ANANIAS RIBEIRO DE OLIVEIRA JUNIOR[1]
(orientador)
RESUMO: O presente trabalho almeja analisar o instituto da imunidade tributária, especificamente aquela concedida aos templos de qualquer culto, como garantia constitucional do direito fundamental à liberdade de crença, e seu desfio de finalidade como ferramenta para a lavagem de dinheiro. Assim, será demonstrada a facilidade da abertura de igrejas no Brasil e a falta de controle quanto à contabilidade desses templos religiosos. Nesse contexto, evidencia a relação entre a imunidade dos templos religiosos e o crime de lavagem de dinheiro, que possibilita a integração à economia dos recursos de origem ilícita, com aparência de legalidade. Para alcançar a finalidade do projeto, adotou-se uma pesquisa cunho bibliográfico, exploratória e descritiva, fazendo uso de fontes doutrinárias, jurisprudenciais e legislativas; no que tange à abordagem, utilizou-se a qualitativa.
Palavras-chave: Tributo. Liberdade religiosa. Imunidade tributária religiosa. Templos de qualquer culto. Abuso de direito. Lavagem de dinheiro.
ABSTRACT: This paper aims to analyze the tax immunity doctrine, specifically that granted to temples of any denomination/religious group, as a constitutional guarantee of the FundamentalRight to Freedom of Belief, and its challenge as a tool for money laundering. Thus, the ease of opening churches in Brazil and the lack of control over the accounting of these religious temples will be demonstrated. In this context, it highlights the relationship between the immunity of religious temples and the crime of money laundering, which enables the integration of resources of illicit origin into the economy, with an appearance of legality. To achieve the project's purpose, a bibliographic, exploratory and descriptive research was adopted, making use of doctrinal, jurisprudential and legislative sources; regarding the approach, the qualitative was used.
Keywords: Tribute. Religious freedom. Religious tax immunity. Temples of any denomination/religious group. Abuse of rights. Money laudering.
Sumário: 1. Introdução – 2. O poder de tributar – 3. Imunidades tributárias – 3.1 Imunidade tributária religiosa – 4. Conceito jurídico de “templos” e “culto” – 5. Organizações religiosas – 6. Registro contábil das instituições religiosas – 7. O crime de lavagem de dinheiro – 8. Casos de lavagem de dinheiro em instituições religiosas – 9. Considerações finais – 10. Referências.
1. INTRODUÇÃO
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CF/88) assegura como direito fundamental a liberdade de crença e consciência[2] e, visando à proteção dessa garantia individual, concede imunidade tributária aos templos de qualquer culto[3], expressão subjetiva que complica a sua aplicação. Este trabalho tem como objetivo analisar o alcance da norma imunizante e o desvio de sua finalidade como instrumento do crime.
Inicialmente, conceitua “tributos”, transitando pelas imunidades tributárias, até tratar especificamente da imunidade conferida aos templos de qualquer culto e suas peculiaridades.
Apresenta o instituto da imunidade tributária sob o entendimento de diversos doutrinadores e a situa na CF/88. Discorre acerca da definição de “templo de qualquer culto”, desmantelando essa expressão através da doutrina e da jurisprudência, o que se faz necessário para estabelecer a extensão do alcance da norma. Elucida a previsão do instituto na CF/88 e que a imunidade dos templos atinge apenas a espécie tributária do imposto.
Ainda, discorre que as entidades religiosas não podem se afastar de suas finalidades essenciais e não devem exprimir cunho econômico nem causar prejuízo à livre concorrência, sob o risco de perder a imunidade. Colaciona jurisprudências da Suprema Corte – Supremo Tribunal Federal (STF) –, apresentando decisões importantes sobre o assunto ao tratar sobre a equiparação de algumas instituições a entidades religiosas e analisa a possibilidade de desvirtuamentos e abusos de direito.
Por fim, revela pesquisas que demonstram o crescimento exponencial de templos e a imensa facilidade da abertura de seitas no País e propõe a análise do crime de lavagem de dinheiro dentro das instituições religiosas.
Trata-se de pesquisa bibliográfica, exploratória e descritiva, com abordagem qualitativa mediante o levantamento bibliográfico e documental, utilizando da CF/88, doutrina, demais leis e normas tributárias, além da jurisprudência e artigos científicos.
2. O PODER DE TRIBUTAR
O Estado existe com a finalidade de promover o bem comum, o que se faz por meio da instituição de tributos. Logo, função principal da tributação é fiscal, isto é, o financiamento do próprio Estado, de forma que este tenha capacidade de desempenhar suas atividades.
Mas o que seriam tributos?
Amaro (2014, p. 42) os define como “a prestação pecuniária não sancionatória de ato ilícito, instituída em lei e devida ao Estado ou a entidades não estatais de fins de interesse público”.
Ainda, a definição de tributo encontra fundamento legal no artigo 3º do Código Tributário Nacional (CTN), que o considera como “toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada”.
No entanto, quanto a determinados bens, pessoas, patrimônios ou serviços, três são os institutos jurídicos que excepcionam a regra de pagamento de tributos, sendo eles a não incidência, a isenção e a fixação de alíquota zero.
Essa pesquisa analisa, pois, especificamente a imunidade tributária, hipótese de não incidência de tributos em que o ente federado tem a sua competência limitada pela própria Constituição, que o impede de definir determinada situação como hipótese de incidência de tributos.
3. IMUNIDADES TRIBUTÁRIAS
No conceito de Alexandre (2019, p. 207), “as imunidades são limitações constitucionais ao poder de tributar consistentes na delimitação da competência tributária constitucionalmente conferida aos entes políticos”. Em outras palavras, trata-se de hipótese constitucional que impõe ao Estado o dever de não cobrar determinado tributo.
Machado (1998, p. 192) elucida que “imunidade é o obstáculo decorrente de regra da Constituição à incidência de regra jurídica de tributação. O que é imune não pode ser tributado. A imunidade impede que a lei defina com hipótese de incidência tributária aquilo que é imune. É limitação de competência”.
Na imunidade, não ocorre o fato gerador, não porque a situação não se enquadra em fato descrito em lei, mas porque a própria Constituição não permite que tal situação seja considerada como fato gerador da obrigação principal.
Vale dizer que a imunidade, sendo um instituto jurídico que delimita uma competência prevista em sede constitucional, somente pode encontrar previsão na Constituição. Isto se explica pelo fato que não se admite no direito que uma norma de hierarquia inferior institua exceções a uma regra hierarquicamente superior.
A Constituição faz uso de diversas nomenclaturas para se referir às imunidades, inclusive não mencionando em momento este termo específico. Porém, esclarece-se que se a limitação da competência tributária consta do texto constitucional, é o caso de imunidade.
Assim, a Constituição Federal definiu ao longo de seu corpo as pessoas, instituições e situações que são alcançadas pela imunidade tributária, ou seja, não são tributadas. Este trabalho, no entanto, se reserva a tratar da espécie de imunidade tributária religiosa.
3.1. IMUNIDADE TRIBUTÁRIA RELIGIOSA
Sendo o Brasil um país de diversidade, especialmente no que diz respeito à religião, a CF/88 garantiu como direito fundamental do indivíduo não somente a liberdade de crença e o livre exercício dos cultos religiosos, mas também assegurou proteção aos locais de culto e às suas liturgias[4].
Para corroborar tal garantia e impedir a interferência do Estado na seara individual, o legislador constituinte originário optou ainda por conferir aos templos de qualquer culto a imunidade de tributos, nos termos do art. 150, inciso VI, alínea “b”, do referido diploma.
Desta feita, essa espécie de imunidade obsta que o Estado se utilize do poder de instituir tributos como forma de obstruir a atividade das entidades religiosas, sendo aplicável exclusivamente à espécie tributária dos impostos.
Sobre o assunto, o Ministro Carlos Velloso do Supremo Tribuna Federal definiu no julgamento do Recurso Extraordinário nº 129.930/SP, nos seguintes temos:
CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. CONTRIBUIÇÃO SINDICAL. IMUNIDADE. C.F., 1967, ART. 21, PAR-2., I, ART-19, III, "b", C.F., 1988, ART-149, ART-150, VI, "b". I. A imunidade do art. 19, III, da CF/67, (CF/88, ART. 150, VI) diz respeito apenas a impostos. A contribuição e espécie tributaria distinta, que não se confunde com o imposto. E o caso da contribuição sindical, instituida no interesse de categoria profissional (CF/67, art. 21, par-2., I; CF/88, art. 149), assim não abrangida pela imunidade do art. 19, III, CF/67, ou art. 150, VI, CF/88. II. Recurso Extraordinário não conhecido. (BRASÍLIA, 1991)
Posto isso, a desoneração tributária dos templos de qualquer culto diz respeito somente aos impostos, não se aplicando às taxas, à contribuição de melhoria, às contribuições sociais ou parafiscais e aos empréstimos compulsórios.
Sobre a imunidade religiosa, a professora Tathiane Piscitelli da Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo avalia que
Há um debate sobre a conveniência de se manter essa imunidade sobre os templos. Há quem aponte que ela protege a liberdade religiosa, mas há entidades que têm estrutura empresarial e não são tributadas. Muito facilmente você constrói uma narrativa que a televisão ou outra atividade é essencial para a propagação da religião. E é exatamente esse o ponto de quem critica a imunidade, porque ela pode abrir brecha para situações de abuso. (FONSECA, 2019)
Nesse sentido, conforme assevera Ichihara (2000, p. 240), “entende-se que o desvirtuamento da atividade, com enriquecimento ilícito de seus dirigentes, remessa de recursos ao exterior, utilização de meios coercitivos (espirituais) visando tomar o patrimônio dos fiéis etc., uma vez comprovado, importa na perda da imunidade”.
Aliás, a liberdade de culto enquanto direito fundamental e a imunidade dos templos religiosos uma das garantias que protege tal direito, ambos estão protegidos por cláusula pétrea.
Ocorre que o conceito aberto de “culto” e “templo” deixa lacunas na legislação e permite a deturpação de uma garantia fundamental e sua finalidade precípua, ao mesmo tempo que visa resguardar o direito à liberdade de culto do indivíduo.
A partir disso, questiona-se: qual é o conceito jurídico desses termos e a delimitação do alcance de templo, para gozo das imunidades?
São perguntas que não foram objetivamente esclarecidas pelo legislador constituinte, que se absteve de estabelecer requisitos para a caracterização de “templo” e “culto”.
4. CONCEITO JURÍDICO DE “TEMPLOS” E “CULTO”
Sobre o termo “culto”, o professor Sabbag (2020, p. 366) define-o como “a manifestação religiosa cuja liturgia adstringe-se a valores consonantes com o arcabouço valorativo que se estipula, programática e teleologicamente, no texto constitucional”.
Para Carraza, da análise sistemática do Diploma Magno, “culto”, nos termos da alínea “b”, do inciso VI, do art. 150, da referida Carta, se confunde com “confissão religiosa”, que
[...] nada mais é do que uma entidade dotada de estrutura orgânica hierarquizada, instituída com o objetivo fundamental de agrupar, de modo permanente, pessoas que partilham das mesmas crenças transcendentais, vale dizer, que nutrem a mesma fé numa dada divindade. (2015, p. 66)
De outro lado, três são as principais teorias doutrinárias que objetivam conceituar “templo”. A primeira tese, intitulada como Clássico-restritiva, que tem como defensores os doutrinadores Pontes de Miranda e Sacha Calmon Navarro Coelho, limita a imunidade sobre os templos ao local físico de celebração do culto.
Na linha de defesa da concepção Clássico-liberal, aproximam-se Aliomar Baleeiro, Roque Antonio Carraza e Hugo de Brito Machado. Esta teoria define o templo como tudo aquilo que, direta ou indiretamente, viabiliza o culto. Assim, inclui o local destinado ao culto e seus anexos.
A terceira teoria, chamada de Moderna, conceitua o templo como entidade, abarcando a ideia de instituição ou organização religiosa e todas as suas manifestações. Essa acepção é defendida especialmente por José Eduardo Soares de Melo, Marco Aurélio Greco e Celso Ribeiro Bastos.
Acerca desta última, entende Sabbag que:
[...] a concepção moderna tem-se mostrado a mais adequada à satisfação da problemática que circunda a tributação dos templos religiosos que, em virtude do dinamismo que tem orientado a atividade, com questões jurídicas as mais variadas possíveis, requerem do exegeta um certo desprendimento das estruturas formais, a fim de atingir a ratio legis e propor a justiça fiscal aos casos concretos. (2020, p. 369)
Conquanto o artigo 150, inciso VI, “b”, da CF, faça menção a “templo”, é evidente que, considerando o objetivo do instituto jurídico da imunidade religiosa, a imunidade não se restringe ao prédio fisicamente considerado como templo da entidade religiosa. Caso contrário, a delimitação da competência tributária se restringiria à instituição do IPTU ou ITR, possibilitando a cobrança do imposto de renda sobre as oferendas por exemplo.
Há de se concordar que a regra imunizante prevista no referido artigo compreende o patrimônio, a renda e os serviços relacionados com as finalidades essenciais das entidades religiosas[5], uma vez que da leitura da alínea “b” depreende-se que o legislador objetivava imunizar não somente o templo, mas a própria entidade religiosa.
A propósito, dois são os requisitos fundamentais como desdobramentos interpretativos da expressão “relacionados com as finalidades essenciais das entidades nelas mencionadas”[6]: a) os valores advindos das atividades convexas ou correlatas da igreja devem ser convertidos na consecução dos objetivos institucionais da entidade; b) é proibido o caráter empresarial na atividade econômica desempenhada, evitando-se colocar em risco o regime de livre concorrência (SABBAG, 2020, p. 372-373).
Nessa linha, tem-se o entendimento pacífico do STF quando do julgamento do RE 325.822/SP:
Recurso extraordinário. 2. Imunidade tributária de templos de qualquer culto. Vedação de instituição de impostos sobre o patrimônio, renda e serviços relacionados com as finalidades essenciais das entidades. Artigo 150, VI, "b" e § 4º, da Constituição. 3. Instituição religiosa. IPTU sobre imóveis de sua propriedade que se encontram alugados. 4. A imunidade prevista no art. 150, VI, "b", CF, deve abranger não somente os prédios destinados ao culto, mas, também, o patrimônio, a renda e os serviços "relacionados com as finalidades essenciais das entidades nelas mencionadas". 5. O § 4º do dispositivo constitucional serve de vetor interpretativo das alíneas "b" e "c" do inciso VI do art. 150 da Constituição Federal. Equiparação entre as hipóteses das alíneas referidas. 6. Recurso extraordinário provido. (BRASÍLIA, 2004) (grifos do autor)
Em outro julgado, o STF também adotou uma interpretação ampliativa quanto ao conceito de templo, com a finalidade de garantir a liberdade de crença, conforme demonstra o seguinte excerto:
1. Os cemitérios que consubstanciam extensões de entidades de cunho religioso estão abrangidos pela garantia contemplada no artigo 150 da Constituição do Brasil. Impossibilidade da incidência de IPTU em relação a eles. 2. A imunidade aos tributos de que gozam os templos de qualquer culto é projetada a partir da interpretação da totalidade que o texto da Constituição é, sobretudo do disposto nos artigos 5º, VI, 19, I e 150, VI, "b". 3. As áreas da incidência e da imunidade tributária são antípodas. Recurso extraordinário provido. (BRASÍLIA, 2012)
Pelo teor do precedente, o Ministro Relator Eros Grau entendeu que a imunidade dos templos religiosos se estende a locais relacionados ao culto e às suas liturgias. De modo diverso, destaca-se o julgamento do RE 562.351/RS, in verbis:
I – O reconhecimento da imunidade tributária prevista no art. 150, VI, c, da Constituição Federal exige o cumprimento dos requisitos estabelecidos em lei. II – Assim, para se chegar-se à conclusão se o recorrente atende aos requisitos da lei para fazer jus à imunidade prevista neste dispositivo, necessário seria o reexame do conjunto fático-probatório constante dos autos. Incide, na espécie, o teor da Súmula 279 do STF. Precedentes. III – A imunidade tributária conferida pelo art. 150, VI, b, é restrita aos templos de qualquer culto religioso, não se aplicando à maçonaria, em cujas lojas não se professa qualquer religião. IV - Recurso extraordinário parcialmente conhecido, e desprovido na parte conhecida. (BRASÍLIA, 2008) (grifos do autor)
Atente-se que, no caso das lojas maçônicas, o STF conferiu interpretação restritiva quanto à expressão “templos de qualquer culto”, a qual estaria limitada aos cultos religiosos e, por esse motivo, a imunidade não alcançaria as lojas maçônicas.
Ainda, segundo o doutrinador Sabbag,
[...] a maçonaria deve ser considerada uma religião, à semelhança de tantas outras que harmonicamente coexistem em nosso Estado laico. Seu rito está inserido em sistema sacramental e, como tal, apresenta-se pelo aspecto externo (a liturgia cerimonial, a doutrina e os símbolos) e pelo aspecto interno (a liturgia espiritual ou mental, acessível com exclusividade ao maçom que tenha evoluído na utilização da imaginação espiritual. (2020, p. 380)
Nessa linha, defende que o conceito de religião é aberto, de forma que inexiste qualquer condição legal para sua caracterização. E não poderia se dar de outra maneira, devendo o intérprete aplicar o sentido mais abrangente a sua acepção, sob pena de colocar em risco especialmente crenças não-cristãs. Nas palavras do autor,
[...] a conceituação de religião, longe de ser “substancial” – em que se perscruta aleatoriamente o elemento conteudístico –, deverá ser funcional, abrindo-se para quaisquer agrupamentos litúrgicos em que os participantes se coobriguem moralmente a agir sob certos princípios. (2020, p. 381).
Recentemente, a reportagem investigativa transnacional Paraísos de Dinheiro e Fé, realizada por um consórcio de veículos de imprensa, analisou mais de 60 investigações e casos recentes que envolvem instituições religiosas e seus dirigentes, encontrando casos no Brasil, na Argentina, no México, no Chile e na Colômbia (WARD et.al., 2020a).
A colaboração jornalística produziu uma base de dados com casos judiciais recentes que relacionam lavagem de dinheiro e delitos adjacentes – como tráfico de drogas – com grupos religiosos de quaisquer crenças e denominações nas Américas. Esta documentação resultou de buscas sistemáticas em fontes especializadas online, fontes públicas e entrevistas realizadas pelos colaboradores com autoridades judiciais em nove países. Esse foi o ponto de partida desta história.
O fenômeno criminoso refletido pela base de dados não é, de forma alguma, representativo de todas as igrejas e organizações religiosas do continente americano. Muitos líderes religiosos prestam serviços valiosos para suas comunidades. No entanto, a análise dos casos confirmou que várias congregações estão abusando da confiança de seus fiéis enquanto usam seus espaços de culto para cometer e esconder crimes.
“Ao longo dos anos, instituições religiosas foram usadas repetidamente para lavar dinheiro”, afirma Mark Califano, ex-vice-procurador de justiça dos Estados Unidos e atual chefe legal do escritório Nardello & Co. “E o que permitiu que isso acontecesse foi a posição especial e protegida de que elas gozam na maioria das sociedades” completa.
Em linha, outro especialista no tema, Warren Cole Smith, CEO da Ministry Watch, uma organização evangélica norte-americana independente e sem fins lucrativos explica que as igrejas, assim como outras atividades nas quais circula dinheiro vivo, têm certas vulnerabilidades.
“Muitas dessas organizações também arrecadam dinheiro internacionalmente. E a arrecadação de dinheiro em espécie, especialmente em outros países, torna tudo ainda mais complicado”, afirma Cole Smith.
No continente americano, existem leis e práticas que buscam garantir uma proteção especial à liberdade religiosa para evitar possíveis ingerências indevidas do Estado em seus assuntos. Por esse motivo, limita-se a capacidade que qualquer Estado tem de investigar igrejas suspeitas de práticas irregulares. Isso pode tornar a situação especialmente favorável para aqueles que abusam dessas normas brandas para cometer crimes financeiros.
A vigilância de organizações religiosas por governos de países laicos como Guatemala, Estados Unidos, Peru e Brasil é mínima, segundo descobriu esta investigação após revisar a legislação destes e de outros países americanos. Nesses lugares, as igrejas gozam de isenções de impostos e não são obrigadas a prestar contas ao Estado. Como os estados não interferem em seus assuntos, as entidades religiosas têm maior liberdade para administrar suas finanças do que outras instituições sem fins lucrativos.
“Através de diferentes mecanismos, nós acabamos, sem querer, criando uma condição de intocabilidade a essas entidades nos Estados Unidos”, afirma Marci A. Hamilton, professora de estudos religiosos da Universidade de Pennsylvania e crítica da liberdade religiosa extrema.
“A razão pela qual grupos religiosos são tão convenientes para lavagem de dinheiro é que não precisam especificar nas declarações de impostos de onde o dinheiro veio nem o que fazem com ele”, afirma Hamilton. “Seus espaços públicos têm uma certa qualidade de caixa preta”.
Emilio Guerberoff, fiscal do foro Penal Econômico Federal da Argentina, afirmou ao Infobae, colaborador argentino da investigação: “Pode haver um choque de interesses entre a liberdade de culto religioso e a prevenção à lavagem de dinheiro, porque, ao receber doações anônimas através de dízimos, cujas origens podem não ser justificadas, as igrejas podem se tornar uma máquina perfeita de lavagem de dinheiro, sem que o dinheiro pareça ter uma origem criminosa, já que supostamente vem de seus seguidores”.
5. ORGANIZAÇÕES RELIGIOSAS
Em análise ao Código Civil Brasileiro, verifica-se que as organizações religiosas, com a redação da Lei 10.825/2003, passaram a se enquadrar no regime jurídico próprio das pessoas jurídicas de direito privado, de forma que, conforme seu artigo 44, §1º, “são livres a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações religiosas, sendo vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos e necessários ao seu funcionamento” (BRASIL, 2002).
Mister trazer os dados do Jornal O Globo (GRILLO, 2017), segundo o qual, entre janeiro de 2010 e fevereiro de 2017, 67.951 entidades se registraram na Receita Federal sob a rubrica de organizações religiosas ou filosóficas, ou seja, uma média de 25 por dia. Considerando tão somente grupos novos, não filiais dos já existentes, o número alcança 20 por dia.
Fato é que o País vive uma explosão de entidades religiosas, com crescimento em ritmo exponencial, que, não estando sujeitas à incidência de impostos, são suscetíveis a serem usadas para lavagem de dinheiro, diante da falta de controle das receitas pelo Estado.
Pontualmente, vale dizer que, no caso de igrejas que professam a fé católica, o seu ato de criação no Brasil obedece ao Decreto nº 7.107/2010, que promulga o Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e a Santa Sé relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil (BRASIL, 2010).
O referido acordo em seu artigo 3º assim preceitua:
Artigo 3º
A República Federativa do Brasil reafirma a personalidade jurídica da Igreja Católica e de todas as Instituições Eclesiásticas que possuem tal personalidade em conformidade com o direito canônico, desde que não contrarie o sistema constitucional e as leis brasileiras, tais como Conferência Episcopal, Províncias Eclesiásticas, Arquidioceses, Dioceses, Prelazias Territoriais ou Pessoais, Vicariatos e Prefeituras Apostólicas, Administrações Apostólicas, Administrações Apostólicas Pessoais, Missões Sui Iuris, Ordinariado Militar e Ordinariados para os Fiéis de Outros Ritos, Paróquias, Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica.
§ 1º. A Igreja Católica pode livremente criar, modificar ou extinguir todas as Instituições Eclesiásticas mencionadas no caput deste artigo.
§ 2º. A personalidade jurídica das Instituições Eclesiásticas será reconhecida pela República Federativa do Brasil mediante a inscrição no respectivo registro do ato de criação, nos termos da legislação brasileira, vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registro do ato de criação, devendo também ser averbadas todas as alterações por que passar o ato. (BRASIL, 2010)
À vista disso, torna-se mais dificultosa a criação de instituições católicas criadas exclusivamente com a finalidade de lavagem de dinheiro, diverso do que acontece nos casos de igrejas ditas como “evangélicas”, conforme os casos a seguir expostos.
6. REGISTRO CONTÁBIL DAS INSTITUIÇÕES RELIGIOSAS
Nos dizeres de Borba
Pode-se conceituar a obrigação tributária como a relação jurídica que tem por objeto uma prestação, positiva ou negativa, prevista na legislação tributária, a cargo de um particular e a favor do Estado, traduzida em pagar tributo ou penalidade ou em fazer alguma coisa no interesse do Fisco, ou ainda, em abster-se de praticar determinado ato, nos termos da lei. (2019, p. 285).
Quanto à responsabilidade financeira, as organizações religiosas, conquanto estejam livres de cumprir as obrigações principais, não se eximem das obrigações acessórias. Ambos os tipos de obrigações tributárias estão previstos no artigo 113 do CTN:
Art. 113. A obrigação tributária é principal ou acessória.
§ 1º A obrigação principal surge com a ocorrência do fato gerador, tem por objeto o pagamento de tributo ou penalidade pecuniária e extingue-se juntamente com o crédito dela decorrente.
§ 2º A obrigação acessória decorre da legislação tributária e tem por objeto as prestações, positivas ou negativas, nela previstas no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos.
§ 3º A obrigação acessória, pelo simples fato da sua inobservância, converte-se em obrigação principal relativamente à penalidade pecuniária. (BRASIL, 1966)
Alexandre em sua obra explicita que:
Mesmo que no que concerne às entidades imunes, as obrigações acessórias existem no interesse da fiscalização e arrecadação de tributos, visto que são obrigadas a escriturar livros fiscais para que a Administração Tributária tenha como fiscalizá-las e verificar se as condições para a fruição da imunidade permanecem presentes. (2019, p. 339).
Nesse sentido, é fundamental que as instituições religiosas possuam uma gestão contábil consoante o que dispõe o Conselho Federal de Contabilidade (CFC). Um dos pontos mais importantes é o controle de receitas, que devem ser aliadas a controles internos e financeiros que permitam sua identificação e comprovação, bem como o controle do ativo permanente ou imobilizado, através de efetivo controle interno, com registros contábeis consistentes (MONELLO, 2009).
Segundo o item 10.19.2.4. da NBCT 10.19[7], editada pelo CFC, que trata das normas brasileiras de contabilidade referentes às entidades sem fins lucrativos, “As receitas de doações, subvenções e contribuições para custeio ou investimento devem ser registradas mediante documento hábil.”.
Dessarte, dentre as obrigações acessórias que devem ser cumpridas por essas entidades imunes, está a apresentaçãoda Declaração de Débitos e Créditos Tributários Federais (DCTF), nos termos da IN RFB nº 2005, de 29 de janeiro de 2021 (BRASIL, 2021); e da RAIS Negativa, ou com Movimento, que é a Relação Anual de Informações Sociais, conforme Portaria SEPRT 6.136/2020.
Além disso, até 2013, as instituições religiosas eram obrigadas a apresentar a Declaração de Informações Econômico-Fiscais da Pessoa Jurídica – DIPJ. Após, a Receita Federal do Brasil editou a Instrução Normativa da Receita Federal do Brasil (IN RFB) nº 1.422, em 20 de dezembro de 2013, dispondo sobre a Escrituração Contábil Digital (ECD), instituída com o objetivo de substituir a DIPJ (BRASIL, 2013).
Ocorre que o inciso IV, §2º do artigo 1º da referida norma desobrigava as pessoas jurídicas imunes e isentas que, em relação aos fatos ocorridos no ano-calendário, não fossem obrigadas a apresentar a Escrituração Fiscal Digital da Contribuição para o PIS/PASEP, COFINS e EFP-Contribuições, nos termos da IN RFB nº 1.252, de 1º de março de 2012. Em 2015, a Receita Federal, por meio da IN RFB 1.595, de 1º de dezembro de 2015, revogou tal inciso (BRASIL, 2015).
Antes, as igrejas que arrecadassem mais de R$1,2 milhão precisavam enviar seus dados à Receita Federal por meio da ECD. Atualmente, a contabilidade das instituições religiosas se dá conforme a IN RFB nº 2003/2021, que dispõe sobre a Escrituração Contábil Digital (ECD), a que são obrigadas as pessoas jurídicas, inclusive as equiparadas e as entidades isentas e imunes, onde se enquadram as igrejas.
A obrigatoriedade não se aplica, no entanto, àquelas que auferiram, no ano-calendário, valor inferior a R$ 4,8 milhões ou valor proporcional ao período a que se refere a escrituração contábil.
De toda forma, nas palavras do desembargador federal Fausto Martin de Sanctis, especializado no combate a crimes financeiros e à lavagem de dinheiro, "é impossível auditar as doações dos fiéis. E isso é ideal para quem precisa camuflar o aumento de sua renda, escapar da tributação e lavar dinheiro do crime organizado. É grave" (SANCTIS, 2015).
7. O CRIME DE LAVAGEM DE DINHEIRO
O termo “lavagem de dinheiro” surgiu a partir do crime money laudering nos Estados Unidos. Segundo Callegari e Weber (2017, p. 19), a origem da expressão remonta à época em que se utilizava lavanderias para ocultar o dinheiro proveniente de atividade ilegal.
O uso de dinheiro em espécie por essas empresas facilitava a mistura com os montantes advindos do crime, de forma que “tal atividade empresarial aparentemente lícita permitia a realização de depósitos de notas de baixo valor procedentes, na verdade, do comércio ilegal de bebidas e de outras atividades criminosas”[8].
No Brasil, a expressão passa a ideia de tornar lícito o recurso advindo de atividades ilícitas e reinseri-lo no mercado financeiro com aparência de legalidade, encontrando definição no artigo 1º da Lei nº 9.613/1998: “ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal” (BRASIL,1998).
O referido dispositivo criou mecanismos administrativos, materiais e processuais a fim de suprimir a prática delituosa da lavagem de dinheiro, apresentando um rol exaustivo de delitos antecedentes, sendo considerado por esse motivo como legislação de 2ª geração sobre o tema. Dentre esses delitos, estavam o tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins; o crime de terrorismo e seu financiamento; o crime de contrabando ou tráfico de armas.
A lei em comento foi o primeiro diploma legal a tipificar o crime de lavagem de dinheiro no Brasil, em acordo com a Convenção de Viena, seguindo o modelo sugerido pelo Grupo de Ação Financeira (GAFI).
Posteriormente, a Lei nº 12.683/2012 deu nova redação à Lei 9.613/1998, extinguindo o referido rol de crimes antecedentes, aumentando o valor máximo da multa para 20 milhões, incluindo novos sujeitos obrigados, bem como hipóteses de alienação antecipada e outras medidas assecuratórias para impedir a desvalorização ou deterioração dos bens, de forma que adequou a legislação brasileira às de 3ª geração[9].
No País, cabe ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) disciplinar, aplicar penas administrativas, receber, examinar e identificar as ocorrências suspeitas de atividades ilícitas; coordenar e propor mecanismos de cooperação e de troca de informações que viabilizem ações rápidas e eficientes no combate à ocultação ou dissimulação de bens, direitos e valores; bem como comunicaras autoridades competentes para a instauração dos procedimentos cabíveis, quando concluir pela existência de crimes previstos na Lei nº 9.613/1998, de fundados indícios de sua prática, ou de qualquer outro ilícito.
Esse órgão define a lavagem de dinheiro como
[...] um conjunto de operações comerciais ou financeiras que buscam a incorporação na economia de cada país, de modo transitório ou permanente, de recursos, bens e valores de origem ilícita e que se desenvolvem por meio de um processo dinâmico que envolve, teoricamente, três fases independentes que, com frequência, ocorrem simultaneamente[10].
Como exposto, o crime de lavagem de dinheiro pressupõe o cometimento do chamado delito antecedente, do qual decorrem os recursos financeiros a serem lavados, e envolve três operações básicas: colocação (placement); ocultação, acomodação ou estratificação (layering); e integração (integration) (MENDRONI, 2018, p. 83-86).
No estágio inicial, a introdução do dinheiro de origem criminosa no sistema financeiro é geralmente feita por meio de atividades comerciais e instituições financeiras, bancárias ou não bancárias. São utilizados valores em espécie, o que dificulta o registra de sua origem, e os mistura aos recursos obtidos em atividades legais, que preferencialmente trabalhem com dinheiro vivo, para então serem depositados em bancos.
Os criminosos procuram movimentar o dinheiro de forma a não gerar a suspeita das autoridades, preferindo por dividi-lo em pequenas somas. Exemplos dessa fase são o uso de doleiros para envio de moeda para o exterior; conversão de valores em ativos não financeiros; depósitos em contas correntes em nome de empresas “fantasmas” ou pessoas “laranjas”.[11]
Em seguida, na fase da ocultação, acomodação ou estratificação, a intenção do agente é desassociar os recursos de sua origem ilícita, de forma a dificultar seu rastreamento. Dessa forma, quanto mais operações forem realizadas, tanto nacional quanto internacionalmente, mais difícil se torna o rastreamento contábil dos valores. A movimentação do dinheiro se dá geralmente de forma eletrônica, sendo transferido entre inúmeras contas de diversas entidades bancárias, preferencialmente em paraísos fiscais, e depois reconvertido em títulos e investimentos.
A última etapa se trata da integração, em que o dinheiro é incorporado formalmente à economia e se cria uma origem aparentemente lícita para o produto das atividades ilegais, sob forma de investimentos; empréstimos e leasing; compra de ativos; ou recebimento de dinheiro de cassinos, loterias ou bingos, com aparência de prêmios legítimos.
Não se exige o cumprimento de todas as referidas etapas da lavagem para configurar a sua consumação. Na verdade, sua consumação se dá quando na primeira transação financeira o agente já pratica uma das ações de ocultação da natureza, origem, localização, disposição, movimentação do bem, direito ou valor. De mais a mais, essas etapas podem ocorrer simultaneamente.
8. CASOS DE LAVAGEM DE DINHEIRO EM INSTITUIÇÕES RELIGIOSAS
Estando as igrejas fora do campo de incidência dos impostos sobre patrimônio, renda e serviços, e não havendo controle sobre suas atividades financeiras, estas instituições estão sujeitas a serem utilizadas como meio para lavar dinheiro advindo do crime, seja ele contra a administração pública, tráfico de drogas, entre outros.
Sobre a lavagem de dinheiro em igrejas, WARD et. al. (2020c) ressalta que não há fiscalização sobre o cumprimento das obrigações impostas a essas instituições, uma vez que não são prioridade da entidade fiscal, por isso o dinheiro é de difícil rastreio.
A Folha S. Paulo noticiou em 2009 que o Ministério Público do Estado de São Paulo (MP/SP) denunciou o líder da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), Edir Macedo, e outros nove integrantes da instituição religiosa por formação de quadrilha e lavagem de dinheiro, resultado da apuração sobre a movimentação financeira da igreja. Segue um extrato da reportagem:
Um grande volume de recursos teria saído do país por meio de empresas e contas de fachada, abertas por membros da igreja, e foi depois repatriado também por empresas de fachada, para contas de pessoas físicas ligadas à Universal.
Os recursos teriam servido para comprar emissoras de TV e rádio, financeiras, agência de turismo e jatinhos.
Para a investigação, isso fere dois princípios legais.
Empresas privadas pagam impostos porque o propósito de suas existências é o lucro. Igrejas, pela lei brasileira, não pagam tributos porque suas receitas, em tese, revertem para o exercício da fé religiosa, protegida pela Constituição.
Quando o dinheiro oriundo da fé é desviado para comprar e/ou viabilizar empresas tradicionais, que têm o lucro como finalidade, a imunidade tributária está sendo burlada.
O outro problema, com base na denúncia, diz respeito ao direito dos fiéis da Universal a que os recursos revertam para a igreja. O uso de recursos para outras atividades seria um desvio de finalidade, do qual fiéis e a Universal seriam vítimas. (AITH, 2009)
Após anos de ação penal contra Edir Macedo e o Bispo João Batista, o caso prescreveu em setembro de 2019. Macedo foi acusado inicialmente ainda pelos evasão de divisas, associação criminosa e falsidade ideológica. Ambos os réus foram beneficiados pela legislação penal que reduz pela metade a contagem da prescrição para os acusados com mais de 70 anos de idade (FERREIRA, 2019).
Em 2018, a Polícia Federal prendeu um grupo de dez pessoas suspeitas de colaborar com o tráfico de drogas administrado pela facção criminosa PCC (Primeira Comando da Capital) e fazer lavagem de dinheiro. Segundo o chefe da delegacia de repressão a entorpecentes da PF, Fabrizio Galli, “o dinheiro do tráfico era juntado ao dízimo na igreja que foi construída só para essa função. Donos de empresas de automóveis cediam carros para transportes de drogas. Os açougues faziam lavagem também. E a imobiliária alugava imóveis para a facção” (ADORNO, 2018).
Já em 2020, o Jornal O Globo veiculou a deflagração da operação “QG da Propina”, em que o Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) destacou que a Igreja Universal teria sido usada para fins de “lavagem de dinheiro fruto da endêmica corrupção instalada na alta cúpula da administração municipal”. Durante as investigações, foram analisadas conversas trocadas entre o empresário Rafael Alves, que seria o principal operador financeiro da organização, e o ex-marqueteiro de Crivella, Marcelo Faulhaber, além de transações financeiras bilionárias da Igreja Universal, acompanhadas pelo Coaf (O GLOBO, 2020).
Ainda no ano passado (2020), o jornal G1 divulgou um esquema de desvios e lavagem de dinheiro doado pelos fiéis à Associação Filhos do Pai Eterno (Afipe), criada com a finalidade de construir a Basílica do Divino Pai Eterno em Trindade.
De acordo com o Ministério Público, o suposto esquema seria dirigido pelo padre Robson, que teria criado “várias associações com nome de fantasia Afipe ou similar, com a mesma finalidade, endereço e nome”. Os crimes investigados são: apropriação indébita, lavagem de dinheiro, falsificação de documentos, sonegação fiscal e associação criminosa.
A investigação que o Ministério Público de Goiás (MP-GO) faz em cima das transações financeiras e aquisições de propriedades de luxo com o dinheiro das Afipes, no montante de R$ 120 milhões, apura, justamente, o uso de supostos "laranjas" para compra e venda de empresas de variados ramos de atuação, desde emissoras de rádio à postos de combustíveis.
[...]
A promotora Fabiana Lemes Zamalloa, coordenadora da Área de Atuação do Patrimônio Público e Terceiro do MP-GO, afirmou que está sendo apurado, na área cível, se houve prática de ato de improbidade administrativa por parte dos dirigentes da Afipe.
“A relevância no âmbito cível é o emprego dos recursos, se nas finalidades estatutárias, se forem públicos, principalmente, na defesa do interesse social e da higidez (lisura) de sua aplicação. Uma vez demonstrada que a origem desses recursos é ilícita, no âmbito criminal vai corroborar mais uma situação de ilicitude no exercício da atividade dessas associações”, afirmou a promotora.
[...]
Em relação a valores, a investigação apontou que nos últimos dez anos foram movimentados nas contas das Afipes cerca de R$ 2 bilhões, sendo a maioria fruto de doações para a construção da nova Basílica da cidade.
Constatou-se que os gastos de boa parte das doações não tinham vínculo com questões religiosas, mas com outros negócios, como a compra de imóveis, propriedades rurais, cabeças de gado e emissoras de rádio, diz o MP. (OLIVEIRA, 2020)
Segundo a reportagem Paraísos de Dinheiro e Fé, o Ministério Madureira, uma ramificação da Assembleia de Deus, estaria envolvido em um esquema de lavagem de dinheiro e corrupção no Brasil. O inquérito apurava se Samuel Cassio Ferreira, o líder do Ministério Brás, teria lavado R$ 250 mil usando contas bancárias da Assembleia Deus para o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, como parte do suborno referente à facilitação de contratos com a Petrobrás (WARD, 2020b).
De mais a mais, a suspeita de lavagem de dinheiro em igrejas ultrapassa as fronteiras brasileiras. Na Argentina, foi aberta investigação em razão de depósitos suspeitos de grandes valores em dinheiro na conta da filial local da Igreja Universal do Reino de Deus, criada por Edir Macedo. A Unidade de Informação Financeira, entidade de combate à lavagem de dinheiro na Argentina, não identificou a licitude e origem do montante, só que foi usado em outras operações bancárias e para a compra de carros, imóveis e um avião (WARD, 2020b).
Já no México, o investigado por lavagem de dinheiro e evasão fiscal é Naasón Merarí Joaquín García, líder da Igreja A Luz do Mundo, presente em 58 países. A UIF mexicana o investiga também por desvio de esmolas e doações de fiéis para aquisição de 51 imóveis entre 2004 e 2018 (WARD, 2020b).
Ainda esse ano, o Serviço Investigação Criminal (SIC) de Angola indiciou quatro líderes da Igreja Universal do Reino de Deus por lavagem de dinheiro, evasão de divisas e associação criminosa no país (MAGENTA, 2021).
Por fim, quanto à Igreja Católica, o Papa Francisco assinou em 2013 um “Motu proprio”, no qual foram adotadas novas medidas de prevenção e luta contra crimes de lavagem de dinheiro, financiamento do terrorismo e proliferação de armas de destruição em massa no Vaticano, visando cumprir as regras da Força-Tarefa de Ação Financeira (GAFI) (O GLOBO, 2013).
Segundo o site Vatican News, novo “Motu proprio” do Papa, além de proibir todos os funcionários de aceitarem “presentes ou outros benefícios” de valor superior a 40 euros, pede
[...] aos dirigentes da Santa Sé em todos os níveis, e a todos aqueles que desempenham funções ativas administrativas, funções jurisdicionais ou de controle, que assinem uma declaração assegurando que não receberam condenações definitivas, que não estão submetidos a processos penais pendentes ou a investigações por corrupção, fraude, terrorismo, lavagem de dinheiro, exploração de menores, evasão fiscal. E que não mantêm dinheiro ou investimentos em países com alto risco de lavagem de dinheiro ou de financiamento do terrorismo, em paraísos fiscais ou participações em empresas que operam contra a Doutrina Social da Igreja. [12]
9. CONCLUSÃO
Nas últimas décadas, o sistema financeiro global passou por inúmeras mudanças, obrigando os sistemas tecnológicos de controle das atividades financeiras a se revolucionarem. Por esse motivo, os agentes criminosos foram compelidos a encontrar mecanismos de difícil controle do governo para lavar dinheiro.
Nesse contexto, os benefícios fiscais concedidos às instituições religiosas são explorados pelos criminosos há muito tempo, uma vez que um dos direitos dessas entidades é justamente a possibilidade de recebimento de doações anônimas a título de dízimos supostamente pagos pelos seus fiéis, sem a necessidade justificar a origem dos valores.
Como demonstrado, é crescente no País o número de “templos de fachada” ou “igrejas-fantasma” criados com a finalidade de dissimular ou ocultar a origem ilícita de bens ou valores, ocultar patrimônio e sonegar imposto.
À vista disso, faz-se necessário aprimorar a fiscalização sobre as atividades financeiras de entidades religiosas, o que depende da atuação estatal, para se evitar o desvirtuamento da finalidade da imunidade tributária dos templos e evitar a ocorrência do crime de lavagem de dinheiro. Por exemplo, implementar melhores controles contábeis e aumentando a transparência das finanças das igrejas, por meio de auditorias e o uso da ferramenta de avaliação de risco de fraude.
10. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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[1] Professor de Direito Tributário na Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Advogado. Foi Procurador da Fazenda Nacional no Amazonas, Auditor Fiscal de Tributos do Município de Manaus e Procurador do Município de Manaus..
[2] Art. 5º, CF/88. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
[3] Art. 150, CF/88. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: [...] VI - instituir impostos sobre: b) templos de qualquer culto;
[4] Art. 5º, CF/88. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
[5] Art. 150, CF/88. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: [...] § 4º - As vedações expressas no inciso VI, alíneas "b" e "c", compreendem somente o patrimônio, a renda e os serviços, relacionados com as finalidades essenciais das entidades nelas mencionadas.
[8] Disponível em: https://receita.economia.gov.br/sobre/acoes-e-programas/combate-a-ilicitos/lavagem-de-dinheiro/lavagem-de-dinheiro-principais-conceitos. Acesso em: 11 jul. 2021.
[12] Disponível em: https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2021-04/papa-motu-proprio-nova-lei-anticorrupcao-dirigentes-vaticanos.html. Acesso em: 11 jul. 2021.
Bacharelando em Direito pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Servidor público do Estado do Amazonas.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, PEDRO BAPTISTA DA. A imunidade tributária dos templos de qualquer culto: um instrumento do crime Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 jul 2021, 04:34. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57050/a-imunidade-tributria-dos-templos-de-qualquer-culto-um-instrumento-do-crime. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Roberto Rodrigues de Morais
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