LUIZ DE SOUSA LEÃO NETO[1]
(coautor)
GILBERTO ANTÔNIO NEVES PEREIRA DA SILVA[2]
(orientador)
RESUMO: O estudo trata da equiparação dos institutos da União Estável e do casamento, expondo a importância desse fato para o reconhecimento do pluralismo familiar presente na sociedade brasileira. Ademais, o presente artigo busca fazer uma análise completa dos princípios que atuam diretamente sobre a entidade familiar, passando por aspectos históricos que influenciaram os legisladores, até recentes posicionamentos jurídicos que contribuíram para o reconhecimento dos direitos dos companheiros, inclusive no âmbito sucessório. Nesse sentido, por meio de pesquisas bibliográficas e um método de abordagem dedutivo, o conteúdo deste trabalho científico faz uma reflexão acerca da segurança jurídica gerada quando há a adequação do ordenamento jurídico à realidade social no âmbito do Casamento e da União Estável.
Palavras-chave: equiparação, casamento, união estável, pluralismo familiar, realidade social.
ABSTRACT: The study addresses the equalization of the institutes of stable union and marriage, exposing the importance of this fact for the recognition of family pluralism present in Brazilian society. Moreover, this article seeks to make a thorough analysis of the principles that act directly on the family entity, through historical aspects that influenced the legislators, until recent legal positions that contributed to the recognition of the rights of partners, including in the succession. In this sense, through bibliographical research and a deductive approach, the content of this scientific paper makes a reflection about the legal security generated when there is an adequacy of the legal system to the social reality in the context of marriage and stable union.
Keywords: equalization, marriage, stable union, family pluralism, social reality.
Sumário: 1 Introdução - 2 As famílias no contexto contemporâneo: 2.1 Princípios norteadores das famílias; 2.2 A evolução da composição das famílias na sociedade brasileira - 3 A união estável na experiência pátria: 3.1 O tratamento legislativo civil e constitucional; 3.2 Os direitos sucessórios do cônjuge e do companheiro - 4 Conclusão – Referências
1 INTRODUÇÃO
Embora o instituto da União Estável tenha se concretizado como entidade familiar no ordenamento jurídico brasileiro e contribuído para o pluralismo das relações, o casamento, como entidade familiar mais tradicional do direito, há pouco tempo, ainda era tratado com primazia pelo Código Civil, tendo em vista a clara positivação legal dos direitos e obrigações dos nubentes quando comparados aos outros institutos familiares.
Em conformidade com o posicionamento majoritário da sociedade no que se refere ao tema, os modelos de casamento e família tradicional sempre contaram com certa vantagem em relação à regulamentação e aquisição de direitos, o que gera debates doutrinários e jurisprudenciais acerca da equiparação com outros institutos, em especial com o da União Estável, o qual foi negligenciado por muito tempo.
Entretanto, em maio de 2017, no âmbito do direito civil referente às sucessões, houve uma mudança de panorama, uma vez que o Superior Tribunal de Justiça (STF) aprovou a inconstitucionalidade da diferenciação entre cônjuges e companheiros no julgamento do recurso extraordinário n° 878.694, devendo ser aplicado para ambos, a redação presente no artigo 1829 do Código Civil.
No período que antecede a decisão da corte citada anteriormente, é sabido que o companheiro recebia tratamento diferenciado do cônjuge no tocante à transferência de herança de bens deixados por pessoa falecida, por força do art. 1.790 do Código Civil (CC). Porém, ao decidir sobre a inconstitucionalidade do artigo em questão, o Superior Tribunal de Justiça (STF) observou a violação de princípios como o da igualdade, dignidade da pessoa humana, proporcionalidade e o de vedação ao retrocesso, os quais regem o direito sucessório, bem como diversas áreas do Direito.
Partindo da premissa de que o Brasil é um país laico e o casamento é comumente associado à figura cristã, mais especificamente, à Igreja Católica, não há lógica em oferecer vantagens jurídicas somente a um tipo de entidade familiar, uma vez que a aderência de muitas pessoas a esse instituto mais tradicional ocorre somente pelas seguridades legais oferecidas. O fato de ser casado não torna um indivíduo mais ou menos merecedor de herdar determinado patrimônio ou ser tratado de forma especial pela lei. Além disso, os estilos de vida apresentam-se na sociedade de forma subjetiva e são resguardados pela Constituição Federal com o intuito de preservar os direitos e garantias individuais, na medida em que o outro não é prejudicado.
Dessa forma, uma vez constatada a nítida presença do aspecto plural nas formas de se relacionar, o tratamento especial dado ao Casamento ainda é cabível na sociedade brasileira atual? Através de um estudo bibliográfico e um método de abordagem dedutivo, o presente estudo tem como objetivos, ressaltar a importância de dar um tratamento legal equiparado aos institutos familiares, por meio de comparativos históricos e evolutivos acerca do Casamento e da União Estável, revisando a bibliografia Constitucional e Cível, bem como apresentar jurisprudências e entendimentos atualizados que reafirmam a tese de equiparação.
2 AS FAMÍLIAS NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO
Símbolo fundamental da democracia brasileira, a Constituição Federal de 1988 representa um marco de transição da ditadura militar, regime autoritário que durou de 1964 a 1985, para o Estado Democrático de Direito que dura até os dias atuais. A Carta Magna fundamenta em seu artigo 3º mostra a concepção de uma sociedade igualitária, fundamentada na dignidade da pessoa humana. Com isso, devido às diversas transformações sociais, leis e normas precisaram se adequar como forma de acompanhar tais transformações, e assim, respeitar os fundamentos descritos no referido artigo.
A família, detentora de ramificação própria dentro do direito, sempre foi fruto de transformações sociais, e sempre coube ao legislador realizar adaptações na norma, com objetivo de se adequar aos fatos da vida real. As transformações sociais atravessaram incontáveis sociedades e povos, sendo indispensáveis para o desenvolvimento da humanidade e, representando uma quebra de inúmeras barreiras de preconceito, o que inclusive dá novas caras às formas de composição familiar, que atualmente não se encontram necessariamente ligadas ao casamento.
O reconhecimento da família sem o elemento do casamento como pré-requisito representou uma quebra de paradigmas arcaicos, em que a obrigatoriedade de um modelo ideal de família composto por marido, mulher e filhos, deu lugar a relações que têm como base o afeto. O poder pátrio deu lugar ao poder familiar, o qual não restringe direitos e deveres somente ao patriarca, mas a todos que vivem no âmbito familiar. Isso amplia a compreensão de família, e garante um tratamento isonômico entre seus membros. Como dito por Azevedo (2013, p. 9)
[...] iniciou-se a edificante tarefa de “democratização da família” como “base da sociedade”, com o acolhimento, entre outros, do instituto da união estável, da igualdade de direitos e de deveres entre cônjuges e entre filhos, inclusive adotivos.
No período que antecede a Carta Magna vigente, a família era patriarcal, tendo a figura do homem como centro da entidade familiar, o chamado chefe de família. Nesse mesmo plano, a mulher era muitas vezes objetificada e considerada propriedade do marido. Além disso, cabe destacar a existência de diversas leis discriminatórias que consolidavam e acentuavam tal desigualdade. Nesse sentido, a constituição de 1988 representou um marco para a ruptura desse paradigma, desfazendo tal hierarquia, consolidando o modelo de família constitucionalizada e igualitária que se tem hoje, em que homens e mulheres passaram a ser iguais na forma da lei. Apesar disso, observa-se nos dias atuais situações que remetem ao passado patriarcal, o que demonstra que ainda precisa-se evoluir em diversos sentidos.
No âmbito civil, o código de 1916 determinava que toda família era casamentária, ou seja, a entidade em questão era fruto apenas do casamento, e não possuía qualquer outra forma de ser consolidada. Com as diversas configurações de família que surgiram no decorrer dos anos, o Estado criou mecanismos para seu reconhecimento e proteção. Dessa forma, além da possibilidade do casamento civil, surgiram a união estável e a família monoparental, que são as três entidades reconhecidas pela constituição brasileira atual.
O casamento civil, entidade familiar mais conhecida e tradicionalmente aceita, surgiu em 1891, e atualmente está previsto no artigo 226 da Constituição Federal, bem como regulamentado pelo código civil, no subtítulo I, o título I do Livro IV. Tal código, estabelece no seu artigo 1511 o casamento como a comunhão plena da vida, baseado na igualdade de direitos e deveres entre os cônjuges. Por ser uma das formas de entidade familiar, possui proteção fundamental do Estado.
A família monoparental, também reconhecida como entidade familiar, está positivada no artigo 226 da Constituição Federal. Diferentemente da chamada família tradicional, a família monoparental surge quando apenas um dos pais se responsabiliza pelos filhos, ou seja, é formada unicamente pela ligação de apenas um dos pais e a criança. Tal entidade familiar ganhou destaque com a inserção da mulher no mercado de trabalho, pois as mulheres passaram a ser autossuficientes, superando o patriarcalismo. Desse modo, as famílias compostas por um dos pais e filhos passaram a se tornar cada vez mais frequentes e ganhar visibilidade. Dessa forma, surgiu a necessidade de inserir essa entidade no ordenamento jurídico, como forma de dar amparo e de reconhecimento da existência da família monoparental.
Já na união estável, os artigos 1723 e 1724 do código civil de 2002, elencam alguns requisitos que devem ser cumpridos, que são: I-dualidade de sexo (que apesar de previsto no CC/02 e CR/88 , foi superado em virtude do reconhecimento da união homoafetiva); II- publicidade; III-continuidade; IV- durabilidade; V- objetivo de constituição de família; VI- ausência de impedimentos para o casamento, ressalvadas as hipóteses de separação de fato ou judicial; VII-observância dos deveres de lealdade, respeito e assistência, bem como de guarda, sustento e educação dos filhos. Segundo Fux (2017, em seu voto na ADPF 132),
Existe razoável consenso na ideia de que não há hierarquia entre entidades. Portanto, entre o casamento e a união estável heterossexual não existe, em princípio, distinção ontológica; o tratamento legal distinto se dá apenas em virtude da solenidade de que o ato jurídico do casamento – rectius, o matrimônio – se reveste, da qual decorre a segurança jurídica absoluta para as relações dele resultantes.
Sendo assim, é notável a evolução do ordenamento brasileiro nesse sentido, pois além de reconhecer o pluralismo familiar, garante um tratamento igualitário entre as entidades familiares presentes na nossa sociedade, englobando fatos que já eram vivenciados no mundo social e que passaram a ser fatos do mundo jurídico.
2.1 PRINCÍPIOS NORTEADORES DAS FAMÍLIAS
Os princípios norteadores permitem um melhor entendimento sobre as normas, adaptando o direito às constantes mudanças existentes na sociedade. O cenário atual do Direito de Família, conforme previsto na Constituição, envolve princípios mais amplos, alcançando direitos fundamentais, como a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, da Constituição Federal); isonomia (artigo 5º, I da Constituição Federal); e a afetividade que, nesse contexto, ganha dimensão jurídica.
Apesar de não estar expressamente descrita no ordenamento jurídico brasileiro, a afetividade é aceita de forma tácita na constituição, pois permite que o sistema de protecionismo estatal alcance todas as comunidades familiares, repersonalizando os sistemas sociais, e assim dando maior enfoque ao afeto, que em sua definição, dentro do âmbito das entidades familiares, pode-se citar como exemplo as relações de amor, sentimento e afeto. O afeto, na doutrina contemporânea, passou a ter um valor jurídico. Segundo Cancelier (2017, p. 10)
É graças também à afetividade que nos ligamos aos outros, ao mundo, a nós mesmos. É, na verdade, a afetividade que dá aos nossos atos e aos nossos pensamentos o encanto, a razão de ser, o impulso vital. É o fundamento da nossa personalidade, o que temos de mais íntimo. Não é, porém, um mundo fechado, porque é a mesma afetividade que nos liga aos outros.
Dessa forma, é notório que o princípio da afetividade é indispensável na formação das famílias atuais, pois a família moderna tem sua composição baseada no afeto, pois esta não pode ser criada e nem imposta pelo legislador como regra erga omnes, mas sim construída pela convivência entre pessoas e reciprocidade de sentimentos, independente de vinculação sanguínea.
Outro princípio de suma importância no âmbito familiar é o princípio da dignidade da pessoa humana, que está especificado pela Carta Magna de 1988, em seu artigo 1°, inciso III. Tal princípio atua como mecanismo de proteção e garante a integridade tanto das famílias quanto de seus membros. A dignidade da pessoa humana fortalece e efetiva os membros da comunidade familiar, assim como o seu desenvolvimento.
Segundo pontua Gonçalves (2012, p. 22), pode-se inferir que a milenar proteção da família como instituição, unidade de produção e reprodução de valores culturais, éticos, religiosos e econômicos, dá lugar à tutela essencialmente funcionalizada à dignidade de seus membros em particular no que concerne ao desenvolvimento da personalidade dos seus filhos. À vista disso, nota-se a importância das relações familiares para o Direito, visto que seus membros, na maioria das vezes, as têm como base. A dignidade é inerente à pessoa desde o seu nascimento, e deve ser respeitada perante a sociedade e o Estado.
Por fim, o princípio da igualdade surge como uma forma de colocar todas as pessoas em um mesmo patamar perante a lei. O citado princípio está disposto na Constituição Federal de 1988, no seu artigo 5º, caput, que garante que mulheres e homens são iguais em obrigações e direitos. Além disso, e o artigo 226, § 5º dispõe que os direitos e deveres na sociedade conjugal são exercidos em igualdade pelo homem e pela mulher; dessa forma, com essa igualdade de direitos, o modelo de família patriarcal foi extinto, que perdurou por séculos no Brasil, na qual somente o marido era o chefe da família. Dessa forma, não é aceitável qualquer tratamento desigual entre casamento, união estável e família monoparental, e não se podem legislar de forma diferente institutos que foram classificados pela Constituição como iguais.
Na visão de Coelho (2016, p.145), é correto afirmar que entre as famílias constitucionais não há hierarquia: a fundada no casamento não é merecedora de maior proteção que as outras. Muito pelo contrário, não pode a lei discriminar essas três entidades familiares conferindo aos membros de qualquer uma delas direitos negados aos das outras. Assim, constata-se que o discurso da igualdade está intrinsecamente vinculado à cidadania, outra categoria da contemporaneidade, que pressupõe também o respeito às diferenças. Se todos são iguais perante a lei, todos devem estar incluídos no laço social.
2.2 A EVOLUÇÃO DA COMPOSIÇÃO DAS FAMÍLIAS NA SOCIEDADE BRASILEIRA
Visando um melhor entendimento acerca da importância da equivalência dos institutos da união estável e do casamento, é necessário pontuar o que os diferencia em linhas gerais no ordenamento jurídico. Para tanto, faz-se mister a abordagem de alguns aspectos históricos, bem como a citação de mudanças relevantes no âmbito da união estável, desde a sua concretização com o advento da Constituição de 1988, até os dias atuais.
Em relação ao casamento, é correto afirmar, com base no direito brasileiro, que esse instituto sofreu algumas modificações ao longo dos anos. Até 1891, ano em que surgiu o casamento civil, não se aceitava nenhuma outra forma de convivência entre homens e mulheres que não tivessem como base o casamento religioso, mesmo para os não católicos. Iniciando o século XX, para o código civil brasileiro de 1916, o casamento permanecia sendo a única forma legítima de constituir família, e esse conceito se mantinha atrelado ao modelo conservador de “pater familia”, herdado pelos romanos e gregos e consolidado na Idade Média com base no canonicismo.
Sob essa ótica, dados os fortes indícios de conservadorismo e raízes religiosas ligadas ao instituto do casamento, o preconceito e o negacionismo social perante situações adversas a esse instituto dificultavam o reconhecimento da união estável (popularmente chamada de concubinato) pela justiça. Dessa forma, havia um total descaso em relação aos direitos dos concubinários, sobretudo no que toca ao patrimônio, alastrando a reprovabilidade social aos meios legais.
Entretanto, com o advento da Constituição de 1988, houve uma quebra de paradigma acompanhada de grandes transformações sociais, bem como a ampliação do conceito de família, e por isso características como a afetividade e o respeito mútuo acabaram se sobrepondo ao modelo patriarcal hierarquizado, no qual as tradições eram tratadas como prioridade, independentemente da felicidade de seus membros. Assim, com base no princípio da dignidade da pessoa humana e no artigo 226 da Constituição Federal, a união estável se concretizava como entidade familiar, trazendo o aspecto da pluralidade às relações familiares e adequando-se à realidade social.
Com o passar dos anos, houve uma mudança no conceito de união estável e no momento presente pouco se fala sobre a real diferença em relação ao casamento. Anteriormente, para que houvesse o reconhecimento do instituto já citado, fazia-se necessário o preenchimento de alguns requisitos: período mínimo de cinco anos juntos, somado à existência de filhos entre o casal, e também a coabitação. Entretanto, com a vigência do código civil de 2002, esses fatores passaram a não ser mais exigidos. O art. 1.723 do código citado traz em sua redação: “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituir família”.
Apesar da não formalização da união estável, é permitida às partes a extinguirem de forma consensual, de maneira extrajudicial, por meio de escritura pública. Tendo isso em vista, o Código de processo civil estabelece em seu artigo 733 que deverá ser lavrada uma escritura pública de dissolução perante o cartório de notas, títulos e documentos, contanto que as partes estejam devidamente assistidas por um advogado e que não haja filhos incapazes. Em oposição, somente é permitida a dissolução da união estável através de uma ação judicial, que exigirá a participação de um membro do Ministério Público na defesa e promoção dos interesses dos menores e incapazes envolvidos.
Os institutos do casamento e união estável assemelham-se quanto à inexistência de prazo de convivência fixado em lei, porém, em relação à mudança do estado civil, este somente é alterado quando há casamento, não havendo nenhuma mudança no caso de união estável. Em síntese, o casamento apresenta-se de maneira mais formal, pois necessita do Registro Civil, e então é emitida uma Certidão de Casamento. Já na união estável pode existir ou não formalização.
3 A UNIÃO ESTÁVEL NA EXPERIÊNCIA PÁTRIA
Influenciado por Portugal, o Brasil sempre teve a igreja católica como peça-chave no que diz respeito à disciplina social. Esse fato pode ser comprovado, uma vez que, no império brasileiro, a Constituição de 1824 estabeleceu que a religião católica apostólica romana deveria ser reconhecida como religião oficial. Dessa forma, ao exaltar o casamento como base da instituição familiar e condenar outras formas de constituir família, a igreja acaba contribuindo de forma expressiva para o atraso do reconhecimento da união estável.
Com o reconhecimento do casamento civil no ano de 1891 e sua ratificação na carta civil de 1916, foram dados os primeiros passos da união estável no contexto legal. Porém, o referido código não regulamentou o concubinato na sua forma pura ou impura, e ao invés disso fez questão de deixar clara a sua preferência legal pelo instituto do casamento, dispondo em sua redação, como no caso do artigo 248, inciso IV, mecanismos para que a mulher casada reivindicasse bens doados ou transferidos à concubina.
Nesse mesmo contexto é sabido que, por força do artigo 1.777, a doação do cônjuge adúltero à concubina poderia ser anulada pelo cônjuge ou pelos herdeiros necessários até dois anos após a dissolução da sociedade conjugal.
Durante o século XX, algumas decisões judiciais contribuíram para que a união estável começasse a ter algum tipo de reconhecimento. Em 1944, o Decreto-lei n° 7.036, que regulou o acidente de trabalho, estabeleceu que além de não haver distinção entre filhos, a companheira que, por meio de qualquer ato solene de manifestação de vontade, comprovasse ser beneficiária no acidentado em vida, detinha os mesmos direitos do cônjuge legítimo.
Além disso, a lei n° 4.242 de 1963 estabeleceu que, mediante comprovação de convivência mínima de cinco anos, servidores civis, militares ou autárquicos poderiam incluir os gastos com a concubina em seu imposto de renda. Entretanto, tal hipótese só poderia ocorrer em casos de desquite, não podendo, os referidos agentes públicos, responderem pelo sustento da esposa, ou seja, a lei referia-se ao concubinato em sua forma pura.
Em 1964, o STF, por meio do enunciado da Súmula 380, versou sobre a necessidade de diferenciar duas situações no concubinato. Primeiramente, nos casos em que a mulher tivesse contribuído, com seu esforço ou trabalho pessoal, para compor o patrimônio comum, teria o direito de partilhar o patrimônio formado por ambos. Segundamente, havendo a comprovação de serviços domésticos ou de qualquer natureza, prestados ao companheiro a fim de organizar o lar, a mulher teria direito à retribuição devida pelos serviços prestados, como se fosse um contrato civil de prestação de serviços.
Nesse contexto, quando houvesse o rompimento do relacionamento more uxorio e a devida comprovação de contribuição da concubina para a formação do patrimônio comum, ocorreria então a tutela jurídica.
3.1 O TRATAMENTO LEGISLATIVO CIVIL E CONSTITUCIONAL
Como já visto anteriormente, as evoluções ocorridas na sociedade precisaram ser normatizadas pela legislação brasileira, com o objetivo de dar uma maior proteção jurídica àquelas famílias que não possuíam seus direitos amparados e nem sequer eram reconhecidas como entidade familiar. Assim, a união estável, que passou a ser reconhecida, ganhou um tratamento legislativo.
No código civil em vigor, a união estável é reconhecida como entidade familiar pelo artigo 1.723, necessitando de alguns requisitos cumulativos para configurá-la. Esses requisitos podem ser elencados como: convivência contínua e duradoura, pública e com o objetivo de constituir família.
A convivência pública significa que o casal precisa expor e desfrutar da sua relação perante a sociedade, ou seja, nos círculos sociais que o casal se faz presente, as pessoas precisam ter conhecimento da relação. Já em relação à convivência contínua e duradoura, a lei estabelece que o vínculo requer estabilidade, bem como um prazo de duração razoável.
O último requisito trata-se do mais subjetivo, uma vez que se refere ao objetivo de constituir família. Nesse contexto, embora o casal tenha planos de constituir futuramente uma família, a simples intenção não é suficiente para caracterizar união estável, tendo em vista a necessidade de materializar esse desejo na prática, como se já fossem casados.
A união estável, diferentemente do casamento, apresenta-se como um ato-fato jurídico, isso significa que o instituto não requer manifestação ou declaração de vontade para produzir efeitos, bastando sua configuração fática para que haja a aplicação da lei. Todavia, apesar de ser menos formal que o casamento, a união estável, diante dos pré-requisitos necessários para o seu reconhecimento, necessita de alguns documentos para a sua comprovação, tais como: certidão de nascimento dos filhos em comum, prova de mesmo domicílio, disposições testamentárias, conta bancária conjunta, entre outros.
À vista disso é importante pontuar que para configuração de união estável, era necessário transcorrer um prazo de 5 anos ou a existência de prole. Porém, tais critérios são dispensáveis atualmente, pois se necessita apenas o preenchimento dos requisitos presentes no artigo 1.723, já citado anteriormente, bem como nenhum impedimento constante no artigo 1.521, do mesmo dispositivo legal.
Outrossim, ainda no âmbito de configuração da união estável, o advento do código de 2002 preencheu algumas lacunas, como por exemplo a garantia de que pessoas casadas, mas separadas de fato, deverão ser reconhecidas como união estável. Na mesma linha de raciocínio, a ordem civil brasileira veda com força no artigo 1927 a existência de união no caso de relações simultâneas.
Como entidade familiar, as relações pessoais entre os companheiros deverão cumprir os mesmos deveres dados ao casamento, sendo eles: lealdade, respeito e assistência de guarda, sustento e educação dos filhos, conforme dispõe o artigo 1924 do código civil. Tal artigo tem como principal objetivo estabelecer deveres pessoais matrimoniais aos companheiros.
Em seu artigo 226, a Constituição Federal também reconhece a união estável como entidade familiar, dando-lhe a devida proteção estatal. Além disso, facilita sua conversão em casamento e também a define como entidade familiar, e a comunidade formada por qualquer um dos pais e seus descendentes pode ser conhecida como família monoparental. Ademais, também dá proteção aos contraentes e seus filhos, já que garante direitos iguais e qualificações e proíbe discriminações quanto à origem da filiação.
3.2 OS DIREITOS SUCESSÓRIOS DO CÔNJUGE E DO COMPANHEIRO
Uma vez apresentados em um contexto mais geral os principais aspectos que diferenciam a união estável do casamento, doravante serão tratados aspectos de suma relevância para o tema, como o tratamento do cônjuge e do companheiro no âmbito do direito sucessório e patrimonial e a importância de sua equiparação como ferramenta essencial e geradora de segurança jurídica, tal como decidiu recentemente o Superior Tribunal de Justiça (STF).
O código civil de 1916, faz referência às restrições impostas aos adeptos do concubinato. Em sua redação, o referido dispositivo legal proibia doações, benefícios testamentários do homem casado em relação à concubina, bem como a sua inclusão como beneficiária do seguro de vida.
Durante grande parte do século XX, muitos casais mantiveram a união estável com o intuito de constituir família, porém sem que houvesse amparo legal necessário aos companheiros sobreviventes. Durante esse período acumularam-se várias ações judiciais decorrentes do descaso estatal acerca do tema, comprovando a necessidade de regulamentá-lo, em razão da grande demanda social.
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, a união estável finalmente se concretizou como entidade familiar à luz do artigo 226. Todavia, sua redação mostrava-se incompleta, ao passo que não disciplinava sobre sucessão e alimentos, que são conteúdos de extrema importância para a complementação dos direitos dos companheiros.
No ano de 1994, a lei 8.971, além de mencionar alguns requisitos para viver em união estável, foi a primeira a dispor sobre as matérias citadas no parágrafo anterior. No que diz respeito à sucessão, existia a necessidade de que os companheiros estivessem vivendo juntos no momento de sua abertura. A lei também determinou o direito de usufruto legal, o qual seria intransferível e adquirido somente pelo companheiro, sem a possibilidade de que ele pudesse iniciar uma nova união.
Ao longo do processo de regulamentação da sucessão dos companheiros, houve várias chances de encerrar o assunto, de forma que o conteúdo foi tratado de forma completa. Porém, mais uma vez, em 1996, com a vigência da lei 9.278, o legislador deixou escapar pontos importantes.
Em seus estudos, Silvio de Salvo Venosa observa que o diploma legal citado anteriormente poderia ter aclarado definitivamente a questão, mas ainda confunde, pois se limitou, laconicamente, a atribuir o direito real de habitação ao companheiro com relação ao imóvel destinado à residência familiar, enquanto não constituísse nova união.
Com o advento do código civil de 2002, a transferência de herança e bens do companheiro falecido passou a ser tratada com mais profundidade pelo artigo 1.790. Entretanto, sabe-se que o tratamento diferenciado, no sentido da existência de menor aquisição de direitos, ainda se fazia presente.
De acordo com as diferenciações promovidas pelo artigo 1.790, o companheiro só teria direito a herdar bens adquiridos onerosamente na constância da união estável, de forma que o regime de bens só seria levado em consideração para separar a meação. Além disso, o companheiro, independente do regime adotado, não teria direito aos bens particulares ou que tivessem sido transmitidos a título gratuito para o finado, ainda que tivesse escolhido o regime de comunhão universal na união estável.
Referente à concorrência com os descendentes do falecido, o companheiro somente herdaria de maneira igualitária, se os descendentes fossem comuns, do consorte com o falecido. Ademais, ele também concorreria com os parentes do falecido, cabendo-lhe apenas 1/3 da cota adequada. A totalidade dos bens só poderia ser herdada em hipótese bastante remota, caso inexistissem parentes da pessoa falecida.
Após longa caminhada, em meio a uma sociedade conservadora, leis tratando do assunto de forma genérica e de consequências sociais irreparáveis causadas pela falta de amparo financeiro aos companheiros sobreviventes, o STF, em decisão recente, pautando-se em princípios como igualdade, dignidade da pessoa humana, proporcionalidade e vedação ao retrocesso, aprovou para fins de repercussão geral a seguinte tese: no sistema constitucional vigente é inconstitucional a diferenciação de regime sucessório entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado em ambos os casos o regime estabelecido no artigo 1829 do código civil.
Em razão dessa decisão, o artigo 1.790 do código civil de 2002 deve ser considerado inconstitucional pois fere os princípios citados anteriormente, em que o companheiro é tratado de maneira inferior na sucessão. Ademais, a decisão também se aplica a casais homoafetivos, os quais poderão usufruir dos mesmos efeitos da decisão.
Conforme as regras do artigo 1.829, a sucessão legítima se dará primeiramente aos descendentes, em concorrência com o cônjuge ou companheiro(a), dependendo do regime de bens do casamento ou da união, logo após será aos ascendentes em concorrência com o cônjuge ou companheiro(a), e em terceiro lugar, exclusivamente ao cônjuge ou companheiro(a), caso não haja ascendentes e descendentes. Não existindo nenhum deles, a sucessão legítima se defere aos colaterais.
É importante salientar que, apesar de figurarem na mesma ordem de vocação e submeterem-se aos mesmos critérios concorrenciais em relação aos ascendentes e descendentes, o Supremo não elidiu a possibilidade de exclusão da sucessão legítima por meio de testamento público ou particular.
No código civil de 1916, o cônjuge apresentava-se em terceiro lugar, logo atrás dos ascendentes e dos descendentes, além disso era considerado herdeiro facultativo, podendo fazer parte ou não do testamento. Entretanto, com o advento do código civil de 2002, somada à decisão recente do STF, houve uma mudança significativa em relação ao tema, e atualmente a ascensão do companheiro ao status de herdeiro necessário representa uma tendência em via de consolidação.
4 CONCLUSÃO
Ante o exposto, notam-se diversas transformações sofridas pela sociedade brasileira ao longo dos anos. A quebra de dogmas religiosos, como o reconhecimento do casamento civil em 1891, bem como a ruptura gradativa do conceito de patriarcalismo atrelado à família, que enaltece a afetividade como ferramenta primordial das relações familiares, concretizam a necessidade de mudança. Nesse sentido, o ordenamento jurídico brasileiro foi buscando meios para se adequar à realidade social e diminuir as desigualdades existentes.
Especificamente no que se refere aos direitos adquiridos pelos companheiros, a evolução é evidente, visto que a lei passou a tratar de forma clara os requisitos para se constituir uma união estável, assim como o rito necessário para a sua dissolução. Dessa forma, milhares de pessoas que decidiram não optar pelo instituto do casamento passaram a ter mais segurança jurídica ao se relacionarem.
Ademais, a equiparação no plano sucessório, recentemente reconhecida pelo STF, complementou de uma vez por todas o conteúdo anteriormente exposto pelas leis nº 8.971/94 e nº 9.278/96, que na época, já buscavam diminuir o abismo normativo presente entre os institutos colocados em foco pelo presente artigo. Ao ser tratado como herdeiro necessário, o companheiro passou a ter os mesmos direitos patrimoniais do cônjuge.
Nesse sentido, é correto afirmar que, durante muito tempo houve uma tentativa de camuflar e adiar o reconhecimento de outras entidades familiares, as quais sempre existiram, mas que por motivos conservadores, atrelados a conceitos historicamente reprováveis, permaneciam negligenciadas do ponto de vista legal. Entretanto, com o passar dos anos, os valores sociais e os costumes foram se flexibilizando, o que possibilitou, juntamente com a Constituição de 1988, o surgimento de decisões judiciais cada vez mais condizentes com os princípios que norteiam a vida do indivíduo no âmbito familiar.
REFERÊNCIAS
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2011.
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bacharelando do Curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho – UNIFSA.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: HELITON OLIVEIRA DE LIMA JúNIOR, . Equiparação de cônjuges e companheiros: o reconhecimento do poliformismo familiar na sociedade brasileira Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 jun 2021, 04:28. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56677/equiparao-de-cnjuges-e-companheiros-o-reconhecimento-do-poliformismo-familiar-na-sociedade-brasileira. Acesso em: 23 dez 2024.
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