de regulamentação legal, esbarra na proteção dos direitos da personalidade que, por sua vez, são os direitos ligados aos seres humanos e que possuem forte direcionamento ao respeito da dignidade humana garantida constitucionalmente no art. 1º, inciso III.
Pela concepção naturalista, como dispõe Bittar (2014), os direitos da personalidade são direitos inatos à pessoa humana e que são dotados de própria proteção. Ainda segundo esse autor, cabe ao Estado apenas o reconhecimento e a previsão desses direitos, seja a nível constitucional ou ordinário. Tartuce (2021, p. 173) bem sintetiza ao afirmar que “os direitos da personalidade são aqueles inerentes à pessoa e à sua dignidade”.
Dentre as características dos direitos da personalidade, Gagliano e Filho (2020) abordam a vitaliciedade, pela qual, ante o entendimento de que os direitos da personalidade são inatos à pessoa humana, quando esta se finda, nos termos do art. 6º do CC, com o evento morte, em regra também desaparecem os direitos da personalidade.
No entanto, é importante pontuar que, alguns desses direitos são passíveis de proteção mesmo após a morte, como no caso de lesão a honra e a imagem, diante da qual, os legitimados previstos no parágrafo único do art. 12 do CC poderão exigir que cesse a ameaça, ou ainda pleitear reparação pela lesão, como bem dispõe o art. 5º, X da Constituição Federal seja a título de dano moral ou material em caso de violação dos direitos a intimidade, vida privada, honra e imagem.
Doutrinadores como Gonçalves (2021) e Venosa (2020) defendem o entendimento de que a proteção aos direitos da personalidade se estende mesmo após a morte do titular, sendo necessário observar este entendimento ao tratar da herança digital, pois como ensina Tartuce (2021), o morto detém de resquícios da personalidade civil o que, como acima foi pontuado, pode acarretar em lesão e, por conseguinte, o dever de reparação.
Para Cadamuro (2019), é clara a tutela póstuma presente no ordenamento jurídico pátrio quando se trata de direitos da personalidade, sendo perfeitamente possível a indenização em razão de ofensas aos direitos do falecido. Como bem pontua o autor, essa indenização será única, independentemente de quantos sejam os herdeiros do morto, de modo a beneficiar todos os outros legitimados.
Dessa maneira, surge então o debate no qual alguns juristas entendem que a garantia à herança prevista no inciso XXX do art. 5º da CF/88, somente corresponde aos bens digitais patrimoniais, ou seja, aqueles que possuem valoração econômica, salvo em caso de manifestação de última vontade realizada pelo morto através de testamento.
Leal (2020) destaca que a tutela do direito da privacidade e dos demais direitos da personalidade por si só já resulta em um estudo dificultoso, sendo que ao analisar como devem ser tratados, após a morte do titular, os dados pessoais que foram inseridos na internet, esse debate se transforma em algo ainda mais complexo. Posto isso, agora serão abordados os entendimentos dos estudiosos sobre a possibilidade e como deve ocorrer a aquisição da herança dos bens digitais.
Apresentada a classificação dos bens digitais, o que importa agora é entender como e quais desses poderão ser herdados. Leciona Cadamuro (2019) que a lei brasileira, no âmbito das sucessões, não impede que os bens digitais sejam dispostos em sucessão testamentária, mas a questão relevante mesmo é conciliar o entendimento sobre os bens virtuais que não possuem valoração econômica.
Zampier (2021) compreende que sem sombra de dúvidas os bens digitais podem compor a sucessão, pois permitir que os herdeiros adquiram a propriedade dos bens digitais é cumprir com os direitos fundamentais, bem como com os ditames sucessórios. Destaca ainda este autor que pelo instrumento do testamento, já brevemente mencionado no presente trabalho, é possível que haja disposições de características patrimoniais e existenciais.
É claramente majoritário o entendimento de que a melhor forma de garantir a aquisição dos ativos digitais sejam eles patrimoniais, existenciais ou híbridos, é pelo instrumento de disposição de última vontade. Desse modo, Lara (2016) entende que o testamento precisa passar a ser mais utilizado pela população brasileira, por ser maneira segura para que haja a transmissão desejada, sem que seja necessário discutir judicialmente para assegurar o acesso ou não aos herdeiros.
Neste ponto, Leal (2020) destaca como principal dificuldade para o tratamento dos bens digitais após a morte de seu proprietário é exatamente o fato de não existirem, na maioria das vezes, expressas disposições deixadas pelo morto, a fim de regular como e se era de sua vontade que tais bens fossem repassados. Bem verdade que, como Gagliano e Pamplona (2020) pontuam, o testamento não faz parte da cultura brasileira, o que neste contexto acarreta em mais dificuldades.
A ausência de disposição testamentária atrelada a ausência de legislação sobre como deve ser realizada a transmissão desses bens aos herdeiros, faz com que, conforme ensinamento de Zampier (2021), as discussões acerca dos bens virtuais de caráter existencial sejam mais complexas, vez que a aquisição desses bens pode acarretar em lesão aos direitos da personalidade não só do morto como também dos terceiros que com ele mantiveram contato.
Exemplo da dificuldade para lidar com a questão jurídica da herança de bens digitais de caráter existencial seria o requerimento feito pelos herdeiros para ter acesso a contas pessoais do falecido, como os e-mails e as redes sociais. Em caso como esse, Cadamuro (2019) esclarece que, pela ausência de disposição testamentária e legal sobre o assunto, primeiramente os herdeiros encontrariam dificuldade na esfera extrajudicial, em razão do que estabelecem as políticas dos provedores desses serviços.
Cadamuro (2019) ainda pontua que, diante da negativa dos provedores de e-mails e redes sociais, ao pleitear acesso perante o Poder Judiciário os herdeiros concretizam o risco de ferir os direitos da personalidade do de cujus, tendo em vista que a Constituição Federal protege o sigilo das informações. Zampier (2021), por sua vez, ensina que não seria possível, por regra, haver a aplicação do princípio da saisine previsto no art. 1.784 do CC em relação aos bens digitais existenciais.
Lara (2016) enfatiza a importância do planejamento minucioso realizado pelo usuário e proprietário de bens digitais para garantir como será regulada a sucessão desses ativos digitais. É importante destacar que, em que pese não haja vedação na legislação para disposições testamentárias de bens que não gozem de valoração econômica, a discussão sobre a possibilidade ou não de herdar bens digitais realmente se priva quanto aos bens existenciais.
Assim, Cadamuro (2019) orienta que o conjunto de bens virtuais que possuem valoração econômica pode ser objeto de disposição testamentária e merece ser inventariado do mesmo modo que os outros bens do morto. Zampier (2021) compartilha do mesmo entendimento, pois segundo este, bibliotecas virtuais, acervo musical ou de vídeos devem ser considerados como componentes de acervo de bens digitais dotados de valor econômico e, portanto, devem ser herdados.
Diverge Leal (2020) do entendimento de Zampier (2021) que acima foi abordado, ao instruir que, quanto aos conteúdos patrimoniais é preciso primeiramente verificar se o autor da herança estava realmente adquirindo a propriedade do bem digital ou se era apenas uma licença para o uso do mesmo, vez que, em se tratando de licença para uso, essa será extinta com a morte, caso tenha sido devidamente cumprido o dever de informação que rege a relação consumerista.
Mais uma vez, Cadamuro (2019) pontua o entendimento de que, inexistindo testamento, os herdeiros até poderão pleitear o acesso aos e-mails, conversas particulares do de cujus, senhas das redes sociais e utilizar desses bens como bem entender, o que acarretaria em lesão aos direitos da personalidade do morto, pois como anteriormente visto, mesmo após a morte, alguns direitos da personalidade ainda dotam de proteção legal.
Fica evidenciado, portanto que, a melhor maneira de garantir a proteção quanto a vedação ao acesso ou mesmo dispor a possibilidade de que os bens frutos da evolução tecnológica sejam herdados, é através do testamento, pois como aponta Leal (2020), a última vontade do falecido será observada preliminarmente, buscando atingir a determinação que melhor represente a vontade da pessoa que se findou como estabelece o artigo 1.899 do Código Civil.
Como mencionado anteriormente, o direito brasileiro não detém de vedação para a disposição de bens digitais pelo falecido. No entanto, o que se pretende demonstrar com este trabalho é a insegurança jurídica existente em razão da ausência de legislação específica, pois da mesma forma que não há vedação, também não existem regras que estabeleçam o trâmite que deve ser adotado quando o assunto for especificamente a herança de bens digitais.
Com isso, atentos à evolução tecnológica e às implicações legais que podem acarretar, integrantes do Poder Legislativo têm buscado elaborar projetos de lei para dispor sobre a herança digital e é sobre esses projetos que o próximo tópico se fundamentará.
Em pesquisa ao site da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, constatou-se que atualmente apenas os projetos de lei nº 6468/2019 e nº 5820/2019 estão em tramitação, sendo que os projetos de lei nº 4847/2012, nº 4099/2012, nº 1331/2015, nº 7742/2017 e nº 8562/2017 foram arquivados.
O projeto de lei nº 6468/2019 de autoria do Senador Jorginho Mello do PL/SC, disponível para pesquisa no site do Senado Federal, objetiva alterar o artigo 1.788 do Código Civil, “para dispor sobre a sucessão dos bens e contas digitais do autor da herança”, acrescendo-lhe parágrafo único para que, segundo Mello (2019), haja a transmissão de todos os conteúdos ou arquivos digitais do falecido aos seus herdeiros.
Em justificativa Mello (2019) expõe que é preciso que o Direito Civil se ajuste para as novidades trazidas pela tecnologia, pois situações de famílias que buscam a tutela jurisdicional para obter acesso aos bens digitais estão gerando tratamento desigual, sendo por vezes injustas em contextos semelhantes.
Por sua vez, o projeto de lei nº 5820/2019, de autoria do Deputado Elias Vaz (2019) do PSB-GO, disponível no site da Câmara dos Deputados, possui como finalidade dar “nova redação ao art. 1.881” do Código Civil de 2002. Esse projeto, na visão de Leal (2020) é interessante em razão da expressa possibilidade de emprego do codicilo, representando então uma forma diversa da testamentária para disposição de vontade quanto ao destino dos bens digitais.
Gomes (2019) explica que o codicilo, disposto no art. 1.881 e ss. do CC/2002, atualmente se destina para que o autor da herança se manifeste quanto ao seu enterro, esmola de pequena monta e disposição em relação a legados compostos por bem móveis, joias não valiosas e até mesmo sobre as roupas que lhe pertenciam. Além disso, o jurista ainda ensina que, o codicilo não está sujeito às formalidades do testamento, mas deve ser escrito, datado e assinado.
Em caminho com os avanços tecnológicos, cumpre pontuar que no projeto de lei que ora se comenta, Vaz (2019) propõe que na manifestação de vontade escrita seja válida a assinatura digital, sendo neste caso, dispensadas as testemunhas. Outra inovação disposta por Vaz (2019) neste projeto de lei é o codicilo em formato de vídeo, sendo exigida a presença de duas testemunhas, quando houver disposição de cunho patrimonial, dentre outras exigências, como nitidez de som e imagem.
Para Junior e Costa (2020), o projeto de lei nº 5820/2019 possui a pretensão de aprimorar o instrumento do codicilo, de forma que acarretará em desburocratização do direito sucessório. Pontuam ainda que, se feito em vídeo, como previsto no projeto de lei, o codicilo ainda se apresentará como meio inclusivo para pessoas com deficiência, pois essas poderão se valer do meio de comunicação que corresponda com a sua deficiência, como por exemplo, a linguagem de sinais.
Importante ainda pontuar que esse projeto de lei, em seu § 4º, se propõe a conceituar a herança digital como sendo o conjunto de elementos armazenados na internet, como fotos, vídeos, livros e senhas.
Em que pese o direito brasileiro possua leis que abarcam contextos virtuais, a herança digital ainda encontra-se desprovida de proteção, o que evidentemente abre margem para que a discussão judicial sobre esta temática exista em ambiente de completa insegurança jurídica, como será possível constatar com a abordagem a seguir de casos concretos levados ao Poder Judiciário Brasileiro e que tiveram decisões jurídicas diversas.
O primeiro caso que aqui será apresentado, de acordo com o site Migalhas, tramitou na 1ª Vara do Juizado Especial Central de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, no qual, aos dezenove dias do mês de março do ano de dois mil e treze, a Juíza de Direito, Vania de Paula Arantes, deferiu o pedido de liminar para determinar a exclusão do perfil da rede social Facebook de Juliana Ribeiro Campos, que, segundo sua genitora e requerente naquele, havia se transformado em um “muro de lamentações” após a morte da referida.
De maneira oposta à decisão acima apresentada, uma sentença improcedente foi prolatada por um Juiz de Direito em Pompeu, Minas Gerais. Como dito, o caso foi julgado improcedente e negou o pleito de uma mãe para acessar os dados da filha morta. Os referidos dados eram arquivos que se encontravam em conta virtual vinculada ao telefone celular da morta, de acordo com o site do Colégio Notarial do Brasil Seção São Paulo.
Será agora apresentado o caso recentemente julgado em sede recursal. pela 31ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, em nove de março de dois mil e vinte e um. A referida Câmara, segundo informações constantes no próprio site do Tribunal de Justiça de São Paulo, negou provimento ao Recurso de Apelação nº 1119688-66.2019.8.26.0100, interposto por uma mãe que visava acessar dados, saber os motivos pelos quais houve a exclusão repentina do perfil de sua filha falecida na rede social Facebook e obter reparação a título de danos morais.
A apelante argumentou que após o falecimento de sua filha, passou a usar o perfil da mesma, pois conhecia o usuário e a senha necessários para efetuar login. No entanto, a plataforma social Facebook procedeu com a exclusão do perfil da finada sem aviso prévio. Por essa atitude, a ora apelante requereu os dados contidos no perfil, prestação de informações sobre os motivos que levaram à exclusão e indenização por dano moral.
A ementa do julgado que ora se refere restou da seguinte forma:
AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER E INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS – SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA – EXCLUSÃO DE PERFIL DA FILHA DA AUTORA DE REDE SOCIAL (FACEBOOK) APÓS SUA MORTE – QUESTÃO DISCIPLINADA PELOS TERMOS DE USO DA PLATAFORMA, AOS QUAIS A USUÁRIA ADERIU EM VIDA – TERMOS DE SERVIÇO QUE NÃO PADECEM DE QUALQUER ILEGALIDADE OU ABUSIVIDADE NOS PONTOS ANALISADOS – POSSIBILIDADE DO USUÁRIO OPTAR PELO APAGAMENTO DOS DADOS OU POR TRANSFORMAR O PERFIL EM “MEMORIAL”, TRANSMITINDO OU NÃO A SUA
GESTÃO A TERCEIROS – INVIABILIDADE, CONTUDO, DE MANUTENÇÃO DO ACESSO REGULAR PELOS FAMILIARES ATRAVÉS DE USUÁRIO E SENHA DA TITULAR FALECIDA, POIS A HIPÓTESE É VEDADA PELA PLATAFORMA – DIREITO PERSONALÍSSIMO DO USUÁRIO, NÃO SE TRANSMITINDO POR HERANÇA NO CASO DOS AUTOS, EIS QUE AUSENTE QUALQUER CONTEÚDO PATRIMONIAL DELE ORIUNDO – AUSÊNCIA DE ILICITUDE NA CONDUTA DA APELADA A ENSEJAR RESPONSABILIZAÇÃO OU DANO MORAL INDENIZÁVEL – MANUTENÇÃO DA SENTENÇA – RECURSO NÃO PROVIDO.
(TJ-SP - AC: 11196886620198260100 SP 1119688-66.2019.8.26.0100, Relator: Francisco Casconi, Data de Julgamento: 09/03/2021, 31ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 11/03/2021) Grifo nosso.
É possível constatar através do supracitado julgado o acerto de Leal (2020) ao ensinar que em se tratando de bens digitais existenciais, ou seja, aqueles que não possuem valor econômico, em não havendo manifestação de vontade do falecido, é necessário verificar o que consta nos termos e condições de uso das plataformas digitais onde se encontram os bens. No presente caso, o relator entendeu que a apelada (Facebook), agiu em exercício regular de direito, logo não há que se falar em abusos seja no âmbito do direito civil ou do direito do consumidor.
Pontua ainda o relator no julgamento do recurso disponível no site do Tribunal de Justiça de São Paulo que, em relação à validade do que determina a rede social em caso de morte do titular do perfil - exclusão da conta ou transformação em memorial - na legislação brasileira não existem disposições específicas que tratem da herança de bens digitais, sendo que a Lei 12.965/2014, conhecida como Marco Civil da Internet ou mesmo a Lei Geral de Proteção de Dados, não possuem dispositivo algum que estabeleça como se deve proceder em casos como este.
Em razão da lacuna legal sobre a herança digital, tendo em vista que a finada aderiu aos termos e condições de uso da plataforma, manifestando seu consentimento para uso da rede social e inexistindo diversa manifestação de vontade elaborada pela filha da apelante sobre qual destino gostaria que fosse dado a seu perfil, deve sobressair o que estabelece a rede social em seu regramento de política e condições de uso.
Como demonstrado, é indubitável que a herança composta por bens virtuais já faz parte da vida das pessoas, portanto, para evitar inseguranças jurídicas como a acima exposta, é de fundamental importância que haja positivação legal para guiar os operadores do direito a fim de dar maior efetividade ao destino dos bens intangíveis e, desse modo, garantir que tanto o titular dos bens, quanto os herdeiros tenham conhecimento e segurança para a proteção de seus direitos.
Através da análise dos institutos jurídicos do direito das sucessões em conjunto com a análise dos projetos de lei que atualmente tramitam nas Casas Legislativas e a abordagem dos casos concretos levados ao Poder Judiciário, restou demonstrada a imperiosa necessidade do ordenamento jurídico brasileiro em se atualizar para acompanhar os avanços sociais atrelados aos progressos tecnológicos.
Ademais, constatou-se que através do instrumento de testamento a discussão sucessória apresenta-se mais fácil de ser resolvida, posto que o próprio direito civil determina que deve ser respeitada a vontade do autor da herança, desde que esse tenha observado os limites impostos legalmente. Desta forma, inexistindo testamento, através de processo judicial para herdar os bens virtuais do morto, a herança deverá corresponder apenas aos bens que possuam caráter patrimonial.
Por ser garantido constitucionalmente, o direito de herança deve ser exercido sobre os bens digitais patrimoniais do morto. Sendo assim, os bens virtuais que não detenham de valor econômico, salvo se outra era a vontade do morto, não devem ser transferidos para os herdeiros, pois o exercício irrestrito do direito de herança, como visto, resulta em lesões aos direitos da personalidade, tendo em vista que alguns desses gozam de proteção mesmo após a morte do seu titular.
Assim, observa-se que, apesar de não ser popular na cultura brasileira, o testamento é fundamental para que o proprietário dos bens digitais manifeste sua vontade quanto ao destino que desejava dar aos mencionados, havendo então um meio de preservar o que se queria com menor risco de lesionar direitos da personalidade do de cujus.
Por todo o desenvolvido neste trabalho, conclui-se que a insegurança jurídica quanto a destinação dos bens digitais se mostra cada vez mais presente no Poder Judiciário brasileiro e que, por este motivo, é inegável a eminente necessidade de disposições legais para consolidar as regras de transmissão do patrimônio digital construído pelo autor da herança, a fim de garantir o direito fundamental do herdeiro e ainda assim preservar a extensão protetora dos direitos da personalidade. Portanto, pela falta de legislação específica, conclui-se que o ordenamento jurídico brasileiro não detém de disposições legais capazes de atender às demandas que passarão a ser mais frequentes no Poder Judiciário devido aos avanços tecnológicos e a imersão da vida pessoal e profissional na rede mundial de computadores.
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Artigo publicado em 19/05/2021 e republicado em 08/08/2024
Bacharela no curso de Direito pela UnirG Universidade de Gurupi/TO.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MACIEL, Camilla Menezes. Herança digital: a eminente necessidade de regulamentação no ordenamento jurídico brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 ago 2024, 04:39. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56510/herana-digital-a-eminente-necessidade-de-regulamentao-no-ordenamento-jurdico-brasileiro. Acesso em: 24 nov 2024.
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