Resumo: O presente artigo tem por fim apresentar a visão do direito sob o viés do Pragmatismo, mostrando sua importância e colaboração na aplicação da norma. Dessa forma, iremos abordar as principais características dessa corrente filosófica e sua conexão com as interpretações feitas na ADI 5731/DF em relação ao voto de qualidade do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais. Será analisado a inconstitucionalidade do artigo 25,§9º do Decreto 70235/1972 e sua finalidade, suas consequências e os argumentos contra ou a favor da sua manutenção no sistema jurídico, levantados pelas partes nessa Ação e pelo Supremo em casos análogos. Além disso, será defendido o fim do voto de qualidade prescrito em norma infraconstitucional – art.28 da Lei 13.988/2020.
Palavras-chave: Voto de qualidade. ADI 5731/DF. Pragmatismo. Consequencialismo. Falibilismo
Abstract: The purpose of this article is to present the view of law from the perspective of Pragmatism, showing its importance and collaboration in the application of law. In this way, we will address the main characteristics of this philosophical current and its connection with the legal practice in the construction of the arguments of the decision of the ministers of the Administrative Board of Tax Appeals regarding the quality vote of this appeal body. The (uncon) constitutionality of this casting vote, its purpose, its economic consequences and the arguments raised against and for its maintenance in the legal system will be analyzed.
Keywords:QualityVote, ADI5731/DF,Pragmatism ,Consequencialism.Falibilism
Sumário: Introdução.1. Pragmatismo:o direito sob outra perspectiva 2.O“voto de qualidade” na semiótica de Peirce 3.O poder da lei e a finalidade do voto de qualidade no sistema jurídico 4.Argumentos pela Inconstitucionalidade na ADI 5731/DF: uma questão de método. 5.Consequencialismo e Falibilismo.6. Constitucionalidade do art. 28 da Lei 13.988/2020. 7.Conclusão
Introdução
Diante de tantas controvérsias em relação a constitucionalidade e ao desempenho do voto de qualidade do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, faz-se necessário um estudo dos argumentos que são a favor da manutenção desse instituto e os argumentos contrários a sua existência sob uma perspectiva do Pragmatismo. Viu-se a necessidade de fazer uma breve explicação sobre semiótica de Peirce para que fosse possível o entendimento do Pragmatismo. Nesse raciocínio, será abordado o processo de interpretação do Regimento Interno desse Conselho Administrativo no que se refere ao seu voto de qualidade e sua relação com o sistema jurídico.
Durante o estudo, haverá uma investigação, através do método abdutivo, entre os argumentos que levaram o ministro do Supremo Tribunal Federal a manter o voto de qualidade e os argumentos levantados pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil na Ação Direita de Inconstitucionalidade nº 5731 que reza pela inconstitucionalidade do art. 25, § 9ºdo Decreto 70.235/1972. Dessa forma, será observado como essa Corte administrativa atua diante de um caso de empate numa correlação direta entre dúvida e crenças envolvidas. Diante das diversas interpretações da norma, investigaremos quais são os valores atribuídos a expressão “voto de qualidade” prevista no regimento interno desse Conselho Administrativo. Seguindo esse raciocínio, apresentaremos o método de interpretação finalista em que alguns aplicadores do direito se valeram ao tratar das consequências econômicas de suas decisões.
Por fim, defendemos a constitucionalidade do art. 28 da Lei de Transação e sua validade conforme a teoria em que tem a existência da norma como sinônimo de validade, estudada pelo professor Paulo de Barros.
1.Pragmatismo: o direito sob outra perspectiva
Partindo-se da noção que Pragmatismo difere de prática, é importante abordar sobre o conceito de Pragmatismo, seus idealizadores e suas principais características. Assim, o pragmatismo constitui uma corrente de pensamento filosófico, estabelecida no final do século XIX, que teve origem nos Estados Unidos com o chamado Clube Metafísico, idealizado pelo lógico Charles Sanders Peirce, pelo jurista Oliver Wendell Holmes. Jr e pelo psicólogo William James. Foi a partir desse grupo de filósofos que se formou uma nova visão e atitude em relação a realidade, e apesar de se chamar de Clube Metafísico, eles negavam a metafísica e a dogmática.
Segundo Willian James "o pragmatismo nada mais é do que um novo método de tratar velhas ideias. Por essa razão o Pragmatismo é substancialmente, uma atitude e não uma técnica procedimental que resulte de uma lógica de cunho estritamente racional e que enquadre os fatos em categorias universais e necessárias. O método pragmático considera que os efeitos concebíveis de natureza prática que estão envolvidos numa determinada situação compõem o seu significado, o que implica que o investigador, diante de um problema, não se concentra apenas num método específico, mas no problema ele próprio".( REGO, George Browne, Revista Duc in Altum, Caderno de Direito, 2009, pps.21 a 57) .
Durante o século XIX, através de Pierce, Wendell Holmes e William James surgiu o pragmatismo jurídico, também conhecido como "filosofia experimental" que possui como principais características: antifundacionalismo, contextualismo, instrumentalismo, consequencialismo, interdisciplinariedade e utilitarismo. O pragmatismo encontra na prática a base para a aplicação e interpretação da norma, uma vez que é através da prática onde haverá a concretização da norma jurídica de maneira que interfira na realidade social. Em seguida analisaremos as principais características do Pragmatismo.
“Antifundacionalismo – A perspectiva antifundacionalista mostra que a verdade não se encontra em princípios e conceitos dados ou previamente construídos. Os conceitos, advindos da experiência pretérita, constituem -se em hipóteses a serem confirmadas na prática. Portanto, um pensamento aberto, sempre sujeito à verificação. Não se trata de um pensamento fechado, condicionado à subsunção do fato concreto a uma verdade anteriormente dada.
Contextualismo – Considerando que o conhecimento parte de hipóteses a serem confirmadas na prática, a força do contexto sobressai. Assim, a pressão das circunstâncias passa a melhor dimensionar do problema. E visto o Direito como prática social, o pragmatismo jurídico assume uma dimensão tópica, pois as questões de ordem prática é que nortearão a interpretação e aplicação da norma. É a partir do problema então que a busca da solução se dá. O Direito é dinâmico, voltado para questões práticas. Portanto, Direito construído antes nos Tribunais, do exclusivamente no Poder Legislativo.
Consequencialismo - Essa característica mostra que o conhecimento acompanha o dinamismo da vida. Volta-se para o futuro, na medida em que se pauta nas consequências da ação. A decisão sobre a melhor conduta, nesse aspecto, é aquela que se pauta na consideração dos efeitos de um e de outro comportamento: “Se eu agir assim, ocorrerá isso;se agir de outra maneira, os resultados serão outros”. Portanto, as consequências possíveis de serem antevistas norteiam a tomada de decisão, e assim não se tem compromisso com princípios e valores.
Interdisciplinariedade – A abertura para as várias áreas do conhecimento que melhor possam informar sobre os efeitos da ação também é um desdobramento do pragmatismo.O conhecimento especializado, de natureza científica, tem o condão de tornar previsíveis os efeitos da ação, possibilitando o seu melhor dimensionamento.
Instrumentalismo – Já que o pensamento se volta para consequências de ordem prática, o Direito, neste aspecto, assume uma postura construtiva, vez que interfere efetivamente na realidade. Trata-se de um poderoso instrumento de orientação da conduta social, conformada pelos possíveis resultados que provoca na sociedade, cujo alcance extrapola as partes em conflito. O aspecto instrumental, nesse aspecto, aponta para o viés político do Direito.O instrumentalismo, nesse aspecto, possui alcance sistêmico.” (CAMARGO,2009, pps.367 e 368)
O Pragmatismo ao explicar a aplicação do Direito não o trata apenas como normas gerais e abstratas, mas vai além do Direito positivado, prevendo os limites e alcance de sua interpretação e aplicação. No pragmatismo, o Direito deve atender a força do contexto e aos efeitos das decisões, não apenas aplicar a norma de forma dissociada daqueles elementos. Assim, o problema(contexto) se sobressai em relação ao texto, devendo a interpretação da norma jurídica partir dos fatos. Eros Grau aborda o pragmatismo ao citar que "a Constituição e a realidade não podem se isolar uma da outra." A norma jurídica não pode negar a existência da realidade, quando isso acontece gera uma deformidade, uma ficção em que a norma jurídica prescreve um conteúdo falso.
Para o pragmatismo o conhecimento tem um caráter inclusivo e orgânico, levando em consideração o falibilismo (o conhecimento pode falhar), o consequencialismo (a previsibilidade dos efeitos das decisões),o instrumentalismo(a intervenção do intérprete no direito) e a interdisciplinariedade (a união com outras ciências).O pragmatismo evita o fundacionalismo - em que o conhecimento é estruturado através de fundamentos dogmáticos. Assim, o Pragmatismo prega o antifundacionalismo em que o conhecimento só é possível a partir das dúvidas advindas pelo método científico de investigação com o fim de alcançar uma crença (hábitos de conduta) que futuramente, poderá ser equivocada.
Para essa corrente filosófica não existe o dualismo entre "fato e valor", assim como não existe a dualidade entre "ser e dever-ser" que são usados por Kelsen no positivismo onde trabalha com verdades absolutas e certezas universais. Nesse sentido, a filosofia de Peirce nega o racionalismo cartesiano adotado por Kant, prevalecendo o Realismo sobre o Nominalismo, uma vez que para o filósofo não existe razão pura e inata, transcendental, como fonte do conhecimento. Na busca por entender o que seria possível para fundamentar o conhecimento, Peirce rejeitou que qualquer fator psicológico interferisse na Lógica da fenomenologia. Então, identificou como premissa um realismo ontológico em que as crenças partissem de objetos cognoscíveis pautados de sentido e sintaxe estruturados em conceitos prescritos, pois as formas já estavam contidas nos objetos(símbolos). Como explicado por Ivo Ibri (Apud Marcelo Sena Madureira,2018,p. 220):
“ Essa relação entre ideal e material será evidenciada como a busca por uma simetria genética entre sujeito e objeto, que se apresenta, na filosofia peirciana, desde a fenomenologia pela indiferenciação categorial entre mundos exterior e interior da experiência. Esta simetria genética permite que a conaturalidade substancial entre representação e objeto não necessite de uma subjetividade constituidora”.
Em que pese Peirce unir mente e objeto, a mente antecede o objeto, pois ela possui competência através da abdução, de fazer inferências lógicas, ou seja, criar hipóteses e testá-las na experiência com o fim de se chegar numa crença aceitável até então. As crenças não seriam imutáveis, uma vez que o objeto de estudo se transforma conforme se dá o processo de investigação, surgindo novos elementos que modificam a antiga crença. Dessa forma, o Pragmatismo rejeita qualquer certeza ou verdade universal, pois o conhecimento é falível, contínuo e autorregulatório.
Nos próximos capítulos, essas características citadas pela filosofia peirciana serão melhor esmiuçadas correlacionando-as com a incidência, aplicação e os efeitos do “voto de qualidade do Carf”.
2. O voto de qualidade na semiótica de Peirce
Antes de relacionar o voto de qualidade com a semiótica estabelecidas pela filosofia peirciana, iremos analisar a relação entre o signo, objeto e interpretante naquilo que Peirce, ao tratar da lógica da linguagem chamou de doutrina quase-necessária dos signos. A doutrinadora Clarice aborda essa semiótica ao explicar onde se localizam: a realidade, a lei, e a subsunção no processo semiótico da fenomenologia da incidência da norma:
“Quando a realidade for objeto de alguma percepção, esta percepção terá que se valer de algum suporte físico para se revelar. Este será o signo eleito para representá-la. Eleito o signo, este veiculará, necessariamente, informações relativas ao seu código e à sua sintaxe. Esta representação da realidade, seja em signos verbais ou não verbais, é que denomino, observando Jakobson, fato semiótico, o qual está na condição de fato social para efeitos de uma incidência jurídica”. ( ARAUJO,Clarice,2005, p.59)
Dessa maneira, a realidade, seria o empate no Conselho Administrativo que é o objeto, a percepção, é representada por um suporte físico, no caso o enunciado de lei, ou seja, o artigo 25, § 9º do Decreto 70.235/1972, mais precisamente o “voto de qualidade”, que é o signo no sentido sintático. Já o fato semiótico, seria a subsunção feita pelo interpretante.
O mundo jurídico não retrata a realidade social em sua íntegra, pois as leis são signos que apenas representam parte dessa realidade. Para o professor Paulo de Barros, o real é resultado de uma construção de sentido que é atribuída pelo intérprete, assim a realidade só existe para o mundo jurídico se for convertida em linguagem competente. Nesse raciocínio, o emérito professor ao retratar a fenomenologia das significações dos signos cita como Peirce estudava o conhecimento da realidade:
“ [...] a Semiótica peirciana trabalha com a distinção entre dois tipos de objetos: ( i) imediato;e (ii) dinâmico( real ou mediato).Imediato é o objeto representado no signo( que pode assumir a forma de símbolo, ícone ou índice) e dinâmico é o objeto representado pelo signo.[...] a relação que se estabelece entre o objeto imediato e o objeto dinâmico é denominada de assintótica, pois eles nunca se encontram e nunca coincidem”.( CARVALHO,2019, pps.553 e 554).
Os objetos imediatos são os signos, ou seja, são os fatos jurídicos, já os objetos dinâmicos são os fatos sociais, os eventos, sendo esses últimos intangíveis. Nesse viés, o professor diferenciou os fatos jurídicos como aqueles vertidos em linguagem e os eventos como sendo os acontecimentos da realidade que ainda não foram convertidos em linguagem, pois são apenas objetos de estudo para a Ciência do Direito.
Diante do que foi visto, podemos considerar que no caso de empate no Carf deve ser aplicado o voto de qualidade, assim, essa previsão é um fato jurídico, ou seja, objeto imediato porque foi juridicizado ao ser prescrito no enunciado do artigo 25,§9º do Decreto 70.235/1972.Esse dispositivo representa em parte o objeto dinâmico, qual seja, a realidade do empate naquele Conselho Administrativo.
O questionamento que se faz aqui, é se esse enunciado normativo seria um ícone ou um símbolo. Antes disso, faz-se necessário entender o que são essas categorias da semiótica (símbolo, ícone e índice) para conhecer em qual delas se encaixaria o “o voto de qualidade” do Carf. Nesse sentido, iremos buscar na doutrina da professora Clarice como se dá a relação icônica entre o signo e o objeto no Direito:
“[...] uma relação icônica é uma possibilidade de representação do objeto pelo signo, mediante uma associação por similaridade, por um interpretante efetivo, se e quando esta inferência for realizada. Isso precisamente é o que ocorre com uma subsunção jurídica, ao se verificar que a um caso concreto pode ser aplicada uma determinada norma”.( ARAÚJO, 2005, p.60).
No processo de subsunção, o interpretante irá observar se diante de uma determinada realidade(objeto) qual norma jurídica (signo) irá representá-la, ocorrendo, assim, a subsunção do fato à norma. Essa representação da relação icônica é parcial. Isso não ocorre no caso do art. 25,§9º desse Decreto, uma vez que o voto de qualidade no Carf é tratado como uma escolha política revestida de linguagem técnica em que desconsidera totalmente a realidade, não podendo ser tratada como ícone. Na relação entre os signos e o interpretante, Peirce estabelecia que um representava o outro, e essa representação não se confundia com sua reprodução, podendo ser totalmente contrária àquilo que era representado. Isso é o que seria chamado pelo filósofo de símbolo e pode ser explicado por Emílío Soares Ribeiro:
“Diferentemente do ícone e do índice, o símbolo é um signo que estabelece uma relação com seu objeto por meio de uma mediação, ou seja, as ideias presentes no símbolo e em seu objeto se relacionam a ponto de fazer com que o símbolo seja interpretado como se referindo àquele objeto, isto é, fazendo com que o símbolo represente algo que é diferente dele”.(RIBEIRO, 2010, p.51)
Acreditamos que o voto de qualidade por destoar completamente da realidade seja uma ficção jurídica porque o conteúdo da norma difere do mundo real. E por essa razão se encaixaria como símbolo na semiótica peirciana pelos seguintes motivos listados a seguir: 1)na prática em caso de empate no Carf, o Presidente já tendo emitido seu voto, passa a votar novamente, ou seja, vota duas vezes com o mesmo entendimento violando a isonomia entre as partes;2)em caso de empate o desempate de forma efetiva só poderia ser realizado por quem não votou;3) o legislador escolheu o Presidente do Carf para votar duas vezes no mesmo caso porque entendeu que essa seria a única forma possível, sendo chamada de técnica legislativa. Podemos confirmar esses motivos com o professor Cristiano Carvalho que conceitua ficção jurídica como sendo uma técnica jurídica com função prática, assim nas palavras do professor:“[...] as ficções denotavam uma construção jurídica normativa da qual se assume o conhecimento da completa falsidade do conteúdo da norma. Esse conteúdo, contudo, era prescrito por lei e irrefutável”.(CARVALHO,2008,p.215).
Entretanto, não existe uma separação necessária entre símbolo, índice e ícone, uma vez que eles se ‘entrelaçam’ prevalecendo um sobre o outro. Ou seja, ao mesmo tempo em que o signo representa(símbolo) o objeto também faz referência a um índice, pois sozinho o símbolo é um vazio que não tem capacidade por si só de representação. Dessa forma, explica Emílio Soares Ribeiro: “Para Santaella e Nöth (1999, p. 65), sem o ícone,o símbolo nada significaria e, sem o índice, perderia seu poder de referência. Assim, o símbolo contém dentro de si elementos de iconicidade e elementos de indicialidade”.(RIBEIRO,2010,p. 51).
3.O poder da lei e a finalidade do voto de qualidade no sistema jurídico
Nesse tópico, vamos refletir sobre a coercibilidade da lei e sua finalidade no mundo jurídico. Como se dará a incidência da norma e sua aplicação no sistema jurídico sob a perspectiva do pragmatismo. Assim, será observado o processo de positivação e aplicação do voto de qualidade elencados na ADI 5731/DF. Com isso, iremos analisar as interpretações feitas nessa ADI em relação ao voto de qualidade no Carf, enfatizar a importância da real vontade do legislador, como interpretante emocional, e a compreensão da norma pelo aplicador do direito como interpretante energético.
Na jurisdicização dos fatos temos três etapas inerentes ao processo de positivação da norma, quais sejam: 1) Incidência ;2) Interpretação e 3) Aplicação. Dessa maneira, será analisado a importância da representação do objeto pelo signo e seu reflexo na incidência, interpretação e aplicação da norma. E de forma inevitável, estudaremos esses elementos utilizando a semiótica de Peirce em que estrutura os atos de fala substituindo a estrutura comunicacional (emissor – enunciado – intérprete) pela relação entre objeto, signo e interpretante, respectivamente. A professora Clarice, com grande maestria, faz uma intersecção entre Peirce e Pontes de Miranda em relação a incidência e aplicação da norma, enfatizando os pontos convergentes e divergentes apresentados a seguir. Nos dizeres da professora:
“Quando se trata do processo de positivação normativa, sempre haverá a necessidade de adequação do signo ao objeto. Trata-se de definir uma relação de representação, o que invariavelmente implicará em interpretações e em recortes da realidade social e dos textos legais. Trata-se da relação de adequação entre o enunciado de uma norma legal e um fato social. Enquanto à incidência define-se como um processo meramente mecânico, a aplicação não pode envolver apenas aspectos lógicos, na medida em que o seu desenvolvimento envolve inteligência e evolução”.(ARAÚJO,2011, p. 139)
Ao estudar sobre a incidência da norma jurídica e a relação de representação do objeto pelo signo, Pontes de Miranda tratou dessa representação de forma matemática, aproximando-se da semiótica peirciana que citava o objeto dinâmico (realidade) e o objeto imediato (fato jurídico) já abordados no capítulo anterior. A teoria ponteana retratou a deformação que a regra jurídica, pela visão do legislador, realizava ao representar a realidade e seu impacto na aplicação do direito. Em relação a incidência, o jurista empregou uma nomenclatura (fato jurídico, regra jurídica e suporte fático) diferente da utilizada por Peirce (interpretante, signo e objeto), mas ambas eram correspondentes entre si. É relevante transcrever a explicação sobre incidência:
“Na morfogênese jurídica, desencadeada pela incidência da regra de Direito, a deformação a que o jurista se refere é a regra jurídica, ela é o prisma através do qual se olha para o suporte fáctico. Esta morfogênese constitui um verdadeiro processo de adjetivação do suporte fáctico pela regra do direito. As propriedades dos conceitos integrantes das proposições prescritivas selecionam do suporte fáctico aquilo que entrará para o mundo jurídico e passará a integrá-lo, após a incidência, na condição de fato jurídico. Ou seja, o fato jurídico revela-se e é gerado a partir de uma face ou aspecto do poliedro que é o fato social. O fato jurídico, produto da incidência, na condição de aspecto ou face eleito, é similar ao tipo descrito pela hipótese contida na regra jurídica. As qualidades do fato social provocam uma inferência por similaridade na mente do intérprete. A face do poliedro, fato social e objeto, que se faz representar pela incidência, lança para o interior da ordem jurídica, na condição de fato jurídico, o seu interpretante”.( ARAÚJO, 2011,pps.112 e 113)
Entretanto, há uma divergência entre Pontes de Miranda e Peirce, quando o primeiro afirma que a incidência é infalível, tratando o ordenamento jurídico como um sistema fechado e inalterável, o que não corresponde a ordem do direito positivo nem ao pragmatismo de Peirce. Uma vez que o direito positivo é dinâmico e aberto, pois evolui conforme as mudanças sociais, ou seja, é contínuo. Além disso, toda forma de representação da realidade seria incompleta, e a verdade, em que pese ser possível, acontecia de forma acidental como afirmava o célebre filósofo:“Toda proposição geral está limitada a um número finito de ocasiões nas quais pode ser falsificada, supondo que seja uma asserção confinada à experiência possível de seres humanos; e, consequentemente, embora possa acontecer que seja verdadeira em todos os casos, mesmo assim permanece acidental a sua verdade”.(ARAÚJO, 2011,p. 118)
Na incidência da lei, o legislador ao prescrever a norma, como interpretante emocional, escolhe os valores políticos que irão direcionar sua vontade, demarcando assim a finalidade que deseja alcançar. Diante do exposto até aqui, iremos empregar esse estudo na análise do “voto de qualidade”, buscando identificar quais foram as vontades do legislador na positivação da lei, demonstrando quais são os interpretantes presentes no dispositivo que prevê o voto de qualidade. Com isso, analisaremos as interpretações do art. 25,§9º do Decreto 70.235/1972 feitas pelas partes na ADI n. 5731/DF.
Nesse ponto, faz-se necessário compreender que o poder da lei reside na sua coerção estatal, sendo resultado inerente da sua coercibilidade o interpretante energético. Este ocorre quando os destinatários da norma desenvolvem um esforço mental na compreensão e interpretação dos signos, obedecendo-as ou não. Nesse sentido, explica a doutrinadora Clarice :
“Todas as respostas e reações dos destinatários envolverão interpretantes energéticos. As reações dos destinatários, no que diz respeito à obediência ou desobediência aos comandos vinculados por normas jurídicas são interpretantes energéticos. A própria incidência das normas, ocorrendo em esfera particular, negocial (elaboração de contratos particulares), administrativa (ações realizadas pela Administração Pública ao dar cumprimento às leis) ou judicial (as medidas que impulsionamos processos, sejam elas executadas pelos advogados, funcionários dos cartórios ou pelos próprios juízes) envolve a manifestação do interpretante energético das normas jurídicas”.(ARAÚJO,2005,p.97)
No processo de positivação da norma, como já abordado, ocorrem deformidades na representação do objeto. Dessa forma, sobre a mesma realidade incidem duas interpretações, muitas vezes contraditórias, sendo uma do legislador ao prescrever a lei e outra do julgador ao aplicar a norma. Com isso, o fato jurídico esta suscetível as deformidades ocasionadas pela subsunção do fato à norma durante sua aplicação. Nesses termos, a doutrinadora Clarice:
“ Mesmo o Direito Positivo apresenta seu aspecto falível. Muitas vezes há contradição entre a previsão e a utilização dos critérios sintáticos prescritos para a produção normativa. Quando ocorre um questionamento concreto da legalidade das relações jurídicas assim estabelecidas, decisões judiciais frequentemente são proferidas em prestígio aos valores políticos, fazendo com que a imperatividade de uma ou várias normas ocorra segundo um critério semântico/pragmático, cuja sintaxe não corresponda à previsão genérica da ordem jurídica”.( ARAUJO, Clarice, 2005, p.16)
Retiramos trechos da ADI 5731/DF que confirmam as incoerências do sistema geradas pelas interpretações na aplicação das normas e a importância em identificar a legítima vontade do legislador. Na tradução do texto há um abismo entre o que o legislador previu na lei e o que o julgador compreendeu na aplicação da norma, uma vez que esta como conteúdo da lei implica na significação construída pelo seu interpretante:
“ Lucas Catib Laurentiis pondera que conferir à Suprema Corte o poder de alterar todo sentido idealizado inicialmente pelo legislador ordinário na elaboração das normas infraconstitucionais acabaria por extinguir o próprio controle de constitucionalidade.[...] ao realizar operações interpretativas que, tal qual a interpretação conforme a Constituição, contêm um potencial transformador do sentido normativo dos textos legislativos, o Tribunal Constitucional não pode se desvincular da vontade, subjetiva ou objetiva, expressada pelo legislador, mesmo que esta vontade seja inequivocamente inconstitucional. Assim, quando for constatada a desconformidade entre a vontade do legislador e a Constituição, não haverá outro caminho que não o da declaração de inconstitucionalidade do texto questionado. Afinal, não é dado às Cortes Constitucionais ignorar os desígnios do legislador democrático, convertendo inconstitucionalidades inequívocas em constitucionalidades frágeis”.(ADI 5731/DF,2018)
Ademais, podemos observar que o legislador prescreveu uma técnica procedimental com a finalidade de desempatar e resolver o litígio. Assim, como tal conduta foi convertida em linguagem competente interligada pelo modal deôntico obrigatório, pois o Presidente do Conselho é obrigado a votar duas vezes em caso de empate, então ela passou a existir para o sistema jurídico mesmo que a sua inconstitucionalidade viesse a ser declarada em decisão a posteriori. Por esse ângulo, vamos observar que o legislador ao valorar as condutas dos destinatários através dos modais deônticos (permitido, proibido ou obrigatório) fez escolhas pelas quais já indicam a significação contida na norma. Assim, em relação a fenomenologia da incidência é relevante a transcrição do trecho em que fala dos aspectos valorativos não como denotação dos adjetivos da linguagem, mas sim como escolhas do legislador (interpretante emocional):
“ MORRIS(1964,p.33) adverte que autores conhecidos por suas empreitadas na construção de teorias semióticas, como PEIRCE e CARNAP não tratam dos aspectos estimativos, valorativos (appraisive) da linguagem ou dos signos. Os aspectos valorativos e prescritivos da linguagem não se referem a propriedades naturais dos objetos que esta linguagem representa, mas denotam juízos preferenciais, escolhas. Neste aspecto a linguagem não denota a valoração; não se trata de designação, mas de significação”. .(ARAÚJO,2018,p.105)
Por fim, entendemos que ao identificar a vontade do legislador, estamos automaticamente encontrando a sua finalidade em fazer tais escolhas e, com isso, a significação da norma.
4.Argumentações pela Inconstitucionalidade do voto de qualidade na ADI 5731/DF: uma questão de método
Neste capítulo será abordado como ocorreu o processo de construção da decisão jurídica sobre o voto de qualidade, analisando quais foram os argumentos levantados pelas partes na ADI 5731/DF e a forma de decidir do STF em casos análogos. Estudaremos os pontos convergentes e divergentes entre a teoria da argumentação de MacCormick e a usada pelo pragmatismo de Peirce. Dessa forma, criticaremos o método a priori predominante no tradicional silogismo dedutivo que, segundo Peirce, esconde os reais motivos pelos quais levaram o juiz a chegar a uma determinada conclusão. Para isso, nos valeremos da utilização do método abdutivo. Através desse método poderemos identificar quais foram os fatos jurídicos gerados pelas subsunções e as incoerências nas motivações do Carf diante das suas dúvidas e crenças. No decorrer deste capítulo iremos perceber que prevalece o método da tenacidade e o método da autoridade nas decisões envolvendo o voto de qualidade.
Antes de aprofundarmos sobre o tema, devemos ter em mente que estamos diante de três situações irracionais de rejeitar a dúvida , as quais são: 1) quando o legislador estabeleceu uma ficção jurídica do voto de qualidade para promover o desempate no Carf prevista no art. 25, §9º do Decreto-lei 10.235/1972 ; 2)quando o presidente do Carf votou na segunda vez, prevalecendo seu entendimento, chamado voto de qualidade; e 3)quando os ministros do Supremo votaram em casos análogos pela manutenção do voto de qualidade. Assim, fica visível que há uma sucessão de equívocos que ocorrem tanto na previsão da lei quanto na aplicação da norma. Percebemos que na ânsia de solucionar litígios de forma prática, tanto o legislador quanto o julgador do Carf e alguns ministros do Supremo tentaram sustentar suas crenças sem analisar o “voto duplo” dentro do ordenamento jurídico e as reais premissas que os levaram a tais conclusões, praticando o que Peirce chamou de “ Raciocínio Fingido.”
Tanto a Procuradoria da República em seu parecer na ADI 5731/DF quanto na petição dessa Ação proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados, ao expor seus argumentos pela (in)constitucionalidade formal, se restringiram na análise do processo legislativo na criação do voto de qualidade no Carf que se deu através da MP 449/2008, convertendo-se na lei ordinária 11.941/2009.Porém, é necessário atentar para o contexto que originou essa ADI, pois é através dele que entendemos as causas do problema. Assim, em que pese o Carf e a previsão do seu voto duplo terem surgidos em 2009, o aumento das demandas judiciais questionando a constitucionalidade desse voto se acentuarem anos depois ao surgimento dessa lei. Podemos perceber que sua finalidade gira em torno de tentar afastar a parcialidade dos julgadores do Carf e afastar uma analogia com o tratamento dado na Ação Penal n. 470 do STF, como observa na pesquisa de Marco Favini:
“[...] a questão do voto de qualidade dos tribunais administrativos, especialmente no CARF, ganhou maior relevância em meados do ano de 2014, após o julgamento da Ação Penal nº 470 pelo STF, o que já demonstra seu caráter atual e inovador. Nesse sentido, a questão da relevância prática, dá-se pelas inúmeras medidas judiciais que vêm sendo propostas com o intuito de discutir a validade do voto de qualidade e, por consequência, a manutenção das exigências fiscais no CARF em desfavor dos contribuintes em razão do voto de qualidade, o qual, aparentemente, passou a ser mais exigido após a operação Zelotes em meados de 2015 e a instituição do bônus de eficiência em 2017.”(FAVINI,2017,p.4)
Com esse trecho fica evidente o contextualismo defendido pelo pragmatismo, pois conhecendo as circunstâncias em que surgiram o problema, podemos saber na prática como deve ser aplicada a norma. É relevante mostrar aqui a semelhança entre Peirce e MacCormick, pois ambos rejeitam o método a priori, baseado em dogmas e defendem que a decisão jurídica para ser coerente deve ser fundamentada dentro de um contexto, tratando, assim, sobre o contextualismo. Nestes termos, vale a transcrição:
“O contexto jurídico é um contexto em que a ideia de coerência tem uma importância peculiar e óbvia. Em uma discussão jurídica ninguém começa a partir de uma folha em branco e tenta alcançar uma conclusão razoável a priori. A solução oferecida precisa fundar-se ela mesma em alguma proposição que possa ser apresentada ao menos com alguma credibilidade como uma proposição jurídica, e essa proposição deve mostrar coerência de alguma forma em relação a outras proposições que possamos tirar das leis estabelecidas pelo Estado. Aqueles que produzem argumentos e decisões jurídicas não abordam os problemas da decisão e da justificação no vácuo, mas, em vez disso, o fazem no contexto de uma pletora de materiais que servem para guiar e justificar decisões, e para restringir o espectro dentro do qual as decisões dos agentes públicos.”(MARTINS,2011,p.218)
Ademais, Peirce ao criticar o método dedutivo, se questiona o porquê esse método ainda continua sendo tão utilizado pelos tribunais, então chega na conclusão que isso se dá por razões de conveniência e inconsciência. A conveniência se dá de forma corriqueira nos tribunais, por ser a maneira mais fácil de decidir, ou seja, é mais prático para um juiz sustentar sua decisão através de diversas justificativas do que começar a decidir a partir de hipóteses geradas pelo problema. É conveniente, também, porque o magistrado não deixará de forma expressa na sentença seus reais motivos (ideológicos, econômicos e culturais). Dessa forma, ele prefere se valer do método a priori, da autoridade, que do método científico defendido na filosofia peirciana. Já em relação a inconsciência do magistrado, refere-se às suas convicções, ou seja, ele estabelece uma verdade em sua mente baseada em uma crença sem possuir nenhuma prova. Assim, age pelo método da tenacidade. Confirmamos isso, no parecer da PGR na ADI5731/DF que em seus argumentos transcreveu o trecho do voto do Ministro Gilmar Mendes, no caso em que se questionava o voto de qualidade no Supremo. O que fica explícito o método da autoridade e da tenacidade, típicos do silogismo-dedutivo criticado por Peirce.
“Passou-se, então, a ver a necessidade de uma solução. É diferente do que se faz em várias Cortes no mundo? Vamos encontrar soluções as mais diversas. Há sistemas que consagram que, em caso de empate – e há modelos específicos, inclusive, pela conformação do Tribunal – mantém-se o ato impugnado, seja ele um ato judicial ou um ato legislativo.[...] Inconstitucionalidade por quê? Não há aqui nenhuma inconstitucionalidade no critério, questões de conveniência quanto ao processo decisório, questões ligadas a uma cultura do processo decisório. O que não se quer é que subsista o empate; pelo menos, que se atribua efeito ao empate, como nós fizemos e, rotineiramente, hoje, aplicamos em matéria criminal de habeas corpus”.(Parecer PGR,ADI5731/DF)
O legislador ao escolher essa regra (voto duplo), violou vários princípios fundamentais, dentre eles o princípio da igualdade, do devido processo legal, da razoabilidade. Dessa forma, o aplicador não interpretou a norma de forma sistemática, ou seja, não observou o ordenamento jurídico, dando prevalência a uma regra perante o princípio da igualdade que é um ideal máximo do Estado Democrático de Direito. Esse abuso antidemocrático foi rechaçado no voto do Ministro Carlos Britto quando a Suprema Corte analisava o voto de qualidade do CADE, e de forma análoga ao caso em tela, foi transcrito nos autos da ADI 5731/DF através a argumentação do Conselho Federal da Ordem dos Advogados:
“O que me parece subjazer, do ponto de vista da tecnicalidade, a essa nossa discussão, ainda no plano do prequestionamento? Por que se falou de República? Porque a República é constituída não de súditos, mas de cidadãos, regidos todos pelo princípio da igualdade. Quando se vê a Constituição num plano sistemático – e já dizia Juarez Freitas, eminente administrativista e teórico do direito do Rio Grande do Sul: ou a interpretação jurídica é sistemática ou não é interpretação –, quando se passa em revista o sistema de comandos da Constituição, avulta esse princípio da República desde o art. 5º da Constituição, cuja voz de comando inicial é essa:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,...”
Igualdade, aliás, que já estava no preâmbulo da Constituição, como efetivamente está, e volta a ser mencionada na cabeça do art. 5º. O único valor jurídico que é duas vezes mencionado na cabeça do art. 5º é o da igualdade, que é da mais entranhada essência da República. Por que ele falou de estado democrático de direito? Porque a Constituição, desde o art. 14, consagrou o princípio: um homem, um voto. [...] Quem decide é a maioria. Os órgãos públicos podem decidir ignorando o princípio da majoritariedade? Esse princípio é mais do que nudular, medular da democracia. Pode um dirigente de uma autarquia votar duas vezes? ”(ADI5731/DF)
Nesse voto, percebemos obediência aos requisitos elencados no “roteiro” da argumentação (universalidade, coerência e consequência) defendido por MacCormick em que enfatizou a necessidade da lei ser interpretada de forma integrada ao seu ordenamento jurídico, num sentido de completude sem violar nenhum princípio, pois este último impõe limites nas decisões judiciais.
“Há, pois, uma complementaridade/tensão entre a comunidade de princípios e o ideal de integridade que se quer desenvolver. Os princípios acolhidos pela comunidade devem transparecer nas decisões políticas e jurídicas que afetam essa comunidade, de modo que lhe assegurem legitimidade. O ideal de integridade, por sua vez, na medida em que se baseia em uma relação de igualdade e mútua consideração entre os membros da comunidade, constitui um limite para a construção das decisões da comunidade. [...]Com efeito, vê-se na teoria de MacCormick uma cooriginalidade entre coerência e princípio. Essa regra geral, extraída da coerência que enxergamos em um ordenamento, é o que MacCormick chama de princípio. Identificar os princípios do ordenamento jurídico impõe-nos o dever de investigar as normas gerais que se podem extrair do conjunto de regras isoladamente consideradas, dentro de cada uma das áreas do direito dotadas, por sua vez, de uma coerência própria”. (MARTINS,2011,p.219)
Por fim, iremos analisar como se dá a rejeição da dúvida na construção das decisões pelos ministros do STF, comparando o método dedutivo de MacCormick com o método abdutivo adotado por Peirce. Depois estudaremos em que consiste os votos dos julgadores do Carf. Para isso, observaremos a construção da decisão que integra o empate nos referindo ao voto de mérito, e a decisão do presidente do Carf que consiste num voto de desempate.Com isso, abordaremos em qual método se encaixa o raciocínio utilizado pelo professor Pedro Lunardelli ao enfatizar que o problema do voto de qualidade no Carf se relacionava a uma questão de subsunção.
MacCormick se aproximou das ideias pragmaticistas ao entender que o Direito se relacionava não apenas com normas jurídicas, mas também, com outras disciplinas como a Economia e a Política, convergindo com a intertextualidade do pragmatismo. Ele se intitulava pós-positivista, e assim como Peirce, negava a neutralidade do Direito, havendo uma reciprocidade entre a moral e o direito. Isso é notório em seus estudos no qual acreditava que uma decisão só poderia ser coerente com o ordenamento jurídico se não fosse contraditória e respeitasse os princípios que fazem parte do Estado Democrático de Direito. Além disso, ambos defendiam que a argumentação jurídica nascia no contexto da decisão e que um argumento só seria válido se pudesse ser racionalmente comprovado. Porém, ambos se divergiam quanto a utilização do método de argumentação. Enquanto Peirce defendia com vigor a importância do método abdutivo, MacCormick preocupou-se em criar um “roteiro” da argumentação no qual se pudesse, através de um raciocínio lógico e dedutivo, escolher a interpretação mais adequada ao caso. A esse teste de adequação, ele se referia a subsunção da norma, criando, assim, um “roteiro” que deveria obedecer a três requisitos: universalidade, consequências e coerência.
Agora, vamos entender em que consiste o método abdutivo propagado por Peirce. Ele afirmava ser este o único meio racional de se afastar a dúvida, pois só assim se conheciam as reais razões que levaram o juiz a tal conclusão. A crítica de Peirce se resumia ao fato de que no método dedutivo, primeiro o julgador decidia e depois fundamentava sua sentença com dogmas ou presunções que “mascaravam” seus preconceitos e o contexto que o levaram a tomar a decisão. Para o filósofo, o juízo de valor que não era visível na decisão, no método dedutivo, já poderia ser considerado uma inferência lógica no método abdutivo. Ou seja, na abdução o juiz partia da criação de hipóteses diante de um problema para se alcançar a solução (resultado). Assim, primeiro era analisado em qual contexto se situava o caso concreto( premissa menor), chamado de contexto da descoberta, e através desse contexto e dos seus juízos de valor o magistrado aplicaria ou não a norma prevista na lei ( premissa maior). Dado a explicação sobre os métodos, iremos analisar o voto dos ministros do Supremo utilizados nas argumentações no parecer da PGR na ADI5731/DF.
Em seu voto o Ministro Gilmar Mendes, ao ser questionado sobre a constitucionalidade do voto de qualidade no Supremo, defendeu a manutenção do voto duplo nos colegiados por entender ser um critério político utilizados por tribunais em diversos países. Segue o trecho:
“Vejam o reflexo que isso tem. E quero me abstrair do caso concreto. Estou a falar da repercussão do caso em tese. Nós temos bons argumentos. Precisamos decidir. Daqui a pouco, par ou ímpar, jogar dado, qualquer coisa, jogar uma água, chamar um mago, sei lá, qualquer coisa engraçada, mais inspirada. Mas, dizer que o critério do voto de qualidade é inconstitucional! O que é inconstitucional? Não se está dando voto para o Presidente declarar a inconstitucionalidade de lei! Não é disso que se cuida! É apenas um critério, tanto é que duas Cortes do maior relevo – a Corte Internacional de Haia e a Corte Interamericana de Direitos Humanos – adotam esse critério do voto de qualidade! Agora, é inconstitucional! É uma inconstitucionalidade espiritual”.(Parecer da PGR, ADI 5731/DF)
Diante do voto acima, percebe-se que o Ministro preferiu se valer do método dedutivo, aplicando a regra do critério do voto de qualidade prevista no regimento interno do Supremo de forma automática, através da subsunção da lei, sem se questionar o contexto em que ocorreu o caso concreto e fazer qualquer juízo de valor sobre o uso desse critério. O Ministro se valeu de sua autoridade para defender o contexto da justificação como uma forma de sustentar suas crenças. E foi justamente esse comportamento dos Tribunais que o método abdutivo condenava, assim são as palavras da doutrinadora Flavianne ao citar Kaufman: “a subsunção fora usada pelos juízes como subterfúgio para não expor o verdadeiro motivo – valorações e convicções políticas – no acórdão”. (BITERNCOURT, 2013, p.110)
Além disso, vale ressaltar que esse voto por valorizar o contexto da justificação, ao abstrair o caso concreto, e comparar o voto de qualidade da Suprema Corte com o voto de minerva na Corte Internacional de Haia e na Corte Interamericana de Direitos Humanos se aproximou do “roteiro” da argumentação, criado por MacCormick, pautada no método dedutivo em que na busca da melhor argumentação deveria ser aplicada uma ideia universal para todos os casos semelhantes, chamado de universalidade. Assim, explicou o filósofo:
“ A ideia de universalidade, ou melhor, a universalizabilidade, como capacidade de um argumento ser igualmente aplicado a todos, é tema nuclear na teoria de MacCormick. Percorrendo sua obra, vê-se que essa ideia, na medida em que está ligada ao ideal de igualdade, se espraia sobre os demais conceitos desenvolvidos – especialmente o de coerência. MacCormick reconhece que em cada situação pode haver exceções. Essas exceções, contudo, não devem ser vistas como generalizações, mas como uma universalidade excepcionável. Assim, em um conjunto de situações semelhantes, sempre que aparecerem circunstâncias excepcionais, elas devem ser inseridas dentro de um sistema de justificação composto de proposições universais, tornando-se, pois, exceções universais”.(MARTINS, ROESLER,JESUS,2011,p.213)
É perigoso, e até mesmo desproporcional, seguir esse pensamento, uma vez que ao igualar o tratamento do voto de qualidade em todos os tribunais, automaticamente, o julgador está desconsiderando as particularidades de cada um, por exemplo, como: o número de integrantes em cada tribunal, os juízes que o constituem e a realidade do cotidiano de cada órgão.
Dando continuidade ao nosso propósito, partiremos para o estudo do voto de qualidade dos julgadores do Carf feito pelo professor Pedro Lunardelli. Assim, tentaremos compreender se sua análise se referia mesmo a uma ausência de subsunção entre o fato jurídico e a norma, ou se na verdade, tudo não passava de uma questão do método utilizado.
Ao analisar como era a sistemática do voto de qualidade no Carf, o professor percebeu que estávamos diante de dois fatos jurídicos, quais sejam: o voto de mérito de cada julgador na formação do empate e o voto de qualidade do presidente do tribunal administrativo como maneira de desempate. Lunardelli, seguindo o raciocínio do professor Lourival Vilanova, entendeu que o voto de mérito e o voto de qualidade se referiam a atos processuais distintos. Sendo que o primeiro voto se referia a um fato jurídico tributário por questionar a matéria tributária discutida no caso concreto, e o segundo voto se referia a um fato jurídico processual por corresponder aos artigos: 25, §9º do Decreto 70.235/72; art. 54 do seu Regimento Interno cumulados com os artigos 15 e 489 do Novo Código de Processo Civil. Tal disposto processual prevê que tanto o voto de mérito quanto o voto de qualidade devem ser motivados. Partindo dessas premissas e de uma profunda pesquisa, o professor chegou na seguinte conclusão:
“ Com efeito, os votos de qualidade ou de desempate são proferidos sem a necessária motivação específica do dissenso que é imprescindível para dar eficácia à norma que versa sobre esta espécie de voto.[...] Em outras palavras, os votos de mérito e de qualidade são expedidos com a mesma motivação, o que torna este, o de empate, nulo, assim o respectivo acórdão que o compreende”.(LUNARDELLI,2017, pps. 982 e 983).
Entendia o professor que apesar do voto de mérito ser devidamente motivado, o voto de qualidade não era, pois não havia uma motivação sobre o procedimento de desempate. Por essa razão, tratava-se de uma questão de ausência de subsunção, uma vez que o fato jurídico ( voto de desempate sem motivação) não se subsumiu a sua previsão normativa( arts 15 e 489 do NCPC).(LUNARDELLI,2017,p.988) .Desse modo, ele defendeu seu raciocínio no método dedutivo semelhante ao de MacCormick, seguindo inclusive um roteiro de argumentação que deveria ser específica e coerente. Então, podemos afirmar que nos casos de empate entre os conselheiros do Carf não estamos diante de nenhuma certeza, muito pelo contrário, na inconsistência da decisão de empate, percebe-se que existe uma dúvida no Conselho. Como afirma MacCormick: “a inexistência de contradição no argumento jurídico chama-se de consistência”. Isso não é o que ocorre no Conselho, pois em caso de empate temos metade do órgão de decisão entendendo em um sentido e a outra metade possuindo entendimento diverso, não existindo aqui um consenso entre os julgadores. E como já afirmado, o voto que se diz ser de qualidade ou desempate, além de não possibilitar um consenso entre os julgadores, também não possui motivação.
Concluímos o seguinte: apesar da argumentação do professor Lunardelli estar estruturada no método dedutivo, partindo-se da premissa maior (dispositivos de lei) e observando que a premissa menor (caso concreto do voto de desempate) chegar na conclusão (não subsunção).O que houve na verdade foi justamente a subsunção do artigo 25, §9º do Decreto 70.235/1972, uma vez que essa norma, em que pese, não estar fundamentada de acordo com as normas de estruturas ( processuais) é válida no sistema. Como já abordado acima neste trabalho pelo professor Paulo de Barros ao afirmar que uma norma é válida quando passa a existir no sistema, e foi o que ocorreu com o voto de qualidade. Sendo que a validade da lei 11.489/2009 está sendo discutida nessa ADI. Ademais, como já explicado pelo método abdutivo em linhas acima, o presidente do Carf aplicou automaticamente o voto de qualidade sem fazer nenhum juízo de valor, tanto é que nem precisou motivar seu voto por estar resguardado ou obrigado pelo comando do art. 25, §9º do Decreto 70235/1972. Se o presidente desse tribunal administrativo tivesse seguido o método da abdução, inevitavelmente, teria motivado seu voto de desempate, analisando assim o contexto do problema, dando juízo de valor (princípio da igualdade) e debatendo suas premissas com os demais julgadores com o fim de chegar num consenso. É disso que Peirce fala ao explicar o método científico (abdução, dedução e indução), que para se afastar a dúvida (empate) o investigador (julgador) deveria partindo de suas crenças falíveis (voto de empate) começar pelo problema (caso concreto) e comprovar e testar suas premissas no contexto da prática até se alcançar o consenso na comunidade de investigadores (acordo entre todos os julgadores do Carf).
Através do método abdutivo, o aplicador do Direito irá conforme o contexto do caso concreto e dos seus valores (princípios, preconceitos) decidir se aplica ou não determinada norma ao caso. Assim, nas palavras da doutrinadora Flavianne: “O enquadramento de algum fato da realidade como jurídico é o momento crucial na aplicação do Direito; senão o mais importante, pois que, então, ser-lhe-á atribuído nova significação e determinando suas consequências jurídicas”.(BITENCOURT, 2013,p. 111)
5.Consequencialismo e Falibilismo
Em que pese o Consequencialismo e o falibilismo terem sido citados no capítulo anterior, devido a sua importância, nesse capítulo dedicaremos maior atenção a essas características empregadas pelo Pragmatismo. Analisaremos quais as possíveis consequências diante da manutenção ou extinção do voto de qualidade no Carf e a previsibilidade na decisão do Supremo nessa Ação de Inconstitucionalidade. Observaremos, também, a associação do falibilismo com a parcialidade do Presidente do Carf.
Vamos entender, primeiramente, do que se trata o Consequecialismo na visão do Pragmatismo e associá-lo ao Direito. Assim, o Consequencialismo é a previsibilidade de certos efeitos ao anteciparmos, em nossa mente, as possíveis consequências diante de determinada ação. Ou seja, pela experiência e pelo contexto poderemos ter uma noção daquilo que venha a ocorrer, isso é comum na práxis jurídica, uma vez que os advogados, promotores e juízes escolhem suas atitudes (defesa, acusação e sentença) prevendo os possíveis efeitos dela no deslinde do caso. Desse modo, nas palavras do doutrinador Humberto Ávila ao definir o Consequencialismo:
“[...] pode ser definido como a estratégia argumentativa mediante a qual o intérprete molda o conteúdo ou a força do Direito conforme as consequências práticas que pretende evitar ou promover, em detrimento da estrutura normativa diretamente aplicável, dos efeitos diretamente produzidos e dos princípios fundamentais imediatamente aplicáveis à matéria.” (ÁVILA,2019,p.52)
Podemos observar o Consequencialismo nos argumentos a favor e contra a manutenção do voto de qualidade no Carf arguido na ADI 5731/DF, pois tanto o Conselho Federal da Ordem dos Advogados quanto a Procuradoria da República analisaram os votos dos Ministros do Supremo e construíram seus argumentos refutando ou confirmando as orientações dadas nos acórdãos de casos semelhantes. É oportuno observar que as partes escolheram, principalmente, votos de ministros que estão no Supremo, exemplo disso, é a Procuradoria citar em seu parecer o voto do Ministro Gilmar Mendes que é Relator nessa ADI, demarcando assim uma previsibilidade na decisão desse Ministro. Como nesses trechos relacionadas a ADI5731/DF:
Parecer da PGR refutando os pedidos do autor da ADI e logo após, no mesmo parecer, valendo-se dos votos dos Ministros que, no caso do questionamento do voto de qualidade no próprio Supremo, decidiram pela constitucionalidade desse voto.
“3. Voto de qualidade constitui critério político de desempate de votações comumente adotado em órgãos deliberativos de composição colegiada, que não representa, por si, afronta aos princípios da isonomia, da razoabilidade e da proporcionalidade.”
“O Min. Gilmar Mendes trouxe relevantes considerações sobre a constitucionalidade do voto de qualidade como critério político de desempate de votações em órgãos colegiados (inteiro teor do acórdão, pp. 315-320)”
“Também se manifestaram pela constitucionalidade da regra os Ministros Marco Aurélio e Cezar Peluso (inteiro teor do acórdão, pp. 327 e 336)”
Na peça da inicial da ADI temos, também, o Consequencialismo como estratégia da CFOAB na análise dos votos dos Ministros do Supremo, mas agora, decidindo pela inconstitucionalidade do voto de qualidade.
“ O Ministro Marco Aurélio, quando do julgamento do AI nº 682.486/DF4, ao examinar a constitucionalidade do art. 8º, II, da Lei n. 8.884/945, que atribuía a prerrogativa de voto duplo ao Presidente do CADE nas deliberações da autarquia, explanou:
O deslinde do importante caso submetido ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE ocorreu mediante manifestação de dupla vontade – dupla no sentido de duplo voto – do Presidente do órgão, contrariando-se, a meu ver, parâmetros constitucionais, princípios implícitos na Carta 1988. Não consigo, diante das balizas da Constituição, dita ‘cidadã’ por Ulysses Guimarães, concluir que alguém possa ter o poder tão grande de provocar um empate e, posteriormente, reafirmando a óptica anterior, dirimir esse mesmo empate”. (grifamos)
Não podemos deixar de destacar o Consequencialismo no “roteiro” da argumentação de MacCormick que uma decisão só poderia ser coerente quando nela pudessem ser previstas possíveis consequências. Assim, citou que a coerência da decisão dos juízes estava interligada, também, a valoração das consequências, nestes termos:
“MacCormick aduz também que os juízes, para formularem uma “boa decisão”, deveriam avaliar as consequências dessa norma criada no mundo.[...] Trata-se aqui de avaliar as consequências normativas que a nova regra impõe. Deve-se refletir sobre as consequências da possível internalização da nova norma criada em comparação com as regras rivais que se apresentam como possibilidades decisórias de um caso concreto. Não é um consequencialismo fático:(...) Mais que a previsão de qual conduta a norma provavelmente irá induzir ou desestimular, o que interessa é responder à pergunta de que tipo de conduta autorizaria ou proibiria a norma estabelecida na decisão; em outras palavras, os argumentos consequencialistas são, em geral, hipotéticos, mas não probabilistas. (...)”(MARTINS,2011,p.214)
De acordo com o que foi dito acima, podemos observar que se, por exemplo, os Ministros do Supremo decidirem pela inconstitucionalidade do voto de qualidade do Carf, deverá modular tais efeitos por uma questão de segurança jurídica tanto para o Fisco quanto para os contribuintes. Além disso, se o Supremo afastar a regra estabelecida no art. 25,§9º do Decreto 70.235/72, deverá estabelecer o modo de desempate naquele tribunal administrativo até surgir uma nova lei, chamada regra de transição. Assim, observamos que nos dois casos hipotéticos acima a Suprema Corte ao modular os efeitos de sua decisão e ao aplicar regras de transição, agiu de modo abdutivo e consequencialista , como uma forma de afastar determinadas consequências previsíveis.
Dando seguimento ao nosso trabalho, estudaremos sobre o Falibilismo, partindo da sua definição no pragmatismo, passando pelo modo como se dá o desempate no Carf até chegarmos ao acórdão do Supremo usado nos argumentos na ADI5731/DF.
Como já afirmava Peirce: “todo conhecimento é falível”. Esse filósofo acreditava que só através da experiência e da observação era possível atingir o conhecimento, e por isso, o conhecimento era livre de qualquer aspecto psicológico (transcendental). Ele se dava na relação da mente (pensamento) com o mundo material (objetos). Nesse sentido:
“[...]ao descaracterizar a razão pura como fonte originária do conhecimento, Peirce exclui, também , o aspecto de certeza absoluta que possa ser dado ao conhecimento obtido por essa via transcendental.[...] na opinião do autor há três coisas para as quais nunca poderemos esperar atingir pelo raciocínio, a saber, a certeza absoluta, exatidão absoluta e universalidade absoluta (CP1.141).”(MADEIRA,2018, p.218)
O conhecimento é contínuo e inesgotável, está em constante evolução, sempre se autorregulando com o surgimento de novas ideias, e por essa razão é falível. Assim, com o avanço das Ciências, o investigador pode observar a mudança do seu objeto de estudo, e consequentemente, a mudança de entendimento. Isso não é diferente no Direito que necessita estar em constantes mudanças para tentar acompanhar o desenvolvimento da sociedade. É corriqueiro no mundo jurídico haver mudanças na jurisprudência, nas leis e teses aplicadas nos tribunais, e isto é uma prova do Falibilismo jurídico.
É relevante a seguinte reflexão: se um órgão Colegiado está sujeito a falhar em suas decisões, imaginemos que com maior sujeição ao falibilismo está o voto de qualidade do Presidente do Carf, uma vez que a decisão desse último prevalece sobre a decisão do Conselho Administrativo. Dessa maneira, o legislador ao prever tal dispositivo, encontrou, nessa técnica do “voto duplo”, a forma mais prática de resolver o litígio e a menos racional em rejeitar a dúvida. Já que diante de um empate fica visível que existe uma dúvida no órgão de decisão, e o voto do presidente não é competente para sozinho estabilizá-la. Esse mesmo pensamento sobre o falibilismo foi citado pelo Ministro Marco Aurélio no caso em que se questionava o voto de qualidade no CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica:
“Pergunta-se: habita o mesmo teto dos novos ares constitucionais democráticos o voto de minerva? É possível que, em um Colegiado, o cidadão, falível – como outro qualquer, e assim também nós o somos –, profira um voto e, neutralizando-se os votos ante o empate verificado, venha a decidir, fazendo-o, no campo republicano e democrático, isoladamente? O voto de qualidade, para mim, acaba por consubstanciar a existência de um superórgão.”
Quando nos atentamos ao significado da palavra ‘acórdão’, percebemos que o legislador, ao prever esse instituto no direito processual, possuía a finalidade de que na decisão final o Colegiado chegasse a um acordo, sendo importante estabelecer um consenso tanto nos tribunais judiciais como nos tribunais administrativos. Segue abaixo o significado da palavra ‘acórdão’:
“ Acórdão é a decisão do órgão colegiado de um tribunal (câmara, turma, secção, órgão especial, plenário, etc.), que se diferencia da sentença, da decisão interlocutória e do despacho, que emanam de um órgão monocrático, seja este um juiz de primeiro grau, seja um desembargador ou ministro de tribunais — estes, normalmente, na qualidade de relator, de presidente ou vice-presidente, quanto aos atos de sua competência. Trata-se, portanto, o acórdão, de uma representação, resumida, da conclusão a que chegou o órgão colegiado, não abrangendo toda a extensão e discussão em que se pautou o julgado, mas tão-somente os principais pontos da discussão.”(Wikepédia)
E essa é a maneira mais racional de decidir porque várias ‘mentes’ pensando juntas possibilitam uma análise mais detalhada dos fatos e das suas consequências, o que não transforma o acórdão em algo infalível. Como assevera Kellogg ao estudar o Falibilismo jurídico:
“Existe por aí, pelo menos entre não profissionais, uma presunção comum de que o direito opera por autorização de instituições soberanas e, portanto, que a afirmação ou regra geral pode ser criada de forma firme, não revisável e clara na aplicação. Mas o grau e complexidade da litigância, e o problema perene de resolver conflitos entre regras e leis discrepantes, sem mencionar constituições enfraquece essa presunção. Um exame detido dos casos sugere que a interpretação de uma lei e a linguagem constitucional, constantemente aplicados a novas e imprevistas circunstâncias, ocorrem em uma base revisional de caso a caso que pode igualmente ser compreendida como falibilista”.(KELLOGG,2019, p.217).
Foi nesse sentido que acreditava Peirce, pois para afastar a dúvida era necessário passar por raciocínio investigativo em que a comunidade de intérpretes chegasse a um consenso. Esse consenso não é sinônimo de verdade, uma vez que Peirce, por defender a inexistência de ‘certeza absoluta’, pregava que a verdade é um ideal regulatório (metafísica), sendo inalcançável. Já para Dewey, a verdade era aquilo que pudesse ser cognoscível pela mente humana, ou seja, eram as coisas conhecidas pelo homem e o Falibilismo era a restrição de todo esse conhecimento. É relevante destacar o trecho em que Margolis diferencia o Falibilismo entre Peirce e John Dewey:“ Para Peirce significa o perpétuo adiamento da investigação, jamais alcançando ‘a verdade sobre a realidade’...Para Dewey, significa a restrição de todas as reivindicações cognitivas inerentes a um mundo profundamente fluido por meio de habilidades práticas[...]”(KELLOGG,2019, p.217)
Assim, podemos concluir que o Colegiado (comunidade de intérpretes) tem como principal fim atingir o consenso como meio possível de resolver a lide, porém esse consenso se limitava aquilo que fosse cognoscível naquele momento e naquelas circunstâncias. Desse modo, o voto de desempate no Carf deveria ser substituído pelo consenso entre seus julgadores em respeito ao Estado democrático de Direito que defende a escolha da maioria. Se o consenso já é limitado, pois o falibilismo é inerente ao ser humano, maior limitação possui a crença (voto) do presidente desse órgão. Assim, o voto, chamado de qualidade e usado como critério político, faz prevalecer a autoridade do presidente do órgão recursal administrativo, que representa a Fazenda Nacional, sob a vontade majoritária e democrática da sociedade, sendo um instituto contraditório com toda a linguagem constitucional brasileira.
6. Constitucionalidade do art. 28 da Lei 13.988/2020
O fim do voto de “qualidade” do Carf com previsão no art. 28 da Lei de Transação tributária foi coerente com o ordenamento constitucional tributário, uma vez que diante de uma dúvida sobre a legitimidade dos atos da Fazenda Pública, como o lançamento, nenhum contribuinte poderá ser penalizado.
Tal voto possuía previsão normativa no artigo 25, §9º do Decreto 70.235/1972 e no artigo 54 do seu Regimento Interno prescrevendo que nos casos de empate terão voto de qualidade o Presidente das Turmas da Câmara Superior de Recursos Fiscais que será representante da Fazenda Nacional.Com isso, podemos observar que esse dispositivo contraria o princípio da isonomia entre as partes do processo e do juiz natural, deixando de corresponder com a paridade processual e a realidade. Uma vez que, além do presidente ser representante da Fazenda Nacional, termina votando duas vezes na mesma causa. Aqui fica claro que a figura do julgador se confunde com o polo de uma das partes em litígio, pois todas as causas processadas no Carf possuem como parte a Fazenda Nacional.
Esse dispositivo foi introduzido pela lei ordinária 11.941/2009 que possui presunção de validade, ensejando assim, a sua coercibilidade como resultado do interpretante energético. Essa norma vinha incidindo e gerando efeitos até perder sua validade, pois veio outra norma que a retirou do sistema – o art. 28 da Lei de Transação. E atualmente, segue no STF três ações de inconstitucionalidade (ADI 6.415, ADI 6.399 e ADI 6.403) em relação ao fim do voto de qualidade, porém esse dispositivo que prevê a extinção do voto “desqualificado” do Carf é válido e constitucional até que a Suprema Corte declare o contrário. Assim, divergindo de Pontes de Miranda, o professor Paulo de Barros assevera que:
“ Há certa confusão na doutrina jurídica entre “critérios de validade” da norma (requisitos de pertencialidade) e seu “fundamento de validade” (fundamentação jurídica), principalmente entre aqueles que trabalham a validade como sinônimo de existência.[...] uma coisa é a validade da norma jurídica e outra a adequação de sua fundamentação jurídica às normas que disciplinam sua produção. Uma norma pode pertencer ao sistema jurídico sem, no entanto, estar de acordo com as regras que disciplinam sua produção ou a sua materialidade. A validade é aferida com a relação de pertencialidade da norma para com o sistema e não com sua adequação às demais normas existentes neste sistema. Tal averiguação é feita num momento posterior, pressupõe a sua validade e permite-nos dizer se a norma permanecerá, ou não, no sistema.(CARVALHO,2019,p.746)
Não há razão para a declaração da inconstitucionalidade formal por “contrabando legislativo”, uma vez que o fim do voto de qualidade ter sido apresentado na Lei de Transação não perde a sua pertinência temática, pois tanto a transação quanto o art. 28 de tal norma prevê formas de solução de litígio. Além disso, a emissão dessa norma corrobora com os direitos fundamentais dos contribuintes e do devido processo legal que proíbem um “julgador” votar duas vezes como forma de desempate diante de uma incerteza. O direito tributário assim como o direito penal carregam o princípio da tipicidade como característica inerente, desse modo, diante de uma dúvida tanto o réu quanto o contribuinte merecem uma interpretação favorável – in dubio pro contribuinte.
7.Conclusão
Olhar o direito sob a perspectiva do pragmatismo nos possibilita fazer uma análise da forma como legisladores, juízes, advogados e promotores se comportam seja na maneira de interpretar o direito, seja na maneira de argumentar, e por fim, na forma de decidir. Devemos ter em mente que compreender o direito sob o viés do pragmaticismo é uma forma de mudar nossos hábitos de pensar e agir, pois os comandos da lei, não são capazes de por si só, resolver os anseios e necessidades da sociedade. O pragmatismo vai além do que está posto, nos fazendo desconfiar de qualquer certeza alimentada pelo sistema jurídico. Desse modo, toda e qualquer conveniência ou inconveniência nos tribunais deve ser resolvida de forma racional, rechaçando toda convicção ou critério político que venha a violar os mais caros diretos fundamentais estabelecidos na nossa Magna Carta, como a igualdade.
O chamado voto de qualidade admitido pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais desqualifica tudo o que é defendido pela Constituição Federal e o ordenamento jurídico. Pois, admitir que um julgador ( presidente do Carf e representante da Fazenda Nacional) vote duas vezes na mesma causa e sem a devida motivação, é atribuir maior valoração ao individualismo em detrimento da sociedade .E defender a constitucionalidade do voto de qualidade comparando nossos tribunais administrativos com as principais cortes internacionais é uma forma de negar as particularidades internas dos nossos órgãos administrativos de decisão, já abordadas neste trabalho.
O surgimento do art. 28 da Lei de transação é uma norma infraconstitucional que está conforme a Magna Carta, permitindo não só o fim do voto de qualidade do Carf, como também, diante de um empate que representa uma dúvida deve-se o Conselho Administrativo decidir em benefício do contribuinte.
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Mestranda em Direito tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP , no programa de Direito que tem como linha de pesquisa: A efetividade do Direito Público e Limitações da Intervenção Estatal. Especialização em Direito tributário pelo IBET. Advogada. São Paulo.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BARBOSA, JÉSSYCA VERUCY RIBEIRO. Voto de qualidade do CARF: dúvidas x crenças Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 jul 2021, 04:55. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56971/voto-de-qualidade-do-carf-dvidas-x-crenas. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Roberto Rodrigues de Morais
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