EVERSON SOTO SILVA BRUGNARA[1]
(orientador)
RESUMO: O presente trabalho objetiva analisar se o Poder Legislativo e o Judiciário, enquanto instrumentos de controle social exercem no momento da elaboração e aplicação das leis a seletividade penal, frente a uma extensa legislação penal que impossibilita a aplicação do poder sancionador do Estado operar diante de todos os atos puníveis. A partir de um estudo dos desdobramentos do racismo que estrutura a sociedade brasileira, bem como a instituição judiciária, e, como consequência a construção do estereótipo do negro como criminoso, tendo o racismo enquanto elemento constitutivo da lei penal e tornando a raça um fator determinante no momento da sua execução. Ademais, com a apreciação dos dados do sistema carcerário como mecanismo identificador de quais são as pessoas que compõem o resultado do processo de criminalização.
Palavras-Chave: Seletividade Penal. Racismo Institucional. Sistema Penal. Estigmatização.
ABSTRACT: This article aims to analyze whether the Legislative and Judiciary branches, as instruments of social control, exercise penal selectivity at the moment of elaboration and application of laws, in face of an extensive penal legislation that makes it impossible for the application of the State's sanctioning power to operate in face of all punishable acts, from a study of the unfolding’s of racism that structures Brazilian society, as well as the judiciary institution, and, as a consequence, the construction of the stereotype of the black as a criminal, having racism as a constitutive element of the penal law and making race a determining factor at the moment of its execution. Moreover, with the appreciation of data from the prison system as a mechanism to identify which people is the result of the criminalization process.
Keywords: Penal Selectivity. Institutional Racism. Penal System. Stigmatization.
SUMÁRIO: 1. Considerações iniciais. 2. As concepções do racismo e seus impactos na sociedade brasileira. 2.1 Breve histórico do racismo estruturante da sociedade brasileira. 3. A cifra oculta e a seletividade penal. 4. Análise de dados do sistema carcerário. 5. O estigma do negro criminoso. 6. Considerações finais.
O Direito Penal possui uma excessiva gama de fatos delituosos, o que torna a aplicação da lei penal, invariavelmente, impossibilitada de sancionar todos os atos enquadrados como fato típico, ilícito e culpável, logo, estrutura-se de modo a punir uns enquanto exime outros, pelo sistema de (in)justiça criminal.
Da análise dos encarcerados no Brasil, que hoje se classificam como a terceira maior população carcerária do mundo[2], nasce então, a partir dessa percepção, a necessidade de analisar quais são os indivíduos que compõem o sistema carcerário, para identificar similitudes diante desses sujeitos enquanto resultado do processo de criminalização.
Diante disso, o presente artigo se propõe a investigar se a raça é um dos parâmetros utilizados para selecionar os sujeitos passivos da sanção penal, enquanto fator determinante na aplicação da lei. Para alcançar o objetivo proposto optou-se por utilizar a metodologia descritiva e explicativa, quanto aos fins, já quanto aos meios é uma pesquisa documental e bibliográfica, do tipo qualitativa.
Assim, para o desenvolvimento da investigação, propõe-se descrever as concepções de racismo que estruturam a sociedade brasileira e apresentar seus impactos no Poder Judiciário, bem como, analisar como a atuação estatal perpetua o racismo. Busca-se ainda, verificar como o racismo da instituição judiciária se externaliza, ainda que não materializado na letra da lei, mas dentro dos parâmetros da legalidade, na tentativa de camuflá-lo como aparente aplicação da norma, corroborando na manutenção do encarceramento em massa, além de estabelecer o alvo do sistema penal pela racialização dos agentes criminalizados, a partir da construção do estigma do negro como criminoso.
Assim, após expostos a estruturação da presente investigação, passa-se a analisar os tópicos concernentes ao referencial teórico que a sustenta, seguidos das considerações finais e referências que auxiliaram na confecção deste artigo.
Para analisar os desdobramentos do racismo na sociedade brasileira e seus impactos no Poder Legislativo no momento da criação das leis e no Poder Judiciário para sua efetiva aplicação, faz-se necessário entender o que é o racismo e suas implicações sociais. À luz do conceito disposto no art. 2°, §2°, da Declaração sobre a Raça e Preconceitos Raciais da UNESCO (1978), compreende-se que o racismo:
Engloba as ideologias racistas, as atitudes fundadas nos preconceitos raciais, os comportamentos discriminatórios, as disposições estruturais e as práticas institucionalizadas que provocam a desigualdade racial, assim como a falsa idéia de que as relações discriminatórias entre grupos são moral e cientificamente justificáveis; manifesta-se por meio de disposições legislativas ou regulamentárias e práticas discriminatórias, assim como por meio de crenças e atos anti-sociais; cria obstáculos ao desenvolvimento de suas vítimas, perverte a quem o põe em prática, divide as nações em seu próprio seio, constitui um obstáculo para a cooperação internacional e cria tensões políticas entre os povos; é contrário aos princípios fundamentais ao direito internacional e, por conseguinte, perturba gravemente a paz e a segurança internacionais.
Do mesmo modo, Almeida (2019, p. 15 – 22) conceitua o racismo como sendo:
Uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes e inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial a qual pertence. [...] Sendo, uma manifestação normal de uma sociedade, e não um fenômeno patológico ou que expressa algum tipo de anormalidade. O racismo fornece o sentido, a lógica e a tecnologia para a reprodução de formas de desigualdade e violência que moldam a vida social contemporânea (2019, p. 15 – 22).
Dessa forma, o racismo não é uma manifestação inerente ao ser humano ou algum desvio psíquico ou moral, mas uma construção do meio em que ele vive, de modo a organizar a vida em sociedade e implantá-lo como normalidade nos cidadãos, subvertendo a realidade, e obstruindo as possibilidades de desenvolvimento de quem é atingido por ele, que, aliás, se reinventa ao longo do tempo sempre que há uma ameaça de abalo às estruturas político-sociais, objetivando sempre a manutenção do poder.
A definição de quem é considerado negro muda de acordo com cada sociedade. No Brasil, a marca determinante é o fator étnico e/ou racial. Ainda que exista uma variedade de nomenclaturas para designar o negro, como pardo, mulato, moreno, dentre outros eufemismos, sendo inclusive, sob a ótica etimológica muitos desses considerados pejorativos, não se trata apenas de um mero jogo de palavras, mas de uma estratégia do processo de embranquecimento da pele e da cultura negra. Contudo, é inegável que qualquer que seja a nomenclatura, no Brasil, qualquer pessoa compreende imediatamente que se trata de um “homem de cor”, como é chamado o descendente de africano escravizado, não importando a gradação da sua pele (NASCIMENTO, 2016).
Desse modo, o processo de embranquecimento do negro através da sutileza das palavras, é um modo de opressão imposta pelo racismo, tornando-os reféns, uma vez que, se declarar como negro é reafirmar a ocupação de um lugar de extrema violência, e não se enxergar como negro é estar sofrendo a violência do embranquecimento, não tendo um caminho pacífico, vez que este é o plano estratégico de apagamento da negritude.
Frente a essa realidade, negros de pele clara acabam por se identificar como brancos e os de pele retinta tendem a se descrever como mulatos, pardos ou qualquer outro escapismo do arsenal já mencionado. O que faz com que as classificações demográficas do Brasil criem uma subcultura dos que se denominam como pardos e, consequentemente, diminui a população autodeclarada negra, de modo que distorcem a realidade sob a análise social. Uma vez que o tom da pele pouco importa, sendo que os que se declararem pardo serão lidos como negros e serão alvos do racismo do mesmo modo, por isso, utiliza-se a junção de negros e pardos para analisar dados estatísticos da população negra brasileira (NASCIMENTO, 2016).
Ademais, a segregação imposta pelo racismo à população negra, ocasiona a estratificação social, enquanto um fenômeno intergeracional, afeto a vida das pessoas pertencentes ao grupo social, de modo que interfere e impede as chances de ascensão social, do reconhecimento material, obstruindo a trajetória de um cidadão negro brasileiro, organizando a sociedade em estratos diferentes a partir das desigualdades raciais e sociais (ALMEIDA, 2020).
De tal modo que, a vida do negro é marcada por um processo cíclico de manutenção das condições de subalternidade, no qual, se ele vive na favela, considerada como um espaço de precariedade e falta de elementos de subsistência, por falta de recursos financeiros para residir em áreas com melhores condições, por sua vez, a falta de dinheiro resulta da discriminação no emprego. Se a ausência de emprego se der por carência de preparo técnico e de instrução adequada, esta se deve a falta de recursos financeiros ou pela evasão escolar para trabalhar desde cedo para complementar a renda familiar. Logo, o negro é tolhido de todos os lados, prisioneiro desse ciclo vicioso, que o coloca numa posição afastada daqueles que têm acesso a uma vida digna, sendo quase que impossível, diante desse cenário, uma melhora na qualidade de vida (ALMEIDA, 2020).
Destarte, para entender os impactos do racismo na sociedade e consequentemente na aplicação da lei penal, deve-se considerar que a sociologia, a partir dos conceitos de instituição e estrutura, descreve diferentes fenômenos sociológicos, que representam dimensões específicas do racismo, com impactos político-sociais. Dessa forma, passa-se a analisar o racismo a partir das concepções apresentadas por Almeida (2020), a saber, individualista, institucional e estrutural.
Sob a ótica da concepção individualista, o racismo é compreendido como uma patologia ou anormalidade do sujeito, de modo a não existir uma sociedade racista, mas sim, indivíduos racistas, que agem isoladamente ou em grupo. Porém, enxergar o racismo de forma a limitá-lo a comportamentos, deixa de se considerar que as maiores perversidades provocadas pelo racismo se deram sob a proteção da lei, com apoio de líderes políticos, religiosos e os considerados “cidadãos de bem”, como o exemplo da escravidão, não devendo então, entender o racismo como simples desvio moral e ético (ALMEIDA, 2020).
Outrossim, a concepção institucional compreende o racismo como o resultado do funcionamento das instituições, uma vez que a sociedade se organiza a partir delas, operando em uma lógica de poder, atuando de modo direto ou indireto, para a segregação racial, impondo desvantagens ou privilégios com base na raça, uma vez que se articulam de modo a determinar os comportamentos da sociedade, orientando as ações sociais a fim de normalizá-las. E, frente a essa articulação busca-se a estabilidade social, no sentido de designar normas e padrões que orientarão a ação dos indivíduos, objetivando a manutenção do poder e a perpetuação do domínio da classe que o detém sobre as demais. (SCHUCMAN, 2015, p. 56, apud, ALMEIDA, 2020). Desse modo, Almeida (2020, p. 28) identifica que:
O domínio de homens brancos em instituições públicas – o legislativo, o judiciário, o ministério público, reitorias de universidades etc. – e instituições privadas – por exemplo, diretoria de empresas – depende, em primeiro lugar, da existência de regras e padrões que direta ou indiretamente dificultem a ascensão de negros e/ou mulheres, e, em segundo lugar, da inexistência de espaços em que se discuta a desigualdade racial e de gênero, naturalizando, assim, o domínio do grupo formado por homens brancos (ALMEIDA, 2020, p.28).
Dessa forma, enquanto as posições de poder são ocupadas em sua imensa maioria por homens brancos, essa hegemonia faz com que esse grupo institucionalize os seus interesses, impondo normas e modos de pensar que normalize o seu domínio, para assim se manterem no poder, obstruindo as possibilidades de ascensão dos negros. Logo, as instituições moldam o comportamento humano tanto do ponto de vista das decisões e objetivos de vida, como também dos sentimentos, construindo os desejos e as preferências.
Ademais, a classe dominante possui ferramentas de implementação do controle social e cultural, de modo aparentemente indireto, porém, igualmente eficaz, como as várias formas de comunicação em massa, a imprensa, o rádio, a televisão, estando todos esses mecanismos à sua disposição e são utilizados para dizimar o negro enquanto pessoa e cultura, para não somente normalizar o racismo, mas para que os negros careçam de sustentação de modo a não se enxergar pertencentes à sociedade (NASCIMENTO, 2016).
Assim, a desigualdade racial é uma característica da sociedade não apenas por causa da ação isolada de grupos ou de indivíduos racistas, mas fundamentalmente porque o poder é elemento constitutivo das relações sociais, e as instituições dispõem diretamente dele, utilizando de mecanismos organizacionais para impor seus interesses políticos e econômicos. Logo, diante de uma sociedade formada por cidadãos com interesses conflitantes, as instituições se aproveitam desses antagonismos para exercer controle e, em tese, a preservação da paz social, a partir da imposição do seu poder, como é o caso do Poder Judiciário (ALMEIDA, 2020).
Com isso, se os Poderes Legislativo[3] e Judiciário[4] são formados, em sua quase totalidade de homens brancos, consequentemente no exercício do poder de criação e aplicação das leis, ainda que diante da imparcialidade imposta pelo ordenamento jurídico aos que ocupam os cargos dessas instituições, o poder está concentrado nas mãos de apenas um grupo de pessoas, que irão aderir normas que normalize a sua supremacia, a partir do estabelecimento de parâmetros discriminatórios baseados na raça, que servem para manter a hegemonia do grupo racial no poder. Isso faz com que a cultura, os padrões estéticos e as práticas de poder de um determinado grupo tornem-se o horizonte civilizatório da sociedade, não causando estranhamento aos cidadãos a branquitude em massa que ocupa tais poderes.
Nesse diapasão, Silva Mello (1958, p. 22, apud, NASCIMENTO, 2016) aponta que: “Até os dias de hoje o negro tem sido julgado pelo branco, um juiz completamente tendencioso em seu próprio interesse, certamente mais que parcial e injusto, quando não flagrantemente criminoso.”.
Nesse sentido, além do controle social exercido pelas instituições a partir da ocupação do espaço de solucionadora dos conflitos que são inerentes à sociedade, os que não conseguem sanar, afetando-as, podem resultar em uma reforma que provocará alterações das regras e atuação de tais instituições. Logo, quando o grupo dominado começa a se rebelar, é necessário que o racismo seja externalizado de outra forma, ainda que para abrandá-los sejam necessárias medidas que ofereçam algumas vantagens, mas ínfimas a ponto de mudar a estrutura das instituições, ou seja, sempre que os preceitos que constituem a supremacia branca forem desafiados, a indiferença em relação às precárias condições de vida da população negra será substituída por uma posição ativa baseada no interesse próprio (ALMEIDA, 2020).
Todavia, essa constante reinvenção da externalização do racismo, pode ser entendida através do conceito do mito fundador, de Chauí (2001, p.6), enquanto “aquele que não cessa de encontrar novos meios para exprimir-se, novas linguagens, novos valores e ideias, de tal modo que, quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si mesmo.” Ou seja, o racismo é atemporal e acompanha os desenvolvimentos da sociedade e suas transformações históricas.
Por fim, a concepção estrutural compreende o racismo como elemento estruturante da sociedade, ou seja, o Brasil se construiu e se mantém tendo como base o racismo. Dessa forma, é possível falar de um racismo institucional, contudo não como algo criado pelas instituições, mas por elas reproduzido, o que significa que a imposição de regras e padrões racistas por parte destas é de alguma maneira vinculado à ordem social que ela visa resguardar. Assim como a instituição tem sua atuação condicionada a uma estrutura social previamente existente, o racismo que esta venha a expressar é também parte dessa mesma estrutura (ALMEIDA, 2020).
No entanto, as instituições são apenas a materialização de uma estrutura social ou de um modo de socialização que tem o racismo como um de seus componentes orgânicos, ou seja, as instituições são racistas porque a sociedade é racista. E, todo racismo é estrutural, ainda que se manifeste a partir das instituições ou atos isolados de indivíduos ou grupos de pessoas (ALMEIDA, 2020).
Ainda na concepção estrutural, o racismo é desdobrado em processo político e histórico. Político, porque enquanto um processo sistêmico de discriminação que estabelece os modos de se organizar a sociedade, para isso, depende do poder político, caso contrário seria inviável o impacto em grupos sociais inteiros, e o faz através do poder de polícia do Estado, pelo qual cria mecanismos para reprimir e condicionar o comportamento humano, a ponto de que o racismo integre as práticas do dia-a-dia, porém é fundamental ter as instituições como parte integrante dessa sistemática, pois elas agem sem a utilização aparente do uso da força, o que fornece uma inserção maior na sociedade (ALMEIDA, 2020). Como explica D’élia Filho (2007, online):
O controle social nem sempre é exercido pela via punitiva, uma vez que a família, a escola, a medicina, a religião, os meios de comunicação de massa, por exemplo, definem padrões de comportamento, induzindo condutas sem serem percebidos como instituições de controle.
De tal modo que o racismo enquanto processo histórico se coaduna com as peculiaridades da formação de cada sociedade, sendo que os aspectos econômicos, políticos e jurídicos são apreendidos e constituídos a partir da trajetória histórica da sociedade. E as características biológicas e culturais de um povo, só são significantes a depender das circunstâncias históricas, por isso que a raça é entendida, e seus impactos mudam, de acordo com cada sociedade. Assim, as classificações raciais tiveram papel importante para definir as hierarquias sociais, a legitimidade na condução do poder estatal e as estratégias econômicas de desenvolvimento, porque na formação do Brasil o racismo esteve presente desde a colonização, sendo construído a partir da exploração e das desigualdades raciais (ALMEIDA, 2020).
Dessa forma, é necessário entender todas as facetas do racismo para perceber que ele é mantido pelas instituições que se beneficiam com seu exercício, uma vez que comportamentos individuais e processos institucionais são derivados de uma sociedade, cujo racismo é regra e não exceção, porquanto estrutural.
A construção do Brasil, a partir da chegada dos portugueses no início da colonização, com o interesse na extração de recursos naturais utilizando-se da superexploração de mão de obra barata, institui a escravização de populações sequestradas do continente africano, sendo um dos fatores basilares mais importantes à época, vez que a sustentação da economia advinha da escravização (BORGES, 2020).
Dessa forma, a primeira mercadoria do colonialismo, com posterior desenvolvimento para o capitalismo, foi o corpo negro escravizado. Todavia, a escravização não operou apenas no contexto da opressão física, mas estruturou o funcionamento e a organização social e política do Brasil, de modo que, as relações sociais são perpassadas por essa hierarquização racial, se refazendo e se externalizando de outros modos nesse percurso histórico, permanecendo sempre latente nas relações sociais, mantido pelas instituições e pela estrutura do Estado (BORGES, 2020).
Nesse prisma, durante o período de escravização havia partes do Brasil em que a população de escravizados era a maioria em relação aos considerados livres, e, devido às jornadas exaustivas de trabalho e superexploração, ocasionava mortes prematuras, fazendo com que o sequestro fosse constante, de tal modo que até a proibição do tráfico transatlântico, estima-se que houve o sequestro de cinco milhões de africanos (SCHWARCZ e STARLING, 2018).
Com isso, o país se estruturava e se constituía diante desse cenário de racismo, hierarquização racial e exploração, contudo, com o passar do tempo, a partir de fortes pressões da Inglaterra pelo fim do tráfico negreiro no Brasil, e para se evitar uma guerra entre os países, foi decretada a Lei Eusébio de Queirós[5], proibindo o tráfico de escravos.
Durante os anos seguintes, os países foram abolindo a escravidão, de modo que o Brasil caminhava para ser o único país escravista das Américas. E, com a péssima repercussão internacional e revoltas de escravizados, surgem defensores pró-abolição. A partir disso, foi aprovada a Lei do Ventre Livre[6], segundo a qual os filhos das mulheres escravizadas ficariam até os oito, ou facultativamente até os vinte e um anos, sob os cuidados do senhor de sua mãe, com posterior liberdade. Por fim, com o movimento abolicionista crescendo e várias revoltas acontecendo por todo país, e com muita luta dos negros, não tendo outra saída, a Princesa Isabel, assina a Lei Áurea[7] que “extinguiu” a escravidão no Brasil, independente de qualquer indenização, após três séculos de sua execução (ALONSO, 2018).
Consequentemente, a população negra no Brasil, antes escravizada, vivia nas senzalas ou casas dos seus senhores, se alimentavam do permitido, em sua maioria fruto do seu próprio trabalho nas plantações, não tendo outra realidade conhecida senão a escravidão.
Com a Lei Áurea, apesar de terem se tornados “livres”, a abolição representou o fim da possibilidade jurídica de exploração e objetificação do corpo negro, porém o Estado não se preocupou em criar políticas públicas que assegurassem os direitos destas pessoas, e, diante da não emancipação dos negros agora livres, por carecer de assistência do Estado, ficaram à mercê da sorte, vivendo às margens de uma sociedade racista, na tentativa de entender-se como sujeito no mundo, algo que foi perversamente negado no sistema escravista (BORGES, 2020).
Vale ressaltar que o Estado, além de não garantir a incorporação dos negros ora escravizados como cidadãos pertencentes à sociedade, ainda discutiu a possibilidade de indenizar os antigos donos de escravos, por considerar existir prejuízo com a perda da sua propriedade, não havendo, contudo, a preocupação em garantir os direitos básicos à subsistência no momento de inserção dos negros no corpo social (ALMEIDA, 2016).
Assim, a crença na inferioridade racial do negro não evaporou com o advento da abolição da escravidão, o preconceito continuava crescente e os estigmas permaneceram. Após a saída das fazendas nas quais foram cativos, muitos negros vagaram pelas estradas e, na busca de melhores condições de vida, instalavam-se nos morros que não havia interesse pela burguesia em habitar, dando origem às primeiras favelas e vivendo de pequenos e esporádicos trabalhos, normalmente braçais. Costa (1998, p. 476, apud, ALMEIDA, 2016) salienta que “o negro, marcado pela herança da escravidão, não estando preparado para concorrer no mercado de trabalho e tendo de enfrentar toda sorte de preconceitos, permaneceu marginalizado.”.
Com isso, além do desamparo estatal ao qual os negros estavam sujeitos, o Estado cria ou intensifica os crimes, pelos quais dificultam qualquer tentativa da população negra de se sobrepujar dessa nova exclusão, condenando as vítimas dos fatos sociais ao cárcere e à permanência na marginalidade.
Posto isso, dois anos após a abolição da escravidão, em 1890, surge o segundo código penal do país[8], que mantém a tipificação penal da vadiagem, antes condenada de oito a vinte e quatro dias, agora, passa-se a punir com prisão de quinze a trinta dias, e, se reincidente, nesse caso, por não conseguir meios para garantir a sua subsistência, seria recolhido por um a três anos.
Além disso, acresceu a prática de capoeira, expressão cultural da população negra, considerando seu praticante como vadio, com punição de dois a seis meses, e se reincidente, pena de três anos. Houve também a criminalização da cultura afro-brasileira, pela extensão dada ao significado de vadiagem, como o samba, os batuques, as religiões, as reuniões musicais que passaram a ter que ser registradas nas delegacias e sofreram forte repressão. O que evidencia a criminalização como ferramenta de controle social do Estado e a perpetuação da dominação do negro, agora se utilizando do sistema criminal (ALBUQUERQUE, 2006, p. 247, apud, BORGES, 2020).
Segundo aponta Alexander (2010, p.7, apud, BORGES, 2020) "o sistema de justiça criminal torna-se, portanto, mais do que um espaço perpassado pelo racismo, mas ganha contornos de centralidade por ser uma readequação de um sistema racializado de controle social”, de tal modo que, interligar ociosidade e criminalidade fez com que os negros que não se submetessem à disciplina produtiva fossem lidos socialmente como suspeitos perfeitos.
Ante o exposto, o racismo estrutural que constitui a nação brasileira não desapareceu com a abolição, ainda que a escravidão deixasse de ser prática legalizada da sociedade civil, o sistema de justiça criminal é o aparato garantidor da manutenção do racismo, a partir da criminalização de condutas que em sua grande maioria, diante do contexto social, atingirá os corpos antes escravizados, de modo a substituir a senzala pelo cárcere, que é tão veemente na atualidade.
O Direito Penal é compreendido enquanto um conjunto de normas que qualifica certos comportamentos humanos considerados, pelo Poder Legislativo na propositura e aprovação da lei, como altamente reprováveis ou danosos ao organismo social, afetando bens jurídicos indispensáveis à vida humana, ou seja, como infrações penais lato sensu, definindo seus agentes e fixando as sanções a serem aplicadas aos infratores, como instrumento de controle social, pelo qual o Estado exerce seu poder punitivo (CUNHA, 2020).
No entanto, para se promover a pacificação social e resguardar a segurança pública, guardando todos os cidadãos que tiverem seus bens jurídicos relevantes afetados, de modo a restabelecer a ordem social abalada pela quebra do contrato social, o Direito Penal se afirma como sendo a ultima ratio na resolução desses conflitos, quando a criminalização se torna o único recurso para coibir tais práticas, substanciando o princípio da intervenção mínima do Estado. E age de forma igualitária, sancionando aquele que cometer ato ilícito, punível e culpável, subsumindo a ato sem qualquer distinção do seu agente, embasado na igualdade assegurada pelo art. 5° da Constituição Federal[9] (BITENCOURT, 2012).
No entanto, há críticas a essa igualdade na aplicação da lei penal, que aponta uma tratativa desigual no processo de criminalização, com base na estratificação social, onde a posição de criminoso não é preenchida simplesmente por um agente que pratica um fato delituoso, mas é levado em consideração fatores e características que influenciam no processo de seleção desse sujeito.
Nesse sentido, a criminologia crítica, idealizada por Baratta (2002), desloca o enfoque, até então dado pela criminologia às causas do desvio criminal e às características do criminoso, e se concentra nos mecanismos sociais e institucionais, através dos quais são criadas e aplicadas as definições de desvio e criminalidade, caracterizando o processo de criminalização, além de criticar o caráter desigual do direito penal e a seletividade estrutural sistêmica (BARATTA, 2002, p.160). Tendo, o autor determinado certas proposições que resumem a crítica:
a) O direito penal não defende todos e somente os bens essenciais, nos quais estão igualmente interessados todos os cidadãos, e quando pune as ofensas aos bens essenciais o faz com intensidade desigual e de modo fragmentário; b) A lei penal não é igual para todos, o status de criminoso é distribuído de modo desigual entre os indivíduos; c) O grau efetivo de tutela e distribuição do status de criminoso é independente da danosidade social das ações de da gravidade das infrações à lei, no sentido de que estas não constituem a variável principal da reação criminalizante e da sua intensidade (BARATTA, 2002, p.162).
Desta forma, a criminologia crítica se baseia na criação do que serão considerados desvios e na seleção dos indivíduos que serão atingidos por essas normas, com o intuito de demonstrar o controle social que os processos de criminalização produzem, através da imposição da sua repressão que recai diferentemente em determinados cidadãos.
Para entender como é o funcionamento do processo de criminalização, D'elia Filho (2007) a separa em três: a criminalização primária, exercida no momento da criação das leis, incriminando e permitindo a punição de certas pessoas. A criminalização secundária é o exercício da ação punitiva do Estado, desde a investigação policial até a execução da pena pelos agentes, como os policiais, promotores, juízes e os agentes penitenciários, que dão efetividade à lei criada ao caso concreto. Cominando na criminalização terciária, que é o estigma de criminoso que carrega o indivíduo que adentra o sistema carcerário.
Ainda que haja seletividade em todas as etapas, ela se manifesta mais fortemente na criminalização secundária, que é o momento efetivo de transumanar os delitos, logo, é perceptível que o sistema penal é completamente incapaz de processar e julgar todos os atos descritos como crime pela lei, assim, é impossível reprimir de forma igualitária todos os delitos e todos os infratores, e é compelido a agir seletivamente ou optar pela inatividade (D'ELIA FILHO, 2007).
Percebe-se então que, para a funcionalidade do sistema penal, é necessário que se exista a seletividade, sendo esta intrínseca ao processo de criminalização, uma vez que seria impossível para o Poder Judiciário conseguir funcionar aplicando a lei penal a todos os cidadãos que cometessem algum delito, logo, não há possibilidade de se pensar em um sistema penal não seletivo. Como exemplificado por Zaffaroni (2010, p. 26):
A disparidade entre o exercício de poder programado e a capacidade operatividade dos órgãos é abissal, mas se por uma circunstância inconcebível este poder fosse incrementado a ponto de chegar a corresponder a todo o exercício programado legislativamente, produzir-se-ia o indesejável efeito de se criminalizar várias vezes toda a população. Se todos os furtos, todos os adultérios, todos os abortos, todas as defraudações, todas as falsidades, todos os subornos, todas as lesões, todas as ameaças, etc. fossem concretamente criminalizados, praticamente não haveria habitantes que não fossem, por diversas vezes, criminalizados (ZAFFARONI, 2010, p. 26).
Contudo, diante dessa seleção e consequente aplicação, ou não, da sanção penal, Castro (1983) trabalha um conceito, onde a diferença entre a criminalidade real, aquela em que há a soma de todos os delitos ocorridos, a criminalidade aparente, que são os delitos que chegam às autoridades do controle social, ainda que não seja efetivamente registrada, seja por desistência da ação, por ainda não ter sentença ou por qualquer outro motivo legal que faz com que o processo não siga seu curso ordinário e a criminalidade legal, em que há o efetivo registro e há uma condenação, é a chamada “cifra oculta”[10].
Diante disso, extrai-se que os indivíduos encarcerados não representam a totalidade de pessoas que cometeram infrações penais, mas sim, os que foram selecionados pelo processo da criminalização, uma vez que diversos agentes cometem o mesmo fato e somente uma parcela destes irão ser sancionados e ter a cominação do direito penal ao seu caso concreto.
Por conseguinte, mesmo que a seletividade do sistema penal se dê de forma inerente ao seu funcionamento, fazendo como que a cifra oculta do crime seja uma realidade no processo de criminalização, buscam-se entender, então, quais são os critérios utilizados para determinar os alvos da coerção penal, haja vista que diante do mesmo fato sujeitos diferentes serão direcionados por caminhos que poderão levar ao encarceramento ou a liberdade e não responsabilização.
Primordialmente, o cárcere, conforme Foucault (2020, p.28), se sustenta não pela necessidade de se punir a criminalidade na tentativa de manter o controle social, mas em uma lógica em que, “se os castigos legais são feitos para sancionar as infrações, pode-se dizer que a definição das infrações e sua repressão são feitas em compensação para manter os mecanismos punitivos e suas funções.” Nesse sentido, o Estado cria a norma penal e sua sanção, de tal modo que age de forma premeditada e não repressiva. Nesse sentido, Borges (2019, p. 21 - 22) reconhece que:
Se esse sistema já operou explicitamente pela lógica da escravidão, passando pela vigilância e pelo controle territorial da população negra após a proclamação da República, pela criminalização da cultura e pelo apagamento da memória afrodescendente, percorrendo a aculturação e a assimilação pela mestiçagem e pela apropriação, pela negação do acesso à educação, ao saneamento, à saúde – questões que permanecem, inclusive –, hoje não temos um cenário de fim dessa engrenagem, mas de seu remodelamento (BORGES, p. 21 - 22).
Dessa maneira, o sistema de justiça criminal surge com uma disposição na qual cria o alvo que pretende reprimir, agindo de modo completamente diverso do garantidor da segurança, mas fomenta a insegurança para posterior intensificação da vigilância e repressão.
Ainda na época escravocrata, a partir de 1850, houve no Brasil um incentivo a imigração europeia sob o argumento de necessidade de mão de obra qualificada, o que ocasiona, com o fim da escravidão, a impossibilidade da população negra em ter ascensão enquanto classe trabalhadora. Com isso, mulheres negras acabaram como lavadeiras, cozinheiras e empregadas domésticas ainda sob contexto de superexploração. Aos homens negros sobravam, portanto, o enquadramento nas leis criminalizadoras, como a vadiagem, que deu abertura para indicar qualquer ação que ao entendimento de quem detinha o poder deveria punir, o que recaiu majoritariamente aos cidadãos negros sem ocupação em uma sociedade que fomentou a força de trabalho branca do exterior (BORGES, 2019).
O que fez com que a lógica da senzala se reproduzisse através do cárcere, subjugando o negro a uma realidade deplorável, submisso às vontades dos detentores do poder, perpetuando a falta de acesso a direitos, permanecendo às margens da sociedade.
Posto que, ser encarcerado significa ter uma série de direitos negados e adentrar em uma situação de profunda vulnerabilidade, logo, se não há interesse do Estado em assegurar os direitos básicos a uma vida digna ao negro brasileiro, para legitimar o descaso e a negação a esses direitos, utiliza-se da criminalização, para utilizar do amparo legal como justificador da marginalização, como afirma Borges (2019, p. 21) “a figura do criminoso abre espaço para todo tipo de discriminação e reprovação, com o respaldo social para isso”, que se dá pelo viés punitivista da sociedade, como também, do sentimento social em acreditar que, como analisa Foucault (2020, p.21) “a prisão não é bastante punitiva: em suma, os detentos têm menos fome, menos frio e menos privações que muitos pobres ou operários”.
Dessa forma, se alguém comete um crime pode receber sanções pela quebra das normas estabelecidas pelo ordenamento jurídico, contudo, os sistemas punitivos não se fixam apenas no campo jurídico, pois têm papel importante no ordenamento social, sendo que as instituições fomentam, na sociedade estruturalmente racista, uma crença no cárcere enquanto justiça o que faz com que, com amparo social, manter o negro em uma realidade de submissão, porém, agora não mais se justifica por ser uma raça inferior como na escravidão, agora o racismo utiliza-se da criminalização.
E os sistemas punitivos têm, em sua constituição, uma ideologia hegemônica ligada à sustentação de determinados grupos sociais em detrimento de outros, o que pode ser analisado diante dos dados do sistema carcerário.
Diante da já mencionada seletividade penal, analisar os dados do sistema carcerário brasileiro é compreender quais são os alvos de coerção do sistema penal. Atualmente o Brasil é a terceira maior população carcerária do mundo, com 759.518 presos, com um déficit de 231.768 detentos além da capacidade suportada nos presídios, de acordo com os dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, além de que, 228.976 (30,14%) dos encarcerados estão presos provisoriamente, e, ainda que essa instituição tenha um caráter excepcional, acaba por ser responsável legal por quase um terço dos presidiários, ou seja, ainda que sem condenação é muito difícil escapar da prisão, sendo explícita sua utilização enquanto atalho do poder punitivo.
Além disso, 41,91% dos presos possuem entre 18 e 29 anos de idade, e, no que concerne ao grau de escolaridade, 51,35% não possuem o ensino fundamental completo, tendo, 14,98% o ensino médio incompleto, sendo, somente 9,65% com ensino médio completo, além dos 3,45% que são analfabetos. O percentual de presos que possuem ensino superior completo é de apenas 0,5%.
No que diz respeito aos tipos de delitos com maior incidência, os crimes contra o patrimônio lideram com 38,65% dos casos, seguido por 32,39% presos pelo crime de drogas, este, se analisado somente com os crimes hediondos sobe para a marca de 54,01% dos casos. E, no que concerne ao tempo de pena, analisados 333.107 mil detentos, 182.699 mil têm o tempo de pena entre 4 a 15 anos de privação de liberdade.
Ademais, em uma análise feita com 599.932 (79,06%) presos, 66,31% são negros, e, mesmo que se utilizando uma pesquisa com maior número de encarcerados, feita no ano de 2019 nos períodos de julho e dezembro, que teve como base 87,84% dos presos, não há diferença do percentual de negros, que se firma em 66,69%.
Em análise dos acusados em varas criminais, 57,6% são negros, enquanto que em juizados especiais que analisam casos menos graves esse número se inverte, tendo uma maioria branca (52,6%). Essa diferença ocorre porque a determinação de qual vara que tramitará o processo depende do tipo de pena pedida, decisão do promotor de Justiça. Nas varas criminais, a prisão é praticamente inevitável, diferente dos juizados que encaminham mais penas alternativas. Desse modo, há evidente desproporção no peso da definição das penas entre brancos e negros que cometeram um mesmo crime (BORGES, 2019).
Esta análise aponta para a juventude negra, com baixa escolaridade, como o alvo do sistema penal, além de que, esse mesmo sistema se preocupa mais com os bens patrimoniais e em se utilizar da brecha dada pela Lei de Drogas[11] que não estabelece o quantum de substância ilícita é necessária para se configurar como tráfico ou uso de drogas, além de dispor da prisão provisória como a inversão do princípio da não culpabilidade, para que, os jovens negros aguardem até que a inocência deles seja provada.
E em relação à situação econômica da população carcerária, não existem dados oficiais, mas, segundo Tanferri e Giacoia (2019, p.514), “sabe-se que não se foge do perfil da estigmatização apresentado”. Nesse sentido, além de seletivo, percebe-se um aumento extraordinário da população carcerária, que dos anos 2000 e 2019, conforme o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em apenas 19 anos houve 522.519 pessoas encarceradas, o que dá cerca de 76,3 pessoas por dia, mostrando um forte interesse no exercício do poder de controle estatal através do cárcere.
Desta feita, pode-se estabelecer que os corpos historicamente perpassados pelo controle e pela punição, devido ao passado escravocrata brasileiro, permanecem sendo vítima desse mesmo sistema, que tenta de todas as maneiras, agir sobre o respaldo legal, na manutenção do encarceramento em massa.
Em um país em que a grande maioria da população carcerária é composta por pessoas negras, em sua maior parte jovem e de periferia, faz-se necessário entender como o estigma de criminoso recai potencialmente aos negros. Segundo Rondon Filho (2013) que conceitua o estigma como sendo:
Uma designação social que vai além do atributo pessoal e que gera um descrédito ao estigmatizado, interferindo na identidade social desse sujeito quando em interação social. É através do estigma que se designa a normalidade do outro pela depreciação do estigmatizado (RONDON FILHO, 2013, p. 271).
Dessa maneira, para compreender o que ocasiona ao negro o estigma de criminoso, é necessário observar que a escravidão no Brasil é o alicerce responsável pela convicção social da inferioridade dos negros e na propensão destes ao cometimento de crimes, haja vista que, pessoas negras eram tratadas como objetos, e quando não submissas às vontades do seu dono, eram tidas como delinquentes sujeitos a sanção corpórea pelo seu senhor, que pode ser compreendido pela análise de Foucault (2020, p.29) que afirma que “o corpo só se torna útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso.”. Assim, com o fim da escravidão resta ao Estado o poder sancionador, através do encarceramento, que recai sobre negros, em sua imensa maioria, a partir do estigma de criminoso que carrega os descendentes de africanos no Brasil.
Assim, além do estigma herdado pela escravidão, com uma análise pura dos dados estatísticos do cárcere, chega-se a conclusão de que se há maioria de jovens, negros, periféricos na prisão, logo, é porque são estes que cometem mais crimes, sendo assim, são eles os criminosos no Brasil, o que, aliás, é reforçado pelos canais midiáticos, que acompanham perseguições policiais na busca desses jovens negros nas favelas de forma sensacionalista, e é assistido pela população como resultado da luta contra a criminalidade. Contudo, D’élia Filho (2007, online) compreende que “os registros estatísticos revelam com maior precisão a atividade da polícia judiciária do que a realidade criminal.”.
Ademais, a sociedade é fomentada pelo medo, de modo que o Estado, corroborando e aplicando discursos e políticas que façam com que a sociedade sinta medo e, através dele, acredite que o encarceramento é uma solução e, imbuída de medo incentiva a violência, como o discurso popular de que “bandido bom é bandido morto” e fomenta a adesão às prisões. Assim, o sistema prisional acaba por representar para grande parcela da população segurança, como também a punição aos sujeitos que cometeram condutas socialmente reprováveis, diminuindo dessa forma a criminalidade, e, consequentemente o medo (BORGES, 2019). Segundo o paralelo traçado por Borges (2019) entre o período colonial e o pós-abolição:
Se, por um lado, para a instituição do colonialismo foi utilizada uma filosofia religiosa para a superexploração de corpos negros, por outro, é o estereótipo formulado no período pós-abolicionista que seguirá perpetuando uma lógica de exclusão e consequente extermínio da população negra brasileira. Esse poder sobre corpos negros é exercido em diversas esferas. Seja na total ausência de políticas cidadãs e de direitos, como falta de saneamento básico, saúde integral e empregos dignos; seja pelo caráter simbólico de representação do negro na sociedade como violento, lascivo e agressivo, alimentando medo e desconfiança e culminando em mortes simbólicas, pela aculturação, pela assimilação e pelo epistemicídio, até as mortes físicas, que se estabelecem por violência, torturas, encarceramento e mortes (BORGES, 2019, p.41)
Nesse sentido, o processo de estigmatização é praticado principalmente pelos próprios agentes de controle social ostensivo, no momento em que selecionam os suspeitos, embasados nas suas características físicas e o lugar em que se encontram, uma vez que a seleção é discriminatória e ocorre com base no perfil de criminoso culturalmente construído, sendo em sua maioria pobre, negro e morador da periferia. Assim, D’élia Filho (2007, online) afirma que “o sistema penal é constituído na sua maioria de negros e pobres não porque tenham uma maior tendência para delinquir, mas sim por terem maiores chances de serem criminalizados.”. Assim, mesmo com o encarceramento em massa, diante da não redução da criminalidade, a sensação de insegurança faz com que o medo se intensifique e a sociedade deseje penas cada vez mais severas, para que efetivamente alcance a sua segurança (ALMEIDA, 2016).
Desse modo, com a operação seletiva do sistema penal, os policiais tendem a perceber como suspeitos os indivíduos das camadas mais pobres e negras, como as periferias, priorizando a vigilância nesses espaços. Contudo, a consequência disso é a menor vigilância das camadas mais privilegiadas economicamente e brancas, consolidando uma estratégia de policiamento baseada no racismo institucional (SINHORETTO, 2014, p. 132). Conforme aponta D'elia Filho (2007):
As classes média e alta tendem a passar a maior parte do tempo em locais fechados; os indivíduos marginalizados vivem a céu aberto. Compreende-se, por isso mesmo, haver muito mais probabilidade de serem os delitos dos miseráveis vistos pela polícia do que os perpetrados pela gente de posição social mais elevada. Como consequência, idênticos comportamentos, dependendo do estrato a que pertence o sujeito, mostrarão variações quanto a gerar o reconhecimento de serem criminosos (D´ÉLIA FILHO, 2007, online).
Assim, na fase de investigação, ao sujeito acusado como suspeito da prática de um crime, é automaticamente classificado socialmente como criminoso, principalmente pelo auxílio midiático. Posteriormente, no curso do processo, se houver condenação, não sobra mais possibilidade de desfazer o estereótipo adquirido, sendo um caminho sem volta, pois o sujeito que adentra no sistema prisional, mesmo que cumpra a totalidade da pena, que em teoria é o encargo pelo cometimento do crime, adjetivos como “criminoso”, “marginal”, “prisioneiro”, “egresso”, jamais o abandonarão, uma vez que socialmente a culpa é indissociável, tornando o sujeito para sempre ex-presidiário (TANFERRI e GIACOIA, 2019).
Dessa maneira, o negro brasileiro é marcado pelo estigma de criminoso que advém da sequela histórica deixada pela escravidão, com o desamparo e descaso do Estado em propiciar uma vida digna e inserir essas pessoas na sociedade. Daqui surge inclusive a crítica ao caráter ressocializador do cárcere, visto que os negros no Brasil nunca sequer foram socializados. Além disso, a partir da mídia, principalmente os telejornais, dos dados do cárcere, ou a simples imagem dele, e de toda uma sociedade punitivista, alimentada pela política do medo, cria-se o estigma do negro criminoso, mas agora, pautado na construção social, presumindo a condição de criminoso intrínseca a todo jovem, negro da periferia.
Dessa maneira, a aplicação efetiva da lei penal, na maior parte dos casos, apenas incide em face da estigmatização cultural do negro enquanto criminoso, que o leva a ser selecionado pelos agentes estatais como merecedor de sanção. Assim, os riscos de ser etiquetado como delinquente não depende tanto da prática de um delito como da posição do indivíduo na pirâmide social (MOLINA, 2013, p.135, apud, TANFERRI, GIACOIA, 2019). E, a seleção dos indivíduos da base do estrato social serve também, como forma de ocultação da criminalidade daqueles que detêm o poder, uma vez que a sociedade se distrai com a criminalidade em massa da população negra e pobre (RODRIGUES, 2003, p.123, apud TANFERRI, GIACOIA, 2019).
Posto isso, percebe-se que os próprios cidadãos, sob a influência de fatores históricos, culturais, econômicos e até mesmo midiáticos, acabam por sustentar a imagem racista constituída de negro criminoso, que invariavelmente coincide com aquela buscada pelos agentes de controle social.
Nota-se, portanto, um movimento cíclico em que a sociedade constrói o padrão a ser perseguido, e o Estado atua sob a influência desse padrão, de modo que os estigmatizados são selecionados como alvo de coerção do sistema penal, substanciando o estigma fornecido socialmente, perpetuando o rótulo de criminoso (TANFERRI, GIACOIA, 2019).
Nesse sentido, não são os índices que determinam a política do encarceramento, mas a política que determina os índices. Assim, os dados estatísticos revelam com maior precisão o direcionamento da atividade da polícia judiciária do que a realidade criminal, como afirma Castro (1982, p.66) "uma multiplicação de delitos nas estatísticas pode significar somente uma multiplicação de esforços por parte da polícia e maior eficiência dos tribunais e não que a delinquência tenha aumentado" (D'ELIA FILHO, 2007).
Por fim, para que a seletividade penal continue por optar pelos negros, para que os juízes continuem sendo severos quando o sujeito do processo criminal é negro, para que o cárcere continue existindo em superlotação e na insalubridade e, para que a sociedade veja tudo isso e permaneça fomentando por sua continuidade, é necessária a manutenção do estigma do negro criminoso.
Diante das exposições feitas, pode-se assim conceber que o Direito Penal, ainda que teoricamente seja igualitário, para a sua efetiva aplicação se faz necessário a existência da seletividade penal, e, através do racismo que substancia o Poder Judiciário, faz com que os alvos de coerção do sistema penal sejam os jovens negros, pobres e da periferia.
Foi possível constatar também, que por ser o Brasil, estruturalmente racista, o que faz com que, as instituições também o sejam, é necessário perceber que a seletividade penal que ocasiona o encarceramento em massa da população negra, nada mais é do que a manutenção do poder do grupo dominante, que se utiliza das instituições para naturalizar o racismo na sociedade e inibir qualquer resistência a sua manutenção.
Coaduna com o raciocínio anteriormente exposto, que embora os dados do sistema carcerário não representem a realidade da criminalidade brasileira, mas, todavia, o foco da atuação da instituição criminal, enquanto um braço desse processo sistêmico de dominação.
Ainda foi factível perceber que tudo está engendrado no estigma do negro criminoso, fruto da herança escravocrata, como também, do projeto político-social hegemônico que faz com que as pessoas negras não consigam acesso a direitos historicamente negados, permanecendo sempre na posição de submisso, acessando apenas o que lhe é permitido e a mídia é fundamental para que insira naturalmente aos cidadãos a luta contra a criminalidade enquanto decisão fundamental para chegar à tão sonhada pacificação social e dizimar o medo que permeia a sociedade.
Por fim, foi possível constatar que o produto final de toda essa sistemática racista é a insistência no cárcere como justiça, o que é, diante da análise conjuntural, equivocado, uma vez que é a seletividade penal que direciona o foco para encarcerar jovens negros, então, é a raça que definirá quem será punido ou não, sendo que, o racismo é elemento constitutivo do direito penal e a sua aplicação tem a raça como determinante apenas como curso natural, vez que o racismo estrutural do Brasil, naturaliza a segregação racial, de modo a não causar estranhamento toda uma divisão de raças, que concede aos brancos cargos de poder e impunidade, e aos negros o cárcere e a marginalização.
A presente investigação apresenta limitações, como qualquer outra investigação no campo da ciência, assim para comprovar as conclusões aqui descritas sugerem-se novas pesquisas, dentro da mesma temática com abordagens qualitativas e quantitativas, ou mesmo a triangulação destas.
ALMEIDA, Mariana Amaro Theodoro de. Da Senzala ao Cárcere: O estigma racial e seus reflexos no tratamento jurídico penal. Dissertação (Mestrado em Direito). Centro Universitário Eurípides de Marília, Fundação de Ensino Eurípides Soares da Rocha, Marília, 2016.
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[1] Advogado. Especialista em Direito Público. Mestre em Administração pelo Centro Universitário Unihorizontes.
[2] De acordo com o banco de dados online World Prison Brief, em dezembro de 2019, o Brasil continha 755.274 presos, ficando atrás somente da China com 1.710.000 e dos Estados Unidos com 2.094.000.
[3] Segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral, nas eleições de 2020, dos eleitos, 55,59% eram brancos para 42,82% de negros, aqui compreendido a junção de negro e pardo. Já nas eleições de 2018 o percentual aumenta para 72,03% de brancos, para 27,74% de negros. Além da maioria branca, quando há eleição para ocupar cargos hierarquicamente superiores o número cresce expressivamente.
[4] Segundo o Censo do Poder Judiciário, realizado pelo Conselho Nacional de Justiça, dos 64% dos magistrados e 60% dos servidores que responderam ao censo de 2013, os indicadores mostram que nos anos de 2012 e 2013 o judiciário era composto por 70,9% de brancos. Sendo que desde 1972 o menor percentual foi 70,3% de brancos, quase que estável em 42 anos.
[9] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.
Graduando em Direito pelo Centro Universitário UNA Betim
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALMEIDA, Geovanni Elifas Gouveia de. Análise da seletividade penal: quem são os alvos de coerção do Sistema Judiciário? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 jul 2021, 04:46. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57038/anlise-da-seletividade-penal-quem-so-os-alvos-de-coero-do-sistema-judicirio. Acesso em: 23 dez 2024.
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