RESUMO: O presente trabalho tem o objetivo de refletir sobre os danos sofridos pelos encarcerados nos presídios brasileiros. Em tempos de flagrante desrespeito aos direitos sociais e da submissão das liberdades individuais a interesses econômicos, políticos e ideológicos desagregadores, determinados grupos de indivíduos são ainda mais lesados, sofrendo restrições de direitos básicos. Vivendo à margem dos auspícios que deveriam ser estendidos a todos aqueles que vivem numa sociedade dita democrática de direito, os presidiários padecem por conta da execração social a qual são submetidos, imersos na violência diária vivenciada dentro dos equipamentos estatais onde deveriam pagar suas penas e serem incentivados à recuperação das condutas individuais. Todavia, a população carcerária nacional, em sua substancial maioria, é tratada de forma totalmente apartada do que se considera ético, adequado e humano. Em relação a este grupo, por parte do Estado, o respeito aos preceitos constitucionais e à Lei de Execuções Penais parece não ter necessidade nem validade. Este trabalho trata-se de uma revisão bibliográfica, valendo-se das contribuições de importantes autores sobre o tema, que embasaram esta produção.
Palavras-Chave: Responsabilidade do Estado; Detento; Direitos Humanos.
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo busca discutir uma importante e mais que pertinente problemática da atual sociedade brasileira - a responsabilidade do Estado pelos danos ocorridos no interior dos presídios brasileiros. Tal questão tem se apresentado como um dos pontos nevrálgicos da latente crise de governabilidade e política presente na administração brasileira, em suas diferentes esferas. Regularmente, pululam notícias de crises no sistema penitenciário nacional: corrupção, incapacidade estrutural, falta de equipamentos necessários ao eficiente funcionamento das prisões e o desrespeito ilimitado aos Direitos Humanos, culminando em toda a sorte de violências e privações físicas e psicológicas, dos mais diversos tipos, prejudicando, sobremaneira, indivíduos que já vivenciam uma das piores situações que pode se abater sobre a vida humana – a privação da liberdade.
Em meio a tantas questões urgentes que atualmente permeiam a vida do brasileiro, sobretudo, a corrupção desenfreada, alguns problemas, igualmente importantes, são negligenciados, provocando a complicação de situações que não são enfrentadas a contento. No Brasil, rolar os problemas ad infinitum tem sido uma constante desde os primeiros anos da colonização dessas terras. No entanto, há momentos em que o problema toma proporções incontornáveis e ameaça provocar um verdadeiro caos social. Este é o quadro que tem acompanhado a rotina do sistema penitenciário do Brasil. Os problemas não enfrentados têm se avolumado e ficado cada dia mais complexos. Some-se aos que foram descritos anteriormente o domínio do sistema por parte de facções criminosas com envergadura nacional. Atualmente, os diretores de presídios e até mesmo os secretários estaduais de segurança têm que solicitar anuência de líderes de facções para a tomada de decisões, o que apresenta o descrédito e a falência de um sistema que deveria funcionar como reabilitador de indivíduos que estão à margem da sociedade e, portanto, deveriam ter no sistema prisional uma porta de saída da marginalidade e, ao mesmo tempo, de entrada na cidadania.
No entanto, o sistema carcerário nada mais é que um depósito humano. Um conjunto formado por centenas de prisões onde homens e mulheres estão submetidos a uma completa desorganização e negação de direitos. O conhecimento acerca da desestruturação do sistema prisional brasileiro é antigo e ultrapassou as fronteiras do país. Ele é reconhecido como uma esfera de convivência social precária, permeada por um complexo de situações que retiram dos indivíduos sua condição intrínseca de seres humanos, na medida em que os compele a agir de modo violento e hostil, acordando sem a certeza de que no dia seguinte estarão novamente de pé. Cada dia na prisão consiste-se numa verdade batalha pela sobrevivência.
Nesse sistema, encontramos: celas sujas, fétidas e quentes que, na maioria das vezes, comportam um número de pessoas muito superior ao adequado; a proliferação de doenças de pele, das sexualmente transmissíveis e das de caráter psicológico; a oferta de uma alimentação de péssima qualidade; a falta de atividades que desenvolvam nos presos o interesse em construir algo positivo ou ocupe-lhes a mente; um reduzido número de agentes estatais, os quais não são capazes de ofertar um serviço de qualidade; além dos jogos de interesses estabelecidos entre os diversos agentes destes espaços - entre eles, muitos servidores públicos, o que institui a batalha do mais forte contra o mais fraco; além das organizações criminosas que, hoje, são as reais detentoras do poder sobre o sistema carcerário brasileiro.
Este trabalho não trata-se de uma defesa da conduta marginal, apenas da exposição da necessidade urgente de que o arcabouço jurídico que normatiza o processo de prisão no país seja respeitado, especialmente, se levarmos em conta o Princípio da Dignidade Humana, presente no primeiro artigo da Constituição Federal de 1988. Não há mais como deixar que este panorama seja visto com naturalidade, não é natural. Já passou da hora de o Estado se responsabilizar pela gestão eficiente e efetiva do sistema prisional nacional, caso contrário, toda a sociedade padecerá, conjuntamente, por conta das consequências que poderão advir de uma ampliação da já caótica crise carcerária brasileira.
2. A RESPONSABILIDADE DO ESTADO E O SISTEMA DE GARANTIAS DO PRESO
O debate acerca da responsabilidade do Estado em relação ao desrespeito aos direitos coletivos e individuais, a cada dia, tem se aprofundado mais no Brasil. Tem tomado um grande contorno em virtude do desrespeito flagrante a direitos básicos como educação, saúde e segurança, e provocado cada vez mais a indignação social. A população tem passado a exigir cada vez mais os seus direitos, tendo a internet e as redes sociais como o mais importante instrumento de exposição de suas angústias e da organização social para a busca da efetivação de direitos.
No entanto, a problemática carcerária parece não sensibilizar a massa populacional, a qual só enxerga esse problema quando há conflagração de rebeliões nos presídios, que trazem consigo a destruição de estruturas e equipamentos dos espaços prisionais, fugas, muita violência e inúmeras mortes. A não adesão da população à luta pela resolução desse problema é algo sério. Já que não há demanda popular acerca desta deficiência, a gestão brasileira, representada, neste caso, pelas chefias dos executivos estaduais, não se sente no dever de desenvolver uma política prisional séria, organizada e que busque contemplar o que está normatizado no Art. 1º da Lei de Execução Penal de 1984: “ A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”.
Este panorama deve ser enfrentado pela gestão pública urgentemente, em parceria com o Legislativo e o Judiciário, na tentativa de propor uma completa remodelação desse sistema. Da forma que está posto, ele destoa completamente do que propõe a Constituição Federal de 1988, a Lei de Execução Penal de 1984 e até mesmo do Código Civil de 2002. A dignidade humana, o respeito aos direitos individuais e coletivos e a luta pela positivação da legislação constitucional e infraconstitucional devem ser a tônica das relações estabelecidas em uma sociedade que busca ser democrática de direito, seja nos plenários seja nas cadeias.
Segundo o art. 5º, inciso XLIX, da CF/88: “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”. O direito à preservação física e moral do preso advém dos direitos da personalidade. Apesar de muitos tratarem o detento como se não possuísse personalidade, como se fosse apenas um número. Segundo Atta (2016), o inciso há pouco mencionado trata-se de norma constitucional de aplicação imediata e cogente, estando vinculado ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da Constituição de 1988), à incolumidade do indivíduo (“ninguém será submetido à tortura ou tratamento desumano ou degradante”, art. 5º, III da Constituição de 1988) e à proibição ao Estado de qualquer forma de discriminação (art. 3º, IV da Constituição de 1988). Como também, a ocorrência da morte do preso é considerada um atentado ao “direito à vida”, que possui inviolabilidade constitucional assegurada no caput do art. 5º da CF.
Seguindo Di Pietro (2014), quando for constatada a conduta omissiva do Estado, deve-se aplicar a teoria da responsabilidade objetiva, prescrita no art. 37, § 6º, da CF/88. Ou seja, provado o prejuízo sofrido pelo indivíduo como também o nexo de causa e efeito com o ato comissivo ou com a omissão, há de se exigir reparação, posto que a conduta estatal deveria ser diametralmente oposta. A prestação de serviço público não realizada a contento não deve ser vista como algo insignificante, principalmente quando repercutir diretamente na vida e na liberdade do indivíduo. Há alguns anos, a academia já discute os direitos dos animais, portanto, não há como aceitar que após mais de duzentos anos da proclamação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão - documento culminante da Revolução Francesa, que definiu os direitos individuais e coletivos dos homens como universais - ainda estejamos batalhando que seja assegurado o direito à vida.
A partir de uma análise fria da situação, quanto à responsabilização, no que tange à Administração Pública, mais parece que a sociedade brasileira ainda vive sob a Teoria da Irresponsabilidade do Estado, predominante por muitos séculos. Segundo esta teoria, o Estado possuía isenção perante a coletividade, ou seja, não se admitia que o monarca ou o Estado fossem cobrados em caso de erro. Segundo esta linha de pensamento, o Estado atua para atender ao interesse coletivo e não pode ser responsabilizado por isso, mesmo que venha a cometer algum grave desvio. A soberania do Estado é um poder incontestável, portanto, impede que seja reconhecida a responsabilidade estatal perante um indivíduo, o que permitiu que os indivíduos, ao longo de centenas de anos, fossem submetidos a violações de todos os tipos (MEDAUAR, 2006).
Dentre as diversas violações cometidas nos presídios do país, na atualidade, certamente, a mais grave é a morte do detento enquanto custodiado pelo Estado. Neste caso, pode-se afirmar que na hipótese de crime comissivo cometido por agentes públicos contra o preso, a responsabilização será na modalidade objetiva, de acordo com a teoria do risco administrativo, fundamentada no artigo 37, §6º, da Constituição Federal. Segundo este artigo, o ente público responderá, independentemente de culpa, por atos praticados por seus agentes no desempenho de suas funções, já que exige-se destes conduta oposta. Já nos casos em que a morte do encarcerado seja provocada pela ação de terceiros, que não sejam agentes estatais, pode-se sustentar e exigir a responsabilização estatal subjetiva, posto que é decorrente da omissão do ente público em garantir a segurança e a incolumidade daqueles que tiveram sua liberdade de locomoção restringida por seu ius puniendi (MORENO MACHADO; DALLA PACCE, 2012).
Voltando a basear-se na análise da Lei de Execução Penal, Lei 7.210/1984, percebe-se que, há mais de 30 anos, um importante arcabouço legal foi criado, com o intuito de orientar o sistema de garantias do apenado. No entanto, há mais de 30 anos, as garantias continuam a ser desrespeitadas. Como é praxe em nossa nação, a Administração Pública, alheia-se de respeitar a produção legislativa, segue, impunemente, descumprindo e até mesmo infringindo seu papel, o qual deveria ser o de garantidor, mas que na realidade mais se apresenta como uma espécie de papel extrator (dos direitos e da vida).
A Lei de Execução Penal apresenta em seu art. 10º que: “ A assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade”, expressando, na forma de incisos, quais são os tipos de assistência a serem prestadas. São elas: material; à saúde; jurídica; educacional; social e religiosa. No entanto, o fato de estarem expressas na lei não tem sensibilizado a Administração Pública quanto à obrigatoriedade de sua execução. Tal situação deve provocar a indignação social, até mesmo porque qualquer indivíduo pode, um dia, vir a fazer parte da população carcerária nacional. Todos devem lutar, continuamente, para que os direitos de todos sejam respeitados. Assim se desenvolve a sociedade e se afinam as relações.
Quanto à responsabilização do Estado pelos danos ocorridos no interior dos presídios do país, no âmbito da Justiça Civil, podemos citar o art. 43 do Código Civil, que afirma que as pessoas jurídicas de direito público são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que, nessa qualidade, causem danos a terceiros.
Na mesma linha de interpretação, cabe citar, também do Código Civil, a importância dos artigos: 186 – que versa sobre a responsabilização civil nos casos de ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência; o 187 - ao referir-se ao titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes; e o 927 – ao determinar que aquele que, por ato ilícito causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Portanto, não há que se reclamar da falta de regulamentação acerca da responsabilização do Estado perante os danos ocorridos com os detentos no interior dos presídios. Basta exigir que a normatização seja respeitada.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conclui-se este trabalho reafirmando a importância dos diferentes agentes sociais exigirem do Estado sua responsabilidade diante dos flagrantes casos de desrespeito aos direitos dos detentos. Cabe ao Estado Brasileiro não apenas evitar a ocorrência de novos casos de violência, rebeliões e mortes, mas implantar uma política social voltada para a total reformulação do sistema prisional nacional. Este sistema encontra-se falido. Portanto, não está enfrentando os desafios aos quais se propõe. Não podemos mais deixar ampliar-se uma situação já tão crítica. A política de reformulação do sistema carcerário brasileiro precisa ser costurada a muitas mãos, ser bem pensada e planejada, contando com a experiência e o olhar de diferentes esferas sociais. Deve ser construída de forma horizontal e tendo como ponto de partida o respeito à normatização atual e a dignidade do ser humano, privado ou não de sua liberdade. Qualquer indivíduo pode cometer erros, e não por isso deve ser tratado como se não fosse um ser humano, detentor de personalidade e direitos.
REFERÊNCIAS
ATTA, Stéffane Fontinelle Takis. Responsabilidade civil do Estado pela tutela do preso. Brasília: IDP/EDB, 2016. 72f. Monografia (Especialização)-Instituto Brasiliense de Direito Público.
BRASIL. Código Civil, Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. 1a edição. Código Civil da República Federativa do Brasil.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO (Déclaration des Droits de l'Homme et du Citoyen). 26/08/1789, França.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 27. ed. São Paulo: Atlas, 2014.
MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno: 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 365.
MORENO MACHADO, Fernando; DALLA PACCE, Carolina. A responsabilidade civil do Estado pela morte de presidiários. Revista Digital de Direito Público, vol. 1, n. 1, 2012, p. 77 - 93. Disponível no URL: www.direitorp.usp.br/periodicos.
Licenciado em Letras pela Universidade Federal do Ceará, com Especialização em Gestão em Saúde pela UECE e Especialização em Gestão Escolar e Coordenação Pedagógica pela Faculdade Alfamérica. Graduando do Curso de Direito da Universidade Federal do Ceará.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GOMES, Deivid Pereira. Responsabilidade do Estado pelos danos ocorridos no interior dos presídios brasileiros Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 jul 2021, 04:20. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56979/responsabilidade-do-estado-pelos-danos-ocorridos-no-interior-dos-presdios-brasileiros. Acesso em: 23 dez 2024.
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