MARCO ANTÔNIO DELMONDES KUMAIRA.
(orientador)
RESUMO: A partir dos primórdios da humanidade, os exércitos já se organizavam de forma militar para melhor defender e conquistar territórios. Não foi diferente no Brasil. Desde o período colonial, o militarismo foi se criando e se tornando sólido no país. Até a independência não havia separação clara entre exército e segurança pública, uma vez que a colônia não detinha soberania; foi o que fez o sistema militar tomar forma também na polícia. Deste modo foi possível comparar a finalidade da Polícia Militar com a finalidade das Forças Armadas conforme evoluíam as constituições e legislações infraconstitucionais. Ficou demonstrado que há diferenças significativas nos objetivos e nas atividades conferidas pela lei e pela Constituição a estas instituições. Aborda-se a desmilitarização com base nos poderes da administração pública e na segurança pública enquanto um instrumento de proteção e defesa social, bem como benefícios para o policial em razão desta possibilidade.
Palavras-chave: militarismo; segurança pública; polícia; polícia militar; desmilitarização.
ABSTRACT: From the beginning of the humanity, the armies have organized themselves in a military way to better defend and conquer territories. It was no different in Brazil. Since the colonial period, the militarism was creating and solidificating itself in the country. Until the independence there was not a clear separation between the army and the public safety, once that the colony didn’t have soberany; it was what did the military system take shape in the police. That way it was possible to compare the finality of the Military Police with the finality of the Armed Forces as the constitutions and the infraconstitutional laws evolved. It has been demonstrated that there are significative differences in the conferred by law and Constitution objectives and activities of this institutions. Demilitarization in addressed based on the public administration powers and the public safety as an instrument of protection and social defense, as well the benefits for the policeman because of this possibility.
Keywords: militarism; public safety; police; military police; demilitarization.
O presente artigo aborda o modelo militar das instituições policiais brasileiras, tendo utilizado como metodologia científica a pesquisa bibliográfica. Também se utilizou da figura do Direito Comparado. O objetivo deste artigo é apresentar o modelo militar vigente e questionar sua aplicação na polícia enquanto um instrumento de proteção social. Justifica-se este artigo na sensação de insegurança que cerca a sociedade brasileira enquanto inclusive em relação àqueles que deveriam defende-la, bem como a crescente violência policial. O assunto foi abordado com base na história do instituto (militarismo) e a evolução das legislações que o cercam, bem como as consequências mais imediatas da desmilitarização
É de conhecimento geral que os institutos existentes nos dias atuais são fruto de uma evolução histórica, tanto do ser humano individualmente, quanto da humanidade, coletivamente. Deste modo, é fácil perceber que o que possuímos disponível hoje, nos mais diversos campos, tem como alicerce situações utilizadas no passado e aperfeiçoadas com o passar dos anos.
O militarismo é um instituto antigo na sociedade. Sua história se confunde com a história da própria humanidade; porém seus primeiros registros com mais relevância histórica vêm dos escritos de Tucídides (460 a.C. a 400 a.C.), um historiador grego de grande importância.
Na Grécia já se destacavam exércitos como o de Esparta e o de Atenas, que viveram alguns anos de confronto na Guerra do Peloponeso[1] (TUCÍDIDES, 1987). Mas não é o objetivo centralizar esforços nas guerras e sim no que estes exércitos possuem em comum: hierarquia e princípios militares – mencionados diversas vezes por Tucídides[2] em sua obra.
Qualquer exército que se tem conhecimento que já entrou em guerra pelo mundo possui essas particularidades: são distribuídos em patentes, que possuem funções específicas e diferentes, pelo qual o subordinado não possui legitimidade para pensar sobre aquilo que lhe é comandado.
Não foi uma exclusividade do mundo grego, mas sim uma forma que se repetiu em tropas pelo mundo, como no Império Romano[3], que segundo Silva (2017), entrou em queda justamente quando diminuiu o seu poderio militar em razão da falta de recursos e dos elevados gastos com o exército; e o Império Mongol[4] (SOUSA, 2020), por exemplo.
É possível perceber que este instituto foi criado com a finalidade de defesa do território e da soberania, sendo o regime viável e necessário neste caso específico. Neste sentido:
“Sem poderio militar, o país se tornaria mais vulnerável em todos os sentidos”, afirma o cientista político Oliveiros Ferreira, professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. Se o Brasil abrisse mão de suas Forças Armadas, passaria a depender de outra nação para defender sua soberania. “Seria como entregar a chave da sua casa para alguém cuidar. Você confiaria?”, questiona Marcos Coimbra, economista da Universidade Candido Mendes, no Rio de Janeiro, e conselheiro da Escola Superior de Guerra. (BONUMÁ, 2003)
Portanto, entende-se o papel fundamental das Forças Armadas enquanto Instituições Militares, necessárias à proteção da soberania e da importância internacional de um país.
O Brasil não foi na contramão do mundo neste sentido. Desde a chegada da Família Real Portuguesa até a criação oficial das forças armadas em 1822 (Exército e Marinha, sendo a Força Aérea oficializada mais tarde, em 1941), que veio com a proclamação da independência do Brasil, já era possível enxergar o movimento de sua criação, segundo o sítio eletrônico do Exército Brasileiro[5].
O Brasil Colônia fora dividido em três períodos principais que vão desde a chegada de Pedro Álvares Cabral, em 1500, até 1822, com a Declaração de Independência (FAUSTO, 2006). A metade do primeiro século de colonização se encarregou basicamente da instalação dos portugueses no território, sobretudo visando a colonização dos nativos, o que não demonstra conflitos relevantes ao surgimento de uma força de defesa; após a instalação do Governo Geral. Apenas no segundo período da era colonial é que surgiram tais preocupações (FAUSTO, 2006).
Para a criação do Exército Brasileiro e instalação do militarismo no país, é importante saber que o sentimento de nação do brasileiro ocorreu pela primeira vez na Batalha de Guarapes, em 1648, quando brasileiros e portugueses se uniram contra as invasões holandesas (GONDIM, 2011, p. 7). Neste contexto, houve reunião de tropas luso-brasileiras pelo litoral nordestino, para conter essas invasões holandesas.
Com estas situações que o Brasil iniciou a criação da sua principal força militar e após a independência, em 1822, o Exército Brasileiro quem venceu a resistência portuguesa, mantendo, assim, o território nacional e garantindo a soberania recém conquistada (EXÉRCITO, 2020), conforme descrito em publicação acerca da história do órgão em seu sítio oficial. Porém, só foi legalmente oficializado com a outorga da Constituição de 1824 (BRASIL, 1824)[6].
Esta, que foi a primeira Constituição do Brasil, foi outorgada dois anos após a proclamação da independência (1824), quando Dom Pedro convocou uma Assembleia Constituinte (CABRAL, 2014). Em seu texto, traz de forma clara a finalidade das suas Forças Armadas, passando a regular de forma escrita a sua existência, em seu Capítulo VIII, com a seguinte redação original:
Art. 145. Todos os Brazileiros são obrigados a pegar em armas, para sustentar a Independencia, e integridade do Imperio, e defende-lo dos seus inimigos externos, ou internos.
(...)
Art. 147. A Força Militar é essencialmente obediente; jamais se poderá reunir, sem que lhe seja ordenado pela Autoridade legitima.
Art. 148. Ao Poder Executivo compete privativamente empregar a Força Armada de Mar, e Terra, como bem lhe parecer conveniente á Segurança, e defesa do Imperio.
(...)
Art. 150. Uma Ordenança especial regulará a Organização do Exercito do Brazil, suas Promoções, Soldos e Disciplina, assim como da Força Naval. (BRASIL, 1824).
Com a leitura, é possível perceber que o Exército já fora criado com o objetivo de proteger a soberania nacional. A partir deste documento, que já dispõe sobre a figura do Exército, as Constituições seguintes apenas modificaram e modernizaram sua legislação/organização.
Depois de discorrer sobre a origem do sistema militar e de sua importância para a estruturação da defesa do território e dos bens da nação, é importante ter consciência da origem da Polícia Militar no Brasil de modo a entender o modelo atual.
A Polícia Militar brasileira foi baseada na Guarda Real de Polícia Portuguesa. Com a vinda da Família Real para o Brasil foi necessária a criação de uma Guarda equivalente nomeada de Divisão Militar da Guarda Real de Polícia, no Rio de Janeiro[7] (FARIA, 2007).
Após a independência e a queda de Dom Pedro I, foi extinta a Guarda Real e substituída por um Corpo de Guardas Municipais, que foram criadas com o intuito de conter os avanços de tumultos que aconteciam no Rio de Janeiro (FARIA, 2007)[8].
Deste modo iniciou-se a estruturação militar da polícia tal qual se dá nos dias de hoje, através de movimentos que desejavam conter as revoltas populares e militares que vinham ocorrendo como consequência da emancipação do país e da abdicação de Dom Pedro I (NAÍSA, 2020).
É importante dizer que mesmo com todos estes movimentos históricos que ensejaram a criação da Polícia Militar no Brasil, somente na Constituição Federal de 1946 foi utilizado o nome Polícia Militar[9], bem como citou dispositivos para sua criação, conforme texto extraído ipsis litteris:
Art. 183: “as polícias militares instituídas para a segurança interna e a manutenção da ordem nos Estados, nos Territórios e no Distrito Federal, são consideradas, como forças auxiliares, reservas do Exército” (...)
(...) f) organização, instrução, justiça e garantias das policias militares e condições gerais da sua utilização pelo Governo federal nos casos de mobilização ou de guerra; (BRASIL, 1946).
A Constituição anterior, de 1937, trazia apenas a nomenclatura “Forças Policiais dos Estados” (Art. 16, XXVI, CF 1937). Ainda assim, já existia a Lei nº 192/1936, que organizava as polícias militares, utilizando-se inclusive deste termo; embora já existente em legislações infraconstitucionais, desde 1946 tal nomenclatura/característica vem sendo confirmada a nível constitucional, tendo sido incluída inclusive na Constituição de 1988. A lei que dispõe sobre a organização das Polícias Militares até os dias de hoje é ainda anterior à CF/88, sendo o Decreto-lei nº 667/69[10].
Compete a União legislar sobre normas gerais de Segurança Pública e Polícia Militar e aos Estados cabe competência suplementar a Lei Federal, nos termos do art. 22, XXI e art. 24 XVI, ambos da CF.
No âmbito do Estado de Minas Gerais, a Constituição Estadual, por exemplo, demonstra que possui competência residual para a matéria:
Art. 10 – Compete ao Estado:
XIV – suplementar as normas gerais da União sobre: a) organização, efetivos, garantias, direitos, deveres, inatividades e pensões da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros Militar; (MINAS GERAIS, 1989).
Deste modo, para uma possível alteração neste sistema, seria necessária Emenda Constitucional, criação de uma nova lei de organização das forças policiais dos Estados por via do Governo Federal, além de Emenda às Constituições Estaduais bem como criação das suas próprias legislações.
Para o leigo é comum confundir as Forças Armadas com a Polícia Militar, o que torna necessário dirimir essa dúvida antes de entrar no cerne do trabalho, ou seja, da desmilitarização da polícia.
A título de comparação, a Constituição versa sobre as funções das suas Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica), em seu art. 142, que possui a seguinte redação:
Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem. (BRASIL, 1988).
Lido o dispositivo, fica clara qual é a finalidade principal das Forças Armadas, que se baseia na defesa da soberania, da lei, dos interesses nacionais. Basear-se na hierarquia e na disciplina são formas de proteger o próprio Estado Brasileiro das mazelas que advém do questionamento em uma situação de guerra[11].
Compara-se, porém, com as Polícias Militares (e Corpos de Bombeiros Militares). Estas instituições já não possuem o objetivo de defesa da soberania, mas sim da proteção da ordem pública, das pessoas e do patrimônio[12], de acordo com a Constituição Federal (1988):
Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
V - polícias militares e corpos de bombeiros militares. (BRASIL, 1988)
É possível verificar que a finalidade destes órgãos é diferente, mesmo que compartilhem da mesma forma de organização, com base na hierarquia e na disciplina. Ainda na Constituição do Estado de Minas Gerais, nas atribuições da Polícia Militar, é possível reforçar esta ideia:
Art. 142 – A Polícia Militar e o Corpo de Bombeiros Militar, forças públicas estaduais, são órgãos permanentes, organizados com base na hierarquia e na disciplina militares e comandados, preferencialmente, por oficial da ativa do último posto, competindo:
I – à Polícia Militar, a polícia ostensiva de prevenção criminal, de segurança, de trânsito urbano e rodoviário, de florestas e de mananciais e as atividades relacionadas com a preservação e restauração da ordem pública, além da garantia do exercício do poder de polícia dos órgãos e entidades públicos, especialmente das áreas fazendária, sanitária, de proteção ambiental, de uso e ocupação do solo e de patrimônio cultural(..) (MINAS GERAIS, 1989)
A Constituição do Estado de Minas Gerais traz com mais especificidade as funções da Polícia Militar – funções estas que estão direcionadas à sociedade. Já no caso das Forças Armadas, “destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem” (BRASIL, 1988), o que justifica de plano a estrutura utilizada para sua organização.
A partir da Constituição do Império (1824), outorgada por Dom Pedro II, o Exército foi tratado; neste documento, é comum perceber que os arts. 145 e 147 foram expressos ao citar que o objetivo das forças armadas era a defesa do Império:
Art. 145. Todos os Brazileiros são obrigados a pegar em armas, para sustentar a Independencia, e integridade do Imperio, e defendel-o dos seus inimigos externos, ou internos.
(...)
Art. 147. A Força Militar é essencialmente obediente; jamais se poderá reunir, sem que lhe seja ordenado pela Autoridade legitima (BRASIL, 1824).
Também é possível verificar que à Força Militar era “essencialmente obediente”, o que estrutura a hierarquia e a disciplina institucionais até os dias atuais[13].
Quando há tal comparação, fica inviável a manutenção de um sistema que opera para a guerra em uma Polícia que possui a finalidade de proteção social.
Munhoz (2020, p. 73) defende que a polícia militar, pela vedação constitucional aos sindicatos e ao direito de greve, deve manter-se militar, uma vez que com os exemplos da Bahia em 2012 e do Espírito Santo em 2017 foi possível ver as consequências sociais para que tais direitos fossem exercidos por quem deve garantir a ordem[14].
Porém, tal entendimento possui um vício já na sua origem, pois a Constituição de 1988 possui uma natureza principiológica, baseada na ponderação de valores, sendo possível a restrição de certas liberdades com base no interesse da sociedade[15] (SILVA, 2013 p. 96-97).
Tratar deste tema requer muito cuidado, afinal, existe pouca produção científica neste sentido; quando se fala em desmilitarizar, foca-se apenas em uma nomenclatura, que esconde por trás milhares de faces desenvolvidas com base em aspectos históricos, culturais, de psicologia e sociologia, além de outras disciplinas que ajudaram a consolidar o sistema como ele é hoje (AIHARA, 2014, p. 86-87).
Neste sentido, ao apresentar o militarismo de forma comparada entre as finalidades das Forças Armadas das Polícias Militares, abrange aquilo que merece atenção principal: desmilitarização.
O sistema das polícias militares existe por causa dessas várias faces, mas pode ser resumido na finalidade da existência do sistema militar - conforme já descrito: defesa da soberania nacional, do território e da lei e da ordem – art. 142, CF/88.
É possível encontrar solução para dirimir tal questão de organização nos próprios poderes da Administração Pública, mais precisamente o Poder Hierárquico, assim definido por Hely Lopes Meirelles:
Poder hierárquico é o de que dispõe o Executivo para distribuir e escalonar as funções de seus órgãos, ordenar e rever a atuação de seus agentes, estabelecendo a relação de subordinação entre os servidores do seu quadro de pessoal. Poder hierárquico e poder disciplinar não se confundem, mas andam juntos, por serem os sustentáculos de toda organização administrativa. (MEIRELLES, 1998, p. 105).
A partir do estudo, infere-se que não há uma perda estrutural relevante com a desmilitarização, uma vez que as instituições policiais vão continuar dispondo de organização hierárquica, que é um poder próprio da administração pública.
Ainda desmilitarizada, a polícia não perde sua responsabilidade perante à sociedade. Sobre o Poder de Polícia, Pietro (2018, p. 194-195):
Pelo conceito moderno, adotado no direito brasileiro, o poder de polícia é a atividade do Estado consistente em limitar o exercício dos direitos individuais em benefício do interesse público. Esse interesse público diz respeito aos mais variados setores da sociedade, tais como segurança, moral, saúde, meio ambiente, defesa do consumidor, patrimônio cultural, propriedade. Daí a divisão da polícia administrativa em vários ramos: polícia de segurança, das florestas, das águas, de trânsito, sanitária etc.
Restou claro que o Poder de Polícia é uma prerrogativa da administração pública, não dependendo da organização militar para sua existência. Não é um poder exclusivo das polícias, mesmo possuindo nome correlato. Desmilitarizar não impede que esta prerrogativa seja exercida, já que os órgãos da segurança pública fazem parte da administração pública direta[16].
Na mesma linha, está o Poder Disciplinar, que segundo Pietro (2018, p. 161) “é o que cabe à Administração Pública para apurar infrações e aplicar penalidades aos servidores públicos e demais pessoas sujeitas à disciplina administrativa…”, que poderá ser exercido normalmente pelas instituições policiais como forma de investigar e punir os excessos e erros cometidos pelos seus agentes.
É verdade que o Brasil possui um processo legislativo difícil para o caso em questão, pois demanda, além de legislações infraconstitucionais, uma proposta de Emenda à própria Constituição Federal.
Com a aprovação de uma Emenda neste sentido, seria necessário alteração das Constituições Estaduais e legislações de organização das próprias instituições – modernizando suas estruturas. Deste mesmo modo, tal premissa demonstra também um benefício: a capilaridade que possuem as instituições militares – no caso da PMMG, está presente nos 853 municípios do Estado (BIANCHINI, 2010, p. 64) - que poderá ser aproveitada de forma a construir uma polícia presente e cidadã[17].
A sociedade também pode se beneficiar de uma possível desmilitarização da polícia. Soares (2017) lembra que a desmilitarização não é uma solução mágica para os problemas sociais relacionados às polícias militares, sendo indispensável, mas não suficiente. É necessário um trabalho na reestruturação da segurança pública.
Deste modo, repensar a segurança pública é um trabalho árduo, já que as polícias militares se desviaram, ao longo dos anos, da sua finalidade principal de defender e proteger a sociedade.
(...)as missões e mandatos das PMs foram ficando cada vez mais distantes das atividades rotineiras e convencionais de uma polícia urbana, uniformizada, não-investigatória e voltada para as atividades civis de policiamento que, um dia, fundamentaram a sua criação. Pelo menos desde o Segundo Império, as PMs começaram a ser exaustivamente empregadas como força auxiliar do exército regular tanto nos esforços de guerra (como no caso da Guerra do Paraguai), quanto nos conflitos internos como as rebeliões, os motins, as revoltas populares, além, evidentemente, das operações de grande porte relacionadas ao controle das fronteiras da nação. Em outras palavras, as PMs foram se transformando paulatinamente em forças aquarteladas "especiais" ou "extraordinárias", que atuavam menos nos serviços de proteção da sociedade e mais nas questões de defesa do Estado. (MUNIZ, 2001, p. 182)
Neste trecho, publicado na revista Security and Defense Studies Review, Muniz retrata que o caráter militar da polícia tem afastado a polícia da finalidade para a sua existência, transformando cada vez mais o instrumento de defesa social em instrumento de defesa do território.
Já tramitou no Brasil projeto para reestruturação do sistema de segurança pública do país, que tem como um de seus pilares a desmilitarização; tal instrumento foi a PEC nº 51/2013 de Lindbergh Farias, que visava alterar a Constituição Federal nos arts. 21, 24 e 144 – além de acrescentar quatro novos artigos (143-A, 144-A e 144-B).
As alterações nos arts. 21 e 24 possuem natureza de atuação conjunta dos entes da federação na segurança pública – cooperação no território nacional; importa para este estudo os arts 143-A, 144-A e 144-B constantes da proposta.
O art. 143-A discrimina princípios para atuação do Estado na Segurança Pública, bem como traz em seu Parágrafo Único o instituto da desmilitarização:
Parágrafo único. A fim de prover segurança pública, o Estado deverá organizar polícias, órgãos de natureza civil, cuja função é garantir os direitos dos cidadãos, e que poderão recorrer ao uso comedido da força, segundo a proporcionalidade e a razoabilidade, devendo atuar ostensiva e preventivamente, investigando e realizando a persecução criminal. (PEC nº 51/2013).
Observa-se, portanto, que há também uma ênfase quanto ao uso “comedido” da força, uma estratégia com o fim de conter a atuação policial violenta[18].
O modelo proposto baseia-se em uma “redefinição do papel das polícias e das responsabilidades federativas nesta área, a partir da transferência aos Estados da autoridade para definir o modelo policial” (FARIAS, 2013), de forma que a polícia seja dotada de maior controle social e mais transparência.
Farias, nas justificativas da PEC, dá destaque ao fato de que desmilitarizar não é acabar com a hierarquia; tampouco se perderá o caráter armado e ostensivo da Polícia. Com este dispositivo proposto, o “município é incluído entre os entes responsáveis pela segurança pública, podendo, a depender da decisão tomada em nível estadual, instituir polícias em nível local” (FARIAS, 2013), aumentando os braços da segurança do cidadão.
Há também que se pensar nos benefícios que a desmilitarização poderia trazer aos policiais; ainda que se critique a atuação policial, uma melhoria nas condições de trabalho e nos direitos destes profissionais é interessante para iniciar um novo modelo de prestação de serviços. Neste contexto, explica o antropólogo Soares (2016):
Há os que pensam desmilitarização na clave dos direitos dos policiais enquanto cidadãos trabalhadores: o caráter militar das instituições refletir-se-ia em regimentos disciplinares draconianos e inconstitucionais, que violariam os direitos dos profissionais. Nesse contexto, dar-se-ia a superexploração da força de trabalho policial, calada e domesticada pelo arbítrio punitivo dos superiores sobre os subalternos, em benefício de governos estaduais insensíveis à dignidade do trabalho e aos direitos humanos dos operadores da segurança pública menos graduados. Impedidos de se organizar, criticar, propor mudanças e formular demandas, os policiais seriam as primeiras e principais vítimas de um ordenamento discricionário e autoritário.
A classe militar há muito fora esquecida enquanto sujeito de direitos, sendo-lhes cobrado apenas os deveres; estão inseridos em um regime que não os considera cidadãos comuns[19], justificando-se assim o cerceamento dos seus direitos. Braga (2008) também discorre sobre este assunto:
Se olharmos friamente o texto constitucional atual, o militar brasileiro nem chega a ser considerado um cidadão brasileiro, pelo menos não na proporção devida à peculiaridade de suas atribuições. Muitas condições, garantias e direitos são disponibilizados aos cidadãos civis e servidores públicos, mas vedados aos militares, como se estivessem em outra dimensão política. (BRAGA, 2008).
Como forma de exemplificar, ao policial não é garantido o direito ao adicional periculosidade, visto que a natureza militar do seu trabalho lhe pressupõe dedicação exclusiva, prevista no Art. 142 da CF/88, e o sacrifício da própria vida. A desmilitarização transformaria tais servidores em sujeitos dos direitos já garantidos em lei a outras categorias.
Ainda se tratando da CR/88, vale lembrar que o “caput” do art. 5º prevê que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (...)” (BRASIL, 1988).
Deste modo a segregação do policial militar em relação à sociedade não encontra uma justificativa plausível.
O militarismo acompanha a história do mundo e, no Brasil, vem acompanhando a Polícia Militar no desde a sua criação. Com este estudo, foi possível perceber que suas origens complexas criam uma organização que se solidificou com o tempo, ainda que o sistema militar faça a polícia divergir das suas atividades finalísticas.
A modificação estrutural não é a única solução possível para um modelo mais humano de polícia. Foi possível observar que existe uma diferença de objetivo entre a PM e o Exército, ainda que possuam mesma estrutura organizacional, o que acaba criando obstáculos para a concretização do fim previsto.
Após discorrer sobre eventual desmilitarização, foi possível encontrar legislações e justificativas suficientes para entender e demonstrar os seus benefícios, tanto para sociedade como um todo, quanto para os policiais, que acabam sendo privados de direitos que o distanciam da sociedade.
Ainda assim, é difícil concluir quanto às consequências da desmilitarização, já que é escassa a produção científica relacionada ao tema.
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TUCÍDIDES. História da guerra do Peloponeso. 4. Ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1987. 584 p.
[2] No seu livro a História da Guerra do Peloponeso, Tucídides faz referências à hierarquia dos exércitos espartanos e atenienses.
[3] O Império Romano aconteceu entre 27 a.C. e 476 d.C., tendo acabado por diversos motivos, entre eles a diminuição do poder do seu exército.
[5] O Exército Brasileiro é titular das publicações em seu sítio eletrônico e os endereços encontram-se nas referências.
[6] A Constituição de 1824 foi o primeiro documento que institucionalizou um exército nacional para defesa da soberania, que era recém adquirida.
[7] Tal Guarda Real foi criada ainda no Brasil Colônia e tinha por finalidade a segurança da Família Real no Brasil.
[8] Neste contexto, já havia sido criado o Exército Brasileiro, que influenciou gradativamente na militarização destes corpos de guardas municipais.
[9] Até então, não havia dispositivo Constitucional que utilizasse a nomenclatura, ainda que a Lei nº 192/36 já houvesse utilizado.
[10] As modificações mais recentes foram incluídas pela Lei nº 13.954/2019, sendo que antes dessa, a lei havia sido modificada apenas em 1984.
[11] Quando se trata de defesa, os interesses da Nação se sobrepõem aos interesses dos indivíduos, inclusive enquanto sociedade.
[12] Se tratando de polícia, a defesa da sociedade é mais importante, não sendo viável instrumentalizar uma guerra entre o Estado e seus cidadãos.
[13] No Decreto-lei nº 667/69 que dispõe sobre a organização das PMs e Bombeiros Militares que ainda está em vigência existem diversos dispositivos acerca da disciplina militar imposta aos policiais estaduais.
[14] Vale lembrar que nestes casos citados os policiais não fizeram greve pois esta configura crime para o militar, mas foram impedidos de sair dos quartéis por suas famílias, que obstruíam a saída das viaturas.
[15] A restrição ao direito de greve foi estendida, por exemplo, aos policiais civis pelo STF através do ARE nº 654432/GO.
[16] O poder de polícia é exercido de várias formas e em várias fases nos mais diversos órgãos da administração pública, inclusive na administração pública indireta.
[17] A Polícia Militar de Minas Gerais está presente nos 853 Municípios, enquanto a Polícia Civil se encontra em menos da metade destes.
[18] Para tal situação já existe o instituto do uso progressivo da força, que deve ser observado inclusive pelo Policial Militar.
[19] Neste caso, existem os cidadãos civis, sujeitos às regras do ordenamento jurídico pátrio. Os militares também estão sujeitos às demais regras do ordenamento, porém possuem códigos próprios, criando-lhes infrações penais próprias e deveres próprios.
Graduando de Direito do Centro Universitário Una e Soldado do Corpo de Bombeiros Militar de MG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NOMINATO, Vinícius de Aguiar. Polícia Militar: Análise jurídica da possibilidade de desmilitarização Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 jul 2021, 04:05. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56959/polcia-militar-anlise-jurdica-da-possibilidade-de-desmilitarizao. Acesso em: 21 nov 2024.
Por: Gabriel Bacchieri Duarte Falcão
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