Resumo: A tecnologia é um instrumento de transformação das formas pelas quais as pessoas se relacionam. As consequências da evolução dos paradigmas sociais, econômicos e culturais exigem a adaptação do Direito das Sucessões para tutelar adequadamente a sociedade da informação. O objetivo deste artigo é evidenciar que a transmissão dos bens armazenados virtualmente precisa ser regulamentada por instrumento específico e capaz de garantir os direitos dos sucessores sem violar a intimidade e a vida privada de quem falece. O problema elaborado aponta a insegurança jurídica causada pela lacuna legislativa referente à herança digital. A hipótese apresentada demonstra a possibilidade da transmissão do patrimônio virtual do de cujus, independentemente da atribuição de valor econômico, desde que respeitados os princípios inerentes à dignidade da pessoa humana. A pesquisa doutrinária, legislativa e a análise empírica de Projetos de Lei apresentados perante o Congresso Nacional para normatizar o tema constituem a base metodológica adotada no trabalho.
Palavras-chave: Herança Digital. Transmissão. Sucessores. Intimidade. Vida privada.
Abstract: Technology is an instrument for transforming the ways in which people interact. The consequences of the evolution of social, economic and cultural paradigms demand the adaptation of Succession Law to adequately protect the information society. The purpose of this article is to show that the transmission of stored goods virtually needs to be regulated by a specific instrument and capable of guaranteeing the rights of successors without violating the intimacy and private life of the deceased. The problem elaborated points to the legal uncertainty caused by the legislative gap regarding the digital inheritance. The hypothesis presented demonstrates the possibility of transmitting the deceased's virtual assets, regardless of the attribution of economic value, as long as the principles inherent to human dignity are respected. The doctrinal and legislative research and the empirical analysis of Bills presented before the National Congress to standardize the theme constitute the methodological basis adopted in the work.
Keywords: Digital Heritage. Streaming. Successors. Intimacy. Private life.
Sumário: Introdução. 1. Direito das Sucessões. 1.1. Sucessão: conceitos e elementos centrais. 1.2. Os novos ares do Direito Sucessório e os desafios a serem enfrentados. 2. Herança digital. 2.1. A tutela dos direitos da personalidade na transmissão hereditária do acervo virtual. 2.2. Uma breve análise sobre Projetos de Lei apresentados ao Congresso Nacional para regulamentar a matéria. Conclusões. Referências.
Introdução
A partir da década de 1940, o desenvolvimento tecnológico desencadeou uma alteração significativa dos meios de comunicação utilizados entre as pessoas. Com isso, a sociedade moderna, orientada pela informação, exigiu a reformulação de conceitos fundamentais do Direito. Historicamente vinculado à ideia de continuidade da religião e da família, o Direito Sucessório passou a enfrentar sérios problemas decorrentes da falta de regulamentação específica sobre a transmissão do patrimônio digital de quem falece aos seus herdeiros. Direitos e deveres decorrentes do mundo virtual passaram a ser tutelados provisoriamente por inovações normativas, como o Marco Civil da Internet e a Lei Geral de Proteção de Dados, em paralelo às regras da Constituição Federal de 1988 e do Código Civil.
No entanto, essa lacuna legislativa causa uma insegurança jurídica amplamente debatida na esfera doutrinária. Como propostas de solução ao problema apresentado, Projetos de Lei (PL) foram encaminhados ao Congresso Nacional, mas apenas o PL nº 1.144/2021, que está em trâmite na Câmara dos Deputados, pareceu contemplar um pouco melhor a complexidade do tema. O presente estudo foi elaborado com o objetivo de evidenciar a urgência da elaboração de um regramento próprio à herança digital, seja por meio da criação de um estatuto jurídico independente, seja por meio da alteração de dispositivos do Código Civil ou do Marco Civil da Internet.
Para tanto, o artigo utilizou o método de abordagem dedutivo, a partir de pesquisa doutrinária, legislativa e da análise empírica de alguns Projetos de Lei que já foram arquivados e de outros que ainda estão em trâmite para normatizar a matéria, caso aprovados. Inicialmente, subdivide a apresentação dos conceitos e elementos centrais do Direito das Sucessões (1.1.) e da possibilidade da transmissão do patrimônio digital após a morte (1.2.). Por fim, aborda os aspectos inerentes aos direitos da personalidade vinculados à herança digital (2.1.) e os Projetos de Lei propostos para regulamentar o tema perante o Congresso Nacional (2.2.).
1. Direito das Sucessões
Com o passar dos anos as concepções vinculadas ao termo “sucessão” foram sofrendo alterações. A revolução tecnológica, que alcançou as relações sociais como um todo, desencadeou a necessidade da reformulação de alguns ideais sucessórios para adaptá-los à sociedade da informação. Entretanto, a teoria clássica de Clóvis Beviláqua, responsável por identificar o Direito das Sucessões como “o complexo de princípios, segundo o qual se realiza a transmissão do patrimônio de alguém, que deixa de existir”, permanece pertinente (1983, p. 14). O assunto e a atenção dada a ele no direito brasileiro serão objeto de análise nos subcapítulos seguintes.
1.1. Sucessão: conceitos e elementos centrais
A ideia de “sucessão” se revela na manutenção de uma relação jurídica que subsiste à alteração de seus titulares e o conceito da palavra, em sentido amplo, representa o ato pelo qual uma pessoa assume o lugar de outra para substituí-la na titularidade de um bem (GONÇALVES, 2020). No Direito das Sucessões o termo é usado para caracterizar a completa identidade entre a posição jurídica do falecido e do seu sucessor e, em sentido objetivo, é sinônimo de herança (GOMES; FARIA, 2019). Portanto, fala-se em um ramo do Direito destinado a tutelar a transmissão causa mortis do patrimônio do indivíduo aos seus herdeiros, incluídos os bens, direitos e deveres a ele inerentes.
O direito sucessório, historicamente ligado à ideia de continuidade da religião e da família, tornou-se mais evidente a partir do Direito Romano e, do entrechoque deste com o Direito Germânico, surgiu a concepção contemporânea que estabelece a sucessão legítima e testamentária (GONÇALVES, 2020). Na forma do art. 6º, do Código Civil, a morte encerra a existência da pessoa natural e abre a sucessão para transmitir o conjunto de ativos e passivos deixados pelo falecido aos seus herdeiros. A sucessão será legítima, quando decorrer de lei e não houver testamento, ou testamentária, quando houver manifestação de última vontade do titular do patrimônio (RIZZARDO, 2019).
A transmissão dos bens aos herdeiros legítimos obedece à ordem preferencial definida no art. 1.829, do Código Civil, como aquela que presumidamente refletiria a vontade do de cujus. Respeitada a parcela reservada pela lei aos herdeiros necessários, caso existam, a sucessão testamentária seguirá a ordem estabelecida pelo falecido. Quando abranger a universalidade do conjunto patrimonial, corresponderá à herança; quando alcançar bens singulares, originará o legado (MOREIRA, 2020).
A herança é um direito fundamental garantido pelo art. 5º, XXX, da Constituição Federal de 1988, regulado como um todo unitário pelos artigos 1.784 a 2.027, do Código Civil. A opção constitucional de incluí-la no rol de direitos e garantias individuais a reconhece como cláusula pétrea e impossibilita qualquer tentativa de excluí-la do ordenamento jurídico nacional (CF/88, art. 60, IV).
Em que pese a finitude da via corporal humana, a sucessão fornece uma ideia de prolongamento de quem morre para torná-lo vivo na memória e permitir que as pessoas legitimadas assumam a titularidade dos bens materiais deixados (RIZZARDO, 2019). A regra doutrinária responsável por atribuir ao direito sucessório apenas a tutela do patrimônio dotado de valor econômico exclui, a princípio, os direitos personalíssimos. A maior parte dos argumentos apresentados pelos estudiosos diz respeito à impossibilidade de dissociar da pessoa os elementos a ela inerentes para transmiti-los a outrem.
Em razão de elementos imateriais não serem passíveis de valoração, a legislação civil permite apenas que os herdeiros defendam a honra, o nome, a intimidade e a privacidade de quem morre (CC, art. 20, parágrafo único). Para Paulo Lobo (...)
“Os bens jurídicos de natureza patrimonial extinguem-se com a morte de seu titular, ainda que alguns de seus efeitos continuem sob a proteção da lei. É o que ocorre com os direitos da personalidade, como o direito à intimidade, à vida privada, à honra, à imagem, à integridade física, à integridade psíquica, à identidade pessoal, os direitos morais de autor; os familiares são legitimados a defendê-los, quando ofendidos após a morte de seu titular, mas não são herdeiros das titularidades” (2013, p. 16).
Ocorre que, a transformação digital instrumentalizada pela tecnologia modernizou as relações sociais quanto ao comportamento dos indivíduos, aos padrões de consumo, aos meios de comunicação, dentre outros aspectos responsáveis por caracterizar a sociedade da informação. Consequentemente, tornou-se necessária uma repaginação do Direito das Sucessões para tutelar, além dos direitos patrimoniais, os direitos existenciais do falecido, conforme será analisado no subcapítulo seguinte.
1.2. Os novos ares do Direito Sucessório e os desafios a serem enfrentados
No decorrer das últimas décadas, o desenvolvimento tecnológico passou a permitir o armazenamento de bens no âmbito virtual e revelou a necessidade de que eles sejam incluídos no conjunto patrimonial das pessoas. Embora o ordenamento jurídico brasileiro não regulamente especificamente a transmissão dos bens digitais como parte da herança, não existe a sua expressa vedação. Com isso, a ampla abrangência dos conceitos apresentados no subcapítulo anterior permite claramente acrescentar o acervo virtual, dotado de valor econômico, na tutela do Direito das Sucessões.
Para Costa Filho (...)
“Considerando seu evidente potencial econômico, o acervo digital deve ser considerado na sucessão patrimonial. A aferição de seu valor pode inclusive afetar a legítima destinada aos herdeiros e a parte disponível para ser legada pelo autor da herança. Bens virtuais raros, arquivos armazenados virtualmente potencialmente valiosos para efeitos de propriedade intelectual e até sites ou contas que podem servir como fonte de renda após a morte de seu titular são apenas alguns exemplos de formas de patrimônio que, ainda que não sejam mencionadas em testamento, não devem ser ignoradas pela partilha. Caso contrário, haverá claro prejuízo dos direitos dos herdeiros” (2016, p. 148).
Os intensos debates instaurados sobre o tema têm levado especialistas a ultrapassar a questão da valoração econômica do patrimônio digital para alcançar a transmissão daqueles bens que tenham valor afetivo, ainda que não seja essa a determinação expressa do art. 11, do Código Civil. A respeito, Paulo Lobo explica que não se trata de transmitir o direito propriamente dito, mas em legitimar a defesa dele pelos sucessores de quem morre:
“O que se transmite não é o direito da personalidade, mas a projeção de seus efeitos patrimoniais, quando haja. O direito permanece inviolável e intransmissível, ainda que o titular queira transmiti-lo, pois o que é inerente à pessoa não pode ser dela destacado. A pessoa não transmite sua imagem, ficando ela privada durante certo tempo, o que acarretaria sua despersonalização. O que se utiliza é certa e determinada projeção de sua imagem (a foto, o filme, a gravação), que desta se originou” (2017, p. 132).
No Direito Digital, defende-se o “testamento afetivo” para tutelar os dados de usuários da internet que mantenham memórias de afeição como instrumento para que pessoas mortas continuem “existindo pelo amor que elas possuíam e por ele também continuarem vivendo” (ALVES, 2016). Flávio Tartuce leciona que “pode-se falar também em testamento digital, com a atribuição dos bens acumulados em vida no âmbito virtual”, constituídos por qualquer elemento imaterial que passe a compor o patrimônio dos indivíduos e possa ser transmitido aos seus sucessores (2020).
Ainda que possibilitada a transmissão da herança digital por meio da aplicação extensiva e utilização analógica das normas que orientam a sucessão hereditária e protegem direitos e garantias fundamentais, os casos práticos enfrentam diversos obstáculos em virtude da falta de regulamentação específica sobre o tema. Dentre eles, importa mencionar a imposição de regras estabelecidas por contratos privados, firmados durante a vida do de cujus com provedores de serviços da internet, os quais são inadequados e/ou insuficientes para tutelar direitos e deveres decorrentes das relações entre vivos após a morte do titular.
A insegurança jurídica instaurada por essa lacuna legislativa poderá ser sanada mediante a criação e aprovação pelo Poder Público de norma que regulamente a transmissão do patrimônio digital construído pelo falecido. Caso contrário, os herdeiros poderão ter seus direitos perdidos ou negados em violação aos princípios estatais garantidores do pleno exercício da dignidade da pessoa humana.
2. Herança digital
A tutela sobre a transmissão hereditária dos bens armazenados virtualmente precisa estabelecer limites que protejam a intimidade e a vida privada do de cujus e de cada indivíduo que com ele tenha se relacionado pela internet, independentemente de possuírem conteúdo de valor econômico ou não. Para a melhor compreensão do assunto, incialmente será tratada a necessidade de que a inclusão de determinado patrimônio digital à herança não viole os direitos da personalidade do falecido (2.1.) e, em uma segunda etapa, o foco estará voltado para alguns Projetos de Lei que objetivam regulamentá-la no País (2.2.).
2.1. A tutela dos direitos da personalidade na transmissão hereditária do acervo virtual
O princípio da dignidade da pessoa humana é fundamento da República Federativa do Brasil e norteia todas as regras do ordenamento jurídico pátrio (CF, art. 1º, III). Deve ser observado em cada aspecto das relações tuteladas pelo Estado e se traduz em valor de respeito a todas as possibilidades e expetativas, patrimoniais e afetivas, essenciais à realização da pessoa humana na busca pela vida plena (GAGLIANO; FILHO, 2021).
Há uma divisão clássica na doutrina que distingue os direitos de personalidade, conferidos pelo Código Civil Brasileiro a todas as pessoas naturais e jurídicas titulares de direitos e deveres na ordem civil, dos direitos da personalidade, os quais, por tratarem de questões subjetivas próprias das pessoas humanas, apenas a elas dizem respeito (LOBO, 2017). Sobre estes, Pablo Frota, João Aguirre e Maurício Peixoto entendem que:
“Nem todo acervo de quem falece pode automaticamente ser transmitido aos herdeiros, caso existam, pois existem direitos da personalidade que mantêm efeitos post mortem e somente são transmitidos se quem faleceu, em vida, declarou ou se comportou concludentemente nesse sentido, cuja prova deve ser trazida no processo de inventário judicial ou no caso de inventário extrajudicial”. (2018, p. 565)
Conforme analisado no capítulo anterior, o fundamento jurídico para entender as questões relacionadas à herança digital é a transmissão do direito próprio sobre os efeitos patrimoniais decorrentes da sucessão, ou seja, da legitimação para a defesa de direito alheio (LOBO, 2017). Em outras palavras, ao contrário da aptidão para adquirir direitos e deveres, que cessa com a morte, a tutela dos direitos da personalidade, atrelados a atributos existenciais, ultrapassa o limite da vida.
Permitir a continuidade da pessoa através da substituição da titularidade de seus bens virtuais exige que o Direito das Sucessões imponha aos legitimados o respeito aos elementos patrimoniais que integram a extensão da personalidade de quem deixou de existir. A privacidade, a partir da evolução conceitual desenvolvida em torno da sociedade da informação, é um elemento individual que pode facilmente sofrer violações decorrentes do avanço tecnológico.
No entanto, a inviolabilidade da vida privada é um direito fundamental positivado no art. 5º, X, da Constituição Federal de 1988, e garantido pelo art. 21, do Código Civil. Além disso, encontra amparo na Lei nº 12.965/14, que institui o Marco Civil da Internet, e na Lei nº 13.709/18, que institui a Lei Geral de Proteção de Dados, as quais, embora não disponham expressamente sobre direitos sucessórios, definem as bases principiológicas e os limites ao tratamento de dados pessoais para proteger a vida das pessoas de interferências externas.
Diante da ausência de legislação específica que tutele a transmissão hereditária dos bens insuscetíveis de valoração econômica, eventuais conflitos de interesse entre direitos da personalidade do falecido e os direitos sucessórios das pessoas legitimadas têm sido resolvidos pelo ordenamento jurídico. Portanto, até que seja sanada a lacuna existente, competirá ao Poder Judiciário proteger a intransmissibilidade dos bens personalíssimos do de cujus sempre que a medida for necessária para impedir violações à intimidade e vida privada deste.
Por isso a importância da distinção entre os bens de valor econômico e os de valor afetivo: não para impedir que os últimos sejam transmitidos aos sucessores, mas para garantir que a sua transmissibilidade não ofenda os direitos fundamentais de quem faleceu. Feitas essas considerações, serão analisadas algumas propostas apresentadas ao Congresso Nacional com o objetivo de solucionar o problema.
2.2. Uma breve análise sobre Projetos de Lei apresentados ao Congresso Nacional para regulamentar a matéria
Sem pretender de esgotar o debate sobre a transmissão da herança digital, este subcapítulo tratará das principais propostas legislativas apresentadas ao Congresso Nacional para regulamentá-la. Em que pese estudiosos defendam a criação de um estatuto jurídico próprio e interligado com as demais regras que orientam as relações sociais atuais, os Projetos de Lei existentes pretendem alterar o Código Civil, especificamente o livro das Sucessões, e o Marco Civil da Internet.
Independentemente do caminho a ser percorrido para suprir a lacuna, os direitos digitais precisam ser protegidos e as violações das liberdades ameaçadas pela tecnologia devem ser prevenidas. Em outras palavras, ao mesmo tempo em que é necessário garantir os direitos sucessórios sobre o patrimônio virtual, deve-se preservar a intimidade e a vida privada do falecido. As regras precisam definir não apenas quais direitos prevalecerão, mas a possibilidade da transmissão desses bens por meio de testamento ou codicilo e a competência para julgar eventuais conflitos de interesse.
Os elementos apresentados no subcapítulo anterior permitem concluir pela existência de três vias no direito brasileiro. A primeira delas apresenta um ponto de vista unicamente patrimonial e transmite de forma automática e irrestrita todo o acervo digital do falecido aos seus herdeiros, respeitada a disposição de última vontade em sentido contrário. A segunda via defende a existência de bens intransmissíveis, referentes à intimidade da pessoa, cuja transmissão violaria direitos de liberdade e privacidade do morto e daqueles que com ele socializaram no ambiente virtual. Por fim, existe a via que defende a intransmissibilidade de qualquer bem digital, seja de conteúdo pessoal ou patrimonial.
Dentre as propostas apresentadas ao Congresso Nacional para alterar o Marco Civil da Internet, importa mencionar o PL nº 7.742/2017, do Deputado Alfredo Nascimento, que já foi arquivado. A iniciativa pretendia incluir o art. 10-A à Lei nº 12.965/14 para dispor sobre a destinação das contas de aplicações na internet após a morte de seu titular. Caso fosse aprovado, a regra geral seria a exclusão das contas do usuário falecido, ressalvada a manutenção pelo período de um ano para salvaguardar eventuais interesses públicos ou o requerimento em sentido contrário por parte dos herdeiros.
Quanto às iniciativas elaboradas com vistas a alterar o Código Civil, os PLs nº 4.099/2012, do Deputado Jorginho Mello, e nº 4.847/2012, do Deputado Marçal Filho, ambos já arquivados, pretendiam fazer alterações semelhantes que violariam a privacidade e a intimidade do de cujus e de quem com ele se relacionasse. O primeiro incluiria um parágrafo único no art. 1.788 para determinar a transmissão aos sucessores de todos os conteúdos de contas ou arquivos digitais de titularidade do falecido. Já o segundo acrescentaria o Capítulo II-A e os artigos 1.797-A a 1.797-C para transmitir a herança digital de forma irrestrita aos sucessores, sempre que não houvesse disposição testamentária em sentido diverso.
O PL nº 3.050/2020, do Deputado Gilberto Abramo, em trâmite perante a Câmara dos Deputados, pretende incluir o direito à herança digital no Código Civil por meio da criação de um parágrafo único no art. 1.788 para determinar a transmissão aos herdeiros de todos os conteúdos de qualidade patrimonial, contas ou arquivos digitais de titularidade do autor da herança. Diferencia-se dos projetos acima mencionados apenas por acrescentar a “qualidade patrimonial” aos bens tutelados, mas continua prevendo a transmissão integral destes, sem observar o conteúdo dos direitos personalíssimos do de cujus.
O Projeto de Lei mais recente foi apresentado pela Deputada Renata Abreu, em março de 2021, e tramita perante a Câmara dos Deputados sob o nº 1.144/2021, em apenso ao PL nº 3.050/2020. Resumidamente, o objetivo da proposta é alterar o Código Civil e o Marco Civil da Internet para definir quem tem direito a recorrer em ações de danos contra a imagem de pessoas mortas, incluir ativos digitais na herança (ressalvadas a disposição de última vontade em sentido contrário e as mensagens de conversas privadas de natureza não econômica) e garantir a possibilidade de que conteúdos sejam removidos após a morte.
Ao distinguir o patrimônio transmissível daquele que, por envolver a privacidade do falecido e de terceiros interessados, é intransmissível, o PL nº 1.144/2021 parece suprir a lacuna legislativa que ameaça a segurança jurídica do ordenamento pátrio e surge como uma possível solução ao problema apontado. No entanto, caberá ao Congresso Nacional, avaliar a adequação da proposta para aprová-la ou não.
Conclusões
O presente estudo demonstra que o Direito das Sucessões reconhece a transmissão hereditária apenas de direitos e obrigações de cunho patrimonial, enquanto a parte geral do Código Civil admite exclusivamente a defesa dos direitos personalíssimos do falecido, sem transmiti-los propriamente aos sucessores. No entanto, o avanço tecnológico exige uma reformulação dos ideais estatais, a partir dos novos paradigmas sociais, econômicos e culturais, para salvaguardar os direitos dele decorrentes. Algumas discussões sobre o tema tramitam perante o Congresso Nacional, mas ainda não foi aprovado um regramento sucessório específico que permita ao Direito tutelar adequadamente a sociedade da informação.
A herança digital ultrapassa a distinção entre direitos patrimoniais e personalíssimos, uma vez que os dados armazenados virtualmente possuem potencial econômico e guardam íntima relação com os direitos e garantias fundamentais à intimidade e à vida privada. Ainda que o sistema normativo brasileiro disponha de instrumentos para solucionar, extensiva e analogicamente, eventuais conflitos de interesse sobre direitos referentes à transmissão do acervo virtual de quem morre aos seus sucessores, cabe ao Poder Público suprir, com urgência, a lacuna legislativa apontada neste artigo.
A regulamentação deverá ingressar no ordenamento jurídico em harmonia com as demais normas existentes, observando a garantia constitucional do direito à herança, à vida privada e à intimidade na busca por compreender e respeitar a vontade do falecido. Essa inovação a respeito da transmissibilidade do patrimônio digital deixado pelo de cujus, seja por meio de estatuto próprio, seja por meio da alteração de dispositivos já existentes, deve atender às necessidades atuais sem violar os princípios orientadores do Direito como um todo. Dito isto, é preciso que a sociedade cobre dos parlamentares a criação de uma legislação apropriada a construir um ambiente normativo mais seguro à proteção de seus direitos, em respeito às liberdades e escolhas individuais sobre o futuro do acervo virtual.
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Advogada. Formada em Direito pela Faculdade Anhanguera do Rio Grande (2013); pós-graduada em Direito Processual Civil, pela Universidade Anhanguera-UNIDERP (2015), e em Direito Civil e Processual Civil pela Universidade Católica de Pelotas (2020). Atualmente, aluna especial do mestrado em Direito e Justiça Social da FURG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MATTOS, Rafaella Fernandes de. Herança Digital: o direito sucessório na sociedade da informação Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 ago 2021, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57057/herana-digital-o-direito-sucessrio-na-sociedade-da-informao. Acesso em: 23 dez 2024.
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