RESUMO: A pessoa com deficiência encontra-se em posição de extrema vulnerabilidade na sociedade, exigindo, nesse sentido, a necessidade legal de ter assegurados, pelo ordenamento jurídico brasileiro, uma série de direitos e liberdades fundamentais visando à sua inclusão social e cidadania, no intuito de ter reduzidas as suas desigualdades e, consequentemente, fazer jus ao pleno exercício de sua dignidade enquanto ser humano, nos moldes dos pactos e convenções internacionais dos quais o Brasil é signatário e, pincipalmente, nos termos da Constituição Federal de 1988. Sendo assim, o objetivo deste trabalho, portanto, é o de analisar a tipificação criminal das diversas modalidades de crimes que podem ser praticados em face pessoas com deficiência, destacando, principalmente, a indefensabilidade da vítima em face do agressor. Para tanto, será utilizada de revisão bibliográfica, no intuito de conhecer a legislação vigente destinada ao reconhecimento das garantias e direitos elaborados para as pessoas com deficiência, incluindo-se a apreciação dos principais dispositivos contidos na Lei Nº 13.146/2015, conhecida popularmente como Estatuto do Deficiente, além de analisar as previsões contidas no Código Penal Brasileiro, concomitantemente com a avaliação das correntes doutrinárias mais recorrentes. Findo o estudo, conclui-se que, apesar das importantes conquistas legislativas alcançadas para as pessoas com deficiência, inclusive com a tipificação de novos crimes que punem o preconceito e a discriminação, verificou-se que o Estatuto pecou em não alterar o Código Penal brasileiro, tendo em vista seu conteúdo repleto de expressões estigmatizantes e pejorativas, além de imprecisas, que destoam do espírito da Lei (EPD).
Palavras-chave: Crimes. Pessoa com Deficiência. Estatuto da Pessoa com Deficiência.
ABSTRACT: The disabled person is in a position of extreme vulnerability in society, demanding, in this sense, the legal need to have ensured, by the Brazilian legal system, a series of fundamental rights and freedoms aiming at their social inclusion and citizenship, in order to have their inequalities reduced and, consequently, to be entitled to the full exercise of their dignity as a human being, along the lines of the international pacts and conventions to which Brazil is a signatory and, mainly, under the terms of the 1988 Federal Constitution. the objective of this work, therefore, is to analyze the criminal classification of the different types of crimes that can be practiced in the face of people with special needs, highlighting, mainly, the victim's indefensibility in the face of the aggressor. For this purpose, a bibliographic review will be used in order to learn about the current legislation aimed at recognizing the guarantees and rights developed for people with disabilities, including the assessment of the main provisions contained in Law No. 13,146 / 2015, popularly known as Statute of the Disabled, in addition to analyzing the forecasts contained in the Brazilian Penal Code, concomitantly with the assessment of the most recurrent doctrinal currents. At the end of the study, it is concluded that, despite the important legislative achievements achieved for people with disabilities, including the classification of new crimes that punish prejudice and discrimination, it was found that the Statute did not change the Brazilian Penal Code, in view of its content full of stigmatizing and pejorative expressions, as well as imprecise, which are at odds with the spirit of the Law (EPD).
Keywords: Crimes. Disabled Person. Status of the Disabled.
INTRODUÇÃO
Durante muito tempo, na história das civilizações, a deficiência fora vista, exclusivamente, pela perspectiva médica, de forma isolada, associada a alguma patologia, de modo que ser deficiente era ser uma pessoa doente. No entanto, no contexto sociocultural atual, a percepção médica da deficiência falha por não visualizar o incidente de forma contextualizada, vendo a deficiência em si mesma, como problema de um indivíduo que foge de um padrão homogeneizado do ser perfeito.
Nessa perspectiva, a problemática da deficiência não está na pessoa que apresenta tal condição, mas na forma como a pessoa deficiente é concebida na sociedade. Assim, o modelo social reconhece a singularidade da pessoa e não a sua deficiência, singularidade essa que a torna diferente de todas as outras pessoas, pois se parte do entendimento de que cada pessoa é única. Nesse sentido, a sociedade deve adaptar-se para responder as necessidades de todos os seus membros, pois o contexto social assume um papel decisivo como favorecedor ou impeditivo do processo de desenvolvimento das pessoas que nele se encontram inseridas.
O instituto da capacidade civil passou por diversas mudanças com o advento da Lei Nº 13.146/15, passando a considerar as pessoas com deficiência plenamente capazes na ordem civil, dando a elas mais autonomia e igualdade de condições para regerem suas vidas.
Assim, a pessoa com deficiência deixa de ser considerada absolutamente incapaz, e passa ser capaz para exercer os atos da vida civil, alteração esta que repercutiu diretamente no âmbito penal, suscitando o seguinte questionamento: no que se refere aos crimes cometidos contra as pessoas com deficiência, quais as consequências que esses criminosos terão que responder?
Diante desse cenário, o objetivo proposto para este estudo foi de identificar os principais direitos e garantias em face da Lei Nº 13.146/15, a nível penal, no âmbito da proteção da pessoa com deficiência, com ênfase na punição criminal do causador da agressão, ao passo que os objetivos suplementares consistem em esclarecer as nomenclaturas usadas anteriormente, até o estatuto entrar em vigor, também compreender de modo geral todas as mudanças e alterações que ocorreram no ordenamento jurídico depois que o Estatuto entrou em vigor.
2 DOS DIREITOS E GARANTIAS DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA
2.1 A pessoa com deficiência na história das civilizações
Nos primórdios civilizatórios, em que os humanos ainda dependiam exclusivamente da caça e coleta, o abandono ou extermínio eram comuns, uma vez que:
Na existência de fator que poderia pôr fim ou causar grave prejuízo à totalidade do grupo ou tribo (por exemplo, uma pessoa enferma, seja por acometimento de doenças, seja por ferimentos em virtude de caça ou guerra), o mesmo deveria ser abandonado ou sacrificado em benefício da manutenção do coletivo (MOISES, 2019, p. 40)
Nesse mesmo sentido, Ricardo Tadeu Marques da Fonseca destacado por Maria Ivone Fortunato Laraia afirma que:
Os povos primitivos tratavam-nas das mais diversas formas: muitos, simplesmente, eliminavam-nas, com empecilhos que representavam para a caça e para a marcha natural entre os nômades; outros ao contrário, protegiam-nas, sustentando-as, no afã de conquistar a simpatia dos deuses, como medida de recompensa por mutilações sofridas durante a caça ou durante a guerra (LARAIA, 2009, p.22).
Desse modo, é possível concluir que cada grupo das primeiras civilizações humanas possuíam dentre si, uma forma de tratamento para com as pessoas com deficiência. Na maioria dos grupos, porém, segundo historiadores, as pessoas idosas e os deficientes eram deixados para trás, para que se prevalecesse primeiramente a sobrevivência do grupo.
Em verdade, um dos registros mais antigos leva a data de 1.250 a.C. quando houve o primeiro registro de uma pessoa com deficiência no Egito, sendo possível verificar em uma imagem gravada em pedra. Além disso, também é possível expor que a primeira gravura de uma cadeira de rodas, ainda muito diferente daquelas que são encontradas atualmente, obviamente, mas que é acionada por cisnes (BRASIL, 2016, p. 4).
Segundo interpretação de alguns papiros encontrados por historiadores, é possível afirmar que o Egito antigo foi por muito tempo uma “terra de pessoas cegas”, em decorrência de doenças que se originavam nas tempestades de areias e nas pragas, sugerindo que, com seus conhecimentos e busca de curas, foram os primeiros grupos a fazerem cirurgias oculares no tratamento da cegueira, mostrando-se uma sociedade tolerante e respeitadoras para com seu povo (YARAIAN, DESTRO, 2018).
O mesmo não acontecia Grécia antiga. Há uma relação de tratamento com as pessoas com deficiência totalmente oposta aos egípcios. Certas pessoas consideradas “incomuns ou disformes” das normas padrões da sociedade, sem beleza ou força física, eram desprezadas ou condenadas à morte.
As cidades-estados, Atenas e Esparta, tratavam a pessoa com deficiência com certa rigorosidade, enquanto que na Polis Grega Atenas, o pater família, verificando-se a deficiência do seu filho, detinha a responsabilidade da eliminação do mesmo, através de abandono, que se dava por manter a criança recém-nascida dentro de um vaso de argila, para sua morte em decorrência da exposição do calor; ou a possibilidade das pessoas com deficiência serem atiradas do aprisco das montanhas Taygetos , nas palavras de Platão apud Maria Aparecida Gugel (2014, p. 63).
Quanto à Polis Esparta, os cidadãos eram marcados pela padronização de ideias estéticas e atléticas. As pessoas que não se enquadravam nos padrões, como as pessoas com deficiência eram considerados cidadãos de segunda categorias, se igualando aos escravos e pariécos (YARAIAN, DESTRO, 2018).
A sociedade Romana Antiga, na mesma direção considerava inútil sua existência, dando permissões aos pais para o sacrifício dos filhos que nasciam com algum tipo de deficiência ou deixarem a mercê da sorte em locais extremamente perigosos. As práticas mais comuns eram o afogamento no famoso Rio “Tibre” ou em lugares considerados como sagrados, havendo também, contudo, uma forma de abandono em margens de rios, com a finalidade de serem encontrados e acolhidos por famílias de plebeus (YARAIAN, DESTRO, 2018).
Por sua vez, durante a Idade Média, a pessoa com deficiência, por meio da ascensão da fé cristã durante a Idade Média, passou a ser considerada também “filha de Deus” e detentora de alma. Com surgimento do Cristianismo, religião monoteísta, que teve como base de seus ensinamentos as pregações de Jesus de Nazaré, a realidade foi um pouco alterada, influenciando a sociedade a encarar com devido respeito as pessoas com deficiência, verificando-se situações de acolhida, abrigos e alimentações para tais indivíduos. A consolidação de uma doutrina fundada no sentimento de humildade, caridade e amor ao próximo, gerou a crença e a aceitação de que cada indivíduo passava a ser, independentemente de sua condição física ou mental, um ser criado por Deus e que acima de tudo deveria ser respeitado e tratado com igualdade aos demais na sociedade.
No entanto, no referido período, a inexistência de investigações sobre as pessoas com deficiência, no campo científico, e o desconhecimento e fanatismo religioso de parcela significativa da sociedade, que confundia ciência com bruxaria, proporcionaram, por diversas vezes, que pessoas com deficiência fossem consideradas bruxas ou “endemoniadas”.
Para Pessotti (1984), a pessoa com deficiência no século V:
[...] era visto como portador de desígnios especiais de Deus ou como presa de entidades malignas às quais “obviamente” serviria através de atos bizarros como os das bruxas. Dada a credulidade da população rural e seu fanatismo clerical, não surpreende que entre as cem mil pessoas queimadas por bruxaria, só na Alemanha do século XVII, estivessem incluídos centenas de dementes e amentes ou deficiente mentais (PESSOTTI, 1984, p. 9).
Contudo, somente em 1233, através do Papa Gregório IX, que houve o rompimento com práticas como a tortura e a pena de morte àqueles que possuíam deficiências físicas de qualquer natureza ou mentais, e representavam alguma ameaça ao poder religioso sobre a sociedade. Tal evolução levou certamente a integração social e maior aceitação da pessoa com deficiência.
Outrossim, somente no século XX foi que se deu, efetivamente, o surgimento a preocupação com o bem-estar e a devida inserção da pessoa com deficiência na sociedade. Em busca de melhores condições, foram realizados conferências e congressos em vários países, versando sobre temas como as “Crianças Inválidas – 1904”, “Congresso Mundial dos Surdos – 1909” e a Conferência sobre “Os Cuidados de Crianças Deficientes – 1909”.
A Primeira Guerra Mundial trouxe alterações relevantes ao mundo do trabalho e, consequentemente, para os direitos da pessoa com deficiência. O fim da guerra foi marcado por crises financeiras que assolaram o mundo e por haver grande quantidade de homens inabilitados ao trabalho, impossibilitados de exercerem determinadas atividades e a realização de força em local de trabalho. Assim, fez-se necessário o desenvolvimento de ações para a reabilitação dos combatentes.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, a sociedade pasmada com as atrocidades realizadas, começa a visualizar a necessidade de se buscar alternativas para a reabilitação das pessoas vítimas dos combates. Além dessa busca, começa também um movimento de consolidação de direitos, bem como de mecanismos para se evitar um novo acontecimento de tal magnitude.
Instituiu-se, assim, através da Carta das Nações Unidas, em 1945, há criação da Organização das Nações Unidas – ONU, em Londres, que visava, juntamente com os diversos países membros, buscar soluções no âmbito dos direitos humanos, com preservação da dignidade da pessoa humana, incluindo-se nesse circuito, os direitos da pessoa com deficiência, ainda que com nomenclatura genérica e incompleta acerca das possibilidades existentes.
2.2 Conceitos e definições legais acerca do termo deficiência
Em nosso ordenamento jurídico, uma das primeiras previsões que determinam conceituação está na Lei 8.742, de 07 de dezembro de 1993, que dispõe sobre a organização da Assistência Social e dá outras providências dispondo em seu artigo 20, parágrafo 2º, o seguinte:
Art. 20. O benefício de prestação continuada é a garantia de um salário-mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família.
[...]
§ 2º Para efeito de concessão do benefício de prestação continuada, considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. (BRASIL, Lei Nº 8.742, 1993).
Este dispositivo traz o mesmo conceito determinado no artigo 1º do Decreto 6.949/2009, que recepcionou e promulgou a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007. (BRASIL, Decreto 6.949, 2019).
Por seu turno, o Dicionário Aurélio (online) da Língua Portuguesa traz seu conceito de deficiência. “De.fi.ci.ên.cia: Imperfeição, falta, lacuna. Já o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa (2017), explica: “Deficiência s. f. Imperfeição, falta, lacuna”.
Nesse sentido, podemos observar que os conceitos trazidos pelos dicionários citados acima, aduzem a incapacidade como um defeito e uma imperfeição. Por outro lado, analisando-se o Estatuto do Deficiente, o que se pode extrair é a não existência da incapacidade, hoje as pessoas com deficiência estão incluídas na sociedade e principalmente no mercado de trabalho, são independentes e já podem optar por gerir suas próprias vidas.
O artigo 2º da Lei Nº 13.146/15 traz, expressamente, em sua escrita o conceito de deficiência, nos seguintes termos:
Art. 2º Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas (BRASIL, 2015, p 01).
Sendo assim, é considerada pessoa com deficiência o portador de limitações de longo prazo, de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, de modo a comprometer sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.
Antes disso, em 25 de outubro de 1989 foi publicada a Lei Nº 7.853, de 24 de outubro de 1989, que disciplinou o apoio às pessoas com deficiência e sua respectiva integração social, além definir crimes. Esta lei só foi regulamentada mais de 10 (dez) anos depois, por meio do Decreto Nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999. Este Decreto, além de conceituar a deficiência, a deficiência permanente e a incapacidade, descreve as situações em que a pessoa é considera com deficiência (GOULART, 2015).
A Organização Mundial da Saúde (2011) caracteriza a diversidade da deficiência como experiências resultantes da interação de problemas de saúde, fatores pessoais, e fatores ambientais e, expõe que:
[...] As pessoas com deficiência são diferentes e heterogêneas, enquanto que os pontos de vista estereotipados da deficiência enfatizam os usuários de cadeiras de rodas e alguns poucos outros grupos “clássicos” tais como os cegos e os surdos. A deficiência afeta seja a criança recém-nascida com uma condição congênita tal como paralisia cerebral, seja o jovem soldado que perde sua perna ao pisar numa mina terrestre, a mulher de meia idade que sofre de artrite severa, ou o idoso que sofre de demência, entre muitas outras pessoas (OMS, 2011, s/p).
O Movimento (BRASIL, 2016, p. 20) ainda aponta, de acordo com sua pesquisa, foi em 2006 que “a expressão ‘pessoa com deficiência’ é consagrada pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, da ONU. Ser ‘pessoa com deficiência’ é, antes de tudo, ser como qualquer outra pessoa.”
A partir disso, é possível afirmar o termo pessoa com deficiência como o correto para ser utilizado quando necessário se referir à alguém com algum tipo de deficiência, seja qual for, onde o processo emancipatório das pessoas com deficiência destina-se a reconhecer o poder de diálogo e a participação nos processos legislativos para fomentar a discussão sobre o acesso aos direitos humanos fundamentais e a exigência e efetivação desses direitos perante o Estado e a Sociedade Civil, reconhecendo a autonomia na vida digna.
2.3 O processo de inclusão social da pessoa com deficiência na sociedade contemporânea
O processo de inclusão social da pessoa com deficiência é tão antigo quanto o processo de socialização do homem. O mundo social inerente aos seres humanos é composto de características individuais que os tornam únicos e diferentes uns dos outros, de modo que, para que um indivíduo compreenda o meio em que ele está inserido, ele deverá aprender os aspectos sociais vigentes nessa sociedade. Esse processo é chamado de socialização.
Junto ao processo de socialização, há o processo de inclusão social deste indivíduo recém-chegado ao meio social, que é formado por um conjunto de ações que visam garantir a participação igualitária de todos os membros da sociedade, integrando-os independentemente dos aspectos à eles inerentes. À medida em que há uma evolução da sociedade, seus aspectos culturais e suas características sociais, tendem a acompanhar essa evolução, às vezes criando novas características ou consolidando o que já estava conceituado.
Com efeito, verificamos na sociedade contemporânea a existência de muitos conceitos culturais e sociais predominantes anteriormente, que são cada vez mais acentuados. Cenário esse, que dará espaço para uma percepção de exclusão social do indivíduo.
A exclusão social, além do conceito originário que está relacionado à uma condição inerente ao capitalismo contemporâneo – que de certa forma impulsiona o crescimento de desigualdades sociais – está também relacionado ao processo de afastamento e privação de determinados indivíduos em diversos âmbitos da estrutura da sociedade (AMARAL, 2019).
A Constituição de 1988 traz em seu corpo alguns dispositivos específicos no que tange aos direitos das pessoas chamadas portadoras de deficiência. Alguns destes mandamentos são explícitos e específicos a estas pessoas e outros são implícitos, tratando apenas da proibição de distinção ou preconceito de qualquer espécie, conforme se verifica a seguir. A primeira referência implícita se apresenta no artigo 1º, inciso III, onde se vislumbra como fundamento a dignidade da pessoa humana, que será abordado em tópico específico.
Em seguida, no artigo 3º do mesmo dispositivo legal, observa-se que constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: [...] IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (BRASIL, 1988). Cláusula pétrea e expressa, o mandamento acima dispensa maiores delongas, vez que proíbe qualquer tipo de discriminação. Da mesma forma, o artigo 5º da Carta Magna determina a igualdade entre os brasileiros e os estrangeiros residentes no país:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo- se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]. (BRASIL, 1988).
Todos estes mandamentos encontram-se no capítulo I, dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos. No capítulo II da CF/88, que trata dos direitos sociais, observa-se o seguinte dispositivo expresso:
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: [...] XXXI - proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência; (BRASIL, 1988).
Aqui é possível vislumbrar que o Poder Constituinte passou a visualizar a necessidade de determinar expressamente que as pessoas com deficiência merecem igualdade de condições no tocante a salários e critérios de admissão, talvez pelo fato de que intrinsecamente, ainda exista muito preconceito quando se trata de trabalhadores com qualquer tipo de deficiência
Se levarmos em conta o conceito de exclusão social e a vida em sociedade, podemos evidenciar a existência de distintos obstáculos que irão impedir a efetivação e promoção das garantias fundamentais. Por isso, a fim de erradicar a exclusão da pessoa com deficiência, garantir a igualdade entre os seres humanos e a dignidade da pessoa humana, instituiu-se em 30 de março de 2007, a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Servindo de parâmetro para todos os países signatários da Carta das Nações (AMARAL, 2019).
Logo em seguida, o Brasil, no dia 25 de agosto de 2009, por meio do Decreto nº 6.949, promulgou a Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, e, em 6 de julho de 2015 instituiu o consagrado Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146), norma de notável importância no ordenamento jurídico brasileiro, referente à proteção e promoção dos direitos fundamentais deste grupo social.
2.4 O Estatuto da pessoa com deficiência e a capacidade civil
Indiscutivelmente, o mais sério estigma da deficiência é o rótulo no qual ela se constitui, ocorrendo mesmo, a sobreposição desta ao ser humano, que praticamente desaparece. Com isto, a pessoa com deficiência passa a ter, em inúmeras situações, seu nome desconhecido, sendo tratado pela espécie de sua deficiência, onde apelidos capacitistas são pronunciados em substituição ao nome civil. Por esse motivo, ao longo dos anos, a proteção à pessoa com deficiência passou a receber cada vez mais destaque no cenário legal e social, havendo, nesse contexto, uma lei muito sensível às necessidades de inserção social, proteção patrimonial e um campo normativo punitivo para aqueles que praticam crimes contra vítimas com deficiência.
A evolução dos direitos humanos fundamentais é percebida como essencial para a organização jurisdicional positiva dos direitos civis, acompanhada pelos fatos e lutas sociais que incidem na alteração, inclusive, das normas de direito processual. Em conseguinte, a defesa da legalidade e das pessoas, num modo geral, e por muitas vezes, abstrato, representa uma grande e importante quebra de paradigma no que tange o tratamento das pessoas com deficiência, por positivar direitos que visam a efetivação dos direitos humanos fundamentais, especificamente os direitos promulgados na Convenção Internacional das Pessoas com Deficiência.
Os movimentos e ações políticas, tanto positivas como negativas, no do Estado Democrático tem evoluído na afirmação dos direitos humanos fundamentais, nos quais se incluem os direitos das pessoas com deficiência, a partir da conscientização social e da positivação inicial no âmbito internacional com respaldo nas principais normas de caráter protecionista (PINHEIRO, LOCATELI, 2017).
A partir do posicionamento de afirmação, o Direito nasce de uma pretensão, ou seja, a possibilidade de uma pessoa exigir de outra, ou do Estado, que faça ou deixe de fazer algo em virtude de algum privilégio. Isso decorre da legitimidade reconhecida a alguém para que, por meio de um terceiro, representado pela imparcialidade, reconheça o direito e o dever da prestação, especialmente quando se tratam de direitos fundamentais. Em decorrência, as normas de direitos humanos passam por processo afirmativo para a exigência de ações, muitas vezes por meio de inclusão de norma interna e políticas públicas, para atendimento das necessidades de cada grupo ou indivíduo.
Nesse contexto, a sociedade civil brasileira sempre enfrentou grandes desafios para garantir a todos a segurança de ser tratado com respeito na sua condição de pessoa humana, com direitos, deveres e oportunidades iguais. Depois de anos de lutas e resistências, as pessoas com deficiência conquistaram a tão sonhada Lei Brasileira de Inclusão (LBI), popularizada como o Estatuto da Pessoa com Deficiência.
A Lei Nº 13.146/2015 é uma lei ampla que assegura em nosso ordenamento jurídico, a acessibilidade e a inclusão da pessoa com deficiência, em diferentes aspectos da sociedade, embora, para sua efetiva concretização plena há ainda um longo caminho a percorrer.
A grande novidade do Estatuto da Pessoa com Deficiência foi alterar outras leis como o Código Civil, a Consolidação das Leis do Trabalho, o Código Eleitoral e todas as legislações vigentes para deixá-las em conformidade com a Convenção Internacional da Organização das Nações Unidas, alterou ainda, a Teoria das Incapacidades.
O chamado Estatuto da Pessoa com Deficiência - EPD, Lei Nº 13.146/15, que entrou em vigor em 2 de janeiro de 2016, trouxe inúmeras mudanças no âmbito das capacidades, alterando diversos dispositivos do Código Civil, entre eles, o art. 3º, que passa a considerar como absolutamente incapaz apenas os menores de dezesseis anos de idade e o art. 4º, que trata como relativamente incapazes:
I - Os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos;
II - Os ébrios habituais e viciados em tóxicos; e
III - Aqueles que por causa transitória ou permanente não puderem exprimir sua vontade (BRASIL, 2002).
Verifica-se, aqui, que é evidente que o Estatuto veio proporcionar mais autonomia à pessoa com deficiência, quando visa incluí-la na sociedade como qualquer sujeito dotado de deveres e obrigações e vela pelo princípio da dignidade da pessoa humana, a partir de uma presunção da capacidade.
A Lei Nº 13.146/15 surge como aparato protetivo e revolucionário para a pessoa com deficiência, tendo como viga mestre de sustentabilidade a dignidade da pessoa humana. Esta é um dos pilares de um Estado Democrático de Direito e fundamento da República Federativa do Brasil, assegurada no art. 1º, III da Constituição Federal de 1988, sendo ela o centro de toda e qualquer garantia dada ao ser humano.
Esse novo diploma legal rompeu com a ideia de a pessoa com deficiência ser reputada ou estigmatizada como incapaz, estabelecendo um tratamento mais isonômico, positivando sua capacidade legal plena, estando alicerçado no respeito aos Direitos Humanos e na Carta Magna de 1988, trazendo em sua fundamentação a exaltação do princípio da dignidade humana e a promoção de direitos e cidadania para as pessoas com deficiência, além de trazer grandes avanços na proteção da dignidade da pessoa com deficiência, alterando e revogando artigos do Código Civil brasileiro. Houve alterações na estrutura e no funcionamento das chamadas incapacidades causando repercussão direta em institutos como o da interdição, da curatela, do casamento, etc., assim como, da prescrição (DIAS, 2019).
Nesse ínterim, cumpre trazer à baila o ilustre entendimento de Vicente e Alexandrino, a ver: A dignidade da pessoa humana assenta-se no reconhecimento de duas posições jurídicas ao indivíduo. De um lado, apresenta-se como um direito de proteção individual, não só em relação ao Estado, mas, também, frente aos demais indivíduos. De outro, constitui dever fundamental de tratamento igualitário dos próprios semelhantes (VICENTE; ALEXANDRINO, 2013)
Importa destacar que a capacidade é a medida jurídica da personalidade. Essa capacidade se subdivide em capacidade jurídica ou de direito, a qual todos os indivíduos possuem que é a aquela para adquirir direitos e contrair deveres na ordem civil, “a capacidade de direito não pode ser recusada ao indivíduo, sob pena de se negar sua qualidade de pessoa, despindo-o dos atributos da personalidade” (DINIZ, 2017, p.168). E capacidade de fato ou de exercício, que diz respeito à possibilidade de o indivíduo praticar por si só os atos da vida civil, a qual pressupõe discernimento entre o certo e errado.
A capacidade civil das pessoas com deficiência está intimamente ligada às questões de igualdade, dignidade e inclusão social. Todo indivíduo é dotado da chamada capacidade de direito, a qual é considerada aptidão genérica para alguém ser titular de direitos e obrigações. “Toda pessoa natural a tem, pela simples condição de pessoa” (FARIAS; ROSENVALD, 2014, p. 305).
Já a capacidade de fato nem todos possuem, pois é a possibilidade de o indivíduo exercitar pessoalmente os atos da vida civil. Sobre o assunto Lôbo explica que:
A concentração em um mesmo sujeito (homem, pessoa, capacidade civil) resulta do processo histórico de emancipação da humanidade, no sentido de afirmação da dignidade da pessoa humana, sem discriminações, como proclama a Declaração Universal dos Direitos do Homem (“Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direito”) (LÔBO, 2013, p. 107).
No entanto, embora as mudanças quanto à capacidade civil tenham sido expressivas, em nada se alterou no Código Penal quanto à condição dessas pessoas. Antes da entrada em vigor do presente Estatuto, havia uma sintonia entre os Códigos Civil e Penal, nos quais o indivíduo que era capaz ou incapaz para um, era para o outro. Porém, hoje, com a alteração dos arts. 3º e 4º do CC/02, a pessoa com deficiência passou a ser capaz civilmente em relação a todos os seus atos, mas permaneceu incapaz penalmente, ou melhor, inimputável, gerando uma incompatibilidade no ordenamento jurídico.
Muito embora seja cediço que o Código Civil e o Penal são institutos completamente diferentes, cada um com regras próprias, porém, o que se esclarece aqui é que o agente incapaz, ora inimputável do Código Penal, é o mesmo indivíduo capaz do Código Civil, o que de fato é juridicamente controverso e antes inexistente, gerando no mínimo uma incoerência entre tais institutos. Nesse ínterim, o Código Penal Brasileiro segue inalterado, considerando as pessoas com doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado como inimputáveis, conforme discrimina o artigo 26 do CP e são, portanto, isentas de pena.
Ademais, embora não tenha sido modificado, o Código Penal sofreu reflexos das alterações promovidas pela Lei Nº 13.146/15, principalmente no que diz respeito ao estupro de vulnerável, previsto no art. 217-A. O Código Penal, nesse aspecto, parte de uma presunção de vulnerabilidade da pessoa com deficiência, a qual colide com a garantia do art. 6º, II do Estatuto, qual seja, o direito a ter uma vida sexual e reprodutiva. Trazendo, por sua vez, insegurança jurídica para essas pessoas.
2.5 Tipificação penal dos crimes contra a pessoa com deficiência sob a égide da Lei Nº 13.146/2015
O artigo 88 da Lei Nº 13.146/2015 tipifica como crime a conduta: “Art. 88 Praticar, induzir ou incitar discriminação de pessoa em razão de sua deficiência.” A sanção para quem comete referido ilícito penal é a pena de reclusão de 1 a 3 anos e multa.
A pessoa com deficiência requer um olhar e uma assistência afetiva peculiar à sua condição. Gestos que por vezes não causam a mínima perturbação a uma pessoa pode ter dimensões catastróficas quando direcionadas à pessoa com deficiência. Considerando essa peculiaridade, o legislador categorizou como crime no artigo 88 da Lei Nº 13.146/2015 a prática de discriminação contra a pessoa com deficiência, impondo uma pena de reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos.
Assim, quando a pessoa com deficiência está sob o cuidado e responsabilidade de determinada pessoa, a sociedade chancela a confiança de que a referida pessoa será protetora da pessoa com deficiência contra qualquer ato que ofenda seus direitos fundamentais, principalmente tendo como norte o princípio da dignidade da pessoa humana, da igualdade e da vida. Acrescido à responsabilidade que o Estado lhe confere, ainda existe o fator de afetividade e confiança que a pessoa com deficiência deposita naquele que tem o encargo de protegê-la, causando uma série de traumas e distúrbios de ordem psicológica, razão pela qual o legislador erigiu a situação agravante prevista no § 1º da Lei Nº 13.146/2015.
Caso o crime seja cometido com a utilização de meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza, a sanção penal aumenta para o intervalo de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa, conforme artigo transcrito abaixo:
Art. 88 (...)
§ 2º Se qualquer dos crimes previstos no caput deste artigo é cometido por intermédio de meios de comunicação social ou de publicação de qualquer natureza:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa.”
Além disso, o legislador, conferiu tipicidade não somente ao sujeito que pratica o ato de discriminação, mas também aquele que induz ou incita referido ato. Segundo Damásio de Jesus (2012), induzir é incitar, incutir, mover, levar. No induzimento, o sujeito faz penetrar na mente da vítima a ideia de autodestruição.
No artigo 89 da Lei Nº 13.146/2015, o legislador penaliza aquele criminoso que investe sua ambição contra o patrimônio da pessoa com deficiência. O patrimônio da pessoa com deficiência é de titularidade da mesma e aquele que desfalca ou se apropria de parcela ou integralidade desse patrimônio está praticando o crime tipificado no supracitado artigo. Vale frisar que não só os bens são protegidos, mas proventos, pensões, benefícios, remuneração ou qualquer tipo de renda (SANTOS, 2019).
Apesar dessas importantes conquistas para as pessoas com deficiência, inclusive com a tipificação de novos crimes que punem o preconceito contra pessoas com deficiência, entendemos que o Estatuto pecou em não alterar o Código Penal brasileiro. Primeiramente, porque a lei penal ainda contém expressões estigmatizantes e pejorativas, além de imprecisas, que destoam do espírito da Lei (EPD). Exemplo disso são as expressões “desenvolvimento mental incompleto ou retardado” (art. 26) e “inválido” (arts. 135 e 244), encontradas no Código, quando a expressão correta a ser empregada, vez que encontra definição legal no Decreto n.º 3.298, de 1999, seria “pessoa com deficiência mental ou física”.
Um ponto mais sensível do Código Penal que não foi observado pelo legislador diz respeito aos crimes contra a dignidade sexual. De acordo com a reforma parcial realizada pela Lei n.º 12.015, de 7 de agosto de 2009, passou a ser crime de estupro de vulnerável a prática de qualquer ato sexual com pessoa menor de 14 anos ou “alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato”, punido com 8 a 15 anos de reclusão (art. 217-A).
Com isso, as pessoas com deficiência mental foram consideradas vulneráveis, isto é, absolutamente incapazes de consentir com a prática de atos sexuais. Pelo Estatuto, no entanto, a deficiência, ainda que mental, não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para exercer direitos sexuais e reprodutivos (art. 6.º). Tal capacidade está assegurada desde antes pela Convenção, que foi assinada pelo Brasil ainda em 2007, antes da criação do tipo penal em questão.
É no mínimo curioso observar que, no mês de agosto de 2009, ao mesmo tempo em que se concedia status de Emenda Constitucional à Convenção, reconhecendo o exercício de direitos sexuais e reprodutivos das pessoas com deficiência, criava-se o crime hediondo de estupro de vulnerável, impondo relevante incapacidade sobre tais pessoas. Esta inobservância pelo legislador, seja em 2009 ou 2015, cria relevante dificuldade aos operadores do direito, que precisam avaliar, caso a caso, quando uma pessoa com deficiência tem ou não o necessário discernimento para a prática de ato sexual, o que gera incerteza e insegurança jurídica, não apenas para os juízes, promotores e advogados, como para as próprias pessoas com deficiência e seus parceiros.
2.6 Outros dispositivos protecionais voltados para a punição dos crimes contra a pessoa com deficiência
A Lei nº 7.853/89, de maneira peculiar, trouxe uma sistemática diferente daquela comumente empregada em outras leis definidoras de infrações penais, já que prevê a pena no caput do artigo, antes mesmo da definição da conduta delituosa, trazendo, em seu artigo 8º, a seguinte redação:
Art. 8º Constitui crime punível com reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa:
I - recusar, suspender, procrastinar, cancelar ou fazer cessar, sem justa causa, a inscrição de aluno em estabelecimento de ensino de qualquer curso ou grau, público ou privado, por motivos derivados da deficiência que porta;
II - obstar, sem justa causa, o acesso de alguém a qualquer cargo público, por motivos derivados de sua deficiência;
III - negar, sem justa causa, a alguém, por motivos derivados de sua deficiência, emprego ou trabalho;
IV - recusar, retardar ou dificultar internação ou deixar de prestar assistência médico-hospitalar e ambulatorial, quando possível, à pessoa portadora de deficiência; (BRASIL, 1989)
Esses delitos podem ser classificados como formais, eis que independem de algum resultado para sua consumação. São também crimes dolosos, eis que não previsão para a modalidade culposa. No que se refere à tentativa, esta é admitida na grande maioria das condutas. A exceção fica por conta dos chamados crimes omissivos próprios, ou seja, aqueles que se consumam instantaneamente. É o caso, exemplificadamente, das condutas “deixar de prestar assistência – inciso IV”, “deixar de cumprir – inciso V” e “omitir dados – inciso VI”.
Finalmente, além das condutas previstas na Lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989, o Código Penal também elenca uma série de delitos cujas vítimas são pessoas com deficiência.
O primeiro deles está no capítulo “DAS LESÕES CORPORAIS”. Trata-se do § 11º, que remete ao § 9º, ambos do artigo 129:
Lesão corporal
Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:
Pena - detenção, de três meses a um ano.
(...)
§ 9º Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade: (Redação dada pela Lei nº 11.340, de 2006)
(...)
§ 11. Na hipótese do § 9º deste artigo, a pena será aumentada de um terço se o crime for cometido contra pessoa portadora de deficiência. (Incluído pela Lei nº 11.340, de 2006) (grifo nosso)
Nos CRIMES CONTRA A HONRA, os delitos estão assim dispostos:
Calúnia
Art. 138 - Caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos, e multa.
Difamação
Art. 139 - Difamar alguém, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação:
Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.
Injúria
Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:
Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.
§ 3º Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência: (Redação dada pela Lei nº 10.741, de 2003)
Pena - reclusão de um a três anos e multa. (Incluído pela Lei nº 9.459, de 1997)
Disposições comuns
Art. 141 - As penas cominadas neste Capítulo aumentam-se de um terço, se qualquer dos crimes é cometido:
(...)
IV - contra pessoa maior de 60 (sessenta) anos ou portadora de deficiência, exceto no caso de injúria. (Incluído pela Lei nº 10.741, de 2003) (sem grifos no original) (BRASIL, 1989)
Além disso, o art. 8º, em seu inciso IV, constitui crime punível com reclusão de 1 (um) a 4 (quatro), anos e multa, recusar, retardar ou dificultar internação ou deixar de prestar assistência médico-hospitalar e ambulatorial, quando possível, à pessoa com deficiência.
As formas pelas quais o delito pode ser praticado consistem em recusar, retardar, ou dificultar a prestação de assistência médico-hospitalar a pessoa com deficiência em razão desta. Recusar é o ato de negar-se terminantemente a cumprir com o dever imposto por lei, não é simplesmente um comportamento omissivo, mas desobediência a preceitos legais atinentes à função do agente e dos quais ele deve ter pleno conhecimento.
Retardar significa protelar, utilizar-se de delongas desnecessárias no cumprimento do dever jurídico de prestar assistência ao deficiente, ou seja, retarda sem necessidade, quem procrastina quando já estão presentes as mínimas condições de realização do atendimento exigido pelo caso concreto. Deixar de prestar assistência constitui-se na modalidade pela qual o agente comete o crime ao omitir-se de executar o dever de prestar assistência, considerando para tal atitude negativa, unicamente a deficiência da vítima (ARAÚJO, 2014)
Finalmente, impende salientar que o indivíduo com deficiências de qualquer modalidade - seja visual, auditiva, física ou mental - encontra-se em uma posição de grande vulnerabilidade em relação ao sem deficiência, sendo frequentemente marcante a assimetria das relações de poder na interação entre ambos. Tal assimetria de relação hierárquica é multiplicada, conforme a severidade de cada caso, sendo ampliada se a pessoa com deficiência pertencer a um outro grupo de risco, como por exemplo, se for mulher ou criança.
Em resumo, o trunfo do agressor, nestes casos, está na vulnerabilidade das pessoas com deficiência, que costumam apresentar déficits na capacidade de discernir seus direitos e as situações que são abusivas, desafiadoras de sua integridade física, moral e psicológica, em que os algozes podem, dessa maneira, estar em qualquer classe social, em qualquer raça/etnia, em qualquer profissão, participar de qualquer credo religioso, pertencer a qualquer partido político, a qualquer clube, muitos sendo considerados acima de qualquer suspeita.
Nas intervenções típicas com deficientes, para que o atendimento seja efetivo, é preciso conhecer suas necessidades especiais, considerando limitações e potencialidades. Isto implica na ciência dos diagnósticos dos sujeitos, por parte dos pesquisadores, dado a partir de um processo de observação das suas condutas e características.
Portanto, o conteúdo das discussões, tarefas, entrevistas ou atividades da intervenção precisa ser adaptado às condições especiais da população-alvo, para que o próprio participante tenha uma ação ativa no processo terapêutico. Nesta etapa, devem ser criadas soluções para minimizar limitações visuais, físicas ou mentais, assegurando a devida inclusão do indivíduo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As políticas de apoio a pessoa com deficiência são uma realização da chamada igualdade material, que se traduz no jargão “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida em que eles se desigualam”. Na seara criminal, é ainda mais urgente essa preocupação com a vulnerabilidade da vítima. As agravantes ou causas de aumento de pena refletem uma especial cautela para com as pessoas com deficiência.
Assim, direta ou indiretamente, a vulnerabilidade vai ingressando no Código Penal e exigindo um espaço para explorar sua dimensão. Muitas são as necessidades e fragilidades do homem que vão surgindo de acordo com a utilização da inteligência racional. Assim, o indivíduo é visto como um bem que deve ser conservado para a própria perpetuação da humanidade. As imperfeições fazem parte da natureza humana, mas se apresentam como obstáculos a serem superados. Do contrário, não se justifica a grandiosidade do ser humano. A sabedoria, a experiência, a solidariedade são atributos que se desenvolvem no homem justamente para buscar o aprimoramento de sua existência. A lei, em razão de seu espírito cogente, apresenta-se como um espaço hábil para o desenvolvimento das práticas que buscam a valorização do homem e sua realização na sociedade em que vive.
No dia 02 de janeiro de 2016 entrou em vigor, em todo o território nacional, o Estatuto das Pessoas com Deficiência. Entre diversos dispositivos destinados a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania, tipificando crimes e promovendo uma revolução no regime da capacidade civil.
Em que pese reconhecer o valor e o calibre desse necessário e útil instrumento na luta das pessoas com deficiência pela realização dos seus direitos mais básicos, a tipificação, tal qual descrita pelo legislador, enseja dúvidas que devem ser solucionadas, especialmente no que se refere ao pleno exercício de sua dignidade humana, cidadania, direito à igualdade, segurança e proteção, tendo em vista seu estado de vulnerabilidade.
A alocação da dignidade da pessoa humana no âmago do sistema constitucional reflete um movimento vivido em todo o mundo diante dos horrores testemunhados na II Grande Guerra. Desde o fim do malsinado conflito, e após a consagração da ideia de dignidade humana na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, diversos instrumentos normativos de status constitucional ou supranacional expressamente assinalaram a dignidade humana como base essencial de qualquer ordem jurídica.
A mudança de paradigma constitucional, que passa a ter como vetores de interpretação a dignidade e a igualdade, acena com uma mudança de paradigma para o tratamento até então reservado às pessoas com deficiência. Abandona-se uma ideia de segregação ou mera incorporação dessas pessoas e passa-se a adotar um paradigma de inclusão. Uma noção nascida na década de 1980 que se mostra claramente na mudança do conceito de pessoa com deficiência, cambiando uma leitura exclusivamente médico-biológica por uma perspectiva que também inclui o elemento social.
Nesses termos é que se elabora Estatuto da Pessoa com Deficiência, revelando uma afirmação legislativa pela derrubada das mais diversas barreiras e atenção às necessidades especiais para assegurar a igualdade material, com vistas à inclusão e a possibilitar às pessoas com deficiência o pleno gozo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais.
Trata-se de uma das maiores conquistas dentro do ordenamento jurídico brasileiro, uma lei ampla que trata da acessibilidade e da inclusão em diferentes aspectos da sociedade, além do fato de que, com a entrada em vigor da EPD, novos crimes foram introduzidos e penas foram majoradas, para aqueles que cometem agressões contra essa população tão indefesa.
Uma das suas novidades são as alterações na teoria da capacidade, onde a pessoa com deficiência deixou ser incapaz e passa a ter capacidade para praticar os atos na vida civil. Consequentemente, ocorreram alterações no instituto da tutela e curatela, onde a curatela passa a ser aplicada com expressa indicação de um Juiz, em determinada situações (atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial), que o curatelado será assistido pelo seu curador. A curatela passa ter caráter extraordinário, e durará o menor tempo possível.
Nesse sentido, o presente trabalhou discorreu sobre os princípios constitucionais que norteiam a pessoa com deficiência e a plena efetividade do Estatuto da Pessoa com Deficiência, concluindo que o referido dispositivo foi um grande avanço, mas, por ser uma lei relativamente nova, ainda nova gera críticas de diversos aspectos na sua aplicação, suscitando uma busca contínua pela criação de uma cultura de inclusão eficaz, no intuito de derrubar barreiras que ainda existem.
Finalmente, pensar toda diversidade humana, humanizar e universalizar serviços são os grandes desafios que nos impõe este início de um novo milênio, de maneira que Todas as pessoas com deficiência devem ter acesso ao tratamento, à informação sobre técnicas de autoajuda e, se necessário, à provisão de tecnologias assistivas e apropriadas. Cada pessoa com deficiência e cada família que tenha uma pessoa com deficiência devem receber os serviços de reabilitação necessários à otimização de seu bem-estar mental, físico e funcional, assim assegurando a capacidade dessas pessoas para administrarem sua vida com independência, como o fazem quaisquer outros cidadãos.
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Médico, formado pela Universidade do Estado do Amazonas - UEA, possui pós-graduação em Psiquiatria, pós graduando em medicina intensiva AMIB e aluno finalista do curso bacharel em direito, cursando o 10° período, Ulbra.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PEREIRA, Moisés Rosa. Dos crimes cometidos contra a pessoa com deficiência sob a ótica da Lei nº 13.146/2015 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 jun 2021, 04:25. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56827/dos-crimes-cometidos-contra-a-pessoa-com-deficincia-sob-a-tica-da-lei-n-13-146-2015. Acesso em: 23 dez 2024.
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