ANA FLÁVIA SALES[1]
(orientadora).
Resumo: Este artigo aborda o tema da Herança Digital, buscando entender a destinação dos bens digitais após a morte do legítimo proprietário. No cenário atual, no qual a tecnologia da informação direciona a nação rumo ao desenvolvimento econômico e social, já é esperado que a sociedade evolua, e é natural as mudanças de hábitos, costumes e a forma como a legislação deve prever as regras que mantem a ordem e o progresso. Diferente da década passada, atualmente, o valor econômico não se dá somente a objetos palpáveis. Com o maior alcance de acesso da “internet”, as pessoas mudaram a forma de adquirir patrimônio e de produzir atividade econômica. Nos dias atuais, existem formas de negócios totalmente digitais, tal como “Instagram”, “Facebook” e “WhatsApp”, que geram renda para os proprietários, além de armazenar um acervo emocional e informações privadas. A possibilidade para transmissão desses bens, estão em termos contratuais e ou políticas de privacidade que, em sua maioria, impedem a transmissão dos bens. Esse presente artigo, portanto, busca fundamentos jurídicos para discutir a transmissão de bens digitais.
Palavras-Chave: Herança digital; Legislação específica; Transmissão de bens.
Abstract: This abstract addresses the subject of Digital Inheritance, seeking to understand the destination of digital assets after their rightful owner dies. In the current world scenario, in which information technology directs a nation's economic and social development, it's already expected that society evolves, naturally, there will be behavioral changes, that need to be accompanied by legislation changes as a way to keep order and progress in society. In the past decades, only palpable objects had economic value, but, with the ongoing growth of internet access, people changed their way of acquiring patrimony and producing their economic activities. Nowadays, there are forms of businesses that are completely digital, for example, "Instagram", "Facebook", and "WhatsApp", that not only generate income for its owners but also, is a collection of emotional and private information. The possibility of transmitting these assets is available in contractual terms, or in the privacy policy, that, mostly, don't allow the transfer of these assets. Therefore, this article seeks legal grounds to argue the transmission of digital assets.
Key-Words: Digital inheritance; Specific legislation; Transmission asset
Sumário: Introdução Preliminar. 1. Herança. 2. Bens Digitais. 3. Herança de Bens Digitais. 3.1 Direitos de Personalidade Após a Morte. 3.2 Sucessão de Bens Digitais. 4. Considerações Finais. Referências.
Introdução Preliminar
O Direito está presente em todas as relações sociais, para regular os direitos coletivos e os direitos individuais, mas isso não impede que os dois colidam em muitas situações. O Direito nada mais é que uma elaboração humana, que sofre alterações com o tempo e o local, e, portanto, deve sempre estar aberto a mudanças.
O tempo faz surgir novas tecnologias que operam em diversos níveis, como profissional e de relacionamento, tal como as redes sociais. “A dogmática jurídica vem desconhecendo quase que por completo este novo momento social, insistindo no mais das vezes em trabalhar hipóteses que fazem referência a uma sociedade calcada apenas na realidade e não na virtualidade” (ZAMPIER, 2016, p. 27). Em um mundo onde as pessoas estão em constante modificação faz-se necessário entender a necessidade de alteração nos conceitos que norteiam o ordenamento jurídico.
Com tantas evoluções, é compreensível sentir insegurança jurídica, naquilo que, de fato, não há previsão legal específica em nossa legislação. É extremamente importante um olhar atencioso no que diz a respeito aos ativos digitais, ora que, os sujeitos dotados de personalidade, têm garantido o direito de controlar o uso de nome, imagem, corpo, aparência ou quaisquer outros aspectos constitutivos de sua identidade.
A sociedade atual possui novas formas de interação, sendo que o meio virtual se tornou totalmente costumeira, para se debater assuntos do dia a dia, ideais, conceitos, opiniões e posicionamentos. “O virtual concorre com o real, sem que haja substituição” (ZAMPIER, 2016, p. 26). Não suficiente, serve como forma de aproximar pessoas, criando uma grande redoma de informações com valores emocionais, sociais, éticos, onerosos e de privacidade.
Para compreender essa evolução da sociedade atual, basta analisar que, a maioria das pessoas estão rodeadas de aparelhos tecnológicos, como “smarphones”, relógios inteligentes, “tablets”, “smart tv’s”, assistentes virtuais e leitores de “ebooks”. Um mundo foi criado na rede mundial de computadores, e nele existe um imenso patrimônio.
O mercado empresarial, que anda em constante crescimento com o mercado tecnológico, hoje já possui opções para que pessoas preocupadas com seu patrimônio virtual, possam escolher o que acontecerá com seus ativos digitais depois de sua morte. Esses são conhecidos como testamentos virtuais, que podem, desde expressar à vontade, quanto a determinar quem poderá exercer gestão sob suas redes sociais e o acesso a contas bancárias virtuais.
O intuito deste artigo é argumentar sobre a herança de bens digitais e a possibilidade da sucessão dos bens digitais frente a legislação vigente, tornando legal as possibilidades do de cujus de ter sua última vontade atendida.
1.Herança
A Herança é o patrimônio do falecido. Podemos definir como um conjunto de bens materiais, direitos e obrigações que se transmite aos herdeiros legítimos ou testamentários, exceto se forem personalíssimos ou inerentes à pessoa do “de cujus”, e como definido pelo doutrinador (GONÇALVES, 2019, p.19 e 20): “O fundamento do direito das sucessões repousa na continuidade da vida humana, através das várias gerações”. A herança acontece no momento da morte do titular dos bens, uma vez que, fixada a morte, acontece a transmissão imediata dos bens. Os herdeiros recebem a totalidade ou uma parte do patrimônio do falecido, sendo que o Código Civil expressa duas modalidades de herdeiros:
a) Herdeiros Legítimos ou necessários, que são os descendentes, ascendentes, cônjuge sobrevivente e os colaterais.
b) Herdeiros Testamentários, que são os que tem direito no recebimento de uma parcela dos bens deixado pelo falecido, disposto em testamento.
Após o evento morte, se inicia o inventário, que serve para fazer o levantamento dos bens deixados pelo falecido e das possíveis dívidas existentes, para que depois ocorra uma divisão entre os sucessores. De acordo com a Lei nº 11.441 de 2007, que alterou os Artigos nº 982, 983 e 1.031 do CPC, trouxe a possibilidade da realização de inventário e partilha mediante a escritura pública. Porém, para que ocorra de forma administrativa, o falecido não pode ter deixado testamento, também é necessário que todos os interessados sejam capazes, e a partilha deve ter a concordância de todos os sucessores. Essa forma de trâmite é mais célere que a judicial que, por sua vez, está sujeita a trâmites e prazos diferenciados, podendo se estender por anos.
É muito importante salientar que, independentemente da via utilizada, administrativa ou judicial, a figura do advogado é extremamente importante para seguir com o trâmite do inventário, uma vez que, a via administrativa também exige a prestação e assessoria do advogado.
Oportuno esclarecer, também, que nem sempre os herdeiros necessários e legais fazem “jus” ao recebimento da herança, é bem raro, mas é possível que esses herdeiros sejam excluídos da sucessão por indignidade e deserdação, conforme disposto nos artigos 1.814 e 1.815 do Código Civil.
Indignidade:
a) participar de crime, ou tentativa de homicídio de seu esposo, companheiro, pais ou filhos;
b) acusar caluniosamente em processo judicial o autor da herança, ou praticar crime contra sua honra, ou de seu esposo;
c) dificultar ou impedir, por meio violento, que o autor da herança disponha livremente de seus bens por testamento, ou ato que expresse sua vontade.
Deserdação dos filhos:
a) ofensa física contra seus pais;
b) injúria grave contra seus pais;
c) tenham tido relações ilícitas com a madrasta ou com o padrasto;
d) tenham desamparado genitores com alienação mental ou doenças graves.
Deserdação dos pais:
a) ofenderem os filhos fisicamente;
b) praticarem injúria grave contra seus filhos;
c) mantiverem relações ilícitas com cônjuges ou companheiros dos filhos ou netos;
d) desampararem filhos ou netos com alienação mental ou doenças graves.
As pessoas que, em vida, se preocupam em como se dará a partilha do seu patrimônio após a morte, tem a opção de fazer o testamento. Porém, a legislação não permite que a pessoa que deseja deixar sua vontade quanto a partilha do patrimônio, o faça por toda a integralidade. O Código Civil estabelece em seu Artigo 1.856 que pelo menos 50% (cinquenta por cento) de todos os bens devem ser transmitidos aos herdeiros necessários e, apenas a outra metade, é que pode ser objeto de deliberação. Portanto, o autor do testamento, pode destinar somente o que vai acontecer com 50% (cinquenta por cento) de seu patrimônio e somente tem efeitos jurídicos após sua morte. A lei não estabelece somente o testamento, existe também os chamados codicilos, que nada mais é que um documento informal que expressa a última vontade da pessoa, conforme disposto nos Artigos 1.881 ao 1885 do Código Civil. O codicilo serve, apenas, para dispor sobre o sepultamento do testador e sobre esmolas e pequenos legados.
Por fim, é importante destacar que quando o autor da herança falece sem deixar herdeiros, sucessores, legatários, testamentos ou codicilos, o Estado, exercendo sua função social, instaura um procedimento judicial, na posição de herdeiro universal para que a herança seja considerada jacente. Após considerada jacente, o município pode vender os bens e utilizar o dinheiro para atividades de interesse público da sociedade, conforme disposto nos Artigos 1.819 ao 1.823 do Código Civil.
2. Bens Digitais
É inevitável que o uso de tecnologia, no dia a dia da vida das pessoas: salvamos nossos dados em nuvem o tempo todo, seja quando acessamos um “site”, quando carregamos fotos para armazenamento em nuvem ou quando acessamos nossa conta bancária, através do aplicativo projetado para tal. O que há de comum em todos esses acessos em “sites”, aplicativos e armazenamento em nuvem, são os dados que ficam armazenados em cada acesso, em cada momento ou ato no mundo digital, durante todo o decorrer de nossas vidas.
Sabemos que é vasto o que se entende como bens. Para Clóvis Beviláqua (2001, p. 233 e 234) “bem é tudo que tem utilidade para a pessoa, seja num sentido econômico, seja por outros interesses”. Neste sentido, podemos considerar que os bens digitais podem ser matérias ou não, devem ter valor econômico e incidir interesse jurídico.
Já para Cesar Fiuza (2004, p. 171) o conceito de bem e abrangente:
“Bem é tudo aquilo que é útil às pessoas. Coisa, para o Direito, é todo bem econômico, dotado de existência autônoma, e capaz de ser subordinado ao domínio das pessoas. Conclui-se que coisa, neste sentido, é sinônimo de bem. Mas nem todo bem será coisa. Assim, não são coisas os bens chamados jurídicos, como a vida, a liberdade, a saúde etc. (FIUZA, 2004, p. 171)”.
Rodolfo Pamplona Filho (2016) assim como Fiuza, citado anteriormente, entende o conceito de bens como mais amplo, compreendendo os materiais e imateriais, o que também engloba o conceito de coisa. E, para Toledo (1994, p. 15)
“Bem em um sentido mais amplo, é tudo aquilo que nos apresenta como digno, útil, necessário valioso [...] os bens são, pois, coisas reais, ou objeto ideal dotado de valor.”
Destarte, os bens possuem um contexto mais amplo, que vai além daquilo que podemos tocar, é imaterial e tem relações mais abstratas. Conforme visto anteriormente, os bens precisam possuir um valor jurídico. E Toledo (1994, p.16) define bens jurídicos como:
“Bens jurídicos são valores éticos sociais que o Direito seleciona, com o objetivo de assegurar a paz social, e coloca sob a sua proteção para que não sejam expostos a perigo de ataque ou a lesões efetivas. (TOLEDO, 1994, p. 16).”
Conforme a definição dos grandes doutrinadores citados acima, os bens poderão ter ou não natureza corpórea ou incorpórea, e os bens digitais, se enquadram na natureza incorpórea, porque não possuem a existência física, mas possuem valor econômico agregado. Os bens digitais são bens que estão em meio virtual, onde expomos nossas opiniões, publicamos fotos, vídeos, criamos avatares, compartilhamos músicas, vendemos produtos, armazenamos senhas, digitalizamos textos, dentre outros. A “internet” abre uma variedade imensa para aquilo que podemos considerar bens digitais e esses bens agregam utilidade e são subordinados aos seus criadores.
Para melhor evidenciar o valor econômico e jurídico, o “Facebook Inc”. é um conglomerado de origem estadunidense de tecnologia, voltado a criação e administração de redes sociais, e tem como propriedade a Rede Social “Instagram” que, no ano de 2018, foi avaliada pela “Bloomberg” (empresa de tecnologia de dados voltada para o mercado financeiro) em cerca de 100 (cem) milhões de dólares. Os usuários da plataforma lucram dinheiro compartilhando e monetizando opiniões, conteúdo digital, tais como fotos, vídeos, campanhas de “marketing”, lançamento de livros, “e-books”, álbuns musicais etc. Esses indivíduos são conhecidos como influenciadores digitais e, na maioria das vezes, passam a maior parte do dia compartilhando a rotina diária e armazenando milhões de dados por onde passam. Já outros indivíduos que não são influenciadores digitais, também utilizam a rede social e compartilham a rotina, através de fotos, vídeos e não recebem valor por isso, no entanto, ainda assim deixam registros de dados por onde passam, o que gera um valor emocional e que agrega valor a eles.
Enquanto em vida, os usuários gerem tudo que ocorre em suas contas de “e-mails”, redes sociais, milhas, pontos etc., mas qual o amparo legal para a destinação desses acessos? Alguém poderá herdar os acessos e geri-los? As plataformas já estão atualizadas com políticas adequadas que visam essa situação, e respeitando o direito à vida privada? Trataremos sobre esses questionamentos no tópico 4.3 desta análise.
3. Herança de Bens Digitais
A evolução é surpreendente. Novas tecnologias são criadas e compartilhadas todos os dias e, com isso tudo, aquilo que fazíamos pelos meios físicos, passam a ser feitos em meios digitais, como escrever um livro digital, ouvir música pelos “smartphones” através de “streaming” de assinatura e jogos “online”. As novas tecnologias atendem bastante aos usuários, aproximam pessoas através do contato digital e democratiza o acesso a informações.
A problematização, aqui, é sobre a aplicação da legislação vigente da herança de bens digitais e a possibilidade de transmissão de bens digitais por herança, além de consagrar o direito dos herdeiros em gerir o patrimônio deixado pelo falecido e exercer propriedade sobre eles.
3.1 Direito de Personalidade após a morte
O direito de personalidade acompanha o indivíduo por toda a vida, desaparecendo após a morte. As obrigações personalíssimas deixam de existir. No entanto, os direitos não personalíssimos, aqui tratando os de natureza patrimonial, são transmitidos aos sucessores. Para Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona (2006, p. 135), os direitos da personalidade são definidos como “aqueles que têm por objeto os atributos físicos, psíquicos e morais da pessoa em si e em suas projeções sociais”.
Já para Silvio Rodrigues (2002, p.60) os direitos de personalidade são “direito à vida, à liberdade física ou intelectual, ao próprio nome, ao corpo, à imagem e à honra” que estão ligados ao indivíduo para toda a vida.
E na mesma linha de pensamento, Orlando Gomes (2007, p. 174) considera que os “direitos da personalidade compreendem todos os direitos reputados como essenciais ao desenvolvimento do ser humano, e que, absolutos, têm por fim resguardar a dignidade da pessoa humana.”
Portanto, após a morte, o cônjuge, o parente em linha reta ou parentes colaterais até quarto grau, possuem legitimidade para defender os direitos de personalidade do “de cujus”. Ainda não possui no Código Civil, expressamente, a possibilidade de os herdeiros decidirem o que será feito com os bens digitais, tal como transformar em memorial ou remover definitivamente da “internet”. Existem projetos de lei[2] a fim de regular o assunto, garantindo aos herdeiros a legalidade na transmissão de todos os conteúdos de qualidade patrimonial ou arquivos digitais. Com a possível aprovação dos referidos projetos de lei, o Artigo 1.788 do atual Código Civil passaria a ter acrescido a seguinte redação: “Parágrafo único. Serão transmitidos aos herdeiros todos os conteúdos de qualidade patrimonial contas ou arquivos digitais de titularidade do autor da herança.”
Nos dias atuais, a discursão quanto ao acesso aos bens digitais é bem mais ampla que no passado. Existem casos relatados de pessoas que perderam seus entes queridos e solicitaram a grandes provedores o acesso aos dados personalíssimos deixados pelo falecido, porém, é comum obter, em resposta do requerimento, a impossibilidade de liberar o acesso aos dados, pois a política de usuários falecidos não abrange tal direito. Isso aconteceu com a Britânica Louise Palmer, conforme reportagem da BBC News[3], que após o falecimento de sua filha Becky Palmes em 2010, o “Facebook” tornou seu perfil no que é chamado de memorial, uma forma de preservar as memórias do usuário falecido. No entanto, após a página se tornar um memorial, não é mais possível acessar e/ou obter dados da conta.
Após uma solicitação formal a rede social “Facebook” a resposta foi formulada e enviada a Louise da seguinte forma: "Olá Louise, sentimos muito por sua perda. Pela nossa política para usuários falecidos, nos tornamos essa conta um memorial. Isso configura a privacidade da página, para que somente amigos confirmados possam ver o perfil da pessoa ou localizá-la na busca. O mural permanecerá lá, para que amigos e familiares possam deixar posts em memória. Infelizmente, por questões de privacidade, não podemos fazer mudanças no perfil, nem fornecer informações de login da conta. Pedimos desculpas por qualquer inconveniente que isso possa causar. Por favor, avise-nos se houver mais alguma dúvida. Obrigada pelo contato."
A mãe de Louise infelizmente não teve sucesso em seu pleito, em razão da política de privacidade do “Facebook” em não permitir acesso a conta da filha falecida, não podendo mais utilizar e baixar os dados deixados por ela.
3.2 Sucessão de bens digitais
No momento em que aderimos a um serviço digital, tal como um “e-mail” ou uma conta em rede social, é comum nos depararmos com o termo de contrato de adesão. É preciso considerar que esses contratos de adesão levam em consideração a privacidade dos usuários, e que alguns usuários, ao utilizarem as redes sociais, podem, em âmbito de suas vidas privadas, terem segredos que não desejam que seus parentes e herdeiros saibam. Sejam eles interações, ideologias, opiniões, fotos, vídeos e mensagens, que podem ser socialmente inaceitáveis ou chocantes por seu ciclo familiar. Muito interessante seria a possibilidade de nos contratos de adesão haver cláusulas nas quais os usuários, com prévio aceite do titular, optem em permitir ou não que, após sua morte, seus herdeiros, legítimos ou testamentários, tenham acesso a essas informações. Pelo fato de o indivíduo, em vida, não ter declarado como os dados devem ser geridos após o evento morte e, em frente ao direito a vida privada, provedores como “Twitter”, “Facebook”, “Instagram”, “Google”, “Microsoft”, “Youtube”, “Yahoo” etc., optam por indeferir o pedido dos interessados ao acesso de dados deixados pelo falecido, conforme exemplificado no caso da Britânica Louise Palmer.
O “Facebook”, por exemplo, em seus termos de uso, garante que todo conteúdo publicado é de propriedade do usuário, mas que, havendo direitos autorais, o usuário cede ao “Facebook” uma licença que dura todo o tempo que o usuário possuir conta ativa na rede. O “Facebook”, diferentes de outros provedores, já disponibiliza para o usuário o direito de escolher como os dados serão tratados, em caso de morte. No entanto, tratam-se, apenas, de duas opções, a exclusão definitiva da conta ou a conversão em conta memorial.
Nos termos de serviço do “Facebook”, item 4. Disposições adicionais, item 5, é possível deparar-se com a seguinte política de transmissão de conta:
“5. Você pode designar uma pessoa (chamado “contato herdeiro”) para administrar sua conta caso ela seja transformada em memorial. Somente seu contato herdeiro ou uma pessoa que você tenha identificado em um testamento válido ou documento semelhante que expresse consentimento claro para divulgar seu conteúdo em caso de morte ou incapacidade poderá buscar a divulgação de sua conta depois que ela for transformada em memorial”.
A conta memorial é uma conta que pode receber homenagem de pessoas queridas, e que garante que os conteúdos compartilhados pelo usuário titular, enquanto em vida, ficará disponível para visualização, e somente poderão ser alteradas, caso tenha herdeiros designados, conforme tratado anteriormente, em caso contrário, a conta nunca poderá ser acessada ou alterada.
Ainda que o “Facebook” tenha em sua política de serviços a possibilidade de indicar herdeiros, e necessário atentar que essa indicação é limitada a uma pessoa e que, para fazê-la, é necessário possuir mais de 18 (dezoito) anos, o que difere com a legislação brasileira, uma vez que a legislação brasileira possui essa autonomia de testar aos 16 (dezesseis) anos de idade.
Já muitos outros provedores não possuem, em sua política de privacidade, a disposição sobre como serão tratados os dados após a morte do titular, ou como se dará a transmissão dos dados, em caso de definição em vias testamentárias. Em alguns casos, existe a cláusula de intransmissibilidade dos bens digitais; o que pode ser discutido judicialmente, visto que o contrato de adesão, conforme o artigo 54 do Código de Defesa do Consumidor define que:
“Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo”.
Visto isso, o consumidor não decide ou consegue alterar essas cláusulas de intransmissibilidade, o que pode ser questionável quanto a sua validade. E foi desta forma decido no Acordão Nº 2021.0000333246 do Tribunal de Justiça de São Paulo, que trata sobre a transmissão de milhas aéreas de programa de fidelidade:
“Apelações – Programa de fidelização – Milhagem – Ação de nulidade de cláusulas c.c. indenização por danos morais – Sentença de acolhimento parcial dos pedidos – Reforma, com a proclamação da procedência parcial da demanda, em diminuta margem – Verbas da sucumbência atribuídas à responsabilidade exclusiva do autor. 1. Ministério Público – Fiscal da ordem jurídica. Falta de intervenção durante o processamento do feito em primeiro grau. Inadmissibilidade, em face da regra do art. 178, II, do CPC, por haver incapaz no polo ativo da relação processual. Parecer do órgão ministerial em segundo grau que, no entanto, não justifica adequadamente o prejuízo oriundo daquela omissão. O só fato de a sentença ter sido desfavorável ao incapaz não evidência, no plano lógico-jurídico, o prejuízo oriundo da falta de intervenção do órgão ministerial. Para que se possa reconhecer prejuízo em hipóteses tais, é de rigor que se esclareça minimamente que argumento ou providência poderia ter apresentado o órgão ministerial para obter outro desfecho para o litígio. Cenário diante do qual não cabe a proclamação de nulidade, nos termos do disposto no art. 279, § 2º, do CPC. 2. Programa de fidelização – Pontos. Regulamento. Cláusula que veda a comercialização ou alienação dos pontos. Licitude. Custo de programas tais que, diversamente do que se supõe, não é embutido no preço dos produtos e serviços cuja aquisição gera os pontos, mas, ao revés, é absorvido pelas empresas patrocinadoras do programa, que lucram com a quantidade de clientes angariada com a adoção dessa estratégia mercadológica. Do contrário, isto é, embutidos esses custos nos preços, tais empresários estariam em franca desvantagem frente aos concorrentes que não adotam programas do gênero. Consumidor aderente que, portanto, não adquire, propriamente, a propriedade, nem tem a livre disponibilidade dos pontos. Fosse assim, forçoso seria concluir, por absurdo, que os pontos representam moeda de troca, cuja utilização fica ao inteiro alvedrio do consumidor, e que são inválidas inúmeras outras cláusulas do negócio a que aderiu o autor, que não apenas as aqui impugnadas, como a que restringe a utilização dos pontos à aquisição de produtos e serviços oferecidos pelos patrocinadores do programa, a que estabelece a caducidade dos pontos após certo tempo sem uso etc. Pontos esses que, em verdade, representam um bônus, um meio de que o consumidor participante do programa pode se valer para adquirir produtos e serviços daqueles específicos personagens. Consequente licitude das disposições do Regulamento que, embora não proíbam a cessão dos pontos a pessoas próximas do titular, vedam a respectiva comercialização ou alienação onerosa. Proibição que nada tem de abusivo, pois que se destina a evitar o desvirtuamento do programa, e a atração de corresponsabilidade civil dos patrocinadores frente a terceiros pelas obrigações contraídas por aqueles que fizessem dos indigitados pontos objeto de mercancia. 3. Bloqueio provisório da conta e dos pontos – Licitude. Consequência expressamente prevista no Regulamento para as situações de mau uso do programa. Hipótese que é a dos autos. Quadro assaz sugestivo de que a enorme quantidade de pontos acumulada na conta da criança autora, sem rendas, tanto que litiga sob os auspícios da gratuidade da justiça, a ponto de gerar a aquisição de mais de vinte e quatro bilhetes aéreos em benefício de terceiros no período de doze meses, era formada e utilizada para proveito econômico alheio. Sem relevo a circunstância de ser superveniente a alteração do Regulamento que estabeleceu limite para as transferências de pontos. Alteração essa que nada mais fez que explicitar hipótese de mau uso do programa, já antes vedada pelo Regulamento. Conduta atribuída ao autor caracterizando, sem sombra de dúvida, mau uso e ensejando a suspensão ou mesmo o cancelamento da inscrição, como previsto já na versão original do Regulamento. 4. Proibição à transferência dos pontos por herança – Inadmissibilidade. Embora não tendo o participante do programa a propriedade e a livre disponibilidade dos pontos, o direito a eles relacionado apresenta inequívoco conteúdo econômico e caráter não personalíssimo, tanto que transmissível em certas circunstâncias. Desse modo, a proibição à transmissão desse direito por herança, em função de norma de natureza meramente contratual, infringe a norma legal cogente que assegura aos herdeiros os bens e direitos deixados pelo morto, salvo os personalíssimos. Além de não se tratar de direito concebido e instituído pelo Regulamento como personalíssimo, apenas poderia ser ele submetido a tal regime excepcional desde que assentada essa característica, com absoluta clareza e destaque, já no ato da adesão do interessado ao programa (CDC, art. 54, § 4º), e contanto que houvesse uma razão juridicamente plausível a justificar a restrição, sem o que cuidar-se-ia de disposição abusiva, iníqua (art. 51, IV). Na hipótese, a mera proibição à transmissão dos pontos por herança não foi assinalada no negócio com o necessário destaque e clareza, nem se funda em justo motivo, até mesmo porque não interfere no funcionamento do programa. Cláusula declarada nula ao estabelecer tal específica proibição. 5. Dano moral – Inocorrência. Basta considerar, a propósito, que, além da rejeição quase que integral dos pedidos declaratórios, a proibição de transferência e o bloqueio provisório dos pontos do autor não lhe trouxeram absolutamente nenhum abalo à imagem, nem tem ele discernimento para entender o que se passou e o que se discute nesta demanda. Afastaram a preliminar e deram parcial provimento a ambas as apelações. (TJ-SP - AC: 10000921720208260565 SP 1000092-17.2020.8.26.0565, Relator: Ricardo Pessoa de Mello Belli, Data de Julgamento: 03/05/2021, 19ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 03/05/2021)”.
Neste acordão o entendimento é que a proibição a transmissão de milhas aéreas em contrato de adesão é nula, uma vez que possui inequívoco valor econômico e de caráter não personalíssimo. Portanto decidiu que a proibição à transmissão das milhas aéreas aos herdeiros através de herança possui natureza meramente contratual e infringe o direito dos herdeiros ao patrimônio deixado pelo falecido.
Após analisarmos como o “Facebook” dispõe sobre a sucessão dos bens digitais e frente ao acordão referenciado neste artigo sobre a vedação na herança das milhas aéreas através das cláusulas contratuais, faz-se necessário saber se é possível a herança de bens digitais? Sim, é possível a sucessão destes bens, principalmente quando comprovado o valor econômico, ou seja, a característica patrimonial do ativo. Conforme disposto no item 2 deste estudo, na sucessão existe os herdeiros testamentários e os herdeiros legitimados, destarte, é extremamente importante que todos os bens digitais, nos quais os herdeiros tenham interesse, sejam arrolados no processo de inventário, conforme ressaltado por Bruno Zampier (2016, p. 130 e 131): “há que se ter o cuidado de arrolar tais bens nos inventários que forem abertos, permitindo-se que o Estado chancele tal transmissibilidade”.
Exemplificando, um usuário possui um canal na plataforma de vídeos “YouTube” e quando em vida, posta vídeos diariamente; vídeos estes que são monetizados, ou seja, convertem-se as visualizações do conteúdo em dinheiro para o criador do conteúdo. Nestes casos, após sua morte, requer o acesso a plataforma para que se tenha acesso ao valor econômico derivado do conteúdo criado pelo usuário. Mesmo que houvesse nos termos de uso e ou contrato de adesão sobre a extinção dos valores com a morte do usuário, esta cláusula fere veemente o Código de Defesa do Consumidor, porque nesse caso, são créditos, devendo fazer parte do acervo patrimonial, portanto devem ser incluídos no testamento, inventário. Para Zampier (2016, p. 131 e 132) extinguir ativos de caráter patrimonial:
“Acredita-se que tais cláusulas sejam incompatíveis com o sistema de proteção ao consumidor, por implicar na extinção de ativos digitais de caráter patrimonial sendo, portanto, abusivas, em desacordo ao preceituado pelo princípio da boa-fé objetiva.”
Outro exemplo são as moedas virtuais, milhas e pontos adquiridos como premiações, que são bens que possuem liquidez e podem ser transformadas em dinheiro, ou seja, possuem características de patrimônio e que, teoricamente, não deveriam ser extintos com a morte do usuário.
Tratando-se da transmissão de bens digitais, acredita-se que esses bens possam ter o destino decido em ato testamentário, ou dos familiares, principalmente aqueles que possuem valor econômico. É necessário que a transmissão ocorra de forma parcial ou total, assim, respeitando o direito ao patrimônio e o interesse do “de cujus” em casos em que tenha deixado testamento.
4. Considerações Finais
Com este artigo, o objetivo foi realizar uma análise a respeito da transmissão de bens digitais, deixado em herança.
O assunto, felizmente, a cada dia ganha mais espaço em discussão, frente a uma sociedade que está em constante evolução, uma vez que o assunto tem grande impacto na vida das pessoas; impactos esses que podem ser positivos. Neste caso, quanto a possibilidade de transmitir os bens deixados pelo falecido, mas que, também, pode gerar grande tristeza e prejuízo patrimonial, em caso de impossibilidade de sua transmissão.
Conforme apresentando nesta análise, é possível perceber que sim, existem, atualmente, provedores preparados para lidar com a morte do usuário, de forma limitada. Mas existem, outrossim, provedores que pensaram e desenvolveram formas de, além de transmitir o acesso, também permitem fazer modificações no acesso deixado. Ademais, ainda se preocuparam em deixar um espaço de dedicatórias e homenagens, para que os familiares e amigos possam declarar seu agradecimento e expressar suas condolências.
A tendência é que os provedores atualizem seus contratos de adesão, termos de uso e termos de privacidade, a fim de acompanhar o desenvolvimento e necessidade dos usuários, frente a que a quantidade de pessoas conectadas no mundo e as legislações sobre o assunto que, um dia, poderão vir a ser sancionadas.
Talvez a evolução dos termos de uso, privacidade e adesão se adequem mais rápido do que uma lei seja aprovada pelo trâmite legislativo brasileiro. Isso não significa que precisamos de uma legislação exclusiva para tratar da transmissão de bens digitais, até porque isso não é o intuito desta análise, mas que, também, não extingue a possibilidade. Frente que na falta de legislação específica, os julgadores tomaram rumo a uma decisão de acordo com a legislação em vigor.
É importante destacar que o presente artigo não o intuito encontrar uma solução para os casos em que os provedores não possuem previsão quanto a destinação dos bens, nem, tão pouco, quanto a necessidade de uma legislação especifica para dispor dos bens digitais, mas sim trazer uma análise sobre a transmissão dos bens digitais no cenário atual do Brasil, com as legislações vigentes.
Conclui-se, portanto, que é possível a transmissão de bens digitais por herança, com adendo a necessidade de arrolar todos os bens de interesse no processo de inventário, para que Estado tome a decisão adequada quanto a transmissibilidade. Também é possível herdar bens digitais, de forma limitada, conforme disposto em termos de uso de alguns provedores, como no caso dessa análise, o “Facebook”. A não transmissão dos bens digitais, principalmente aqueles com valor econômico, quando negado, mostra-se incompatível com a legislação brasileira em vigor porque viola diretamente o direito dos herdeiros previsto na Constituição Federal Brasileira, que dispõe em seu Art. 5º, inciso XXX, que é garantido o direito de herança. Também viola a legislação as cláusulas contratuais que vedam a transferência de milhas aéreas (bens digitais) e afins através de herança, uma vez que alteradas em contrato de adesão unilateralmente, fere o direito do consumidor conforme o Art. 54, § 4ª do Código de Defesa do Consumidor.
Referências
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[1] Mestre em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas. Especialista em Direito Processual Civil pelo Instituto de Educação Continuada – IEC PUC Minas. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas. Professora de Direito Processual Civil no Centro Universitário UNA. Advogada.
[2] Projeto de Lei nº 6468/19 de iniciativa do Senador Jorginho Mello (PL/SC) e o Projeto de Lei nº 3050/20 de iniciativa do Deputado Gilberto Abramo (Republicanos/MG).
[3] Luta de mãe por acesso ao Facebook de filha morta expõe questão sobre 'herança digital’. BBC News, 2015. Disponível em <https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/04/150406_heranca_digital_rm>. Acesso 10/06/21
Graduando em Direito pelo Centro Universitário UNA - Contagem.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ROCHA, Marcus Vinicius dos Santos. Herança de Bens Digitais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 jul 2021, 04:42. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56943/herana-de-bens-digitais. Acesso em: 23 dez 2024.
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