VERÔNICA ACIOLY DE VASCONCELOS[1]
(orientadora)
RESUMO: A compreensão da mulher transexual ultrapassa sua delimitação em termos teóricos, sendo necessário o entendimento de suas experiências em sociedade, a estigma sobre seus corpos e das diversas implicações sob sua vida, inclusive, no cárcere. Reconhecendo o caráter hostil desse ambiente, se aflorou o questionamento quanto a um possível cruzamento de vulnerabilizações sob o corpo trans. Desse modo, o presente artigo delimitou a transexualidade e premissas básicas à luz de uma biografia com enfoque no gênero como categoria de análise, verificou o alinhamento das normas aplicáveis no cárcere trans para o direito brasileiro em relação às diretrizes internacionais e analisou a atuação dos três poderes da União na defesa de direitos da mulher trans. A pesquisa foi desenvolvida através do método de abordagem dedutiva e com uma revisão bibliográfica, especificamente sobre a análise categórica do gênero, de direitos previstos no texto Constitucional e de normas que tratem da recepção da mulher trans no cárcere. Foi possível concluir do presente estudo que a insegurança jurídica presente na recepção da mulher transexual no ambiente carcerário, bem como as violências encontradas com levantamento de dados e a subnotificação levam ao cruzamento quanto ao processo de vulnerabilizações.
Palavras-chave: mulher transexual; sistema prisional; vulnerabilização.
ABSTRACT: The understanding of the transsexual woman goes beyond its limits in theoretical terms, requiring an understanding of their experiences in society, the stigma on their bodies and the various implications for their lives, even in prison. Recognizing the hostile nature of this environment, the question arose regarding a possible crossing of vulnerability under the trans body. Therefore, this article delimited transsexuality and basic premises in the light of a biography focused on gender as a category of analysis, verified the alignment of the rules applicable in trans prison to Brazilian law in relation to international guidelines and analyzed the performance of three powers of the Union to defend the rights of trans women. This research was developed through the method of deductive approach and with a literature review, specifically on the categorical analysis of gender, rights provided for in the Constitutional text and norms that deal with the reception of trans women in prison. It was possible to conclude from this study that the legal uncertainty present in the reception of transsexual women in the prison environment, as well as the violence found in data collection and the underreporting, lead to an intersection with regard to the process of vulnerability.
Keywords: Transsexual woman; prison system; vulnerability.
Sumário: 1 Introdução – 2 Gênero e normatividades: 2.1 A historicização do gênero como categoria analítica; 2.2 As pistas delas: reflexos da vulnerabilização – 3 O direito para elas: 3.1 3.1 A Resolução Conjunta nº 1/2014 e sua influência; 3.2 Atuação do Departamento Penitenciário; 3.3 Relatório do cárcere trans e os dados anuais – 4 Novas diretrizes, velha cisnorma: o entendimento do Judiciário e do Legislativo: 4.1 Posicionamento do Conselho Nacional de Justiça; 4.2 Reação no Poder Legislativo – 5 Conclusão – Referências.
1 INTRODUÇÃO
O presente estudo analisou a interface entre o reconhecimento da existência de corpos transexuais femininos e o reflexo sob estas, quando privadas de liberdade. Assim, tem-se como ponto de partida o delineamento de contornos e identificação do que seja a transexualidade, desafiando o senso comum de aspectos fisionômicos e adentrando na leitura do gênero de diferentes interpretações, permitindo a identificação e compreensão das vulnerabilizações diferenciadas projetadas na mulher transexual no ambiente carcerário.
Partindo do contexto sucintamente delineado, cabe pormenorizar sobre o estigmatização[2] social das transexuais. Afastadas da sociedade, essas mulheres tornam-se alvos de discriminação que se reflete de diversas maneiras. Profissionalmente, são poucas as oportunidades que lhes são ofertadas social. Ainda que não seja uma realidade universal, geralmente estão ligadas a serviços de embelezamento ou prostituição (PIZZI; PEREIRA; RODRIGUES, 2017), e quando atuantes nesta, torna-se iminente a exposição à criminalidade, consequentemente, à possibilidade de ingressarem no sistema prisional.
Considerando o potencial processo de vulnerabilização[3] do corpo trans diante ao estigma em sociedade, depreende-se que esse quadro tende a se agravar no ambiente carcerário. Como apresentado por Silva (2019), as unidades prisionais atrelam-se ao conceito de um local de total punição, permitindo que a figura humana dotada de direitos se perca em meio às violações. É dessa vulnerabilização que surge o questionamento: de que forma é recepcionada a mulher transexual encarcerada? Tendo em vista que representam um grupo já marginalizado na convivência em sociedade, ocorre o cruzamento de vulnerabilizações sob elas nesse ambiente?
Na esfera internacional, dentre os tratados que dispõem sobre os direitos humanos, destacam-se os Princípios de Yogyakarta (2007), um documento com orientações aos Estados sobre as normas de Direitos Humanos no tocante à orientação sexual e identidade de gênero, inclusive, no cárcere. Já em âmbito nacional, o marco inicial no que tange à presença da mulher transexual nas unidades prisionais se deu com a Resolução Conjunta nº 1 de 15 de abril de 2014. Com o advento da Resolução citada, alguns estados adotaram resoluções e decretos semelhantes, apresentando medidas da recepção da população lgbt+ nas unidades prisionais.
Com a intenção de apresentar dados quantitativos e qualitativos sobre a realidade da população LGBT nas unidades prisionais brasileiras, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (2020) publicou o relatório “LGBT nas prisões do Brasil: Diagnóstico dos procedimentos institucionais e experiências de encarceramento”, descrevendo a quantidade de presos autodeclarados LGBT, bem como sobre o preparo estrutural das unidades para receber essas pessoas. Ademais, foram considerados dados levantados nos dossiês publicados pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais nos últimos dois anos, no intuito de demonstrar em números a vulnerabilização que vivem muitas mulheres trans no Brasil.
Por fim, foi analisada a atuação dos Poderes Judiciário e Legislativo quanto a temática, destacando-se a Resolução nº 348/2020 que estabelece diretrizes e procedimentos que devem ser observados pelo magistrado, bem como a reforma de medida cautelar deferida na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 527 (STF, 2021). Além dos pontos até aqui destacados, foram analisadas as movimentações que vão de encontro a essa tentativa de proteção da mulher trans. Destacando-se como medida de reação frente a Resolução supramencionada, foi analisado o Projeto de Decreto Legislativo 481/2020, apresentado sob fundamentação de que teria ocorrido ativismo judicial, uma vez que o ato resolutivo estaria quebrando o disposto constitucional sobre a competência legislativa para temáticas de direito penal e processual penal.
Diante o exposto, a partir do aprofundamento de conceitos fundamentais da temática, da normativa internacional, nacional e da presença da mulher transexual no ambiente carcerário, tomou-se como objetivo a delimitação do que se entende por transexualidade e de demais premissas básicas ainda confundidas com aquela, a análise das previsões normativas existentes no Brasil, se realmente essas alinham-se às diretrizes internacionais e se buscam amparar direitos e garantias dessas pessoas, especialmente, quanto às regulamentações específicas aplicadas no cumprimento de pena e a atuação dos três poderes da União. A temática mostra-se relevante socialmente por abordar conceitos que frequentemente são confundidos e atrelados ao fator biológico, o que acaba desvirtuando o real significado da fluidez do gênero. Ademais, mostra-se juridicamente importante pelo fomento a discussão de temas com recentes alterações favoráveis no âmbito judicial e movimentações no legislativo.
2 GÊNEROS E NORMATIVIDADES
As discussões sobre as vivências e vulnerabilizações presentes na vida da mulher transexual pouco a pouco ganham mais espaço. Desde as ínfimas conquistas de direitos básicos aos relatos sobre problemáticas que ainda vivem em sociedade, a presença destes corpos no ambiente carcerário passou a chamar atenção pelas recentes movimentações no judiciário e legislativo ao tratarem sobre o acolhimento destas no sistema penitenciário. Mas para que se alcance a reflexão sobre as implicações dessa atuação é de suma importância que seja traçada uma noção sumária da transexualidade e conceitos básicos de pontos interseccionais a ela que, muito embora tratem-se de categorias aptas de análise sem que se configurem como acessórios, devem ser pensadas conjuntamente (GOMES, 2017).
Tomando como fonte os escritos da autora supracitada, ainda que pensado de forma interligada com tais premissas, o gênero caracteriza-se como objeto de análise própria, como ação de desenvoltura performática. Esse segmento quanto à interpretação do gênero foi preferido e esmiuçado no delinear das subdivisões seguintes deste capítulo. Por ora, é preciso iniciar a delimitação desses pontos que se atrelam à análise da temática.
Historicamente marcado por mudanças em sua leitura, o sexo parte de posicionamentos divergentes quanto ao seu surgimento e de sua relação com o gênero. Inicialmente, relata-se que a noção do sexo como fator natural e determinado por estruturas corporais surge intencionalmente e passa a ser aderido de modo a separar-se do gênero por completo, estando esse ligado tão somente à construção social e posterior ao fator biológico (PEREIRA; SIERRA, 2020). Em contrapartida, nos escritos feministas do século passado, Scott (1995) apresenta-lhes de modo que a construção identitária represente a sociabilidade dos corpos sexuados. Embora se desvincule das leituras isoladas dessas premissas, a autora segue o entendimento de sexo como biológico.
Ainda que não negue a importante contribuição de Joan Scott na construção de suas reflexões, Butler (2015) tece críticas à essa naturalização, de modo que o gênero lhe representaria uma terra fértil para cultivação do sexo, desviando a visão totalmente natural desse. E vai além: criar a polaridade de um como construção social e do outro como advindo da natureza, acaba por reforçar a problemática do binarismo como ideal.
No tocante à orientação sexual, Gléria Junior (2020) apresenta-lhe como premissa que:
associada ao desejo erótico-afetivo, é a atração física, romântica e emocional. Na percepção binária, a orientação sexual é diretamente relacionada ao sexo, aquele que nasce “homem” espera-se que tenha atração por mulher, assim como a “mulher” espera-se que tenha atração erótico-afetiva por homem. (GLÉRIA JUNIOR, 2020, p. 10)
A polaridade delatada pelo autor torna-se impulso para que o sentimento e desejo sexual do indivíduo também seja visto como fator de cumprimento aos traços corporais. Se do sexo feminino exige-se a presença de órgãos e traços legitimadores, a orientação sexual desse corpo também se amarra a um desejo fixo. É justamente esse o ponto responsável pelas desumanizações dos que fogem da normatização da sexualidade que, embora não seja mais tão marcante no campo científico como em outros tempos, é legitimada por discursos atuais de cunho político e religioso (HIRSCH; MENEZES, 2019).
Seguindo esse delineamento, vislumbra-se uma cadeia de expectativas quanto a essas premissas, inclusive, do gênero. Se do sexo é exigido a presença de tais traços de legitimação, o mesmo aplica-se à identidade de gênero incumbida de pertencer a um único possível sexo, bem como exercer uma sexualidade já determinada. Diante a persistência dessa leitura binária, a escrita acadêmica constrói um termo capaz de denunciar a normatização do gênero preexistente e o estado de patologia criado sobre a transexualidade:
Cisgênero é uma palavra cunhada no final do século XX e que ganha difusão principalmente no século XXI como um operador conceitual, ou seja, por seu uso tornar possível nomear um conjunto de pessoas (cisgênero, cissexual) é ferramenta discursiva para denunciar violências que as populações travestis, transexuais, transgêneras e não bináries estão submetidas por não se adequarem à normalidade suposta, esperada e compulsória. (BONASSI, 2020, p. 23).
Em que pese a colocação de Bonassi, o cisgênero não surge como reforço à idealização de corpos, mas como demonstração da existência de uma norma capaz de deslegitimar a identidade de gênero do ponto de vista construtivo. Partindo de todo o exposto, apresentar a transexualidade torna-se um feito mais prático, já que facilmente sua compreensão é confundida com o sexo e a sexualidade (JESUS, 2012). Assim, a transexualidade pode ser:
entendida como a ruptura do pacto de “normalidade” e previsão “natural” de conformidade e diálogo entre sexo e gênero. É uma forma de “nomear” os corpos e performances que desestruturam as “verdades imutáveis” do sexo e as performances dissidentes dentro da norma de gênero esperada. (LOPES; LEITE, 2020, p. 28)
Ainda no tocante à delimitação de transexualidade, é preciso derrubar de vez o uso de traços legitimadores: a alteração do corpo ou das características fisionômicas através de procedimentos médicos ou cirúrgicos não se mostra uma necessidade para o reconhecimento daquele corpo, mas sim a sua autodeclaração (VIEIRA; SOUSA, 2019).
Sumariamente delimitados os pontos interseccionais ao gênero e a própria transexualidade, impera situar o gênero e, consequentemente, a construção identitária no tempo. Mesmo sendo de suma importância, a simples conceituação não é suficiente para que se chegue à discussão de vulnerabilizações refletidas na mulher trans, uma vez que é preciso situá-la historicamente até que o debate sobre as violências ainda cometidas contra a mesma se torne mais fluido.
2.1 A historicização do gênero como categoria analítica
Ante a busca pela compreensão da transexualidade feminina, importa perquirir ainda desde as primeiras discussões sobre o gênero na literatura feminista. À luz do que apresenta Scott (1995), este segmento de escrita dispôs de importantes colocações teóricas que marcaram as primeiras movimentações sobre o gênero no campo científico: desde a análise das implicações do patriarcado sob a mulher, passando pela correlação deste com a economia marxista, chegando aos posicionamentos escolares psicanalíticos sobre a construção da identidade do indivíduo.
Mesmo reconhecendo essa contribuição enquanto uma das primeiras discussões científicas sobre o tema, a autora em questão aponta que “na sua maioria, as tentativas dos/as historiadores/as para teorizar o gênero permaneceram presas aos quadros de referência tradicionais das ciências sociais, utilizando formulações há muito estabelecidas e baseadas em explicações causais universais” (SCOTT, 1995, p. 74).
Ao passo em que buscavam respostas sobre as implicações refletidas historicamente na mulher de diferentes formas, também se utilizavam desses mesmos parâmetros sintetizados sobre a concepção da mulher, principalmente ligados às características biológicas. Com a denúncia dessa oposição binária entre o feminino e masculino, Scott passa a delimitar seu entendimento: presente não só na experiência social, o gênero representa o espaço de manuseio do poder (1995). Ademais, abordando subdivisões dos pontos primários da sua compreensão, sinaliza à leitura subjetiva e construtiva, indo de encontro à teorização de forma cerrada.
Instigada pela visão analítica de Scott, Judith Butler apresenta reforço à crítica da leitura do gênero em termos incisivamente delimitados e universal. Em sua obra “Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão de Identidade” (2015), a filósofa defende o caráter ramificado do gênero, por entender que este é lido em conjunto com fatores raciais, classistas e tantos outros aptos a serem articulados pelo poder. Conquanto tenha delineado seu ponto de vista nos termos em questão, a autora não nega que ainda há certa tendência à uma taxatividade da noção de indivíduo feminino e das implicações desse dinamismo:
Com efeito, a insistência prematura num sujeito estável do feminismo, compreendido como uma categoria una das mulheres, gera, inevitavelmente, múltiplas recusas a aceitar essa categoria. Esses domínios de exclusão revelam as consequências coercitivas e reguladoras dessa construção, mesmo quando a construção é elaborada com propósitos emancipatórios. (BUTLER, 2015. p. 21)
Ao tratar sobre as reflexões do gênero com um olhar voltado ao feminismo, a filósofa destaca a delimitação do que se entende por sujeito feminino que representa a mulher. Ao reconhecê-la como ser dotado de características estáticas e que legitimem os sujeitos como mulheres ou não, ocorre a consequente exclusão da mulher transexual. Para Butler (2015), na leitura identitária é preciso olhar para fatores intersecionais já apresentados, tendo em vista que a performatividade do gênero e as violações suportadas pela mulher podem se dar de diversas formas. Frise-se que, ao problematizar as implicações dessa delimitação do sujeito feminino sob a mulher transexual, não se nota qualquer intenção da autora em deslegitimar as lutas e conquistas do movimento feminista, mas sim em demonstrar a potencial possibilidade de exclusão ao se estabelecer delimitações universais desses corpos.
Diante disso, visto que as autoras em questão reconhecem a leitura do gênero de forma construtiva como mais abrangente ao indivíduo feminino, mas não negam essa histórica compreensão da mulher de forma mais concisa, depreende-se que esta última segue sendo vista como molde aceito socialmente.
Desde o nascimento, ou ainda quando concebido, o corpo se depara com expectativas de como se comportar em sociedade, partindo da identificação do “sexo biológico”[4]. Consagradamente, essas expectativas ainda são vistas como atribuições da essência do sexo: do corpo com útero, espera-se a manifestação de comportamentos e características de uma mulher; o corpo que apresente falo, que se manifeste como homem (JESUS; ALVES, 2010).
O fato é que o agregamento dessas expectativas ao sexo decorre da compreensão de gênero ainda estar presa ao cumprimento de determinados papéis a cada sexo (SANTOS E IZUMINO, 2005). O corpo já reconhecido biologicamente ainda no acompanhamento da gestação, é recepcionado por um aparato de instrumentos construídos pelas convicções sociais que determinam que o gênero a ser construído será o que, historicamente, é atribuído aos que a ele se assemelham.
Ainda predominando como ideal normativo, a binariedade submete os corpos ao cumprimento do gênero conforme suas características fisionômicas, o que torna a experiência pessoal da construção dessa identidade bem mais complexa. Importa destacar, ainda, que essa implicação perdura devido a sua reprodução pela sociedade (BARRETOS, ALEIXO E SOARES, 2020).
2.2 As pistas delas: reflexos da vulnerabilização
Com a manifesta predominância e reprodução dessa idealização, a convivência da mulher transexual no seio da sociedade se torna difícil, senão, de grande risco para sua vida. Desde o âmbito escolar, local que em tese se destinaria à construção do respeito às diferenças dos indivíduos, na verdade, este acaba por reproduzir o ideal da cisgeneridade (SOUZA e BERNARDO, 2014). Vivenciando a constante afirmação de naturalidade do que não são e a deslegitimação do seu eu como sujeito social, a permanência nesse ambiente torna-se mais penoso. Essa percepção é relatada pelos autores como um ciclo de difícil quebra, mostrando-se na prática pela presença rara da mulher transexual nas tarefas laborais em ramos diversificados.
Sendo exigido dos sujeitos a manifestação de seu gênero em conformidade ao sexo no convívio social, logo, também em ambiente de trabalho, a mulher trans depara-se com a difícil aceitação para o exercício de alguma atividade. Ainda que o mercado contemporâneo exija um embasamento de qualificação bem mais complexo para uma disputa com “paridade de armas”, essa equidade apresenta certa dificuldade no campo da identidade de gênero (PIZZI; PEREIRA; RODRIGUES, 2017), uma vez que a leitura dos traços corporais tende a falar mais alto.
Em pesquisa realizada por meio de entrevista, no tocante à atuação de pessoas transexuais no mercado de trabalho, relata-se:
Os discursos mostram uma dificuldade de se conseguir empregos, mas há também fragmentos que revelam uma mudança nesse aspecto. Essa maior facilidade de conseguir emprego é devido à normalização que os transexuais operam em seus corpos, ajustando-os ao modelo binário de gênero, reafirmando, dessa maneira, gênero como algo estável que se relaciona diretamente com um corpo também estável. Contudo, essa facilidade só acontece se mantiverem invisível sua condição de transexual (CARRIER; SOUZA; AGUIAR, 2014, p. 90).
Tomando por base o depoimento de mulheres trans e travestis, os autores delatam a perpetuação e aceitação cis, de modo que os corpos considerados dissidentes até podem obter certa abertura no mercado de trabalho, desde que manifestadamente tangentes aos corpos legitimadores de humanidade.
Da pesquisa de Pizzi, Pereira e Rodrigues (2017), depreende-se que como fruto das implicações de vulnerabilização sobre a mulher transexual, o exercício de uma atividade laboral na informalidade mostra-se saída para manutenção do seu sustento. Ademais, na grande maioria, essa aceitação limita-se ao exercício de funções que não demandam tanta visibilidade dessas mulheres.
Em uma sociedade predominantemente capitalista, exige-se dos sujeitos a força do trabalho, logo, sobre os que são deslegitimados pelo poder, enfrentam um duplo peso para tal feito. Dentre as oportunidades vista por parte considerável da população transexual, destaca-se a prostituição. Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA, 2021), acredita-se que cerca de 90% das mulheres transexuais no Brasil usam o sexo como sua principal fonte de renda. A “escolha” pelas pistas e esquinas acaba por agravar o estigma gerado sob essas mulheres, uma vez que a sua prática ainda é vista com maus olhos pela sociedade, como profissão condenável (LIMA; NASCIMENTO, 2014, p. 77).
Importa mencionar o que dispõe a Constituição Federal (1988, grifo nosso) sobre os direitos sociais, sendo estes “a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.
O fato é que o entendimento constitucional destacado não é percebido para a população transexual atuante nessa área. Muito embora o extinto Ministério do Trabalho tenha reconhecido o caráter profissional, inexiste regulamentação legal do exercício da prostituição (BRASIL, 2002). As mulheres que atuam como profissionais do sexo enfrentam violências, a ausência de uma remuneração fixa, além da informalidade profissional, permanecendo sua prática desamparada pelo direito (ABAL; SCHROEDER, 2017).
Com o afastamento do convívio social, o mercado de trabalho com portas fechadas e a prostituição como única saída ao sustento, acabam sendo alvos das mais diversas atrocidades no exercício da profissão. Essa violência é classificada pela comunidade militante como transfobia, posto que esse agir se dá pela razão do ser, pela não aceitação do simples existir desses corpos, ainda que afastados do meio social (SOUZA, 2019).
Não limitando-se ao já denunciado, essas mulheres enfrentam ainda a violência legitimada pelo Estado. Em estudo sobre as vivências de transexuais e travestis no estado da Bahia ainda no século XIX, Santos (1997) denuncia a perseguição policial às mulheres transexuais[5] que demonstravam sua verdadeira identidade nas ruas, existindo à época uma associação do uso de trajes comumente femininos como disfarce para a prática de crimes. A respeito dessa relação, importa esclarecer que:
Partindo de um espectro criminológico, concebe-se a ideia de que as pessoas trans não são determinadamente criminosas habituais, ou seja, pessoas que fazem do crime seu meio de vida, mas, em verdade, tratam-se de criminosas ocasionais, que em razão da marginalização imposta pela sociedade são inseridas em contextos execráveis, ficando, então, sujeitos à delinquência (SILVA, 2019, p. 11)
Em concordância aos escritos do autor supracitado, a prática de delitos por essa parcela da sociedade não cabe como parte da construção identitária dessas mulheres. Importa reconhecer a excepcionalidade dessa prática e da não configuração como regra comportamental de pessoas trans, mas sim como um possível resultado diante as inúmeras violências que suportam. Zamboni (2017), apresentando a experiência de encarceradas, demonstra nos relatos a consciência destas sobre a prática de delitos não representar a sua essência.
Pelo contrário, o autor segue a premissa de que “a ambivalência da pista como um cenário onde podem ser praticados tanto a prostituição quanto o crime permite a elas elaborarem de diferentes formas a trajetória que as levou “da pista para a cadeia” (ZAMBONI, 2017, p. 102), inexistindo o famoso “fator biológico” como justificativa desse caminho.
3 O DIREITO PARA ELAS
O delineamento histórico de fatos e da literatura, feito desde a compreensão da transexualidade feminina até as implicações da vulnerabilização, como fator decisivo quanto à inserção dessa população no sistema prisional, mostrou-se razoável para que fosse possível a discussão sobre os direitos reconhecidos da mulher trans. Afinal, uma vez presa, de que forma as vulnerabilizações já suportadas cotidianamente pela mulher trans se cruzam com as enfrentadas no cárcere, de modo geral?
Não se contendo às previsões normativas e decisões judiciais, buscou-se, inicialmente, dispor das principais disposições legais no tocante à figura humana e cidadã, em âmbito nacional e internacional:
1. Os Estados-Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social.
2. Para os efeitos desta Convenção, pessoa é todo ser humano (CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 1969).
Indicando os direitos e liberdades da pessoa, exigindo-se ainda o respeito à pessoa em todos os âmbitos sem qualquer tipo de discriminação e ao definir pessoa como todos os seres humanos, o pacto, em tese, legitima todos os sujeitos como seres que possuem direitos e garantias a serem respeitadas, inclusive, a mulher transexual.
Ao apresentar os direitos e deveres individuais e coletivos, a Carta Magna Brasileira dispõe o seguinte:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
I - Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;
(...)
XLVIII - a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado; (BRASIL, 1988)
Ainda que o texto constitucional siga o fundamento da dignidade da pessoa humana, o fato que se destaca é a notória adoção desse indivíduo de direitos tão somente como homem e mulher. O fato é que, corriqueiramente, a leitura desse gênero de polos distintos e estáticos tende a prevalecer, configurando a denúncia de Bonassi (2019, p. 29) da cisnorma, considerando-a como a “eleição de uma maneira correta, moral, regular, saudável e normal de performativizar um sexo/gênero”.
No mesmo segmento, o inciso XLVIII do artigo 5º da Constituição ao dispor da divisão dos estabelecimentos prisionais, o faz com base na natureza do crime, pela idade do autor e pelo sexo. Em um cenário que o gênero fosse considerado nos termos de uma construção identitária no cárcere brasileiro, o encaminhamento poderia tomar a autodeterminação como indicativo do mesmo.
Além das disposições constitucionais e de tratados no tocante à humanidade desses corpos, impera tratar sobre a legislação específica em defesa das violências em razão do gênero. Comumente chamada de Lei Maria da Penha, a Lei nº 11.340 (BRASIL, 2006), pensada como meio de coagir as violências contra a mulher vítima de violências doméstica e familiar, gera alguns questionamentos sobre o indivíduo alvo de sua aplicação. Preambularmente, a legislação dispõe:
Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. (BRASIL, 2006, grifo nosso)
Assim como apresentado sobre o texto constitucional, muito se questiona a respeito dessa interpretação do termo “mulher”, até que ponto as disposições legais asseguram proteção à mulher transexual partindo dessa Lei. Esse receio advém das denúncias já pontuadas neste estudo, no tocante a troca de leituras e entendimento sobre o que compreende a transexualidade, a orientação sexual e o sexo.
Ademais, ainda quando verificado uso da legislação em questão como medida protetiva à mulher trans, no texto legal inexiste qualquer menção à mesma. Não obstante a Lei nº 11.340/06 possa ser usada em combate às inúmeras violências suportadas por essas mulheres, o fato é que se um magistrado entende como oportuno utilizar-se da Lei em favor destas, tal feito se dá pela interpretação extensiva e uso da analogia (LOPES; LEITE, 2019), logo, uma interpretação sujeita ao entendimento de cada magistrado.
Considerando esta ausência, o Projeto de Lei nº 8032 (BRASIL, 2014) de autoria da deputada federal Jandira Feghali, surgiu como tentativa de estender as medidas de proteção previstas na Lei Maria da Penha às mulheres transexuais. Ocorre que, ao dispor das justificativas do projeto de lei, nota-se que a deputada define a transexualidade à negação do corpo e de um possível desejo de mudança através de procedimentos cirúrgicos e hormonais, ignorando o fato de que a identificação da mulher transexual independe do desejo de procedimento de redesignação de órgãos (VIEIRA; SOUSA, 2019). Ademais, em tramitação desde o ano de 2014, o projeto segue em passos lentos na apreciação das comissões, permanecendo as demandas da população transexual à mercê da atuação judicial.
Retornando ao âmbito internacional, cabe apresentar os Princípios de Yogyakarta (2007) como importante documento na defesa de direitos relacionados à orientação sexual e identidade de gênero. Dentre os diversos temas que levaram os pesquisadores à elaboração do referido documento, como acesso à saúde, à assistência social, acompanhamento psicológico e tantos outros, destaca-se para a temática deste estudo o postulado sobre o cumprimento de pena, dispondo o seguinte no princípio 9:
Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com humanidade e com respeito pela dignidade inerente à pessoa humana. A orientação sexual e identidade de gênero são partes essenciais da dignidade de cada pessoa.
Os Estados deverão:
[...]
c) Assegurar, na medida do possível, que todos os detentos e detentas participem de decisões relacionadas ao local de detenção adequado à sua orientação sexual e identidade de gênero; (PRINCÍPIOS DE YOGYAKARTA, 2007)
Desde as primeiras orientações, nota-se que os o documento principiológico denuncia a potencial chance de que o quadro de marginalização possa ser agravado ao serem inseridas no cárcere, destacando a importância de se promover meios para evitar o agravamento dessas vulnerabilizações. No princípio citado acima, elenca orientações ideais desde a recepção da mulher trans no cárcere, adoção de medidas que visem a ressocialização e a proteção das mesmas neste ambiente.
Dentre os escritos do princípio 9, a participação da mulher transexual presa quanto ao local de cumprimento dessa pena passou a chamar atenção, inclusive, no direito brasileiro. Dessa motivação, surgiram disposições normativas que tinham como objetivo atender as especificidades dessa população carcerária.
3.1 A Resolução Conjunta nº 1/2014 e sua influência
Destacando-se como “marco zero” dentre as normas existentes no direito brasileiro que tratam da custódia de pessoas lgbtqia+, a Resolução Conjunta de nº 1, de 1º de abril de 2014, publicada pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), apresenta um compilado de orientações, desde a recepção dessas pessoas em sua chegada às unidades, passando pelo inserimento de nome social e criação de celas/alas específicas.
Ao tratar da determinação do local de cumprimento da pena por mulheres e homens transexuais, a Resolução adota:
Art. 4º As pessoas transexuais masculinas e femininas devem ser encaminhadas para as unidades prisionais femininas.
Parágrafo único. Às mulheres transexuais deverá ser garantido tratamento isonômico ao das demais mulheres em privação de liberdade. (CONSELHO NACIONAL DE POLÍTICA CRIMINAL E PENITENCIÁRIA, 2014)
Sem embargo ao foco do presente estudo que se trata do encarceramento feminino trans e das normas ao seu dispor, importa destacar que a Resolução adota o caráter compulsório no encaminhamento de homens transexuais, demonstrando o desconhecimento a respeito da identificação do gênero e de sua transitoriedade. Muito embora o fato possa se justificar como medida de proteção aos homens transexuais, a medida peca quanto à figura da normatividade compulsória (BONASSI, 2019) e exclusão da participação do preso/presa na escolha.
Ademais, ao abrir uma conceituação da população LGBT, a Resolução caracteriza a transexualidade como “pessoas que são psicologicamente de um sexo e anatomicamente de outro, rejeitando o próprio órgão sexual biológico” (CNPCP e CNCD, 2014, p. 2). Ora, tendo em vista que essa fora apresentada como uma experiência interna pessoal e profunda, podendo estar ou não ligada a necessidade de alteração de partes do corpo (PRINCÍPIOS DE YOGYAKATA, 2006) torna-se descabível limitar a transexualidade apenas quanto a uma negação de órgão que representem o sexo biológico.
Embora apresente pontos como os destacados que exigem um aprofundamento na temática, a Resolução foi o pontapé para que outros vislumbrassem a necessidade de delinear em previsões normativas o acolhimento dessas mulheres ao serem inseridas no cárcere. Foram encontradas resoluções (RIO DE JANEIRO, 2015), decretos (PARAÍBA, 2017) e portarias (ALAGOAS, 2017) com orientações aos estabelecimentos prisionais dos referidos estados em alinhamento ao texto apresentado pela Resolução Conjunta.
3.2 Atuação do Departamento Penitenciário
Órgão sob às ordens do Ministério da Justiça e Segurança Pública e de apoio ao Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, o Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), no ano de 2019, manifestou interesse em criar um manual de procedimentos para revista e busca pessoal em população de lésbicas, gays, bissexuais e transexuais no sistema prisional brasileiro, bem como uma proposta de treinamento dos agentes penitenciários para receber esse público. Através da Portaria BAGDEPEN nº 10 (DEPEN, 2019), criou-se um grupo de trabalho para a elaboração do manual mencionado.
Como medida preventiva, o Departamento Penitenciário Nacional emitiu duas notas técnicas com recomendações sobre o acolhimento LGBT nos estabelecimentos prisionais dos estados.
No tocante às mulheres transexuais, a Nota Técnica nº 60/2019 apresentava o encaminhamento para unidade prisional da seguinte forma:
Às mulheres transexuais presas - considerando que pode haver encaminhamento do Judiciário de mulher transexual, à unidade prisional feminina ou masculina, (com ou sem cirurgia e independentemente da retificação de seus documentos), para cumprimento de ordem judicial, o(a) gestor(a) prisional, responsável pela inclusão na unidade ou Comissão Técnica de Classificação deve [...]. (DEPEN, 2019)
Nota-se que até então o encaminhamento de mulheres trans para unidade feminina ou masculina dependia de decisão judicial, ignorando a autodeclaração da mulher ou manifestação de vontade da mesma em ser encaminhada para onde entenda se encaixar corretamente.
Não obstante tenha-se encontrado esse encaminhamento atrelado apenas à decisão judicial, uma nota técnica foi publicada no ano de 2020 pelos grupos e coordenações do departamento penitenciário com o seguinte texto. In verbis:
É possível haver encaminhamento da mulher transexual (com ou sem cirurgia e independentemente da retificação de seus documentos) à unidade prisional feminina ou masculina, dependendo de manifestação de vontade da pessoa presa e mediante expressa autorização da Comissão Técnica de Classificação, observando a identidade de gênero indicada pela pessoa presa, ou para cumprimento de decisão judicial, sendo o gestor prisional responsável por [...]. (DEPEN, 2020, grifo do autor).
A alteração do entendimento do órgão na nova nota técnica demonstra o aprofundamento do órgão na temática, de modo a considerar disposições já mencionadas e adotando a autodeclaração como influência na determinação do local da prisão. Embora uma possível alteração permaneça em tempo que essa mulher transexual já esteja inserida em unidade prisional destoante à sua identidade, a medida possibilita que a manifestação por transferência possa, em tese, ser suficiente à análise.
3.3 Relatório do cárcere trans e os dados anuais
A existência de disposições normativas que busquem orientar as unidades prisionais e os órgãos a frente da administração penitenciária estaduais mostram-se importantes como impulso à proteção da mulher trans. Mas a mera disposição em normas sobre medidas de recepção ou da determinação de unidade a ser cumprida a pena, não demonstra o efetivo cumprimento. À luz do que reflete Silva (2019), o cárcere compreende um ambiente que muito se diferencia do que há previsto em lei e normas sobre ele, sendo preciso estar constantemente atento ao que ocorre no seu interior.
Adotando medidas em concordância a essa realidade, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) promoveu um relatório no intuito de mapear o encarceramento LGBT no Brasil, bem como averiguar a observância da Resolução Conjunta nº 1 (CNPCN, 2014) nas unidades prisionais.
Através de um questionário enviado para a administração penitenciária de cada estado, buscou-se obter informações sobre o preparo estrutural e a densidade populacional. Dos 1.449 estabelecimentos prisionais do Brasil (MMFDH, 2020), houve uma baixa devolutiva do documento. Dos 506 estabelecimentos que apresentaram seus dados, apenas 106 afirmaram ter estrutura apta com celas/alas específicas à população LGBT, sendo todos destinados a homens presos.
Em relação às pessoas transexuais presas, o levantamento indica que nas unidades mapeadas foram encontradas 166, sendo apenas 03 homens transexuais. Das 163 mulheres trans, não se encontravam todas resguardadas em espaços específicos, havendo relatos de agressões verbais e físicas, por outros detentos e agentes penitenciários.
Eu passei 45 dias na triagem, só depois que eu fui pro acolhimento. Eu saí de lá porque me tiraram. Tinha um coroa lá que não gostava da gente. Ele é preconceituoso. A gente está na cela 3 agora. Por sorte ninguém mexe com a gente, mas o melhor seria se tivesse uma cela pra gente, os casais, os gays juntos. Se fica tudo misturado, quando acontece uma rebelião, os primeiros a ser pegos somos a gente, os gays e os homossexuais. A maioria das cadeias são de facções e eles não aceitam. [choro]. (MMFDH, 2020).
Embora refiram-se como “gays” e “homossexuais”, insta esclarecer que o uso desses termos em cenários distantes do campo científico assume papéis genéricos, logo, utilizado muitas vezes para se referir à mulheres trans ou outros integrantes da comunidade lgbtqia+ (ZAMBONI, 2017). O relato, embora não universalize as vivências dessa comunidade, representa situação encontrada em algumas das unidades prisionais que apresentaram seus dados. Por sinal, a pouca adesão do questionário demonstra a difícil tarefa de se obter um diagnóstico mais próximo da realidade, podendo essa mesma situação ser reproduzida sob tantas outras mulheres silenciadas pela agressão, inclusive, advinda daqueles que deveriam zelar pelo cumprimento de sua pena e a observância de seus direitos.
Por outro lado, foi possível perceber uma certa diferença na vivência da mulher trans em unidades que possuem alas e celas específicas. O relatório chegou ao diagnóstico de que, nesse ambiente que as separa dos demais presos, essas mulheres convivem de forma mais pacífica, havendo aceitação das características tangentes à sua identidade, principalmente, a permanência dos cabelos, direito esse não verificado em tantas outras prisões (MMFDH, 2020).
Além dos dados colhidos no relatório apresentado, a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), importante rede em âmbito nacional em defesa dos direitos dessa comunidade, publica anualmente um dossiê com informações sobre o assassinato de trans e travestis no país. Em 2020, o Brasil permaneceu em 1º lugar no índice de assassinatos dessa população, estimando-se uma média de 184 transexuais e travestis assassinadas (ANTRA, 2021). Ao esmiuçar sobre o local da prática criminosa, o documento indica ciência de dois assassinatos em unidades prisionais. Importa destacar que a subnotificação de assassinatos é um fato de potencial existência, razão pela qual os dados alcançados possam não representar a realidade (ANTRA, 2021). Assim, mesmo não encarando os dois assassinatos em unidades prisionais no ano de 2020 como índices razoáveis, os dados ainda se mostram ínfimos diante o que se acredita acontecer de fato no ambiente carcerário dessas mulheres, inclusive, devido a pobre instrução da administração sobre o tema e a falta de dados fornecidos pelo governo.
4 NOVAS DIRETRIZES, VELHA CISNORMA: O ENTENDIMENTO DO JUDICIÁRIO E DO LEGISLATIVO
Não obstante ainda demonstrem a necessidade do aprofundamento na temática, o surgimento das normas citadas representa os primeiros pequenos passos em busca da defesa de transexuais inseridas no sistema penitenciário e a saída do estado de inércia verificado anteriormente. Contudo, sem deslegitimar as conquistas alcançadas, é inegável que essa atuação se mostra irrisória perante os fatos. Conforme verificado no diagnóstico sobre o cárcere lgbt+ no Brasil (MMFDH, 2020), pouquíssimos estabelecimentos prisionais possuem estrutura reservada para acolher mulheres trans. Depreende-se que tal fato possa estar ligado a inobservância de alguns estados em seguir as orientações presentes na Resolução Conjunta ou mesmo do entendimento internacional sobre a identidade de gênero e os direitos observados no encarceramento (PRINCÍPIOS DE YOGYAKARTA, 2007).
Dessa forma, levanta-se o questionamento sobre a mera disposição dessas tratativas enquanto regimento interno ou como orientações dadas por comissões e grupos de órgãos à frente da administração penitenciária. Seriam suficientes para resguardá-las do sopesamento de violências experimentadas no sistema prisional? No direito brasileiro, é notório o abandono da legislação quanto à essas mulheres, inexistindo previsões específicas advindas do poder legislativo que busquem recepcioná-las no cárcere de acordo com suas especificações. Como fora pontuado no tocante à aplicação da Lei Maria da Penha, o cabimento desta para mulheres trans fica pendente ao entendimento do magistrado, uma vez que o texto legal não as menciona, restando suas demandas sem segurança jurídica de uma leitura unânime.
Nesse sentido, a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT) propôs Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 527/18), considerando o desvirtuamento que muitos juízes de execução penal estariam praticando na interpretação do disposto na Resolução Conjunta nº 1/2014 de modo que mulheres transexuais e travestis estariam sendo encaminhadas para estabelecimentos prisionais que divergiam da sua identidade de gênero. A exordial da proposta da requerente buscou denunciar o descumprimento de preceitos fundamentais constantes no texto constitucional, bem como requerer a interpretação da Resolução em discussão à luz da Constituição Federal.
Inicialmente, ao apreciar o pleito quanto ao pedido liminar, o Ministro e Relator Luís Roberto Barroso decidiu o seguinte:
Diante do exposto, tendo em vista a situação de assimetria informacional quanto às travestis e a existência de periculum in mora inverso, defiro parcialmente a cautelar para determinar apenas que transexuais femininas sejam transferidas para presídios femininos. Peço a inclusão do feito em pauta para referendo desta cautelar pelo plenário. (STF, 2019)
Sob o fundamento de que a temática, à época, exigia análise de mais informações sobre a compreensão da mulher trans e de travestis, bem como dados sobre o encarceramento destas e o fato de a identidade de gênero das travestis mostrar-se fluida, o ministro relator concedeu parcialmente o pleito cautelar, estendendo os efeitos da medida tão somente às mulheres transexuais. Assim como pontuado anteriormente sobre o caráter compulsório quanto ao cumprimento de pena por homens trans, cabe esclarecer que, não desviando do foco deste estudo, a não aplicação do decisum às travestis acaba por retratar a desconsideração da autodeclaração.
Conquanto tenha-se adotado o segmento apresentado por considerar um possível periculum in mora caso fosse autorizada a transferência de travestis aos presídios femininos, denota-se do diagnóstico sobre encarceramento lgbt+ que a vivência de mulheres trans e travestis é marcada por constantes articulações, de modo que suas técnicas de sobrevivência são demasiadamente subjetivas (MMFDH, 2020). Essa subjetividade se manifesta ao se verificar que em alguns casos, mulheres trans e travestis conseguiam permanecer em unidades prisionais masculinas pacificamente com os demais presos, enquanto outros a vivência destas só foi possível em alas/celas específicas ou presídios femininos.
Desse modo, considerando que o documento supracitado e a nota técnica nº 9/2020 emitida pelo Departamento Penitenciário foram apresentados pela requerente no intuito de embasar o pedido de aplicação da decisão às travestis. Em concordância, o ajuste da cautelar deu-se da seguinte forma:
Assim, com base em diálogo institucional estabelecido com o Poder Executivo, como explicitado acima, ajusto os termos da cautelar já deferida para outorgar às transexuais e travestis com identidade de gênero feminina o direito de opção por cumprir pena: (i) em estabelecimento prisional feminino; ou (ii) em estabelecimento prisional masculino, porém em área reservada, que garanta a sua segurança. (STF, 2021)
Ao considerar os fatos encontrados pelo levantamento de dados e a compreensão organizacional do poder executivo, o decisum manifesta-se como contribuição à recepção de mulheres trans e travestis, constituindo a autodeclaração e solicitação como fator capaz de alterar o local de cumprimento de pena. Ademais, demonstra alinhamento às previsões internacionais, pensadas e construídas no intuito de resguardar os direitos ligados à orientação sexual e identidade de gênero.
4.1 Posicionamento do Conselho Nacional de Justiça
Ao passo em que o encarceramento de mulheres trans era tratado pela Suprema Corte, a temática também foi ganhando espaço de debate em outras instituições. De modo a estabelecer diretrizes observadas pelos magistrados, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) acolhe o entendimento constitucional e dos pactos internacionais de direitos humanos sobre o encarceramento ao dispor o seguinte:
Art. 4. O reconhecimento da pessoa como parte da população LGBTI será feito exclusivamente por meio de autodeclaração, que deverá ser colhida pelo magistrado em audiência, em qualquer fase do procedimento penal, incluindo a audiência custódia, até a extinção da punibilidade pelo cumprimento da pena, garantidos os direitos à privacidade e à integridade da pessoa declarante. (CNJ, 2020).
O que poderia ser observado tão somente após ingressarem em uma unidade prisional, torna-se possível ainda na tramitação processual. Muito embora não trate-se de previsão legislativa, o ato normativo primário busca fiscalizar a atuação do poder judiciário, vinculando os magistrados ao entendimento disposto na resolução. Ademais, no tocante a participação de mulheres trans na indicação do local de encarceramento, a resolução adota o delineado nos Princípios de Yogyakarta (2007):
Art. 7º Em caso de prisão da pessoa autodeclarada parte da população LGBTI, o local de privação de liberdade será determinado pelo magistrado em decisão fundamentada após consulta à pessoa acerca de sua escolha, que poderá se dar a qualquer momento do processo penal ou execução da pena, devendo ser assegurada, ainda, a possibilidade de alteração do local, em atenção aos objetivos previstos no art. 2º da presente Resolução. (CNJ, 2020, grifo nosso).
Não obstante tenha adotado inicialmente o segmento apresentado, o texto do artigo supracitado sofreu alteração pela resolução nº 366 de 20 de janeiro de 2021 (CNJ, 2021). A mudança se deu, principalmente, pelo entendimento firmado na decisão que concedeu parcialmente a cautela na ADPF 527 (STF, 2019), autorizando tão somente mulheres trans a serem transferidas para estabelecimentos prisionais femininos:
Art. 8º De modo a possibilitar a aplicação do artigo 7º, o magistrado deverá:
I – esclarecer em linguagem acessível acerca da estrutura dos estabelecimentos prisionais disponíveis na respectiva localidade, da localização de unidades masculina e feminina, da existência de alas ou celas específicas para a população LGBTI, bem como dos reflexos dessa escolha na convivência e no exercício de direitos;
II – indagar à pessoa autodeclarada parte da população transexual acerca da preferência pela custódia em unidade feminina, masculina ou específica, se houver, e, na unidade escolhida, preferência pela detenção no convívio geral ou em alas ou celas específicas, onde houver; e
III – indagar à pessoa autodeclarada parte da população gay, lésbica, bissexual, intersexo e travesti acerca da preferência pela custódia no convívio geral ou em alas ou celas específicas. (CNJ, 2021, grifo nosso).
Ao alinhar-se ao decisum, o texto resolutivo acaba por retroagir em suas previsões, restando limitada a transferência para presídios femininos às mulheres trans. Embora estas não tenham sido prejudicadas, o vigor das diretrizes do CNJ sob a nova redação restringe as possibilidades de transferências às travestis, ignorando as possíveis medidas de melhor vivência adotadas por estas e verificadas no levantamento de dados do seu ambiente carcerário (MMFDH, 2020).
4.2 Reação no Poder Legislativo
Encontrar as demandas transexuais no âmbito judicial tornou-se realidade nos últimos anos, inclusive, na Suprema Corte como apresentado. Tal fato é embasado pelo espaço que o debate sobre as temáticas da mulher trans tem ganhado em sociedade e diante a atuação militante, mas também pela ausência da previsão e regulamentação legal sobre estas. Das raras conquistas de direitos lgbt+, a grande maioria são frutos da luta de grupos que militam pela causa dessa comunidade, inclusive, da mulher transexual (NELSON et al., 2019).
O Projeto de Lei nº 8032 retrata bem a atuação do legislativo quanto às demandas transexuais. Em tramitação nas comissões da Câmara dos Deputados desde o ano de 2014, a proposta da deputada de aplicação dos efeitos da Lei Maria da Penha às transexuais segue sem perspectivas de sucesso. Ademais, como já delatado, o referido projeto apresenta pontos em desalinhamento quanto ao entendimento da mulher trans, sujeitando sua identidade à necessidade de procedimentos cirúrgicos de redesignação.
Quanto ao encarceramento de mulheres trans, a movimentação da temática no poder judiciário, especificamente no tocante à Resolução nº 348 (CNJ, 2020), foi capaz de gerar ação na Câmara dos Deputados. Ocorre que esse agir se deu por discordância às diretrizes estabelecidas pelo CNJ no recepcionamento e transferência de mulheres transexuais e travestis em presídios femininos. Assim surgiu o Projeto de Decreto Legislativo nº 581/2020, pensado para sustar os possíveis efeitos da resolução. No teor do projeto, a deputada Chris Tonietto alega:
Mencionada Resolução do CNJ trata da regulação procedimental das intervenções de caráter criminal no que diz respeito à “população LGBTI”, prevendo-se um tratamento reservadamente exclusivo àqueles que autodeclaram fazer parte de tal grupo, que compreenderia, segundo o ato normativo posto em análise, a “população lésbica, gay, bissexual, transexual, travesti e intersexo”.
Nesse sentido, convém esclarecer que, por se tratar de mero ato administrativo normativo, uma Resolução constitui meio hábil para tratar somente de matéria já previstas pela legislação. Assim, uma transgressão a esse comando significaria nulidade por sua incompetência absoluta. (BRASIL, 2020).
Ademais, a deputada utiliza-se de um ocorrido na Inglaterra, situação a qual Karen White, uma mulher transexual, foi acusada de agressão sexual contra mulheres cis com quem dividia cela (BBC, 2018). Antes de sua transição, Karen já possuía um histórico de crimes sexuais praticado contra mulheres e de abuso infantil. O fato é que o ato tentado pela deputada de sustar os efeitos do delimitado no ato resolutivo do Conselho Nacional de Justiça mostra-se indevido sob as duas óticas apresentadas.
No que diz respeito à alegação do ato normativo do CNJ desvirtuar de sua competência e da necessidade do processo legal sobre a temática, peca ao desconsiderar o texto Constitucional sobre a competência do referido Conselho:
Art. 103-B. O Conselho Nacional de Justiça compõe-se de 15 (quinze) membros com mandato de 2 (dois) anos, admitida 1 (uma) recondução, sendo:
[...]
§ 4º Compete ao Conselho o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, cabendo-lhe, além de outras atribuições que lhe forem conferidas pelo Estatuto da Magistratura:
I - zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura, podendo expedir atos regulamentares, no âmbito de sua competência, ou recomendar providências;
II - zelar pela observância do art. 37 e apreciar, de ofício ou mediante provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário, podendo desconstituí-los, revê-los ou fixar prazo para que se adotem as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, sem prejuízo da competência do Tribunal de Contas da União;
III - receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, inclusive contra seus serviços auxiliares, serventias e órgãos prestadores de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público ou oficializados, sem prejuízo da competência disciplinar e correcional dos tribunais, podendo avocar processos disciplinares em curso, determinar a remoção ou a disponibilidade e aplicar outras sanções administrativas, assegurada ampla defesa. (BRASIL, 1988)
Embora a ausência de embasamento legal na temática em específico mostra-se uma realidade, o ato normativo primário da deputada federal despreza a disposição constitucional no tocante a competência do Conselho Nacional de Justiça para normatizar ao Poder Judiciário e os atos que seus órgãos praticam, bem como a interpretação da resolução à luz dos preceitos fundamentais. Por sinal, foi considerando esses preceitos que o pleito cautelar proposto pela ADPF 527 foi julgado procedente pelo ministro Luís Roberto Barroso de modo a garanti-los às mulheres trans e travestis, como a dignidade da pessoa humana e o tratamento não degradante (BRASIL, 1988).
Sob a ótica exemplificativa, a deputada Chris Tonietto aplica um caso de crime cometido por mulher autodeclarada transexual no ambiente carcerário feminino, destacando a não realização de procedimento cirúrgico de redesignação e enaltecendo o risco às mulheres cis como regra. O feito se dá pelo explícito conservadorismo que motivou o projeto, depreendido pela sua inferência ao sexo como não apto de flexibilidade, ou seja, confundindo a noção de gênero e sexo tratando estes como sinônimos.
Sem o propósito de desprezar as agressões sexuais praticadas contra as mulheres cis do caso exemplificado, importa reascender um espectro criminológico. Fazendo uso de um delito eventualmente cometido por mulher trans contra mulheres cis no intuito de derrubar a vigência de resolução a ser observada pelos órgãos do judiciário em todo o país, percebe-se o atrelamento da habitualidade de conduta criminal às transexuais, espectro esse já apresentado pela denúncia de Silva (2019). Tão somente em busca da sustação dos efeitos das diretrizes adotadas pelo Conselho, o texto original do PDL 481/20 limita-se em alegar a desproporção de forças entre corpos trans e cis diante a vivência conjunta, ignorando até mesmo a possibilidade de celas/alas específicas mesmo em presídios femininos.
5 CONCLUSÃO
Delineado o quadro fático, histórico e normativo no que tange às demandas da mulher transexual, foi possível verificar que de fato estas seguem às margens sociais. Conquanto venha conquistando demais espaços no seio do convívio, a sua existência é potencialmente transformada em resistência. O livre acesso à educação, ao exercício de atividade laboral regulamentada por lei, o acesso à saúde conforme as especificações individuais e demais direitos afirmados como sociais, tendem a serem negados a essa minoria.
No cárcere, a recepção da mulher trans pode ocorrer de diferentes formas. Perante a inércia legislativa, as ínfimas conquistas do ajuizamento de suas demandas e as esparsas normas encontradas na administração prisional, vislumbra-se um cenário de insegurança com a possível inserção dela no sistema prisional.
É nesse momento que, reconhecido o caráter hostil do cárcere, o cruzamento de vulnerabilizações é percebido sob a mulher transexual. Já carregada das vivências sociais, depara-se com as pouquíssimas unidades prisionais com estrutura reservada a elas, passando pela transfobia institucional e de demais presos, pelo alto índice de subnotificação depreendido com a baixa adesão de levantamento de dados e até a própria atuação legislativa indo de encontro às tentativas de resguardá-las do ambiente hostil do cárcere.
Os resultados e conclusões alcançados demonstram a necessidade de uma urgente contribuição unificada advinda dos três poderes. O recente diálogo percebido entre o Executivo e o Judiciário demonstram importante papel para que o cumprimento de pena por elas ocorra o mais próximo possível das disposições legais, porém, movem forças que acabam confrontadas pelo Legislativo. A presença da temática na casa do povo é louvável, mas de modo a contribuir na proteção de direitos e preservação da vida das minorias deste mesmo povo, o que ainda não é perceptível.
Por fim, é incabível ignorar que os estigmas sociais e a inércia estatal estão diretamente ligados ao desconhecimento da construção do gênero, do seu desatrelamento de fatores biológicos e a persistência da leitura binária, inclusive, nas interpretações das normas brasileiras. Pelo exposto depreende-se que há um longo caminho até que as demandas transexuais sejam vistas com mais naturalidade, uma vez que a mera mudança do ponto de vista legal não altera o comportamento social diante a existência do corpo feminino transexual.
REFERÊNCIAS
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[1] Professora do Curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho - UNIFSA, Doutora em Direito pelo Centro Universitário de Brasília - UniCEUB). E-mail: [email protected].
[2] Para o presente estudo, adotou-se a noção de estigma dos escritos de Goffman (2013) ao pensar no espaço entre o visual e o real, de modo que o resultado dessa reflexão pode gerar uma visão do indivíduo correspondente às suas características, mas que geralmente tende a uma interpretação de desvalor. O autor representa o corpo alvo desse estigma como “um indivíduo que poderia ter sido facilmente recebido na relação social cotidiana possui um traço que se pode impor a atenção e afastar aqueles que ele encontra, destruindo a possibilidade de atenção para outros atributos seus” (GOFFMAN, 2013, p. 7).
[3] A característica de vulnerabilidade foi preterida ao processo de vulnerabilização, atentando com o seguinte raciocínio: a taxatividade de corpos específicos como detentores de determinada vulnerabilidade acaba por reforçar e propagar esse cenário, enquanto a vulnerabilização demonstra a reversibilidade e o caráter não universal dessa transformação, de modo a estender humanidade à essas pessoas (BARROS; ANTUNES; MELLO, 2020).
[4] Embora tenha-se mencionado a reflexão Bluteriana (2015) sobre a desnaturalização do sexo e a possibilidade compreendê-lo como sinônimo de gênero, a leitura de Scott (1995) segue uma compreensão mais simples no tocante a delimitação do gênero, dos pontos interseccionais e, consequentemente, da transexualidade.
[5] Embora o autor não se utilize do termo “transexual”, o estudo realizado pelo mesmo se deu em tempos que “travestismo” era comumente utilizado. Embora as duas terminologias, contemporaneamente, não se confundam, a contribuição da explanação sobre o poder de polícia à época sob essas mulheres (SANTOS, 2017) acaba reduzindo os danos dessa diferença.
Graduando em Direito no Centro Universitário Santo Agostinho - UNIFSA
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CARMO, Matheus Vinícius Campelo do. Corpos marginais no cárcere: a mulher transexual sob vulnerabilizações cruzadas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 jun 2021, 04:36. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56755/corpos-marginais-no-crcere-a-mulher-transexual-sob-vulnerabilizaes-cruzadas. Acesso em: 08 dez 2024.
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