ENEDINO PEREIRA DE OLIVEIRA NETO [1]
(coautor)
GUSTAVO LUÍS MENDES TUPINAMBÁ RODRIGUES [2]
(orientador)
RESUMO: Com a alteração do art. 156, I, do Código de Processo Penal, em função da Lei 11.690/2008, atribui-se ao juiz a possibilidade de iniciativa probatória de ofício na fase de investigação criminal. Diante dessa possibilidade, surgiram entre os doutrinadores divergências acerca da constitucionalidade desse artigo, alguns defendem a ideia de sua inconstitucionalidade, outros o consideram constitucional. Nesse sentido, o presente artigo tem como objetivo analisar se a produção de provas no processo penal pelo juiz, na fase pré-processual, é incompatível com o sistema penal adotado no Brasil. Este estudo foi desenvolvido a partir de pesquisas bibliográficas, extraídas da doutrina e de jurisprudências, em especial do Supremo Tribunal Federal (STF), utilizando uma abordagem dedutiva. A Constituição Federal/88 adotou o sistema penal acusatório, que tem como principal característica a separação das funções de julgar, defender e acusar, bem como a gestão probatória pelas partes. Apesar de a norma contrapor-se com o sistema penal acusatório e violar diversos mandamentos constitucionais, o STF ainda não se manifestou sobre eventual inconstitucionalidade, embora julgados semelhantes pressuponham essa conclusão. O artigo concluiu que a possibilidade de produção de provas pelo juiz, de ofício, na fase de inquérito, no processo penal, é incompatível com o sistema penal acusatório.
Palavras-chave: produção de provas de ofício, gestão de prova, imparcialidade, verdade processual.
ABSTRACT: With the change in article 156, I, of the Brazilian Code of Criminal Procedure, as a result of law 11,690/2008, the judge has been given the possibility of taking ex officio evidence initiatives during the criminal investigation phase. Given this possibility, differences have arisen among scholars about the constitutionality of this article, some defend the idea of its unconstitutionality, others consider it constitutional. In this sense, this article aims to analyze whether the production of evidence in criminal proceedings by the judge, in the pre-procedural phase, is incompatible with the criminal system adopted in Brazil. This study was developed based on bibliographical research, extracted from doctrine and jurisprudence, especially from the Federal Supreme Court (STF), using a deductive approach. The Federal Constitution/88 adopted the accusatorial criminal system, which has as its main characteristic the separation of the functions of judging, defending and accusing, as well as the management of evidence by the parties. Although the rule is in opposition to the accusatorial criminal system and violates several constitutional mandates, the STF has not yet pronounced itself on its possible unconstitutionality, although similar judgments presuppose this conclusion. The article concluded that the possibility of production of evidence by the judge, ex officio, during the inquiry phase, in the criminal process, is incompatible with the accusatory criminal system.
Keywords: ex officio production of evidence, evidence management, impartiality, procedural truth.
1 INTRODUÇÃO
A redação dada ao art. 156 do Código de Processo Penal, por meio da Lei nº 11.690/2008, atribuiu poderes investigatórios ao juiz ao prever a possibilidade de produção antecipada de provas na fase pré-processual - fase essa muito importante para a instauração ou não da ação penal -, sem a necessidade de serem requeridas pelas partes.
Diante da alteração do texto do artigo, passaram a surgir, entre os doutrinadores, divergências acerca de sua constitucionalidade. Grande parte deles entende que tal diretriz viola alguns princípios constitucionais, dentre eles a presunção de inocência, o devido processo legal e principalmente a imparcialidade do juiz. Por outro lado, outros defendem pela sua constitucionalidade, tendo como principal argumento o fato de que a possibilidade de produção antecipada de provas, de ofício, pelo juiz traz para dentro do processo penal a busca pela verdade real.
A abordagem inicial tratou de identificar os principais sujeitos do processo penal, bem como suas respectivas funções, e como a gestão da prova nos sistemas penais existentes é realizada. No sistema inquisitorial, por exemplo, as funções de acusar e julgar competem ao juiz, ou seja, toda gestão da prova reside nas mãos do julgador. Já no sistema acusatório, adotado implicitamente no texto constitucional, a gestão da prova é de competência das partes do processo (Ministério Público/querelante e acusado), garantindo a imparcialidade do juiz, e, por fim, o sistema misto, que reúne características dos dois sistemas.
Ao avaliar os diversos posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais sobre a aplicação do art.156, I, Código de Processo Penal, promove-se uma discussão jurídica a respeito dos direitos e garantias assegurados pela Constituição Federal a partir do sistema penal acusatório, face à atuação dos juízes sob a ótica do Código de Processo Penal, com base no sistema inquisitorial.
Veremos que a argumentação defendida por autores sobre a constitucionalidade do art. 156, I, do Código de Processo Penal é dissonante com o sistema penal acusatório, pois vai de encontro aos diversos princípios tutelados pelo Estado Democrático de Direito, bem como viola direitos e garantias ínsitas do devido processo legal.
Alguns doutrinadores, na defesa da constitucionalidade do supracitado dispositivo, tomam esse posicionamento por entenderem que o magistrado, responsável pela direção do processo, não pode ser mero expectador passivo. A partir desse pensamento, compreendem que ele deve utilizar todos os meios que lhes são permitidos e acessíveis para buscar a verdade real.
Outros, no entanto, afirmam que a busca da verdade real é inalcançável, e não pode ser usada como argumento justificativo de sua constitucionalidade, pois está intimamente relacionada com o modelo de sistema inquisitório e com a figura do juiz-inquisidor.
Nesse contexto, o presente artigo buscou analisar se a produção antecipada de provas no processo penal pelo juiz na fase pré-processual, nos termos do art. 156, I, do Código de Processo Penal, compromete ou inviabiliza o sistema penal adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro, em especial pela Constituição Federal de 1988. Uma vez que tal faculdade, em tese, viola o princípio da imparcialidade na prestação da tutela jurisdicional e afronta o devido processo legal.
No que diz respeito à análise e conclusão dos dados, além da coleta de jurisprudências nos tribunais, em especial do Supremo Tribunal Federal, fez-se uso da pesquisa bibliográfica por meio de consulta de artigos científicos, revistas, periódicos e livros doutrinários, com o objetivo de coletar informações sobre o tema, a partir de uma abordagem metodológica dedutiva e analítica.
2 ATRIBUIÇÕES DOS SUJEITOS DO PROCESSO
É importante, preliminarmente, identificar quem são os sujeitos do processo e quais são as suas funções de tal forma que se possa entender como a prova, no processo penal, é gerenciada, levando em consideração as peculiaridades dos sistemas penais existentes. Os sujeitos processuais são todas as pessoas que atuam no processo e são responsáveis, conforme competência prevista em lei, pela realização dos atos processuais, exercendo distintas funções.
Para efeito deste artigo, os sujeitos protagonistas do processo penal são: o juiz, o Ministério Público/querelante e o acusado. Essa abordagem conceitual é própria do processo penal condenatório, no entanto, no âmbito penal, existem outros processos sem o cunho condenatório, tal como se verifica com as medidas cautelares ou habeas corpus.
No processo penal, como será demonstrado adiante, o que se busca é o conhecimento dos fatos e, nesse sentido, cabe às partes (Ministério Público/querelante – parte ativa; e acusado – parte passiva) por meio da produção de provas a tarefa de sua reconstrução para que o julgador providencie a tutela jurisdicional. É imprescindível que a iniciativa probatória seja realizada pelas partes, de modo a permitir a imparcialidade do julgador.
Nessa mesma linha de raciocínio, Távora e Alencar (2017, p.631) afirmam que o processo tem por finalidade a reconstrução histórica dos fatos anteriormente ocorridos para que as consequências, em face do que ficar demonstrado, possam ser extraídas. Com efeito, é a partir do manancial probatório, apresentado pelas partes, que tem como objetivo demonstrar a verdade fática, os atos, ou o direito discutido, que se processa o convencimento do magistrado. Em suma, as provas têm como objetivo a obtenção do convencimento do juiz, e é a partir delas que se condena ou se absolve o réu.
A prova, portanto, é o elemento que possibilita ao magistrado formar seu convencimento acerca dos fatos. Por conseguinte, a parte que melhor apresentar a seu favor o lastro probatório que mais se aproxima com a reconstrução do fato pretérito, da forma mais verossímil, terá maior probabilidade de uma sentença penal favorável.
Ainda com relação aos sujeitos do processo, outra abordagem importante reside no fato de que no processo penal, em regra, a relação processual, no tocante às partes e o juiz, recebe uma configuração diferente do processo civil.
No processo civil, a existência da relação jurídica entre o autor e o Estado é caracterizada pelo vínculo de exigibilidade da prestação jurisdicional. Desse modo, é dever do Estado, no exercício monopolizado da atividade jurisdicional, realizar sua prestação, e cabe ao autor o direito à jurisdição. Por sua vez, no processo penal condenatório o autor da ação, de regra, o Ministério Público, não exerce direito em face do Estado, mas exerce dever resultante de imposição legal, uma vez que é legitimado para a persecução penal (PACELLI, 2020).
Assim, em razão da imprescindibilidade da tutela de direitos fundamentais violados ou ameaçados e do bem jurídico, tão importante para o acusado como para toda comunidade jurídica, o Ministério Público enquanto sujeito do processo não pode dispor da ação.
2.1 Juiz
O juiz é o principal sujeito da relação processual e tem como função primordial conduzir e julgar o pedido de tutela jurisdicional feito pelo autor, de forma imparcial, sendo a ele atribuída a direção e o controle de todo processo.
Lima (2020) aduz ainda que a autoridade jurisdicional, no âmbito do processual penal, tem como atribuições: receber a denúncia ou queixa; citar o acusado para o exercício da ampla defesa; e instruir o processo, para que ao final seja possível reconhecer a procedência, ou não, do pedido condenatório constante da peça acusatória.
Assim, para que o juiz possa prover a tutela jurisdicional, de maneira imparcial e responsável, sem sofrer qualquer gerência/interferência externa que venha a comprometer suas decisões, diversas garantias previstas na Constituição Federal lhe são asseguradas, tais como a irredutibilidade de vencimentos, a vitaliciedade e a inamovibilidade, além de diversas vedações (PACCELI, 2020).
A garantia da imparcialidade é a consequência mais importante do sistema acusatório, de tal modo que é imprescindível a inexistência de qualquer causa capaz de prejudicar o exercício imparcial da função judicante do magistrado. Dessa forma, não pode ser considerada justa uma decisão proferida por um juiz que não seja imparcial (LIMA, 2020).
Nesse sentido, o juiz deve no processo penal proceder como um terceiro, alheio às partes, atuando como garantidor dos direitos e garantias fundamentais dos atores processuais. Concluiu-se que só assim os princípios como a imparcialidade e o devido processo legal, dentre outros, previstos na legislação brasileira poderão ser efetivados.
2.2 Ministério Público e querelante
Regido por diversos princípios constitucionais, o Ministério Público, instituição de caráter público e permanente, tem como atribuições promover a persecução penal, e a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais. O Ministério Público é o órgão responsável, na esfera criminal, no que diz respeito aos crimes de ação penal pública, por deduzir as providências para a concretização da pretensão punitiva perante o Estado-juiz, e em relação aos crimes de ação penal privada, tem como atribuição fiscalizar a instauração e o desenvolvimento regular do processo (AVENA, 2017).
Além disso, essa instituição, em regra, tem como atribuição dar prosseguimento à persecução penal, logo após os atos investigatórios realizados no inquérito, promovendo o oferecimento da denúncia.
Por sua vez, o querelante é o sujeito do processo penal condenatório que realiza a acusação quando a norma penal assim determinar, nos casos de ação penal privada, ou, em casos excepcionais, quando houver desídia do Ministério Público – situação de ação penal privada subsidiária. Ele é, portanto, o sujeito ativo da relação processual penal.
2.3 Acusado e defensor
O acusado, no processo penal, é o sujeito passivo sobre quem recai a pretensão punitiva alegada pelo Ministério Público, ou pelo querelante. Ele possui vários direitos e garantias assegurados pelo texto constitucional, tais como: a ampla defesa e o contraditório, a presunção de inocência, o devido processo legal, a dignidade da pessoa humana, direito ao sigilo e assistência judiciária, dentre outros (BELO et al., 2015).
Ao acusado também é garantido o direito ao seu defensor, respeitando a possibilidade de entrevista reservada para orientação técnica, antes do interrogatório. Ademais, ele também possui o direito de não produzir provas contra si mesmo, não sendo obrigado, por exemplo, a participar de reconstituição do crime a ele imputado, bem como a individualização da pena (TÁVORA; ALENCAR, 2017).
Além disso, vale ressaltar que o acusado não pode abrir mão do seu direito de defesa, e mesmo que não queira um defensor, o juiz deverá nomear um, salvo na hipótese em que esteja defendendo em causa própria, na qualidade de advogado. Ademais, para a promoção de sua defesa, o réu pode fazer uso da defesa técnica, realizada por advogado particular, dativo ou defensor público, ou da autodefesa, exercida na fase pré-processual, quando lhe é assegurado o direito de permanecer calado.
3 SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS
No Direito Penal, o processo é o único instrumento por meio do qual o Estado exerce sua função jurisdicional. Assim, quando um indivíduo pratica uma conduta típica, ilícita e culpável, incorrendo em crime, é exigida a atuação estatal (pretensão punitiva), uma vez que a autocomposição, ou a autotutela de direitos não são admitidas.
Mas o que é essa pretensão punitiva do Estado no âmbito do processo penal? Pretensão punitiva do Estado é o poder que este tem de exigir daquele que praticou a conduta tipificada em lei como ilícito penal a submissão à sanção penal, o que resulta no direito de punir (ius puniendi). Em outras palavras, a pretensão punitiva do Estado consiste na função e no dever de investigar, processar e punir aquele que, supostamente, realizou uma conduta proibida por lei e, nesse sentido, cabe ao processo penal assegurar que esses atos sejam realizados segundo normas e preceitos preestabelecidos, já consagrados pelo ordenamento jurídico vigente (NEVES; RESENDE, 2020).
Assim, esse direito de exigir do autor do delito o cumprimento da obrigação prevista na sanção penal, concretizado pelo dever de abster-se de qualquer resistência contra os órgãos estatais que executam a pena, não pode ser de qualquer maneira, isto é, sem um processo regular que assegure a aplicação da lei penal. Daí entende-se que o processo penal, dotado de regras bem definidas e de princípios e garantias individuais asseguradas pela Constituição, é o instrumento que legitima ius puniendi do Estado.
Isso ocorre porque a aplicação do direito penal pode resultar, dentre outras sanções, na privação da liberdade de locomoção - direito fundamento imprescindível em um Estado Democrático de Direito. Portanto, é necessário que a própria Constituição Federal estabeleça regras de observância obrigatória em um processo penal. (LIMA, 2020, p. 41).
Feitas essas considerações sobre a importância do processo penal como instrumento útil à tutela jurisdicional (legitimador do direito de punir do Estado) faz-se necessário conceituar sistema processual penal. Para Rangel (2019), o sistema processual penal é o conjunto de princípios e regras constitucionais que estabelece as diretrizes norteadoras à aplicação do direito penal a cada caso concreto, conforme o momento político do Estado. Doutrinariamente, os sistemas processuais penais classificam-se em inquisitório, acusatório e misto, os quais serão devidamente abordados nos tópicos seguintes.
A respeito da classificação doutrinária dos sistemas penais, Lopes Jr. (2019) ensina que não existem mais sistemas puros, pois todos são mistos. O que deve ser levado em consideração para classificar um sistema penal em acusatório ou inquisitório é identificar o seu princípio informador, ou seja, seu núcleo fundante, pois esse critério classificador é de extrema relevância. Assim, mesmo o sistema misto, na sua essência é inquisitório ou acusatório, a depender do princípio que informa o núcleo.
Em complemento, Rangel (2019) aduz que os sistemas processuais são resultados do momento político, pois à medida que o Estado se aproxima do autoritarismo, os direitos e garantias individuais do acusado são reduzidos. Por sua vez, ao aproximar-se do Estado Democrático de Direito, essas mesmas garantias constitucionais lhe serão asseguradas.
Este artigo não tem por escopo abordar a evolução histórica de cada tipo de sistema penal, de forma pormenorizada, porém é importante identificar suas principais características e aspectos jurídicos necessários para análise da (in)compatibilidade do art. 156, I, do Código de Processo Penal, a partir das interações existentes entre o juiz e os sujeitos (ativo e passivo) da relação processual, conforme sistema penal adotado.
3.1 Sistema inquisitorial
O sistema inquisitorial tem como característica principal a gestão probatória nas mãos de uma única pessoa: o juiz, chamado de juiz inquisidor, que aglutina as funções de julgador, defensor e acusador. Além disso, ele também apresenta como características a inexistência do contraditório pleno, desigualdade entre as partes, sigilo processual e ausência de debates orais.
É lícito ao juiz, no sistema penal inquisitorial, desencadear o processo criminal ex officio, sem a obrigatoriedade de que haja uma acusação pelo ofendido ou pelo órgão público, pois ele possui ampla iniciativa probatória e liberdade para determinar de ofício a colheita de provas, seja no curso do inquérito, seja na fase processual. A gestão da prova no sistema inquisitorial fica concentrada nas mãos do juiz, permitindo-lhe concluir sobre os fatos da maneira que desejasse (LIMA, 2020).
Percebe-se que no sistema inquisitorial o acusado não é sujeito de direitos, mas mero objeto do processo. Ademais, no exercício de seus poderes investigatórios, o magistrado faz uso de todos os meios e métodos para a completa investigação do fato criminoso, com o propósito de reconstruí-lo de forma ampla, na busca de uma verdade material, absoluta, o que na maioria das vezes é inalcançável.
Outro aspecto evidente nesse tipo de sistema é uma “mitigação dos direitos e garantias individuais, em favor de um pretenso interesse coletivo de ver o acusado punido. É justificada a pretensão punitiva estatal com lastro na necessidade de não serem outorgadas excessivas garantias fundamentais.” (TÁVORA; ALENCAR, 2017).
Apesar de o sistema inquisitorial ter sido superado pelo tempo, com seu predomínio durante os séculos XVIII e XIX, alguns regimes políticos contemporâneos, em especial os totalitários, guardam em seus regramentos normativos dispositivos legais com características ou resquícios inquisitoriais.
3.2 Sistema Acusatório
Ao contrário do sistema inquisitorial, o sistema acusatório é próprio dos regimes democráticos e possui como característica a separação das funções de acusar, defender e julgar, que devem ser atribuídas a pessoas diferentes. Isso ocorre de modo a garantir a ampla defesa e o contraditório, princípios essenciais para tutela do devido processo legal, bem como a imparcialidade.
Essa separação de funções que define o sistema acusatório não é suficiente para sua caracterização, pois enquanto o juiz não for estranho à atividade investigatória e instrutória a imparcialidade do juiz não estará resguardada. Assim, caso o juiz usurpe das atribuições do órgão estatal de acusação, explícita ou implicitamente, de nada adiantará a existência de pessoas diversas para essas funções (LIMA, 2020).
Nesse sentido, a iniciativa de produção de provas no sistema penal acusatório não é atribuída ao juiz, mas às partes, através da dialética processual, cabendo à acusação, enquanto detentora do ônus probatório, o papel de influenciar o convencimento do magistrado de modo a superar a presunção de inocência do acusado. Como não compete ao magistrado a busca da prova, uma vez que tal faculdade é atribuída à acusação, o julgador, em tese, não possui convicção e nem ideias pré-concebidas sobre o acusado que possam interferir em seu julgamento (LEITE et al, 2019).
Não menos importante é o fato de que as decisões judiciais, devidamente fundamentadas, não têm como suporte um sistema hierarquizado de provas. No entanto, ao julgar, o magistrado dispõe, conforme o princípio da persuasão racional, de ampla liberdade na sua valoração, assim a sua convicção é formada sobre os fatos narrados a partir da apreciação das provas apresentadas pelas partes, provas estas que possuem o mesmo valor legal, além do mesmo prestígio.
Outro aspecto relevante nesse modelo de sistema é a isonomia processual, ou seja, tanto a acusação como a defesa devem estar em posição de equilíbrio processual de maneira que lhes sejam asseguradas idênticas oportunidades de intervenção e igual possibilidade de acesso aos meios, para que possam demonstrar o que alegam (AVENA, 2017).
A Constituição Federal de 1988, por meio do art. 129, I, adotou, implicitamente, o sistema penal acusatório, ao atribuir ao Ministério Público a competência para promover, privativamente, a ação penal pública, além de instituir várias garantias e direitos fundamentais.
Embora o texto constitucional não reporte de forma expressa a adoção do sistema acusatório, vários elementos presentes asseguram essa conclusão, como por exemplo, a privatividade do Ministério Público para o exercício da ação penal pública, a garantia do devido processo legal a todos os acusados, a ampla defesa e o contraditório, a presunção de inocência até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória e o julgamento por um juiz competente e imparcial (PRADO, 2005).
Conclui-se que a principal diferença entre o sistema penal acusatório e o inquisitorial é, indubitavelmente, a gestão da prova e a posição dos sujeitos no processo. No sistema acusatório há uma paridade entre os sujeitos, cabendo às partes a iniciativa pelo lastro probatório, e ao juiz o dever de motivar suas decisões judiciais a partir das provas apresentadas, observando os princípios da imparcialidade, contraditório e ampla defesa, como forma de assegurar o devido processo legal.
3.3 Sistema Misto
O sistema misto, como o próprio nome sugere, resulta da mescla de características dos dois sistemas anteriores, com predomínio da forma inquisitiva na fase pré-processual (a exemplo da faculdade que assiste ao juiz na produção de provas ex officio), e da acusatória na fase processual.
A primeira fase do sistema misto possui natureza inquisitiva e é destituída de publicidade e ampla defesa, não apresenta acusação e, consequentemente, não há o contraditório. Essa fase é destinada à apuração da materialidade e autoria de crime, por meio de investigação preliminar e instrução preparatória. Já a segunda fase, nitidamente acusatória, com predomínio da isonomia processual, tem como características, em regra, a publicidade, a oralidade, a ampla defesa e o contraditório (LIMA, 2020).
Alguns doutrinadores, dentre estes Aury Lopes Júnior, entendem que o sistema misto não é um sistema processual penal propriamente dito, uma vez que inexiste, nesta espécie, princípio informador capaz de identificar seu núcleo fundante. Em suma, o fato de não possuir um princípio norteador o desqualifica como um sistema penal, apesar de a maioria dos sistemas atuais não serem puros (LOPES JR., 2019).
Ademais, não se pode sustentar a existência de um sistema misto usando como argumento o fato de existir uma fase inquisitiva (pré-processual) e outra acusatória (processual), pois a fase investigativa é prescindível.
Outros doutrinadores entendem que o Brasil adotou o sistema misto. Tal entendimento se baseia nas características e resquícios inquisitoriais do Código de Processo Penal, atrelados à ideia de que bastaria a mera separação inicial das funções de acusar e julgar, não levando em conta a importância do princípio informador que norteia cada sistema processual penal.
4 A INCOMPATIBILIDADE DO ART. 156, I, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL COM O SISTEMA PENAL ADOTADO NO BRASIL
Antes de enfrentar o cerne da questão é necessário que se faça uma análise, com base no que já foi apresentado, do conteúdo do art. 156, do Código de Processo Penal, em especial do inciso I, para verificar a sua incompatibilidade com o sistema penal adotado no Brasil sob a ótica da Constituição Federal de 1988.
O supracitado artigo teve sua redação original alterada pela Lei 11.690, de 09 de junho de 2008, que trouxe como inovação a possibilidade de atuação de ofício do juiz na produção de provas.
Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício: (Redação dada pela Lei nº 11.690, de 2008)
I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida; (Incluído pela Lei nº 11.690, de 2008)
II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante. (Incluído pela Lei nº 11.690, de 2008)(BRASIL, 1988).
Com a nova redação, atribuiu-se ao juiz a possibilidade de iniciativa probatória, não só na fase processual como também no curso da investigação criminal, garantindo-lhe poderes investigatórios e instrutórios. Assim, ao magistrado foi facultada a produção de provas sem a necessidade de serem requeridas pelas partes (acusação e defesa).
A questão, no entanto, é complexa e controversa, pelo fato de despertar na doutrina e na jurisprudência desconforto. Para alguns doutrinadores, a possibilidade de iniciativa probatória pelo juiz remete ao sistema inquisitorial, no qual as funções de julgar e acusar se concentram em uma só pessoa, violando assim o sistema acusatório adotado pela Constituição Federal de 1988, representando, pois, um verdadeiro retrocesso jurídico.
No entanto, mesmo com a adoção do sistema acusatório pelo texto constitucional, a doutrina brasileira, majoritariamente, classifica o sistema penal brasileiro como misto, pois preserva características inquisitoriais, facilmente identificadas na fase de investigação criminal, e acusatórias, presentes na fase processual, como já abordado anteriormente.
Vale destacar que esses resquícios inquisitoriais remontam da origem do Código Processual Penal brasileiro de 1941, criado a partir de uma concepção ditatorial, anterior ao advento da Constituição de 1988 e sob forte influência do código fascista italiano de 1930, denominado Código Rocco, cujas bases eram notoriamente autoritárias (SANTOS; SANTIAGO, 2020).
Nesse sentido, Nucci (2015) afirma que o sistema adotado no Brasil é misto. Segundo ele, mesmo que a Constituição Federal de 1988 tenha delineado vários princípios processuais próprios do sistema acusatório, não o impõe, pois, as regras processuais penais são realmente criadas pelo Código de Processo Penal.
Em sentido contrário, Lopes Jr (2029), ao discorrer sobre sistemas penais, aduz que a afirmação de que um sistema é misto é absolutamente insuficiente e ilusória, uma vez que hodiernamente não existem mais sistemas puros. A questão relevante é identificar qual é o princípio informador de cada sistema, para então classificá-lo como inquisitório, cuja gestão da prova concentra-se nas mãos do juiz, ou acusatório, com a gestão da prova nas mãos das partes.
Compreender qual é o sistema penal adotado pelo Brasil, suas características, princípios e garantias fundamentais assegurados pela Constituição, é essencial para uma abordagem crítica acerca da incompatibilidade do art. 156, I do CPP, no tocante à atuação do juiz na produção de provas, de ofício, na fase de investigação criminal.
Aliado a isso, acrescenta-se o fato de que, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o advento do Estado Democrático de Direito e a incorporação de inúmeros Tratados Internacionais sobre Direitos Humanos ao nosso ordenamento jurídico, fez o juiz assumir uma nova posição no processo: atuar na provisão da tutela jurisdicional, assegurando aos acusados as garantias e os direitos fundamentais e estabelecendo o controle de legalidade dos atos praticados.
Feitas essas considerações, é temerária a investidura de poderes investigatórios ao juiz, com a possibilidade de persecução probatória de ofício, mesmo que o dispositivo penal, objeto deste artigo, discipline seu caráter excepcional. A preservação da parcialidade, da análise e do julgamento do processo pelo magistrado restará comprometida.
O fato do art. 156, I, do Código de Processo Penal atribuir essa iniciativa ao juiz apenas quando as provas forem consideradas urgentes e necessárias, ainda que sob o manto da adequação, proporcionalidade e excepcionalidade da medida, viola princípios indisponíveis da Constituição Federal.
Apesar da contradição acerca do sistema penal adotado, discutido anteriormente, parece difícil conceber, conforme se extrai da leitura do dispositivo normativo em comento, a figura de um juiz imparcial que seja ao mesmo tempo gestor da prova, ainda que supletivamente.
Essa possibilidade de persecução probatória pelo juiz de ofício não pode ainda ser defendida sob o argumento de que as provas produzidas possam ser úteis tanto para a parte que acusa como para a defesa, já que o foco dessa problemática deve ser analisado segundo preceitos e princípios constitucionais já consagrados e não sob a ótica, exclusiva, de normas infraconstitucionais.
Portanto, conforme discussão apresentada nesta seção é possível concluir que é inadmissível a atuação do juiz na tentativa de suprir possíveis deficiências das partes, na fase investigativa, pois a produção de provas de ofício pelo juiz no inquérito é flagrante inconstitucional.
4.1 O mito da verdade real
É necessário ressaltar que a corrente doutrinária que defende pela constitucionalidade do art.156, I, do Código de Processo Penal, assume essa posição por entender que o magistrado, responsável na direção do processo, não pode ser mero expectador passivo, devendo utilizar todos os meios que lhes são permitidos e acessíveis para buscar a verdade real dos fatos. Essa verdade real justifica a atuação de ofício do juiz na produção de provas.
Mas afinal, o que seria a verdade real dos fatos? Ao discorrer sobre esse tema, Nucci (2015) explica que a verdade real implica provocar no espírito do magistrado um inconformismo com as provas que lhe são apresentadas, uma ruptura à passividade, tendo em vista que direitos fundamentais do homem, tais como liberdade, vida, integridade física e psicológica, e até mesmo honra, podem ser afetados seriamente em caso de uma possível condenação criminal.
Em resumo, pelo princípio da verdade real ou material, o juiz deve buscar as provas, independentemente se requeridas pelas partes, não devendo se contentar com aquilo que a ele é apresentado, ou seja, o magistrado atua como coautor na produção de provas. Com efeito, o juiz deve buscar a verdade que mais se aproxima com o que realmente aconteceu.
Lopes Jr. (2019), por sua vez, preleciona que a busca da verdade real é inalcançável, de certo que está intimamente relacionada ao modelo de sistema inquisitório e com a figura do juiz-ator (inquisidor). Sob essa ótica, a verdade não pode ser legitimante do processo, até porque não se busca na sentença a sua revelação. O importante é entender que as decisões judiciais ocorrem a partir do convencimento do julgador, que se forma à luz do contraditório, com respeito às regras do devido processo, e que a verdade é contingencial, acidental, e não estruturante do processo.
É com o que concorda Lima (2020), ao afirmar que a verdade absoluta, no âmbito do processo penal atual, é impossível de ser atingida, pois por mais contundente e robusta a prova produzida em juízo, ela é incapaz de garantir ao magistrado um juízo de certeza absoluta. Dessa forma, o processo penal não possui a pretensão pela busca da verdade real, mas sim uma aproximação da realidade.
Khaled Jr. (2013), acrescenta que por meio do mito da busca da verdade, é possível legitimar discursivamente toda uma estrutura de poder jurídico repreensivo, em clara desconformidade com os objetivos estipulados pela República Federativa do Brasil, e, apesar dessa constatação, ainda é utilizado para justificar a iniciativa probatória pelo juiz.
A extrema necessidade pela busca da verdade real como argumento justificativo a respeito da constitucionalidade do art. 156, I, do Código de Processo Penal esbarra na necessidade de submissão das provas, apresentadas pelas partes, ao contraditório e à garantia ao princípio da imparcialidade.
Conclui-se que o processo penal não tem como finalidade a busca da verdade, tampouco negá-la. A reflexão a ser feita, principal ponto dessa abordagem, é que a busca pela verdade, a todo custo, remete ao sistema inquisitorial, contrariando, assim, todos os preceitos normativos e princípios consagrados no texto constitucional que ratificam a adoção do sistema acusatório pelo ordenamento pátrio.
4.2 O princípio da imparcialidade do juiz
Na fase pré-processual da persecução penal, alguns princípios, em razão do próprio caráter inquisitivo do inquérito, não são assegurados. A exemplo disso tem-se o contraditório, razão pela qual a atuação ativa do magistrado na produção probatória e posterior julgamento com base em algo que ele mesmo produziu, diante de um acusado desprovido de meios de defesa adequados, é flagrante inconstitucional.
O magistrado, ao atuar de forma proativa na persecução criminal, pode desequilibrar a disputa processual, uma vez que sua interferência na função do órgão acusatório compromete sua imparcialidade, ao tempo que passará a constituir, em seu íntimo, elementos de convicção, em razão do contato que teve na fase de inquérito (SANTOS; SANTIAGO, 2020).
Com relação à imparcialidade, Ferrajoli (2002, p. 462) afirma que “o juiz não deve ter qualquer interesse, nem geral nem particular, em uma ou outra solução da controvérsia que é chamado a resolver, sendo sua função decidir qual delas é verdadeira qual é falsa”. A imparcialidade deve ser compreendida como um “princípio supremo do processo” e, como tal, imprescindível não só para seu desenvolvimento normal, como também requisito necessário para obtenção da justa tutela jurisdicional (LOPES JR., 2020).
Diante disso, a previsão de iniciativa de produção de provas ex offício pelo juiz, esculpida no art. 156, I, do Código de Processo Penal, norma essa infraconstitucional, contrapõe-se com o princípio garantidor da imparcialidade do juiz, previsto na Constituição Federal de 1988.
5 POSICIONAMENTO JURISPRUDENCIAL COM RELAÇÃO À INICIATIVA PROBATÓRIA PELO JUIZ
Diante da importância do tema, faz-se necessário trazer a este artigo o posicionamento da Suprema Corte no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 1.570, que declarou inconstitucional o art. 3º da Lei nº 9.034, de 03 de maio de 1995, que institui poderes investigatórios ao juiz.
Em breve resumo, o artigo em comento trouxe em seu texto a possibilidade de realização de diligências pessoalmente pelo juiz, em qualquer fase da persecução criminal, nos delitos praticados por organizações criminosas, para acesso a dados, documentos e informações fiscais, bancárias, financeiras e eleitorais, com intuito de colher elementos de investigação e formação de provas.
A referida ADI, proposta pelo Ministério Público Federal, foi julgada em 12 de fevereiro de 2004 e teve como relator o Ministro Maurício Corrêa. Como principal argumento, o Ministério Público Federal alegou o comprometimento da imparcialidade do juiz ao valorar provas produzidas por ele mesmo, violando, assim, o princípio acusatório (MAIA, 2015).
Na ocasião, o STF entendeu que o referido artigo criava um procedimento excepcional, não previsto no ordenamento jurídico pátrio e não contemplado na sistemática processual penal contemporânea, uma vez que permitia ao juiz colher pessoalmente as provas que poderão servir, mais tarde, como fundamento fático-jurídico de sua própria decisão. (BRASIL, 2004). Percebe-se que o art. 3º da Lei nº 9.034, de 03 de maio de 1995, que previa a possibilidade de produção de provas de ofício pelo juiz na fase investigatória, aliás, em qualquer fase da persecução penal, apresentava a mesma previsão hodiernamente disposta no art. 156, I, do Código de Processo Penal.
Outro julgado importante pelo STF, que aconteceu em 2008, com a mesma temática em relação aos poderes persecutórios do juiz, foi o Habeas Corpus nº 94.641/BA, de relatoria da Ministra Ellen Gracie. Na época, o habeas corpus, concedido de ofício pelo STF, foi impetrado em favor do condenado pelo crime de atentado violento ao pudor contra a própria filha. Neste episódio, o STF considerou a impossibilidade de o magistrado atuar, num primeiro momento, em procedimento de investigação de paternidade, no qual realizou a produção de provas e, posteriormente, julgou o mencionado processo criminal, fazendo uso das provas colhidas no procedimento investigativo.
Apesar do julgado em apreço ter sido declarado inconstitucional e estar claro que a prática de atos de natureza instrutória, de ofício, pelo juiz viola o princípio da imparcialidade, o Supremo Tribunal Federal ainda não se manifestou sobre eventual inconstitucionalidade do art. 156, I, do Código de Processo Penal. Assim, com base na análise jurisprudencial a respeito desse tema, é pacífico o entendimento pelos tribunais da possibilidade de atuação do magistrado, conforme prevê o supramencionado artigo, apesar da maior parte da doutrina moderna posicionar-se contrária a essa previsão.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com o presente artigo buscou-se analisar o teor do inciso I, do artigo 156 do Código de Processo Penal, que faculta ao juiz, de ofício, ainda que de forma supletiva e excepcional, a iniciativa probatória na fase pré-processual, mesmo observando a necessidade, adequação e proporcionalidade, sob a luz do texto constitucional.
Essa análise não poderia ser diferente, pois com o advento da Constituição Federal de 1988 e a instituição do Estado Democrático de Direito, todas as demais normas infraconstitucionais, e aqui se enquadra o Código de Processo de Penal, deveriam adequar-se aos preceitos e princípios constitucionais.
Apesar de alguns doutrinadores defenderem a ideia de que o Brasil adotou o sistema penal misto, a Constituição Federal de 1988, por meio da consagração expressa de princípios fundamentais, como a imparcialidade do juiz, a presunção de inocência do acusado e o devido processo legal, adotou o sistema penal acusatório, cuja característica principal é a separação das funções de julgar, acusar e defender, atribuídas a sujeitos diferentes do processo penal.
Além da separação das funções, outra característica do sistema penal acusatório é seu núcleo fundante, pois seu princípio dispositivo atribui às partes a gestão na produção de provas, e ao juiz a função, além da atividade jurisdicional, de garantidor de direitos individuais na condução e direção do processo.
A gestão da prova é fundamental para a garantia da imparcialidade do juiz no processo penal, pois, uma vez sob sua gerência, as provas por ele produzidas, de ofício, poderão ser indevidamente valoradas, formando elementos de convicção prejudiciais ao julgamento. Em suma, o magistrado já teria um pré-julgamento constituído, em virtude da contaminação das provas colhidas por ele próprio no inquérito, interferindo, talvez até inconscientemente, nas suas decisões judiciais.
A doutrina diverge sobre quem deve gerir a prova no processo penal. Aqueles que defendem que a gestão da prova deve estar na mão do juiz têm como argumento o fato de que, no processo penal, a busca pela verdade real dos fatos é imprescindível, ou seja, a verdade é estruturante e fundante do processo. Entretanto, no tocante a direitos e garantias individuais, é importante destacar que a busca pela verdade real é resquício de sistema inquisitorial, e, portanto, incompatível com o texto constitucional.
Por outro lado, a corrente doutrinária que refuta a gerência da prova pelo juiz, entende que o processo deve ser pautado pela verdade processual ou formal, e que a busca pela verdade real é imaginária e falaciosa. O juiz, portanto, deve analisar e valorar as provas apresentadas pelas partes, em contraditório, e decidir de forma fundamentada, a partir do seu livre convencimento motivado.
No que diz respeito ao posicionamento jurisprudencial sobre o art. 156, I, do Código de Processo Penal, apesar da Suprema Corte ter sido desfavorável à previsão da iniciativa probatória do juiz de ofício na fase de investigação criminal em alguns julgados, inclusive com a declaração de inconstitucionalidade, vide ADI nº 1.570, entende que o artigo supracitado não é inconstitucional.
Por fim, mesmo com sua vigência, não resta dúvida que o dispositivo normativo acima, que amplia os poderes instrutórios conferidos ao juiz, é uma afronta ao sistema acusatório adotado pela Constituição Federal e uma violação ao princípio da imparcialidade e da paridade das armas.
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[1] Acadêmico do curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho – UNIFSA. E-mail: [email protected]
[2] Professor do curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho – UNIFSA, Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. E-mail: [email protected].
Bacharelando em Direito pelo Centro Universitário Santo Agostinho-UNIFSA.
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