RESUMO: É a discriminação de gênero o cerne de todo tipo de violência contra a mulher, e como consequência disso ela sempre foi tratada como objeto em qualquer parte do mundo. Esse machismo estrutural que dá origem a misoginia e objetificação da mulher, é em geral, o motivo para os mais diversos crimes de natureza violenta e sexual contra ela. E na pandemia, que vem gerando mais colapsos do que os previstos, com a instabilidade trazida por este ambiente de medo e insegurança que afeta a todos, as mulheres têm se tornado vítimas também da violência doméstica e familiar, que nos casos mais extremos culminam no feminicídio. Este estudo busca estabelecer uma relação entre o isolamento social durante a pandemia da COVID-19 e o aumento da violência contra as mulheres. Foram consultados pesquisas, dados, documentos e legislações de referência no combate a esse tipo de violência. As partes que compõem este estudo abordam o conceito de feminicídio, os tipos e os cenários dessa realidade, a Lei 13.340/06 - Lei Maria Da Penha, Lei 13.104/15 – a Lei Do Feminicídio, o Feminicídio na pandemia da COVID-19 e considerações finais e referências.
Palavras-chave: pandemia - COVID-19 - Isolamento social - feminicídio.
INTRODUÇÃO
A situação de confinamento pela qual a população mundial está passando desde que foi pega de surpresa pela pandemia da COVID-19, mudou repentina e drasticamente a rotina, isolando as pessoas de familiares e amigos. Essa nova realidade trouxe consigo estresse, ansiedade e depressão, para agravar ainda mais as fragilidades emocionais de nossa sociedade. Em consequência dessa mudança de hábitos e rotinas, reações emocionais como: medo do desconhecido, insônia, irritabilidade, entre outros, afetam a funcionalidade do indivíduo, evidenciando o desconforto em relação a esse novo cenário.
E é em meio à pandemia do novo coronavírus, na rotina de isolamento em que as famílias, ao contrário do habitual, tiveram de se adaptar a um novo e incerto modo de vida, com tempo integral dentro de casa, sem ser exatamente um período de férias, que infelizmente estamos presenciando a existência de outro mal, também muito assustador, a violência doméstica e familiar, que em casos mais extremos culminam no feminicídio, a forma mais brutal de violência contra a mulher, resultante da misoginia, discriminação, aversão ou ódio contra elas, levando o Brasil a assumir o triste quinto lugar no ranking mundial da violência contra elas.
Dessa forma, a relevância deste estudo consiste na possibilidade de análise dos dados estatísticos de crimes cometidos durante a pandemia da COVID-19. Como objetivo principal: investigar sobre o aumento da incidência do feminicídio durante a pandemia. E como objetivos específicos: apresentar o conceito e a contextualização do feminicídio; identificar os avanços legislativos no enfrentamento as situações de violência doméstica e familiar e feminicídio; refletir sobre os impactos da pandemia da COVID-19 nos índices de violência contra a mulher no Brasil; identificar ações de enfrentamento ao desafio de garantir a investigação de todos os casos denunciados, bem como de punição e reparação dos crimes cometidos contra mulheres e de melhoria contínua da qualidade no atendimento da mulher vítima de violência doméstica e familiar.
A metodologia da pesquisa consiste numa abordagem mista, ou seja, qualitativa e quantitativa, por meio da análise documental como instrumento de coleta de dados. E está estruturada da seguinte forma, após a introdução, o desenvolvimento traz o conceito e a contextualização da violência doméstica e familiar e do feminicídio no Brasil, através de uma breve reconstrução histórica, com algumas reflexões sobre a origem do termo feminicídio, os avanços legislativos no enfrentamento a violência doméstica e familiar e ao feminicídio, e os impactos da pandemia da COVID-19 nos índices de violência doméstica e familiar e feminicídio no Brasil.
FEMINICÍDIO: conceito e contextualização
A violência contra a mulher ainda é praticada em qualquer parte do mundo hoje em dia, e no Brasil infelizmente, ocorre em níveis alarmantes, especialmente aquela praticada no ambiente doméstico e familiar, e leva o Brasil ao 5º lugar no ranking de mulheres mortas, na maioria vítimas de companheiros ou de familiares.
A violência praticada contra a mulher, nas diferentes formas como se apresenta hoje, no Brasil e no mundo, em especial aquela que ocorre no ambiente doméstico e familiar, é, sobretudo, consequência da evolução histórica de hábitos culturais fundamentados em discursos patriarcais[..] (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO DE JANEIRO, 2020, p. 1).
Como consequência de uma cultura de práticas de submissão ao homem por inúmeras gerações, sendo portadora dos mesmos direitos conferidos ao homem, porém, com a sua condição de mulher totalmente incompreendida, a mulher atravessou épocas sofrendo as mais variadas formas de violência, simplesmente pelo fato de ser mulher.
Como bem nos esclarece Porfírio (2021), de acordo com algumas teorias feministas, a violência tem a sua origem na desigualdade de gênero que infelizmente, ainda se encontra presente na sociedade. E foi atravessando gerações marcadas pela violência contra mulheres que chegamos até aqui, ainda com altos índices de violência caracterizada por questões de gênero, e em casos mais extremos o feminicídio.
Feminicídio é o assassinato de uma mulher pelo simples fato de ser mulher. Os motivos mais comuns são o ódio, o desprezo ou o sentimento de perda do controle e da propriedade sobre as mulheres, comuns em sociedades marcadas pela associação de papéis discriminatórios ao feminino, como é o caso brasileiro (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO DE JANEIRO, 2020, p. 2).
O feminicídio compreende, portanto, o homicídio praticado contra a mulher, motivado por aversão, ódio e/ou ressentimento pela perda do controle e da propriedade sobre a vítima, que geram violência doméstica e/ou discriminação de gênero. Isso porque o agressor em geral tem sentimento de posse, justificado pelo machismo que carrega entranhado no seu ser, decorrente de uma cultura de misoginia e objetificação da mulher.
Todas essas práticas de caráter violento são consequências da herança de hábitos culturais baseados em discursos patriarcais, de que a mulher é inferior ao homem, e que por isso ele é o detentor da sua liberdade social e sexual. Em razão disso eles as menosprezam e as discriminam pela condição de mulher, culminando no estágio final da violência, o feminicídio.
O neologismo surgiu para nominar os assassinatos de mulheres cometidos em razão do gênero [...]. A palavra vem do termo “feminicídio”, cunhado em 1976 pela socióloga sul-africana Diana Russell, que sentiu a necessidade de diferenciar o homicídio de mulheres em razão do gênero (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS, 2019, p. 1).
Trata-se de um conceito que surgiu da necessidade de reconhecimento de que o homicídio de mulheres, pelas razões citadas acima, constitui crime de ódio e precisa ser enquadrado com o agravante “feminicídio”. Esse movimento teve, portanto, como objetivo dar visibilidade à prática de discriminação, de opressão, de desigualdade e de abuso sistemático contra as mulheres, que, em sua forma mais grave, culmina na morte (ANDRADE, et al. 2019).
Enfim, concordando com os autores acima mencionados, a desigualdade de poder nas relações entre homens e mulheres tem sido uma característica marcante das sociedades. Em razão disso a mulher tem sido sempre menosprezada pela sua condição de mulher, como se o fato de ser do sexo feminino a colocasse em condição de inferioridade em relação ao homem, e consequentemente aos direitos do sexo masculino. Essa prática, que é resultado de uma cultura de objetificação e desprezo pela mulher, infelizmente ainda permeia a nossa sociedade e requer com muita urgência, medidas que promovam a consciência da igualdade de gênero, bem como de punições bem mais severas para quem comete crimes contra os direitos das mulheres.
LEI 11.340/06 - A LEI MARIA DA PENHA
É a discriminação de gênero o cerne de todo tipo de violência contra a mulher, e como consequência disso ela sempre foi tratada como objeto em qualquer parte do mundo. Esse machismo estrutural que dá origem a misoginia e objetificação da mulher, é em geral, o motivo para os mais diversos crimes de natureza violenta e sexual contra ela. Essa realidade de negação da mulher enquanto sujeito, conforme teorias feministas, vem de longe, tem sua origem numa cultura patriarcal e misógina, em que ela é considerada apenas como objeto. E em decorrência desse legado histórico negativo ela sempre sofre julgamento moral, em particular ou publicamente, sendo constantemente desqualificada moralmente.
A desigualdade de gênero não é uma característica somente da sociedade moderna. Sabe-se que esta ocorre a mais de 2500 anos, e como afirma Schreiber apud Trindade (2016), a própria tese de Platão afirmava que, a mulher possuía pouca capacidade de raciocínio, e ainda que, sua alma era inferior à do homem. É esse tipo de pensamento arraigado em uma sociedade machista e preconceituosa que busca sempre inferiorizar a figura da mulher e induz a crença de que elas são subordinadas ao homem, ou até mesmo consideradas fúteis. Mesmo numa sociedade caracterizada como moderna, atualizada, como é essa de início de século 21, este pensamento persiste ignorando toda a trajetória de lutas e conquistas da mulher.
A Constituição de 1988 trouxe alguns avanços em relação aos direitos da mulher, pois no seu artigo 226 nomina a violência ao tratar da proteção da família e de seus membros. E no parágrafo oitavo do mesmo artigo prevê que, “O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos membros que a integra, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”. Assim, apesar de ela não ter se referido explicitamente à violência contra a mulher, a partir dos anos 1990, “a legislação infraconstitucional foi sendo gradativamente alterada e orientada pela preocupação com a violência de gênero” (Barsted, 2011, p. 24), dando origem as alterações legislativas que explicam como esta preocupação foi formalizada.
A Lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, sancionada em 7 de agosto de 2006 constitui um dos maiores avanços da legislação brasileira no enfrentamento da violência contra a mulher, um marco na defesa dos direitos dessa parcela da população, sendo também reconhecida pelas Nações Unidas como umas das legislações mais avançadas, e de fundamental importância para coibir a violência doméstica e familiar.
Como explica Machado et al. (2015 p. 60), essa lei tornou-se um símbolo de justiça contra a violência doméstica, “tanto por visibilizar o problema da violência contra mulheres, como por introduzir no sistema brasileiro um amplo pacote de medidas – protetivas, punitivas, de atendimento à mulher, criação de órgãos, ampliação de serviços, entre outras – para lidar com o problema”.
A Lei 11.340/2006 recebeu o nome de Lei Maria da Penha em referência a essa mulher brasileira, biofarmacêutica, que, em 1983, foi vítima de uma dupla tentativa de homicídio por parte do seu então marido e pai de suas três filhas, dentro de sua própria casa, em Fortaleza (Ceará, Brasil). O agressor, Marco Antonio Heredia Viveiros, colombiano naturalizado brasileiro, economista e professor universitário, disparou contra suas costas enquanto ela dormia, causando-lhe paraplegia irreversível, entre outros graves danos à sua saúde. Em ocasião posterior, tentou eletrocutá-la no banho. Até 1998, 15 anos depois do crime, apesar de ter sido duas vezes condenado pelo Tribunal do Júri do Ceará (1991 e 1996), ainda não havia uma decisão definitiva no processo e o agressor permanecia em liberdade, razão pela qual Maria da Penha, juntamente com o CEJIL [Centro pela Justiça e o Direito Internacional] e o CLADEM [Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher] enviaram o caso para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH/OEA) (PANDJIARJIAN, 2007, p. 39).
Esse lastimável acontecimento de violência contra a mulher, foi um caso de grande repercussão, sendo encaminhado para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, após anos de descaso e omissão da justiça brasileira. O encaminhamento se deu através de uma petição conjunta das entidades que cuidam dos direitos humanos, (CEJIL/Brasil) Centro para a Justiça e o Direito Internacional, e (CLADEM/Brasil), Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher.
Atualmente, segundo explica Machado et al. (2015), a Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), prevê através de inquérito policial, enviado ao Ministério Público, a garantia da investigação, bem como da punição e reparação dos crimes praticados contra a mulher, na tentativa de reprimir as situações de violência doméstica e de feminicídio. Isso por compreender que a mulher em circunstâncias de violência doméstica, tem o direito de receber o devido apoio e proteção do Estado.
A Lei Maria da Penha, portanto, na sua essência, foca na violência doméstica e familiar, reconhecendo a situação de risco e vulnerabilidade das mulheres, e a omissão do Estado. Segundo (PRADO E SANEMATSU, 2017, p. 120), o processo de construção da Lei Maria da Penha teve início com a “condenação do Estado brasileiro pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, em 2001, por negligência, omissão e tolerância em relação à violência doméstica contra as mulheres e pelo não cumprimento da Convenção de Belém do Pará”. Após anos de debate sobre as desigualdades de gênero, essa lei ganhou visibilidade por ser determinante na elaboração de ações que visam garantir a proteção das mulheres em situação de vulnerabilidade e evitar mortes anunciadas.
Como ainda explica os autores supracitados, o Estado, enfim, entendeu que é preciso dar a devida importância ao problema da violência contra mulheres, reconhecendo-a como crime, para reduzir a impunidade penal, quanto na prevenção desse tipo de violência. Uma das inovações trazidas por esta lei foi a previsão das medidas protetivas em favor da vítima em casos de violência doméstica. Assim ela se apresenta como uma importante ferramenta na promoção e prevenção do atendimento humanizado.
Ainda, segundo os autores citados acima, uma pesquisa intitulada “Avaliando a Efetividade da Lei Maria da Penha”, realizada pelo (Ipea, 2015), aponta para uma contenção de 10% no índice de assassinatos de mulheres praticados na residência da vítima. Estes números mostram que a disseminação da lei foi fundamental na efetivação de ações, com vistas a evitar que tais estatísticas se tornem ainda mais alarmantes, e ainda mais mulheres tenham suas vidas ceifadas em razão de gênero.
A luta da mulher por seus direitos, e a busca contínua por seu lugar na sociedade sempre se deu de forma lenta. A mulher sempre foi vista como um “sexo frágil”, e sua imagem retratada como objeto. Por isso a criação da Lei Maria da Penha se apresenta como marco tão importante na história de luta da mulher pela garantia de seus direitos. A ONU enfatiza que a prevenção deve ser o objetivo da boa aplicação da lei no enfrentamento à violência contra as mulheres. E que a […] “cuja implementação é responsabilidade dos governos federal, do Distrito Federal, dos estados e municípios”. Mas lembra também que que, “apesar do avanço que essa legislação representa para o país, sua aplicação tem ocorrido em contextos sociais e políticos adversos, o que significa que ainda permanecem muitos obstáculos para o acesso das mulheres à justiça” (ONU MULHERES, 2016, p. 14).
Como esclarece (MACHADO et al. 2015), o relatório da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre a violência contra a mulher apontou diversos aspectos que refletem as dificuldades na execução da lei, tais como: recursos humanos insuficientes para atender às demandas; centralização dos serviços nas capitais; inexistência de sistemas de informação capazes de medir a eficiência da lei no enfrentamento da violência, dentre outros.
Para Campos (2008), a lei trouxe mudanças na forma de coibir a violência doméstica e familiar, e apesar das críticas sofridas, o seu texto constitui um avanço da legislação brasileira. Ele ainda aponta a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar como principal avanço trazido pela lei, e uma importante medida com o objetivo de visibilizar de forma ampla o cenário de violência doméstica e familiar, no sentido de conhecer bem a realidade, e possibilitar a implementação de ações efetivas de enfrentamento do grave problema da violência doméstica e familiar de mulheres com motivação de gênero.
Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar possuem competência tanto criminal como cível. A opção por criar um juizado com uma gama de competências tão ampla está vinculada à ideia de proteção integral à mulher vítima de violência doméstica e familiar, de forma a facilitar o acesso dela à Justiça, bem como possibilitar que o juiz da causa tenha uma visão integral de todo o aspecto que a envolve, evitando adotar medidas contraditórias entre si (CAMPOS, 2008, p. 25).
De acordo com o autor acima mencionado, o legado que nos deixou a efetivação da Lei Maria da Penha são imprescindíveis para o enfrentamento da violência doméstica e familiar. E é a própria Lei Maria da Penha que traz seis pontos fundamentais para evitar o feminicídio íntimo”. Em resumo ela define que: primeiro, a violência doméstica e familiar pode existir mesmo quando não há marcas físicas evidentes. Que é preciso prestar atenção ao risco de violência psicológica nas relações, e ao perigo que há por trás de uma ameaça ou de uma aparente lesão corporal (PRADO E SANEMATSU, 2017, p. 16).
Segundo que, as formas de violência fazem parte de um contexto que inclui violência moral, através de “humilhações, críticas e exposição pública da intimidade”, violência psicológica, quando há “intimidações, cerceamento da liberdade de ir e vir, controle dos passos da mulher”, e violência sexual, “ao forçá-la a “ter relações sexuais ou restringir a autodeterminação da mulher quando se trata de decidir quando engravidar ou levar adiante ou não uma gravidez, no chamado “ciclo de violência”. Terceiro, é importante lembrar que não existe um padrão definido para a vítima nem para o agressor, porque a violência contra mulheres nem sempre é praticada pelo parceiro atual ou pelo ex. “A violência familiar pode acontecer também entre indivíduos com ou sem vínculo de parentesco, mas que mantêm relações de convivência” (PRADO E SANEMATSU, 2017, p. 16).
Quarto, que não pode ser considerado como justificativa para a violência doméstica ou familiar o “uso de álcool, drogas ou ciúme”. Essas ocasiões constituem-se como fatores que desencadeiam situações de violência “que muitas vezes são usados como desculpa, promovendo a impunidade e a não responsabilização pela violência”. Quinto, que “a culpa não é da vítima: ninguém pode ser responsabilizado pela violência que sofreu”. E sexto, que “a Lei Maria da Penha prevê medidas protetivas de urgência para a mulher em situação de violência, como o afastamento ou até a prisão preventiva do agressor” (PRADO E SANEMATSU, 2017, p. 16).
Evidentemente a Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) como explica o autor acima mencionado, constitui-se num grande avanço da legislação brasileira em relação aos direitos da mulher, com o objetivo de assegurar medidas tanto de proteção, como de punição e de atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar. Tornou-se, portanto, um símbolo de justiça contra a violência doméstica, ao dar mais visibilidade ao problema da violência contra os direitos das mulheres.
Prado e Sanematsu (2017) salientam ainda que, embora a Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) represente uma grande conquista no enfrentamento da violência contra a mulher, sabe-se que ainda persistem alguns obstáculos, citados anteriormente, que impedem o seu cumprimento com eficiência na defesa dos direitos da mulher. E que por isso, lamentáveis episódios de violência doméstica e familiar contra elas ainda continuam acontecendo, e alguns até com grande repercussão. Além de uma questão criminal, é também o reflexo de uma sociedade machista que ainda tolera agressões violentas contra os direitos das mulheres, que permite que fatores como classe social, etnia, religião etc. colaborem para tornar a realidade delas ainda mais vulnerável.
LEI 13.104/15 - A LEI DO FEMINICÍDIO
A violência contra a mulher, de acordo com ONU Mulheres (2016) sempre foi uma característica marcante em todas as épocas da nossa sociedade que, por conta dessa cultura patriarcal sempre justificou esses crimes com o argumento de que a violência praticada só dizia respeito aos dois, vítima e agressor, e que só devia ser tratado no âmbito privado, pois não possuía poder ofensivo, por se constituir como crimes passionais, ou como consequência de distúrbios psíquicos.
Por isso, numa tentativa de descrever de forma abrangente a complexidade das situações que envolvem risco de morte imediato, isto é, risco de feminicídio, inicialmente o termo ‘femicídio’ foi utilizado para caracterizar as mortes violentas de forma intencional, com o argumento de defesa da honra. E ainda os crimes, praticados contra mulheres, considerados não intencionais, decorrentes de “uma prática social e cultural que afeta os direitos das mulheres com relação a seu corpo e saúde”. E que podem se constituir como “dificuldades de acesso a métodos de proteção contra HIV/AIDS, por sequelas da mutilação genital ou mesmo por intercorrências nas cirurgias estéticas, entre outras situações” (COPELLO 2012 apud ONU MULHERES, 2016, p. 20).
Ainda conforme ONU Mulheres (2016), ao usar o conceito supramencionado, Russel contrapôs a neutralidade presente na expressão “homicídio”, que só colaborava para conservar vulnerabilidade até o momento, indiscutível, do sexo feminino em todo o mundo. Mas foi somente na década de 1990, que Diana Russell, juntamente com Jane Caput e Jill Radford, pioneiras no estudo sobre o terrorismo machista contra as mulheres, puderam avançar no que temos hoje em dia como o conceito de ‘feminicídio’, e que nas décadas seguintes se disseminaria pelo mundo inteiro.
Um breve desenvolvimento histórico mostra que o termo ‘femicídio’ passou a ser utilizado na América Latina a partir da década de 1980 por Marcela Lagarde. “[…] mas foi nos anos 2000 que seu emprego se disseminou no continente latino-americano em consequência das mortes de mulheres ocorridas no México, país em que o conceito ganhou nova formulação e novas características com a designação de feminicídio” (ONU MULHERES, 2016, p. 19).
Essa nova formulação tornou-se importante nos debates acadêmicos e políticos sobre a violência praticada contra a mulher em razão do gênero. Enfim, femicídio ou feminicídio, as duas expressões denominam o mesmo lamentável fato de mortes violentas de mulheres em razão do gênero (ONU MULHERES, 2016).
O feminicídio é, portanto, “um crime de ódio e seu conceito surgiu […] para reconhecer e dar visibilidade à morte violenta de mulheres resultante da discriminação, opressão, desigualdade e violência sistemáticas”. De acordo com os estudos citados “não constitui um evento isolado e nem repentino ou inesperado. Ao contrário: faz parte de um processo contínuo de violências, cujas raízes misóginas caracterizam-se pelo uso de violência extrema” (PRADO E SANEMATSU, 2017, p. 11).
Para coibir a violência contra mulheres, as mudanças na legislação de vários países da América Latina, incluindo o Brasil são bem recentes, e deram-se em função da visibilidade e força que o conceito ‘feminicídio’ ganhou tanto entre ativistas, como entre pesquisadoras também entre organismos internacionais ao longo das quatro últimas décadas.
A palavra feminicídio ganhou destaque no Brasil a partir de 2015, quando foi aprovada a Lei Federal 13.104/15, popularmente conhecida como a Lei do Feminicídio. Isso porque ela criminaliza o feminicídio, que é o assassinato de mulheres cometido em razão do gênero, ou seja, a vítima é morta por ser mulher. Esta lei alterou o Código Penal brasileiro, incluindo como qualificador do crime de homicídio o feminicídio e o colocou na lista de crimes hediondos, com penalidades mais altas. No caso, o crime de homicídio prevê pena de seis a 20 anos de reclusão, mas quando for caracterizado feminicídio, a punição parte de 12 anos de reclusão (MANSUIDO 2020, p. 1).
Trata-se, portanto de uma lei sancionada no ano de 2015 que instituiu um novo agravante específico de homicídio, o feminicídio, já devidamente conceituado ao longo deste estudo, e foi “criada a partir de uma recomendação da CPMI (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito) sobre Violência contra a Mulher do Congresso Nacional”, e propõe dar visibilidade aos direitos da mulher, coibir a impunidade e ressaltar “a responsabilidade do Estado que, por ação ou omissão, é conivente com a persistência da violência contra as mulheres” (PRADO E SANEMATSU, 2017, p. 11).
A “Lei do Feminicídio não enquadra, indiscriminadamente, qualquer assassinato de mulheres como um ato de feminicídio”. Ela prevê algumas situações para que seja aplicada, a saber: quando há “violência doméstica ou familiar: quando o crime resulta da violência doméstica ou é praticado junto a ela, ou seja, quando o autor do crime é um familiar da vítima ou já manteve algum tipo de laço afetivo com ela”; E quando há “menosprezo ou discriminação contra a condição da mulher, ou seja, quando o crime resulta da discriminação de gênero, manifestada pela misoginia e pela objetificação da mulher, sendo o autor conhecido ou não da vítima” (MANSUIDO, 2020, p. 1).
O autor citado acima, lembra ainda, que há diferença entre homicídio e feminicídio. Os dois termos representam crimes dolosos contra a vida, sem dúvida alguma, porém, o homicídio consiste no ato de matar uma pessoa independente do seu gênero, enquanto o feminicídio é o assassinato de uma mulher exclusivamente pelo fato de a vítima ser mulher, praticado por pessoas conhecidas ou não, da vítima.
Segundo Porfírio (2021), surgiram por parte dos setores que são mais conservadores algumas discussões acerca da justificativa da ‘tipificação especial de homicídio’ contra mulheres. Ou seja, eles questionaram a necessidade de classificar como feminicídio a morte por homicídio, isto é, o assassinato de mulheres pautado em gênero, quando o motivo da violência extrema que culmina na morte da mulher é exclusivamente a condição de mulher. Já (FERNANDES 2021, p 11) explica que, “esta crítica não procede. Antes da lei, em muitos processos, havia o enquadramento do fato como crime simples, ou mesmo o abrandamento da responsabilidade do agente em razão do perfil social de “bom cidadão””.
Nesse sentido, a Lei 13.104/15 – a Lei do Feminicídio, foi em 9 de março de 2015, oportunamente sancionada como parte das políticas públicas, com o objetivo de aplicação de medidas mais rígidas de investigação, fiscalização e punição, e em seus pontos mais importantes.
I - prevê o feminicídio como qualificador do crime de homicídio quando é praticado contra a mulher por razões da condição do sexo feminino;
II - considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolver: a) violência doméstica e familiar contra a mulher; b) ou menosprezo e discriminação contra a mulher;
III - prevê causas de aumento da pena de 1/3 até a metade se o crime for praticado: a) durante a gestação ou nos três meses posteriores ao parto; b) contra menor de 14 anos, maior de 60 ou pessoa com deficiência; c) na presença de descendente ou ascendente da vítima;
IV - considera-se crime hediondo.
Lei nº 13.104, de 09/03/2015 - Altera o art. 121 do Código Penal, para prever o Feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, e o art. 1º da lei de Crimes Hediondos, para incluir o Feminicídio no rol dos crimes hediondos (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO DE JANEIRO, 2020).
A lei citada acima, constitui-se numa das mais importantes mudanças na legislação brasileira para o combate ao feminicídio, que, segundo Meneghel et al. (2013), compreende o assassinato de mulheres por homens como a manifestação mais grave da violência praticada contra a mulher. E consequentemente a etapa final de uma situação de violência contínua de caráter físico, psicológico, sexual, e patrimonial, cometida contra a mulher, e que em muitos casos são mortes anunciadas e que poderiam ser evitadas.
Apesar das medidas adotadas, a incapacidade de evitar o alto número de morte de mulheres, levou o Brasil a ostentar uma triste contradição: tem “as melhores leis do mundo para proteção das mulheres e, ao mesmo tempo, um dos lugares mais perigosos para elas viverem” Fernandes (2020, p. 3). Por conta dessa triste realidade o Brasil ocupa o quinto lugar em número de feminicídios no mundo. E no cenário de pandemia da COVID-19 desde fim do ano de 2019, os índices passaram de preocupantes a alarmantes.
E ainda mais inquietante nessa triste situação, é que esses dados tão graves, representam apenas uma parte da realidade, haja vista, que um considerável número de casos de crimes praticados contra mulheres nem chegam a ser denunciados, e muito menos registrados (PRADO E SANEMATSU, 2017). Aqui vale lembrar as diferentes modalidades de assassinatos de mulheres reconhecidas como feminicídio.
Íntimo |
Morte de uma mulher cometida por um homem com quem a vítima tinha, ou tenha tido, uma relação ou vínculo íntimo: marido, ex-marido, companheiro, namorado, ex-namorado ou amante, pessoa com quem tem filho(a)s. Inclui-se a hipótese do amigo que assassina uma mulher – amiga ou conhecida – que se negou a ter uma relação íntima com ele sentimental ou sexual). |
Não íntimo |
Morte de uma mulher cometida por um homem desconhecido, com quem a vítima não tinha nenhum tipo de relação. Por exemplo, uma agressão sexual que culmina no assassinato de uma mulher por um estranho. Considera-se, também, o caso do vizinho que mata sua vizinha sem que existisse, entre ambos, algum tipo de relação ou vínculo. |
Infantil |
Morte de uma menina com menos de 14 anos de idade, cometida por um homem no âmbito de uma relação de responsabilidade, confiança ou poder conferido pela sua condição de adulto sobre a menoridade da menina. |
Familiar |
Morte de uma mulher no âmbito de uma relação de parentesco entre vítima e agressor. O parentesco pode ser por consanguinidade, afinidade ou adoção. |
Por conexão |
Morte de uma mulher que está “na linha de fogo”, no mesmo local onde um homem mata ou tenta matar outra mulher. Pode se tratar de uma amiga, uma parente da vítima – mãe, filha – ou de uma mulher estranha que se encontrava no mesmo local onde o agressor atacou a vítima. |
Sexual sistêmico |
Morte de mulheres que são previamente sequestradas, torturadas e/ou estupradas. Pode ter duas modalidades: Sexual sistêmico desorganizado –Quando a morte das mulheres está acompanhada de sequestro, tortura e/ou estupro. Presume-se que os sujeitos ativos matam a vítima num período de tempo determinado; Sexual sistêmico organizado–Presume-se que, nestes casos, os sujeitos ativos atuam como uma rede organizada de feminicidas sexuais, com um método consciente e planejado por um longo e indeterminado período de tempo. |
Por prostituição ou ocupações estigmatizada |
Morte de uma mulher que exerce prostituição e/ou outra ocupação (como strippers, garçonetes, massagistas ou dançarinas de casas noturnas), cometida por um ou vários homens. Inclui os casos nos quais o(s) agressor(es) assassina(m) a mulher motivado(s) pelo ódio e misoginia que a condição de prostituta da vítima desperta nele(s). Esta modalidade evidencia o peso de estigmatização social e justificação da ação criminosa por parte dos sujeitos: “ela merecia”; “ela fez por onde”; “era uma mulher má”; “a vida dela não valia nada”. |
Por tráfico de pessoas |
Morte de mulheres produzida em situação de tráfico de pessoas. Por “tráfico”, entende-se o recrutamento, transporte, transferência, alojamento ou acolhimento de pessoas, valendo-se de ameaças ou ao uso da força ou outras formas de coação, quer seja rapto, fraude, engano, abuso de poder, ou concessão ou recepção de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento da(s) pessoa(s), com fins de exploração. Esta exploração inclui, nomínimo, a prostituição alheia ou outras formas de exploração sexual, os trabalhos ou serviços forçados, a escravidão ou práticas análogas à escravidão, a servidão ou a extração de órgãos. |
Por contrabando de pessoas |
Morte de mulheres produzida em situação de contrabando de migrantes. Por “contrabando”, entende-se a facilitação da entrada ilegal de uma pessoa em um Estado do qual a mesma não seja cidadã ou residente permanente, no intuito de obter, direta ou indiretamente, um benefício financeiro ou outro benefício de ordem material |
Transfóbico |
Morte de uma mulher transgênero ou transexual, na qual o(s)agressor(es) amata(m) por sua condição ou identidade de gênero transexual, por ódio ou rejeição. |
Lesbofóbico |
Morte de uma mulher lésbica, na qual o(s)agressor(es)a mata(m) por sua orientação sexual, por ódio ou rejeição |
Racista |
Morte de uma mulher por ódio ou rejeição a sua origem étnica, racial ou de seus traços fenotípicos. |
Por mutilação genital feminina |
Morte de uma menina ou mulher resultante da prática de mutilação genital. |
Fonte: Adaptação do Modelo de Protocolo Latino-americano, 2014 apud ONU MULHERES, 2016, p. 22
De fato, os números que descrevem o mapa da violência contra as mulheres no Brasil apontam o grave e permanente problema que elas enfrentam, a violência doméstica e familiar e o feminicídio. E como esclarecem os dados consultados, através dos autores pesquisados, apesar das legislações nacionais, que são em muito, motivadas pelos tratados e decisões internacionais, para frear essa outra pandemia, a da violência contra a mulher e do feminicídio, as estatísticas infelizmente ainda se encontram distante da realidade, por conta da subnotificação de casos, um entrave na luta pela diminuição da impunidade dos agressores.
O FEMINICÍDIO NA PANDEMIA DA COVID-19
Não tendo como ser diferente, em tempos de pandemia, o isolamento social é, de fato, a recomendação mais importante das autoridades de saúde para conter a contaminação pelo coronavírus, causador da COVID-19. A premissa da vigilância sanitária compreende quarentena, contingenciamento de recursos, distanciamento social, medidas de prevenção do contágio, estado de calamidade pública, agravamento de condições psíquicas, situação que afeta a condição geral do indivíduo.
As reações emocionais aos fatores como a queda repentina da renda de um elevado número de pessoas, e o confinamento em casa, da maior parte da população em espaços, na maioria dos casos bem pequenos, de acordo com alguns estudiosos, geram um conjunto de fatores de estresse que podem levar a conflitos sociais violentos (Silva, Santos e Oliveira, 2020). Essa inesperada e radical mudança no estilo de vida, traz por consequência, reações como: raiva pela perda repentina da liberdade, ansiedade pela necessidade de ajustamento situacional em todos os aspectos da vida e medo por tratar-se de um inimigo desconhecido.
A nova situação imposta trouxe pânico generalizado com impacto psicológico imediato, tornando-se um fator de estresse, que por sua vez desencadeia outros desequilíbrios neurofisiológicos como: tristeza, irritabilidade, fadiga, insônia e depressão. Esse desgaste emocional gerado pelo desconforto em relação a nova realidade pode afetar a funcionalidade do indivíduo prejudicando a vida familiar, a vida conjugal e a vida profissional. Nessa situação a ajuda profissional qualificada torna-se necessária para possibilitar colocar novamente a vida em ordem, mesmo dentro desse caos trazido pela pandemia (SILVA, SANTOS e OLIVEIRA, 2020).
Conforme ainda explica os autores supracitados, a teoria das motivações de Maslow propõe que as necessidades humanas estão subdivididas em primárias e secundárias. O primeiro grupo está ligado às necessidades fisiológicas e de segurança (comida, água, recursos, emprego) e o segundo remete às necessidades de estima e realização pessoal (amor, amizade, moralidade, aceitação). Dessa forma, quando satisfeitas, o indivíduo tende a se sentir motivado e realizado. Em contrapartida, um cenário de isolamento social pode impactar no não atendimento dessas necessidades. Nesse sentido, essa teoria ajuda a compreender os motivos que levam a violência doméstica contra a mulher nesse contexto de pandemia
Assim, com a COVID-19 invadindo os cinco continentes e causando uma pandemia com efeitos antes inimagináveis, um novo cenário veio à tona. Com as novas formas de relacionamento, com regras rígidas para distanciamento e isolamento social, uma outra epidemia tomou proporções ainda maiores, a epidemia da violência doméstica e familiar, tendo como principal vítima a mulher.
Como se não bastasse a letalidade da COVID-19, a violência de gênero tomou dimensões assustadoras durante a pandemia da COVID-19. Nessa situação a própria casa, para muitas mulheres, passou de um lugar seguro para o mais ameaçador. O isolamento social trouxe o confinamento com o agressor e para complicar um pouco mais a situação, veio também a inevitável precariedade financeira decorrente da gradativa desaceleração no desempenho da economia, gerando desemprego, e consequentemente, uma drástica redução na renda familiar (SANTOS et. al, 2020).
Dessa forma, com a instabilidade trazida por este ambiente de medo e insegurança que afeta a todos, as mulheres têm se tornado vítimas também da violência doméstica e familiar, mas com números de casos inferiores aos casos de feminicídio. Como esclarece Teófilo (2020), durante a pandemia do novo coronavírus, houve um aumento de feminicídios no Brasil, chegando a 648 casos no primeiro semestre deste ano, 1,9% a mais que 2019.
Recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como a melhor forma de conter a propagação da COVID-19, a permanência em casa pode potencializar fatores que contribuem para o aumento da violência contra as mulheres. Segundo a organização, os casos de feminicídio cresceram 22,2% entre março e abril do ano de 2020, em 12 estados do país, comparativamente ao ano de 2019. Registros públicos ainda confirmam queda na abertura de boletins de ocorrência, evidenciando que, ao mesmo tempo em que as mulheres estão mais vulneráveis durante a pandemia, elas têm maior dificuldade para formalizar queixa contra os agressores (SANTOS, 2020, p. 3).
E por conta desses altos índices de crimes praticados contra mulheres em razão do gênero, o Brasil conquistou o vergonhoso quinto lugar no ranking mundial de violência em razão do gênero. Essa posição é, sem dúvida nenhuma, motivo de tristeza para a nação brasileira. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, citado por (Teófilo (2020, p. 1), “a pandemia acentuou a violência doméstica na medida que expôs as mulheres que viviam em fragilidade passaram a ficar mais tempo com seus agressores, seja por passarem a trabalhar remotamente ou por terem perdido seus trabalhos”.
Conforme dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, após a recomendação de isolamento social como forma de conter a pandemia de Covid-19, houve um expressivo aumento o número de ligações para o Ligue 180, que é responsável por receber denúncias de violência contra a mulher. Na comparação do primeiro trimestre de 2020 com o mesmo período do ano de 2019, é possível identificar um aumento de 38% nos casos de feminicídios somente no estado de São Paulo. Percebe-se ainda um aumento nos casos de tentativas de homicídios no mesmo período (OKABAYASHI et. al. 2020). E nesse sentido, a PL 1.798/2020 surge para facilitar a o registro de ocorrências de violência contra a mulher, que a partir desta, pode ser realizado via internet ou número de telefone de emergência, além de autorizar que a vítima faça o depoimento em casa.
Dessa forma, fica evidente a correlação entre a condição de isolamento social e o aumento nos casos de violência doméstica. Condição essa, que torna ainda mais vulnerável a vítima que, na maioria dos casos tem relação de submissão com o agressor. Os números alarmantes reforçam ainda mais a ideia de que o crime em razão de gênero persiste e precisa ser combatido com máxima urgência.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A legislação brasileira para coibir a violência doméstica e familiar e o assassinato de mulheres por condições de gênero representa um importante avanço do poder público brasileiro, pois o debate acerca do assunto ainda é recente, e “feminicídio” é um conceito relativamente novo. A opção pelo uso do termo feminicídio nos debates a respeito da violência contra a mulher, e que acabou denominando a Lei 13.104/15, deu-se para reforçar a responsabilidade da parte do Estado no cumprimento das suas obrigações em relação aos direitos das mulheres.
No entanto, a cultura machista e patriarcal que caracteriza a nossa sociedade, como está devidamente demonstrado através das pesquisas realizadas para este estudo, mostra que infelizmente ainda estamos muito longe de uma realidade onde não haja violência por questões de gênero e que as leis específicas para esses casos possam ser, enfim, eliminadas do código penal.
E para agravar ainda mais os efeitos da violência contra a mulher, em todas as épocas, e infelizmente também, em meio a pandemia, o Estado continua conivente com a situações de sexismo, discriminação e desigualdade, como mecanismo de controle, quando tolera a violência e a impunidade, não responsabilizando os autores pela violência praticada.
É consenso, portanto, entre todos os autores consultados, que o combate ao feminicídio deve ir além da legislação, porque não depende só da aplicação da lei. A sociedade consiste num elemento importante na luta pela diminuição da prática de violência doméstica e familiar. Mas as sociedades atuais, ainda machistas, estimulam as agressões violentas às mulheres, ao reproduzir as desigualdades que tanto as afetam, permitindo que fatores como a classe social, a etnia da vítima, a realidade violenta no entorno e a impunidade contribuam para torná-las tão vulneráveis.
Este estudo permitiu perceber que, apesar das transformações pelas quais vem passando a sociedade, e da visibilidade no espaço público com debates e ações, todas essas medidas, infelizmente não têm sido eficazes para conter o crescente número de violência doméstica e familiar e mortes violentas por razões de gênero, um fenômeno global que vitimiza mulheres todos os dias, como consequência da herança de hábitos culturais baseados em discursos patriarcais, de que a mulher é inferior ao homem.
Também que, independentemente de questionamentos sobre a sua necessidade e importância, que as políticas públicas possam, ao lado da sociedade, como sugerem especialistas, entre outras soluções apontadas: considerar a complexidade da violência de gênero, para melhor compreender as circunstâncias da morte violenta de mulheres, em vez de individualizar o conflito, como ainda presenciamos na forma de funcionamento do direito penal.
E ainda que, é muito importante que se possa avançar na promoção da educação para a conscientização da igualdade de gênero e na fiscalização das leis no enfrentamento a discriminação estrutural e da desigualdade de poder, que inferioriza e subordina as mulheres aos homens. E que possam ser questionadas as tecnologias de produção das sexualidades, pois são tão perigosas e ao mesmo tempo muito dissimuladas e que destroem a dignidade de muitas mulheres pelo mundo afora.
Enfim, como é a esperança de todos os autores consultados para a construção deste estudo, é também o mesmo sentimento de toda a população brasileira, que todos esses avanços na legislação brasileira em relação aos direitos da mulher possam se converter em uma rede ativa de proteção, com ações concretas como, por exemplo: a discussão de gênero nas escolas, o levantamento dos dados sobre a violência, o enfrentamento a discriminação racial e a desnaturalização do preconceito que revitimizam a mulher, e o apoio aos familiares das vítimas, para que elas possam adquirir a confiança necessária nas autoridades policiais. E que a legislação possa assim, cumprir o seu objetivo principal, que é garantir para todas as meninas e mulheres a punição exemplar de crime pelos motivos da condição de ser do sexo feminino.
REFERÊNCIAS
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Bacharelanda em Direito pela Faculdade Serra Do Carmo - PALMAS/TO
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, Mara Núbia Martins dos. Os impactos da pandemia de covid-19 na violência contra a mulher Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 jun 2021, 04:17. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56810/os-impactos-da-pandemia-de-covid-19-na-violncia-contra-a-mulher. Acesso em: 23 dez 2024.
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