MARIANA NONATA DAS NEVES LISBOA[1]
(coautora)
NATÁLIA SILVA TEIXEIRA RODRIGUES DE OLIVEIRA.
(orientadora)
Resumo: O presente artigo tem como propósito abordar o abuso sexual de crianças e adolescentes intrafamiliar, ou seja, aquela realizada no seio da família. Desenvolve uma perspectiva da evolução histórica do crime de estupro, com o escopo no estudo da dignidade sexual dos vulneráveis, promovendo uma análise jurídica do tratamento destinado destes, dentro do ordenamento jurídico-penal, seus conceitos e suas formas de proteções, trazidas pelo Estatuto da Criança e Adolescente (ECA) e pelo Código Penal Brasileiro. Aprofunda-se no exame dos protagonistas do crime de estupro de vulnerável, sob a óptica criminológica e vitimológica, traçando os perfis dos agressores, comportamentos durante o abuso e as consequências físicas e psicológicas irrecuperáveis que o crime pode acarretar a vítima, assim como a omissão da família diante de um abuso sexual intrafamiliar. Por fim, descreve o estupro de vulnerável no Brasil, expondo suas estatísticas e o substancial número de casos.
Palavras-chave: Estupro de Vulnerável, Âmbito familiar, Código Penal, Perfil do Agente, Consequências Psicológicas.
Abstract: The purpose of this article is to address the sexual abuse of children and adolescents within the family, that is, that carried out within the family. It develops a perspective of the historical evolution of the crime of rape, with the scope in the study of the sexual dignity of the vulnerable, promoting a legal analysis of the intended treatment of them, within the legal-criminal order, their concepts and their forms of protection, brought by the Statute of Child and Adolescent (ECA) and the Brazilian Penal Code. Deepens in the examination of the protagonists of the crime of rape of the vulnerable, under the criminological and victimological perspective, tracing the profiles of the aggressors, behaviors during the abuse and the irrecoverable physical and psychological consequences that the crime can cause the victim, as well as the omission of the family in the face of intra-family sexual abuse. Finally, it describes the rape of the vulnerable in Brazil, setting out its statistics and the substantial number of cases.
Keywords: Rape of Vulnerable, Family, Criminal Code, Agent Profile, Psychological Consequences.
1 Introdução
Quando se trata de crimes contra a dignidade sexual, a população apresenta certo repúdio, mas é necessário expor sobre tal tema com maior frequência, considerando que as ocorrências têm aumentado na sociedade brasileira, principalmente nos casos praticados por membros da própria família.
O presente trabalho tem, como objetivo, analisar os crimes sexuais intrafamiliares contra os vulneráveis, ou seja, aqueles realizados no seio da família. Para tanto, foi necessário um estudo acerca da evolução histórica do crime de estupro, com escopo na dignidade sexual das crianças e adolescentes no ordenamento jurídico-penal, até resultar no formato da contemporaneidade.
Na maioria dos casos, a vítima guarda, para si, a violência que sofreu na infância ou na adolescência ou que vem sofrendo por parte do agressor, pois, sente-se amedrontada em expor o fato às outras pessoas, principalmente aos seus próprios familiares, já que, na maioria das vezes, o abuso foi cometido no contexto da família.
Vários são os integrantes do grupo intrafamiliar, que atuam como autores, coautores ou participes do agente, já que se tratam de relações de afeto e confiança, em que os agressores são os pais, tios (as), irmãos (ãs), avôs (ós), etc. A realidade pode ser ainda mais triste quando essa participação é desempenhada pela própria mãe da vítima.
Tem-se que tanto o homem quanto a mulher podem figurar como sujeito ativo do crime de estupro de vulnerável, isto é, qualquer pessoa poderá praticar tal conduta penal, mesmo porque existe a hipótese da prática de outro ato libidinoso diverso da conjunção carnal, já que esta, necessariamente, deverá ser entre homem e mulher.
Frente a este cenário de vulnerabilidade, o legislador pátrio tratou de proteger as crianças e os adolescentes, nos termos da Lei nº 8.069/1990 (ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente), que impõe, à família, à sociedade e ao Estado, a responsabilidade pelo cuidado e proteção de suas crianças e adolescentes.
Compreende-se, como vulnerável, o menor de 14 anos e aqueles que, por enfermidade ou deficiência mental, não têm o necessário discernimento para a prática do ato e que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência, conforme se verifica na redação do § 1º do art. 217-A, do Código Penal Brasileiro[2].
Rogério Greco disserta sobre o objeto material do estupro de vulnerável no ECA:
O objeto material do delito é a criança, ou seja, aquela que ainda não completou os 12 (doze) anos, nos termos preconizados pelo caput do art. 2º do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90) e o adolescente menor de 14 (catorze) anos, bem como a vítima acometida de enfermidade ou deficiência mental, que não tenha o discernimento necessário para a prática do ato, ou que, por outra causa, não pode oferecer resistência. (GRECO, 2017, p. 152).
Observa-se que, para a configuração do delito de estupro de vulnerável, não interessa se houve constrangimento da vítima, com violência ou grave ameaça, ou se dela obteve o consentimento, basta, portanto, que o agente tenha, efetivamente, conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso, que poderá até mesmo ser consentido pela vítima, desde que, essa se encontre em uma daquelas condições do art. 217-A, do CPB (GRECO, 2017, p. 153).
Desse modo, o estupro de vulnerável agride, ao mesmo tempo, a dignidade do presumivelmente incapaz de consentir para o ato, assim como o seu desenvolvimento sexual, ocasionando efeitos psicológicos que podem impactá-lo profundamente, como o desenvolvimento cognitivo, emocional, comportamental e, até mesmo, transtornos psicopatológicos de elevada gravidade.
O estudo desse trabalho se justifica na medida em que o estupro de vulnerável intrafamiliar está presente na sociedade e se intensifica cada vez mais, surgindo questionamentos sociais, jurídicos e políticos.
A partir disso, nasce o interesse em desenvolver uma reflexão acerca de tal crime, numa perspectiva de sua evolução histórica, através das legislações contemporâneas, em especial, a Lei nº 8.069/1990 (ECA) e o Código Penal Brasileiro.
Além disso, é relevante identificar os perfis dos agressores, comportamentos durante o abuso, de modo a viabilizar uma análise criminológica e vitimológica dos sujeitos do crime e as principais consequências físicas e psicológicas geradas na vítima.
Para a elaboração deste estudo, foi utilizado o método dedutivo, partindo de um exame teórico do tema, sistematizado por uma pesquisa quali-quanti, envolvendo os elementos da pesquisa quantitativa e da qualitativa, bem como histórica, delineando a evolução das legislações no ordenamento jurídico-penal, com referencial bibliográfico e documental.
2 Estupro: conceito e delimitações jurídico-penais
O crime de estupro encontra-se no art. 213, do Código Penal Brasileiro (CPB)[3], entre o rol dos crimes contra a dignidade sexual. É um crime de ação penal pública incondicionada, conforme dispõe o art. 225 daquele Diploma Legal, alteração dada pela lei 13.718/2018. Outrora, a ação somente se processava mediante representação da vítima, não sendo esta necessária nos casos de crimes sexuais contra vulneráveis.
Trata-se, pois, de um delito praticado mediante violência ou grave ameaça à pessoa, que tem, como cerne, o verbo “constranger”, cujos sinônimos são coagir, obrigar, oprimir, exigir, impor, forçar, e que caracteriza um elemento objetivo para a configuração do crime de estupro. De acordo com Rogério Greco, para que se possa configurar o delito em estudo, é preciso:
Que o agente atue mediante o emprego de violência ou de grave ameaça. Violência diz respeito à vis corporalis, vis absoluta, ou seja, a utilização de força física, no sentido de subjugar a vítima, para que com ela possa praticar a conjunção carnal, ou a praticar ou permitir que com ela se pratique outro ato libidinoso, já a grave ameaça, ou vis compulsiva, pode ser direta, indireta, implícita ou explícita, poderá ser levada a efeito diretamente contra a própria pessoa da vítima ou pode ser empregada, indiretamente, contra pessoas ou coisas que lhe são próximas, produzindo-lhe efeito psicológico no sentido de passar a temer o agente. (GRECO, 2017, p. 74).
O elemento psicológico do crime é o dolo, que consiste na vontade livre e consciente de constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, sendo irrelevante a motivação do ato, isto é, seja qual for a razão pela qual se praticou o crime, estará este configurado.
Para a doutrina, considera-se um crime comum, podendo ser praticado por qualquer pessoa, de forma dolosa, comissiva[4], comissivo por omissão[5], material[6], de dano[7], instantâneo[8], vinculada[9], livre[10], monossubjetivo[11], plurissubsistente[12] e por fim, não transeunte[13] (GRECO, 2017, p. 152).
Não se admite, por óbvio, a modalidade culposa, mas se admite a tentativa quando o agente visa a prática do crime e só não alcança o resultado por circunstâncias alheias à sua vontade.
Conforme o art. 213, do CPB, as qualificadoras no crime de estupro caracterizam-se quando configurado o preterdolo[14]. Assim, se da conduta resultar lesão corporal de natureza grave ou morte (art. 129 §§1º e 2º, do CPB), vale dizer, dolo antecedente, bem como a lesão grave ou morte no resultado culposo, restará configurada a qualificadora. Entretanto, caso haja dolo também na lesão ou na morte, caracterizam-se dois delitos autônomos em concurso material (art. 69 do CPB), o estupro e a lesão corporal grave dolosa ou o estupro e o homicídio doloso.
Ademais, também identifica-se como qualificadora se a conduta for praticada contra o menor de 18 (dezoito) e maior de 14 (catorze) anos, esclarecendo que, neste caso, o sujeito ativo deve saber ou ter a previsão da menoridade da vítima, para que possa ser configurado a qualificadora.
2.1 Evolução histórica do crime de estupro
O crime de estupro é um delito que existe na sociedade desde os primórdios da humanidade, pois, ao longo da história, a figura da mulher era estabelecida como inferior à do homem. Manter relações sexuais forçadas com o marido em outros tempos, hoje conhecido como estupro marital, por exemplo, não era considerado um crime. Tratava-se de um débito conjugal adquirido ao contrair o matrimônio, um dever dos cônjuges. Como é possível notar em Magalhães Noronha:
As relações conjugais são pertinentes à vida conjugal, constituindo direito e dever recíproco dos que casaram. O marido tem direito à posse sexual da mulher, ao qual ela não se pode opor. Casando-se, dormindo sob o mesmo teto, aceitando a vida comum, a mulher não se pode furtar ao congresso sexual, cujo fim mais nobre é o da perpetuação da espécie. A violência por parte do marido não constituirá, em princípio, crime de estupro, desde que a razão da esposa para não ceder à união sexual seja mero capricho ou fútil motivo, podendo, todavia, ele responder pelo excesso cometido. […] mulher que se opõe às relações sexuais com o marido atacado de moléstia venérea, se for obrigada por meio de violências ou ameaças, será vítima de estupro. Sua resistência legítima torna a cópula ilícita. (NORONHA, 2002, p. 70)
Como é possível observar, era uma obrigação recíproca e matrimonial a relação sexual, podendo somente a mulher recusar tal ato, casos em que o marido possuísse doença venérea, ofendendo completamente a dignidade sexual da mulher e o seu direito de escolha.
Com o passar dos anos, porém, a mulher adquiriu diversos direitos, dentre os quais o direito à liberdade de escolha sexual. Atualmente esse direito de recusa em manter relações sexuais sem o consentimento da mulher encontra-se amparado pela Lei 1.340/2006, conhecida como “Lei Maria da Penha”, cujo objetivo é a proteção à mulher no âmbito familiar, considerando-se, pois, o “estupro marital” um meio de violência doméstica, como é possível verificar em seu art. 7º, III.
A Lei 12.015/2009 atribuiu, ao Título VI do CPB, uma nova denominação, ou seja, de “Dos Crimes Contra o Costume” para “Dos crimes contra a Dignidade Sexual”. Nota-se a preocupação do legislador ao alterar a referida nomenclatura do Título VI, uma vez que esse trata dos crimes contra a dignidade, a liberdade sexual da vítima, sendo que a antiga terminologia versava, apenas, de condutas que contrariavam os costumes, a moral da sociedade. Entretanto, tais delitos afetam muito mais o íntimo da vítima do que os costumes e a moralidade, trazendo diversas consequências e danos, por vezes, até mesmo irreparáveis.
Tal mudança, porém, não se deu somente no que concerne à nomenclatura do Título VI do CPB. Dentre as várias alterações, a Lei incluiu, no tipo do art. 213, além do estupro a figura do atentado violento ao pudor, com o objetivo de eliminar quaisquer dúvidas a respeito de tais condutas. Isso porque, anteriormente à Lei 12.015/2009, a redação do art. 213 do CPB, “Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça”, restringia o sujeito passivo do delito tão somente à mulher, bem como o ativo somente ao homem. Desta forma, consumava-se o crime de estupro quando um homem, mediante violência ou grave ameaça, submetia uma mulher à conjunção carnal, ou seja, à penetração do pênis na vagina.
Qualquer outro ato de cunho sexual, atos libidinosos, não se encaixaria no crime de estupro, mas, sim, no crime de atentado violento ao pudor, previsto no art. 214, do CPB, “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal”. Dessa forma, o tipo admitia, como sujeito ativo e passivo, tanto homens quanto mulheres.
Rogério Greco disserta sobre a Lei 12.015/2009:
A nova lei optou pela rubrica estupro, que diz respeito ao fato de ter o agente constrangido alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. Ao que parece, o legislador se rendeu ao fato de que a mídia, bem como a população em geral, usualmente denominava “estupro” o que, na vigência da legislação anterior, seria concebido por atentado violento ao pudor, a exemplo do fato de um homem ser violentado sexualmente. Agora, como veremos mais adiante, não importa se o sujeito passivo é do sexo feminino, ou mesmo do sexo masculino, que, se houver o constrangimento com a finalidade prevista no tipo penal do art. 213 do diploma repressivo, estaremos diante do crime de estupro (GRECO, 2016, p. 12).
Assim, a referida Lei possibilitou uma ampliação da intepretação do art. 213, do CPB, e, quando se fala em “constranger alguém”, não se vincula exclusivamente à mulher, mas, sim, a qualquer pessoa, seja qual for o sexo e a orientação sexual. Com isso, o homem também se torna vítima do delito de estupro, deixando claro, entretanto, que tal situação pode se dar somente no que diz respeito aos atos libidinosos diversos da conjunção carnal, compreendendo esta, conforme Nelson Hungria, como sendo “a cópula secundum naturam, o ajuntamento do órgão genital do homem com o da mulher, a intromissão do pênis na cavidade vaginal” (HUNGRIA, 1956, pág.116).
2.2 O estupro no atual art. 213, do CPB
Foi possível notar no tópico anterior, a evolução do crime de estupro ao longo das décadas até a contemporaneidade. Um crime considerado complexo por se tratar da junção de dois delitos, que tutelam a dignidade sexual da pessoa, o que também se encontra sob a égide da proteção constitucional, conforme determina o art. 1º, III, da Constituição Federal de 1988, que dispõe sobre a dignidade da pessoa humana.
Fez-se necessário passar por diversas barreiras para a evolução da sociedade, até se alcançar os direitos hoje adquiridos. Com efeito, a concepção de crime hediondo conferido a todas as modalidades de estupro nada mais é que o resultado de lutas das partes mais afetadas, implicando em penas mais duras aos agentes.
Assim, quando se compara as penas aplicadas aos agentes, percebe-se um aumento significativo, já que, até 1940, a pena máxima abrangia o intervalo de 3 a 8 anos, caso a mulher estivesse na faixa etária acima dos 18 anos, e, se for menor entre 14 e 18 anos, o período seria de 4 a 10. Com as alterações legais, tais intervalos ganham novos patamares, 6 a 10 anos quando a vítima é maior de 18 anos, e de 8 a 12, quando forem menores de 18 e maiores de 14 anos. Além disso, o gênero da vítima não necessita ser feminino, ou seja, há uma universalização dos sujeitos que podem assumir a categoria de passivo e ativo no referido delito.
3 O estupro de vulnerável do art. 217-A, do CPB: conceito e suas delimitações jurídico-penais
O Código Penal Brasileiro, em seu art. 217-A[15], insere a figura do crime de estupro de vulnerável, no rol dos crimes contra a dignidade sexual. A tutela penal pretendida com a tipificação dessa conduta visa proteger a liberdade, dignidade ou a intangibilidade sexual das pessoas vulneráveis, caracterizadas por circunstância etária, isto é, o menor de 14 anos (o infanto-juvenil ou criança/adolescente protegido pelo ECA, que será pormenorizado neste trabalho posteriormente), bem como à condição da pessoa que, por enfermidade, deficiência mental ou qualquer outra causa que exclua a capacidade de resistência da vítima.
Para Cézar Roberto Bitencourt, além da proteção da liberdade sexual do menor de 14 anos ou do incapaz, a criminalização da conduta descrita no art. 217-A visa proteger:
a evolução e o desenvolvimento normal de sua personalidade, para que, na fase adulta, possa decidir livremente, e sem traumas psicológicos, seu comportamento sexual; para que tenha, em outros termos, serenidade e base psicossocial não desvirtuada por eventual trauma sofrido na adolescência [...]” (BITENCOURT, 2017, p. 81).
Da mesma forma, a pesquisadora Luciane Potter Bitencourt:
[...] nos crimes sexuais que envolvem crianças e adolescentes, mais do que a liberdade sexual, são violadas também a integridade física, psíquica e a dignidade da pessoa humana, pois a sexualidade em crianças e adolescentes, jovens cujas personalidades ainda se encontram em desenvolvimento, não se pode, consequentemente, falar em ‘liberdade sexual’ ou autonomia para determinar seu comportamento no âmbito sexual. (POTTER BITENCOURT, 2009, p. 71-2)
As condutas incriminadoras consistem em ter conjunção carnal, ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos, ou com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.
De forma pormenorizada, os elementos do tipo compreendem-se em:
a) Ter (praticar, copular) conjunção carnal, o que quer dizer, coito vagínico[16] realizado entre homem e mulher, não se impendido que o sujeito passivo seja o menor do sexo masculino e o sujeito ativo seja uma mulher; ou
b) Praticar (executar, realizar) outro ato libidinoso, diferente da conjunção carnal, ou seja, penetração inter femora, masturbação, toques no corpo ou membros inferiores da vítima. Já nesse caso, tanto o sujeito passivo, quanto o ativo, podem ser qualquer pessoa, seja qual for o sexo e a orientação sexual.
Observa-se, então, que, no crime tratado no art. 217-A do CPB, o sujeito ativo pode ser indistintamente tanto o homem quanto a mulher, numa relação hetero ou homossexual, e, da mesma forma, o sujeito passivo pode ser do sexo masculino ou do feminino, que apresente as circunstâncias e condições de vulnerabilidade exigida pelo tipo penal.
Destaca-se que independe do consentimento da vítima, ou da existência de relacionamento amoroso com o agente, para se seja caracterizado o crime de estupro de vulnerável.
Luís Regis Prado conceitua os elementos do tipo penal:
O tipo subjetivo é representado pelo dolo, expresso pela consciência e vontade de realizar os elementos objetivos do tipo de injusto. Exige-se ainda o elemento subjetivo do injusto, consistente em particular tendência ínsita no sujeito ativo, “que se identifica com a tendência de envolver a outra pessoa em um contexto sexual”.10 Consubstancia-se na especial finalidade de constranger à conjunção carnal ou ao ato libidinoso. Amolda-se o estupro de vulnerável ao grupo dos delitos de tendência intensificada. (PRADO, 2019. p. 1466).
Para a doutrina, considera-se um crime comum (o fato de somente alguém vulnerável poder ser sujeito passivo, não o qualifica como crime próprio)[17], material[18], doloso[19], de forma livre[20], comissivo[21], instantâneo[22], unisubjetivo[23], plurissubsistente[24] (BITENCOURT, 2017, p. 94).
As qualificadoras do crime de estupro de vulnerável encontram-se nos §§ 3º e 4º do art. 214-A, respectivamente, a saber, se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se da conduta resulta morte. Caracterizam-se condições de maior desvalor da conduta e, portanto, da culpabilidade do agente, em decorrência da efetiva maior gravidade do resultado, lesão ou morte. Nesses casos, tais resultados qualificadores são decorrentes de culpa (e não meio de execução do crime), que caracteriza a figura do crime preterdoloso, ou seja, dolo no antecedente e culpa no consequente. (BITENCOURT, 2017, p. 93).
Por ser um delito instantâneo, a sua consumação ocorre com conjunção carnal, isto é, com a introdução do pênis na cavidade vaginal, mesmo que de forma parcial ou com a efetiva realização ou execução de um ato libidinoso diverso de conjunção carnal pretendido pelo agente.
Para a doutrina, é admissível a modalidade tentada quando o agente, apesar de desenvolver atos inequívocos tendentes ao estupro, não consegue atingir a meta optata, por circunstâncias alheias à sua vontade (REGIS PRADO, 2019, p. 1466).
A pena cominada para o crime de estupro de vulnerável, prevista no art. 2017-A, caput e §1º, do CPB, é de reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. Lado outro, os §§3º e 4º dispõem que se da conduta resulta lesão corporal, a pena é de reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos, ou resulta morte, é de reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.
A Lei 12.015/2009 erigiu o estupro de vulnerável à categoria de crime hediondo, tanto na sua forma simples como na forma qualificada (art. 1.º, VI, Lei 8.072/1990). Nesses casos são insuscetíveis de anistia, graça, indulto e fiança (art. 2.º, I e II, Lei 8.072/1990 e art. 5.º, XLIII, CRFB/1988) (PRADO, 2019, p. 1469).
4 A proteção especial do menor de 14 anos: a CRFB/1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente
Após a promulgação da Constituição Federal de 1988 (CRFB/1988), o tema da “criança e do adolescente” passou a ser visto com outros olhos. Observa-se tal preeminência em seu art. 227[25], da Carta Magna, que dispõe sobre a especial proteção destinada a este público, colocando como prioridade a sua dignidade, seu bem-estar físico e psicológico, sua segurança, etc...
O referido dispositivo coloca crianças e adolescentes como prioridade, em qualquer situação, seja ela de vulnerabilidade ou não, garantindo que suas necessidades sejam sempre supridas. É um dever não só dos pais e responsáveis, mas, também, do Estado e de toda a sociedade.
Além dos direitos já existentes a todos os cidadãos, em especial o da dignidade humana, previsto no art. 1º, III, da CRFB/1988[26], o art. 4º, do ECA -Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990)[27] consagra o princípio da Absoluta Prioridade, que determina que os direitos da criança e do adolescente devem sempre prevalecer sobre os demais.
A Lei 8.069/1990 foi um grande marco para o direito menorista, dispondo sobre a proteção integral à criança e ao adolescente. Com uma nova visão, trouxe a conscientização sobre o respeito, fazendo com que a criança e o adolescente fossem vistos com primazia, seres de direitos, vontades e necessidades, junto ao apoio de seus familiares, de um bom seio familiar para que possam se desenvolver.
Para Daniel Hugo d’Antônio, uma política integral sobre a menoridade deve, necessariamente, harmonizar-se com a política familiar, já que a família constitui elemento básico formativo, que deve preparar a personalidade do menor (Apud ELIAS, 2009, p. 8).
Com todos esses avanços adquiridos ao longo de décadas e a superação de barreiras, a criança e o adolescente passaram a ter tratamento digno e não somente como um ser indefeso, sem direitos e deveres, sem opinião própria.
O ECA, em seu art. 5º, assegura a criança e ao adolescente o direito de não serem submetidos a qualquer forma de exploração, violência, crueldade e opressão[28]. O mesmo diploma legal determina como obrigatória a notificação de casos suspeitos ou confirmados de maus-tratos contra a criança ou adolescente.
Márcia Ferreira Amendola afirma que:
Com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, Lei 8.069/90), alguns dos direitos fundamentais asseverados no art. 227 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e, originalmente, pela Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (1989), foram reproduzidos e ampliados, considerando juridicamente as crianças não apenas como objeto de proteção, mas como titular de um conjunto de direitos civis e políticos. Essa lei, que se tornou um instrumento para identificar e decretar os direitos constitucionais da população infanto-juvenil, passou a privilegiar um espaço à denúncia e ao ressarcimento de qualquer fato que viole os direitos das crianças e adolescentes ainda que à revelia dos mesmos. (AMENDOLA, 2009, p. 73)
Com a previsão de intensas políticas públicas, a proibição ao comportamento violento e abusivo de pais ou responsáveis determinou grandes mudanças e uma melhora na qualidade de vida para esses jovens, futuro do País.
5 O estupro de vulnerável no âmbito familiar
A trajetória da humanidade através dos tempos mostra que a violência familiar (violência conjugal, maus-tratos infantis, abuso sexual intrafamiliar, por exemplo) é um fenômeno bastante complexo e multifacetado, atinge todas as classes sociais e todos os níveis socioeducativos (BITENCOURT, 2017, p. 79). Pode ocorrer em qualquer núcleo familiar, não existindo uma característica predominante para o cometimento da violência.
O estupro de vulnerável ocorre em dois contextos distintos, o extrafamiliar, isto é, fora das relações familiares, envolvendo desconhecidos, por exemplo, bem como o intrafamiliar, que ocorre dentro do âmbito familiar/doméstico, em que o abusador é detentor de confiança, desempenhando, normalmente, um papel de responsável pelo infante, com ou sem laços consanguíneos, e utiliza dessa proximidade para facilitar a violência.
Sanderson afirma que:
O abuso sexual dentro da família pode incluir tanto o pai biológico ou os padrastos quanto quaisquer outras figuras masculinas em que a criança deposita confiança e quais têm algum poder ou autoridade sobre ela. Podem estar incluídos os namorados da mãe, tios avós, amigos do sexo masculino próximos da família, assim como irmãos mais velhos. Pessoas do sexo feminino também abusam de criança dentro da família. (SANDERSON, 2005. p. 79).
Segundo Habigzang, o abuso sexual no contexto familiar é desencadeado e mantido por uma dinâmica complexa:
O agressor utiliza-se, em geral, de seu papel de cuidador, da confiança e do afeto que a criança tem por ele para iniciar, de forma sutil, o abuso sexual. A criança, na maioria dos casos, não identifica imediatamente que a interação é abusiva e, por esta razão, não a revela a ninguém. À medida que o abuso se torna mais explícito e que a vítima percebe a violência, o perpetrador utiliza recursos, tais como barganhas e ameaças para que a criança mantenha a situação em segredo. (PFEIFFER, 2005, p. 199).
O crime pode ocorrer contra a vontade do vulnerável ou pela indução de sua vontade, através das relações de poder e confiança entre a vítima e o agressor, assim como pelo uso de violência física ou psicológica, como ameaças e barganhas.
A violência sexual contra crianças e adolescentes, para Luciane Potter, vai além de um crime sexual:
Representa uma violação de direitos humanos universais. Quando ocorre no âmbito intrafamiliar, ultrapassa os limites e regras culturais, sociais, familiares e legais, pois se trata de um comportamento sórdido, degradante, repugnante e moralmente condenável, pois nega os princípios morais mais comezinhos formadores e informadores da célula familiar. (POTTER, 2009. p. 71-2)
Assim, exposta à agressão, a vítima encontra-se num labirinto sem saída, havendo limitada perspectiva em denunciar, por diversas razões, sejam elas pela dependência emocional, negligência, violência física, psicológica, financeira, moral ou, até mesmo, por vergonha e medo das ameaças sofridas.
Trata-se de um problema de saúde pública, definido como todas as formas de atividades sexuais, nas quais as crianças e adolescentes não têm condições maturacionais e psicobiológicas de enfrentamento, transgredindo, assim, as normas sociais, morais e legais (Ministério da Saúde, 2002).
Para Viviane Guerra, a conduta de agressão contra os infantes representa:
[...] todo ato ou omissão, praticados por pais, parentes ou responsáveis, contra crianças e adolescentes que sendo capaz de causar dano físico, sexual e/ou psicológico à vítima implica, de um lado, uma transgressão do poder/dever de proteção do adulto e, de outro, uma coisificação da infância, isto é, uma negação do direito que crianças e adolescentes têm de serem tratados como sujeitos e pessoas em condição peculiar de desenvolvimento. (GUERRA, 1998, p. 32)
5.1 O perfil do agente e a omissão da família
Os meios de execução do estupro de vulnerável no âmbito familiar nem sempre englobam a força física. Ao contrário, na maioria das vezes, o abuso é iniciado de forma sutil, avançando à medida em que o abusador conquista a confiança da vítima.
O agente é alguém do convívio familiar do vulnerável, estando sempre presente em sua vida, podendo recair em qualquer dos integrantes do grupo intrafamiliar, a autoria, a coautoria ou participação, já que se tratam de relações de afeto e confiança, em que os agressores são os pais, tios(as), irmãos(ãs), avôs(ós), dentre outros.
Nesse contexto, o mais habitual é que aquele que pratica o crime de estupro de vulnerável ser aquela pessoa que conhece o infante e que, de alguma forma, pode controlá-la. Esta pessoa, em geral, é alguma figura de quem a criança gosta e em quem confia. Por isso, quase sempre acaba convencendo a criança a participar desses tipos de atos por meio de persuasão, recompensa ou ameaça (ALVES; SANTOS, 2010)
Segundo Pfeiffer e Salvagni o agressor se utiliza:
[...] da imaturidade e insegurança da vítima, colocando em dúvida a importância que tem a sua família, diminuindo ainda mais seu amor próprio, ao demonstrar que qualquer queixa por parte dela não teria valor ou crédito. O abuso é progressivo; quanto mais medo, aversão ou resistência pela vítima, maior o prazer do agressor, maior a violência. (PFEIFFER, 2005. p. 199).
Sabe-se que, para o senso comum, o estupro de vulnerável tem, como agressor, a figura do sexo masculino, todavia, o contrário também pode acontecer, ou seja, o agressor ser do sexo feminino. O abuso pode se estabelecer em relação homossexual ou heterossexual, em que o agressor está em estágio psicossexual mais avançado que a vítima (Ministério da Saúde, 2002).
Lado outro, até hoje, a doutrina tenta traçar o perfil especifico para os agentes, entretanto, são muitos os casos em que estes apresentam-se como pessoas normais, comuns, sem qualquer perfil criminoso.
Segundo AZAMBUJA, os criminosos sexuais podem ser divididos em três grupos:
os psicóticos, portadores de personalidade antissocial e parafílicos. As principais categorias de parafilias são: exibicionismo, fetichismo, frotteurismo, pedofilia, masoquismo sexual, sadismo sexual e voyeurismo. Pedofilia é definida como a preferência sexual por crianças e raramente é identificada em mulheres, podendo ser entendida como “uma preferência sexual por crianças, usualmente de idade pré-puberal ou no ínicio da puberdade” (p. 277). Alguns pedófilos são atraídos apenas por meninas, outros apenas por meninos e outros, ainda são interessados em ambos os sexos. Um dado importante a ser assinalado é que a pedofilia não exclui a responsabilidade penal e tampouco a diminui. A maior parte dos pedófilos não recebe medida de segurança e a inimputabilidade fica subordinada à condição de psicótico. (AZAMBUJA, 2011, p. 134).
Ana Maria Brayner Lencarelli, descreve em seu artigo “O Perfil Psicológico do Abusador Sexual de Crianças” o perfil do abusador:
O abusador é uma pessoa comum, que mantém preservadas as demais áreas de sua personalidade, ou seja, é alguém que pode ter uma profissão e até ser destaque nela, pode ter uma família e até ser repressor e moralista, pode ter bom acervo intelectual, enfim, aos olhos sociais e familiares pode ser considerado "um indivíduo normal". Ele é perverso, e faz parte da sua perversão enganar a todos sobre sua parte doente. Para ele, enganar é tão excitante quanto a própria prática do abuso. Pode esconder-se vestindo uma pele de cordeiro, ou uma pele de autoritário, ou uma pele de moralista, mas isto não passa de um artifício a serviço da sua perversão. Esse é o ponto central da sua perversão. Ele necessita da fantasia de poder sobre sua vítima, usa das sensações despertadas no corpo da criança ou adolescente para subjulga-la, incentivando a decorrente culpa que surge na vítima. (LENCARELLI)
Não obstante, apensar de acreditar na criança, muitas vezes, os familiares não têm uma postura protetiva, ou seja, se mantém inertes, não realizando a notícia crime e contribuindo para a impunidade do agressor. Isto se deve ao medo de outras formas de violência pelos agressores, à falta de conhecimento das leis de proteção à criança e à banalização da violência.
Há, ainda, várias situações em que a própria genitora do infante ou do adolescente tem o total conhecimento da violência, porém, se silencia, seja por temor, ameaça, dependência financeira ou emocional, tornando-se conivente com a situação. Neste caso, a genitora também responderá por estupro de vulnerável, por sua omissão ao dever legal de cuidado, proteção e vigilância.
5.2 A vítima: consequências físicas e psicológicas
É no ambiente familiar que as crianças experimentam as primeiras relações sociais, atuam em seu desenvolvimento físico, emocional e cultural.
Nesse contexto, o abuso sexual intrafamiliar consiste na utilização da criança para a satisfação dos desejos de um adulto, que detém uma relação de autoridade e responsabilidade socioafetivas, aproveitando-se de sua condição de vulnerabilidade e fragilidade. Portanto, a violência sexual deixa mais do que marcas físicas, porquanto estão nas mais várias consequências, tais como problemas psíquicos e comportamentais, que se tornam visíveis na vítima.
O aspecto que mais dificulta a descoberta dos casos, face o vínculo próximo com o agressor, é o fenômeno chamado síndrome do segredo, que consiste na omissão do abuso, de forma consciente, gerada pelo temor de serem culpabilizadas dos castigos, pela falta de proteção e pelo descrédito. Na lição de Maria Regina Fay de Azambuja:
A síndrome de segredo se faz presente tanto nas etapas em que o fato ainda não foi identificado, e que pode durar vários anos, acompanhado de frequentes ameaças, uma vez que as ameaças, reiteradamente exercidas pelo violentador, fragilizam a crianças e/ou adolescente, pois se sentem incapazes de responder ao poder físico e emocional do adulto” (Barros; Suguihiro, 2003). De igual forma, nas etapas que se desenvolvem nos sistemas de saúde e/ou justiça, a negação se faz presente, cabendo referir que “sobreviver ao abuso sexual da criança como pessoa intacta pode ser tão difícil para o profissional como é para a criança e para os membros da família” (Furniss, 1993, p.1). (AZAMBUJA, 2011, p. 98)
Geruza Gomes e Renan dos Santos evidencia que:
Interesse excessivo ou repugnância de natureza sexual; problemas com o sono ou pesadelos; depressão ou isolamento de seus amigos e da família; achar que tem o corpo sujo ou contaminado; ter medo de que haja algo de mal com seus genitais; negar-se a ir à escola; rebeldia e delinqüência, agressividade excessiva; comportamento suicida; terror e medo de algumas pessoas ou alguns lugares; retirar-se ou não querer participar de esportes; respostas ilógicas, quando perguntado sobre alguma ferida em seus genitais; terror irracional diante do exame físico e mudanças súbitas de conduta. (ALVES; SANTOS, 2010)
A criança e adolescente abusados, portanto, perdem a confiança em todos, evitam aproximações, têm medo de demonstrações de afeto, preferem ficar sozinhos, isolados, possuem baixa autoestima, cometem o auto flagelo, ficam agressivos, tímidos, enfim, são inúmeras as alterações comportamentais experimentadas pelas vítimas.
Portanto, faz-se essencial o atendimento psicológico imediato após a revelação do abuso sexual, o que contribui para a minimização do impacto desta experiência para o desenvolvimento da vítima.
6 O estupro de vulnerável no Brasil: estatísticas
Estatística é o ramo das matemáticas aplicadas, cujos princípios decorrem da teoria das probabilidades e que tem, por objeto, o estudo, bem como o agrupamento metódico de séries de fatos ou de dados numéricos. Entende-se, assim, como uma junção de fatos e acontecimentos em um determinado local, ano, contabilizados e externalizados para a ciência de todos. Assim, o mecanismo empregado para estimar a criminalidade de uma determinada zona são as estatísticas obtidas por meio do agrupamento de fatos e acontecimentos, tais como denúncias, boletins de ocorrência, ações criminais, dentre outros.
Todavia, quando se trata de aferir as circunstâncias do delito de estupro do vulnerável menor de 14 anos será necessário lembrar de que poucos são os casos em que os fatos chegam às autoridades, fazendo com que as estatísticas desse crime não se assemelhem com a realidade. Isso porque é um crime que não atinge somente a integridade física da vítima, mas, também, o seu psicológico, por toda a relação de dependência com o agressor, como já abordado anteriormente.
Desta forma, numa pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA, estima-se que, a cada ano, no mínimo 527 mil pessoas são estupradas no Brasil. Desses casos, apenas 10% chegam ao conhecimento das autoridades policiais. Em relação ao total das notificações ocorridas em 2011, por exemplo, 88,5% das vítimas eram do sexo feminino, mais da metade tinha menos de 13 anos. Por fim, mais de 70% dos estupros vitimaram crianças e adolescentes (CERQUEIRA e COELHO, 2014, p. 26).
Atenta-se, também, à reportagem divulgada pela Agência Brasil-Brasília, realizada pelo jornalista Pedro Rafael Vilela, publicada em 18/05/2019 (2019), em que se destacou os registros dos casos em que houve denúncias pelo “disque 100”, um portal totalmente gratuito, que opera 24 horas por dia, incluindo sábados, domingos e feriados, planejado com o intuito de receber denúncias de violações de direitos humanos e de violência:
Dados do Disque 100 mostram que, só no ano passado, foram registradas um total de 17.093 denúncias de violência sexual contra menores de idade. A maior parte delas é de abuso sexual (13.418 casos), mas há denúncias também de exploração sexual (3.675). Só nos primeiros meses deste ano, o governo federal registrou 4,7 mil novas denúncias. Os números mostram que mais de 70% dos casos de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes são praticados por pais, mães, padrastos ou outros parentes das vítimas. Em mais de 70% dos registros, a violência foi cometida na casa do abusador ou da vítima.
Tem-se, ainda, a reportagem de Igor Venceslau (2020), intitulada “Surpreendente cartografia dos estupros no Brasil”, em que se identifica uma considerável reincidência quando se trata das vítimas menores de 14 anos:
É preciso conhecer a gravidade do problema. A cada 100 estupros no Brasil, 63,8 são cometidos contra vulneráveis, que inclui em sua maioria crianças de até 14 anos, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019. A situação de pedofilia atingiu um patamar horripilante: mais que a metade das mulheres vítimas de estupro têm menos de 13 anos, idade com maior número de casos, enquanto entre os meninos a idade mais comum é ainda menor, aos 7 anos.
Estatísticas realizadas pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, com a última atualização em 22 de fevereiro de 2018 (2020), apontam os dados absolutos quanto aos crimes contra dignidade sexual no Brasil, com percenturais de 180 estupros por dia, destacando-se que, dentre estes, 04 a cada hora são praticados contra meninas de até 13 anos.
O crime de estupro encontra-se enraizado desde os primórdios da humanidade, demonstrando que o direito de escolha quanto a vida sexual nem sempre fora respeitado. A mulher possuía apenas o dever de servir ao homem, inexistindo a possibilidade de escolhas quanto ao seu corpo ou a sua vida. As crianças também se tornaram reféns do ciclo de patriarcado, o que propiciou a violência doméstica, os abusos sexuais.
Foi necessário passar por diversas barreiras para alcançar o que se tem hoje, como os direitos adquiridos pela criança e pelo adolescente, sobretudo com o advento da CRFB/1988 e da Lei nº 8.069/1990, pois, o dever de cuidado e proteção passou também a ser do Estado e de todos os cidadãos, não cabendo somente aos pais e responsáveis.
Ao inserir, no Código Penal Brasileiro, o art. 217-A, a tutela penal pretendida passou a ser mais clara do que no anterior art. 226, do mesmo Diploma Legal, em que se definia a “presunção de violência”. Tal conduta, especialmente, quando praticada no âmbito familiar, em que o abusador é detentor de confiança, caracteriza-se pela violência física e psicológica, não sendo rara a utilização de ameaças e barganhas como meio facilitador. Tal fenômeno atinge todas as classes sociais e todos os níveis socioeducativos, não existindo uma característica predominante para o cometimento desse delito.
Apesar das marcas físicas deixadas pelo abuso serem graves, é no aspecto psicológico que a vítima vulnerável é ainda mais afetada pela violência e abuso sexuais. Diversos sintomas podem ser atribuídos ao abuso intrafamiliar, o que torna essencial que sejam identificadas as alterações comportamentais da criança e do adolescente, pois, não são frequentes as denúncias feitas por elas próprias.
Mas, não obstante os avanços normativos, ainda há inúmeros casos de abuso sexual que tão pouco chegam às autoridades. Revela-se crucial que haja uma constante ligação entre as políticas públicas de prevenção e punição, os órgãos de proteção, os atendimentos psicológicos e físicos mais específicos do Sistema Único de Saúde, mecanismos capazes de gerar uma eficiente rede de proteção, apoio, atenção e respeito às vítimas dos abusos.
Conjuntamente com a educação sexual, as campanhas e os informativos conscientizadores e eficazes no auxílio da compreensão acerca da importância da denúncia, a prevenção mostra-se como uma eficaz alternativa no enfrentamento do estupro de vulnerável intrafamiliar.
8 Referências
AMENDOLA, Marcia Ferreira. Crianças no labirinto das acusações: falsas alegações de abuso sexual. Curitiba: Juruá Editora, 2009.
AZAMBUJA, F. R. M.; FERREIRA, M. H. M. et al. Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes. Porto Alegre: Artmed, 2011.
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BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 16 mai. 2021.
BRASIL. Decreto-lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código de Processo Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 16 mai. 2021.
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DICIONÁRIO DA LINGUA PORTUGUESA. Versão Online. Disponível em https://www.dicio.com.br/estatistica. Acesso em: 25 mar. 2021.
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VAMOS FALAR (CORRETAMENTE) SOBRE PEDOFILIA? Jusbrasil, 2016. Disponível em: https://deniscaramigo.jusbrasil.com.br/artigos/406255800/vamos-falar-corretamente-sobre-pedofilia. Acesso em: 14 jun. 2021.
[1] Discente do 10º período do Curso de Direito do Centro Universitário UNA/BH. Email: [email protected].
[2] Art. 217-A Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: Pena – reclusão, de 08 (oito) a 15 (quinze) anos.
§ 1º Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.
§ 2º (Vetado).
§ 3º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave: Pena – reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos.
§ 4º Se da conduta resulta morte: Pena – reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.
[3] Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:
Pena — reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.
Caput com redação determinada pela Lei n. 12.015, de 7 de agosto de 2009.
§ 1º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos:
Pena — reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos.
§ 2º Se da conduta resulta morte:
Pena — reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.
[4] Praticado de forma comissiva, ou seja, decorrente de uma ação positiva do agente.
[5] Comissivo por omissão, hipótese de o agente gozar do status de garantidor.
[6] Material, somente se consuma com o resultado conjunção carnal ou prática de ato libidinoso.
[7] De dano, só se consuma com a efetiva lesão ao bem jurídico protegido, a liberdade sexual da vítima.
[8] Instantâneo- uma vez consumado está encerrado, a consumação não se prolonga com o tempo.
[9] Vinculada- somente pode ser cometido pelos meios de execução violência ou grave ameaça.
[10] Livre, quando o comportamento for a respeito do cometimento de outros atos libidinosos.
[11] Monossubjetivo- pode ser praticado por um único agente.
[12] Plurissubsistente- realizado por meio de vários atos.
[13] Dependendo da forma como é praticado, o crime poderá deixar vestígios, a exemplo do coito vagínico ou do sexo anal; caso contrário, será difícil sua constatação por meio de perícia, oportunidade em que deverá ser considerado um delito transeunte.
[14] Crime preterdoloso, configura quando o agente pratica uma conduta dolosa, menos grave, entretanto obtém um resultado danoso mais grave do que o pretendido, na forma culposa.
[15] Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos.
Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.
§1.º Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.
§3.º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave: Pena – reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos.
§4.º Se da conduta resulta morte: Pena – reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.
§5º As penas previstas no caput e nos §§1º, 3º e 4º deste artigo aplicam-se independentemente do consentimento da vítima ou do fato de ela ter mantido relações sexuais anteriormente ao crime.
[16] Introdução do pênis na vagina da mulher.
[17] Não exige qualquer qualidade ou condição especial do sujeito ativo.
[18] Crime que causa transformação no mundo exterior, isto é, deixa vestígios.
[19] Não há previsão de modalidade culposa.
[20] Pode ser praticado por qualquer forma ou meio eleito pelo sujeito ativo.
[21] O verbo nuclear implica a prática de uma ação.
[22] A consumação não se alonga no tempo, configurando-se em momento determinado.
[23] Pode ser cometido por uma única pessoa.
[24] A conduta pode ser desdobrada em vários atos, dependendo do caso.
[25] Art. 227 - É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
[26] Art. 1º - A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III - a dignidade da pessoa humana;
[27] Art. 4º - É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
[28] Art. 5º - Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.
Bacharelanda no Curso de Direito do Centro Universitário UNA/BH.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SIMBERA, Isis L. Castro. O estupro de vulnerável no âmbito familiar Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 jul 2021, 04:13. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56924/o-estupro-de-vulnervel-no-mbito-familiar. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: LUIZ ANTONIO DE SOUZA SARAIVA
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Por: Helena Vaz de Figueiredo
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