RESUMO: O instituto da regularização fundiária atualmente é dotado de substancial produção legislativa no Brasil; entretanto, ainda não há concretização real de políticas públicas no que tange à regularização fundiária, pois ainda impera uma total falta de interesse do Poder Público quanto a real implementação de políticas públicas para a implantação ou melhoria do mínimo de elementos de infraestrutura que há de se ter num parcelamento. O presente artigo tem o condão de demonstrar a importância, já explicitada claramente na Magna Carta Constitucional, da digna moradia e que infelizmente ainda é esquecida por vários aspectos da sociedade. Demonstrar-se-á o que é tecnicamente o instituto da regularização fundiária, suas modalidades (social e específica), bem como a necessidade inerente de conjugação de propriedade e função social, pilares da razão jurídica da própria regularização fundiária. Na regularização fundiária, não há meio termo: ou se tutela com segurança jurídica e efetivas políticas públicas os parcelamentos irregulares e a sua população - que na maioria das vezes é hipossuficiente -, ou deixa-se literalmente à margem da sociedade este problema impregnado na triste realidade social brasileira.
Palavras-chave: regularização fundiária. função social. finalidade. moradia. bem comum.
SUMÁRIO: Resumo - Introdução – 1. Modalidades de regularização: 1.1. Regularização fundiária urbana de interesse social (Reurb-S) 1.2 Regularização fundiária urbana de interesse específico (Reurb-E) 1.3 Regularização fundiária e função social da propriedade urbana 2. A finalidade da regularização fundiária 3. Conclusão. Bibliografia
SUMMARY: The institute of land regularization is currently endowed with substantial legislative production in Brazil; however, there is still no real implementation of public policies with regard to land regularization, as there is still a total lack of interest from the Public Power as to the actual implementation of public policies for the implementation or improvement of the minimum elements of infrastructure that must be implemented. have in installments. This article is able to demonstrate the importance, already clearly explained in the Magna Carta Constitucional, of dignified housing and which, unfortunately, is still overlooked by various aspects of society. It will be demonstrated what the institute of land regularization is technically, its modalities (social and specific), as well as the inherent need for the combination of property and social function, pillars of the legal reason for land ownership itself. In land tenure regularization, there is no middle ground: either the irregular installments and their population - which for the most part is hypo-sufficient - are protected with legal certainty and effective public policies, or this problem, impregnated in the sadness, is literally left on the margins of society. Brazilian social reality.
Keywords: land regularization. social role. goal. home. very common
INTRODUÇÃO
Com a edição da Lei 11.977, de 7 de julho de 2009, firmou-se um novo marco legal da regularização fundiária no Brasil, haja vista o estabelecimento de novos instrumentos à regularização fundiária urbana, privilegiando e concretizando o direito constitucional à moradia.
De acordo com o art. 46 da então Lei 11.977/2009, considera-se regularização fundiária
conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais que visam à regularização de assentamentos irregulares e à titulação de seus ocupantes, de modo a garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Atualmente a legislação de regência da regularização fundiária funda-se na Lei 13.465/2017.
A regularização fundiária envolve diversos aspectos para que seja implementada. Temos entre tais aspectos, o aspecto urbanístico, com a finalidade precípua de implantar a infraestrutura mínima necessária para o desenvolvimento saudável da vida humana in loco; temos também a incidência do aspecto ambiental, voltado às ações preventivas e inclusive compensatórias referentes ao meio ambiente; e por fim o aspecto de titulação dominial aos ocupantes.[1]
É perfeitamente defensável que houve uma mudança de tratativa do procedimento da regularização imobiliária, em especial no tocante ao procedimento extrajudicial do registro da regularização perante o Registro de Imóveis[2]. A título de exemplificação, a regularização fundiária hoje não mais é voltada apenas para o aspecto da titulação dominial dos ocupantes, haja vista que os aspectos ambientais e urbanísticos são ínsitos à aprovação municipal do projeto de regularização fundiária.[3]
É inegável que as ocupações irregulares são uma afronta direta ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, e que, nos termos do art. 6º da Constituição Federal, apresenta o direito à moradia como um direito fundamental.
Nesse sentido, há substancial criação legislativa voltada à tentativa de solução e criação de artifícios legais para sanar tal problema social, e, nesse momento, a figura da regularização fundiária surge como um dos remédios jurídicos que visam ao combate às ocupações irregulares e moradias indignas.
Entre os objetivos da regularização fundiária, a Lei 13.465/2017 estabelece a garantia da efetivação da função social da propriedade.[4]
1. Modalidades de regularização
A Lei 13.465/2017 estabelece duas modalidades de regularização fundiária urbana; a primeira, intitulada regularização fundiária urbana de interesse específico, e a segunda, a regularização fundiária com escopo de interesse social.
A regularização fundiária de interesse social aplica-se aos núcleos urbanos informais, núcleos esses ocupados predominantemente por população de baixa renda, com declaração por ato do Poder Executivo Municipal.
A anterior Lei 11.977/2009 não indicava essa diferenciação. Cumpridos os requisitos de tempo mínimo de posse mansa e pacífica (estipulado em cinco anos), bem como a localização do assentamento em Zona de Especial Interesse Social (Zeis) ou até mesmo em áreas públicas declaradas de interesse para a consecução e implantação de projetos de regularização fundiária, considerava-se tais requisitos para enquadrar o procedimento de regularização fundiária na modalidade social.
Atualmente, entre as variadas classificações da regularização fundiária, as principais traduzem-se na regularização fundiária urbana de interesse social (Reurb-S), bem como na possibilidade de regularização fundiária de interesse específico (Reurb-E), e, com fulcro nessa segunda classificação, distingue-se a regularização fundiária de área pública da regularização fundiária de área particular.[5]
1.1 Regularização fundiária urbana de interesse social (Reurb-S)
A modalidade de regularização fundiária urbana (Reurb) apontada no Título II da Lei 13.465/2017 é densa. Entre os instrumentos voltados à regularização fundiária, encontramos a legitimação fundiária, a arrecadação de imóvel abandonado, o direito real de laje, bem como a figura do condomínio de lotes.
A regularização fundiária na modalidade de interesse social (Reurb-S) traduz-se na regularização fundiária que é aplicável aos núcleos urbanos informais ocupados predominantemente por população de baixa renda, assim declarados em ato do Poder Executivo Municipal (art. 13, I, da Lei 13.465/2017).[6]
Pela anterior Lei 11.977/2009, os critérios específicos para o enquadramento como regularização fundiária de interesse social clausurados (v.g., art. 47, VII, que estabelecia como requisitos que a área estivesse ocupada, de forma mansa e pacífica, há pelo menos cinco anos; que o imóvel estivesse situado em Zona de Especial Interesse Social - Zeis) deram margem atual para o critério suficiente de ocupação predominantemente ocupada por população de baixa renda, conjugado com o requisito formal da declaração em ato específico do Poder Executivo Municipal.
1.2 Regularização fundiária urbana de interesse específico (Reurb-E)
A regularização que não se qualifica como regularização fundiária de interesse social, aplica-se o procedimento atinente à regularização fundiária de interesse específico, tal como disciplina o art. 13, II, da Lei 13.465/2017.
A diferenciação entre Reurb-S e Ruerb-E finda-se no que tange à mitigação de diversas exigências que incidem apenas no que concerne à Reurb-S. O suporte fático de condão econômico-social é preponderante para a delimitação da modalidade Reurb-S. Nesse sentido, a Reurb-E atinge precipuamente núcleos urbanos informais em geral, e para o procedimento de tal modalidade de regularização não há as mitigações de exigências e facilidades ínsitas à Reurb-S.
De todo modo, a Lei 13.465/2017 abrandou o implemento de tal regularização. Essa nova legislação ampliou o arcabouço da regularização fundiária em geral, ou seja, tanto no que diz respeito ao gênero Reurb quanto às espécies Reurb-E e Reurb-S.
1.3 Regularização fundiária e função social da propriedade urbana
A função social da propriedade, incidente em contrapartida do direito individual e absoluto da propriedade, diariamente e ao longo do tempo é objeto de moldagem, sempre com o intuito de identificação da importância preponderante do interesse coletivo em detrimento das necessidades inerentes aos atuais aglomerados urbanos.[7]
O direito real de propriedade, fruto do retrato de valores e práticas sociais, percorreu o modelo individualista para chegar até o modelo coletivo, buscando o sentido natural como consequência do próprio sentido social. As Constituições dos anos de 1824, 1891 e 1937 de certo modo consagraram o direito de propriedade em sua plenitude de interesse social ou coletivo[8].
Com a Constituição de 1946, a visão de busca pelo itinerário social do direito real de propriedade foi retomada, vinculando o exercício de tal direito ao bem-estar social (art. 141, § 16, e art. 147).[9]
A atual Carta Magna, além de seu consagrado e notório art. 5º, indica a existência da função social da propriedade em capítulo próprio, quando trata do sistema tributário, com a autorização da discricionariedade tributária quando do descumprimento dos padrões da função social; no capítulo referente à ordem econômica financeira; e mais ainda com a previsão do disposto nos arts. 182 a 191 – tratativa e previsão da política urbana e rural amparadas pela dignidade da pessoa humana.
A Constituição Federal claramente tutela a propriedade quando há o cumprimento de sua função social, e, entre tais atributivos da função social, é necessário que a propriedade retribua produtivamente e desenvolva-se harmonicamente perante a coletividade (cf. arts. 5º, XXIII, e 170, III, da CF); a contrario sensu, a expropriação em favor do poder público poderá ser colocada em discussão.[10]
A função social da propriedade deve ser considerada princípio constitucional (v.g., o disposto nos arts. 5º, XXIII, e 170) e, ainda mais, ser invocada com o condão de orientação de formação de legislação complementar, objetivando integrar as diretrizes de política pública.
Com a constitucionalização do direito real de propriedade, o Código Civil também limita o uso e exercício da propriedade; entretanto, não busca perder o sentido desta, ao passo que a regra a ser ponderada é o próprio exercício pleno da propriedade privada.
O fundamento da regularização fundiária se dá pela própria existência do direito real à propriedade; por conseguinte, a existência da função social ínsita ao direito real de propriedade traduz-se como um mecanismo de determinação da correta utilização da propriedade. Nesse sentido, traduz-se ainda que a função social justifica a aplicação do instituto da regularização fundiária nas suas mais variadas peculiaridades.[11]
Pela Constituição Federal de 1967, em seu art. 157, III, encontramos a primeira inclusão normativa da função social ligada ao conceito de propriedade.[12]
José Afonso da Silva, citando Fiorella D’Angelo, explicita que:
[...] assim é que a função social mesma acaba por posicionar-se como elemento qualificante da situação jurídica considerada, manifestando-se, conforme as hipóteses, seja como ausência de atribuição de determinadas faculdades, seja como condição de exercício de faculdades atribuídas, seja como obrigação de exercitar determinadas faculdades de acordo com modalidades preestabelecidas[13].
O conceito delimitador da função social da propriedade urbana não é claramente extraído do ordenamento jurídico. A contrario sensu do disposto no art. 186 da Constituição Federal, que delimita o alcance dos aspectos materiais da função social da propriedade rural ligada a toda a extensão do território nacional[14], a delimitação da função social dos imóveis urbanos é elencada no sentido de a propriedade urbana cumprir sua função social quando atender às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, tal como aduz o art. 182, § 2º, da Constituição Federal.
A Constituição Federal estipula que o solo “não edificado, subutilizado ou não utilizado” não cumpre a função social. Fernando Almeida apresenta que tais termos são aspectos de direito urbanístico, e o solo “não edificado” é aquele que não é ocupado por nenhum tipo de edificação, ao passo que o termo “subutilizado” traduz-se no solo com edificação que seja abaixo do coeficiente de aproveitamento mínimo, coeficiente esse definido especificadamente para a região onde se encontra o terreno. Finaliza indicando que o termo “não utilizado” corresponde ao coeficiente de aproveitamento igual a zero, o que nos leva a entender que os termos “não edificado” e “não utilizado” não apresentam diferenças em seus aspectos práticos.[15]
O direito subjetivo público deve ser representado como um direito que autoriza determinado sujeito à prática de interesses que possam afetar a coletividade. Na medida em que a propriedade urbana não cumpre a sua função social inerente, e ao mesmo tempo quando o poder público não dá efetividade e implementação necessários, é evidenciada a existência de um direito público subjetivo. José Afonso da Silva elucida essa questão, ao expor que:
Já verificamos que normas programáticas condicionam a atividade discricionária da Administração, bem como a atividade jurisdicional. Essas atividades não podem desenvolver-se contra os fins e objetivos postos pelas normas constitucionais programáticas. Se isso ocorrer, manifesta-se um comportamento inconstitucional e o ato que dali deflui fica sujeito ao controle de constitucionalidade. [...] O princípio da função social da propriedade, por exemplo, pode ser invocado contra o abuso desse direito, em certas circunstâncias, em prol de inquilinos contra o senhorio, e especialmente impor atuações positivas ou abstenções ao proprietário, no interesse da coletividade.[16]
O Superior Tribunal de Justiça reconheceu a possibilidade da existência de um direito público subjetivo no que se refere à regularização fundiária, em especial à regularização fundiária de interesse social.[17]
Nesse prisma, imperioso apontar que, via de regra, o poder público deve utilizar sua discricionariedade legal a fim de conferir aos imóveis públicos o cumprimento de sua função social, bem como deve figurar como zelador do uso dos imóveis públicos pelos particulares; a omissão do poder público quanto a tal questão pode ensejar a criação de direito subjetivo público extensivo a todos aqueles que integram o espaço público urbano.
Pietro Perlingieri explicita que o ato de disposição imobiliária do titular proprietário não deve limitar-se à constituição de direitos reais, v.g., o usufruto, a servidão; o poder de disposição deve necessariamente incluir a autonomia do titular para que possa criar situações subjetivas favoráveis a terceiros.[18]
Perlingieri ainda apresenta que a função social é também necessária quando há falta de sua referência nas disposições patrimoniais, haja vista que a função social, caracterizada como princípio legitimador das normas, possui conteúdo de interpretação ativa de princípio, e a ausência de atuação da função social mitiga o reconhecimento de juridicidade do direito real de propriedade.[19]
Questão que merece igual destaque e fundamento quando se fala em função social é a inerente necessidade de a regularização fundiária objetivar inclusive a plena efetivação do direito humano à moradia adequada.[20]
Tal pressuposto é corroborado com o apontamento de Sérgio Nunes, ao dispor que:
Também, o direito à moradia pode ser mencionado como elemento tipificado da integridade moral do indivíduo. Isto porque não há como conceber o direito ao segredo pessoal, doméstico e profissional, direito à identidade pessoal, familiar e social, se não for concebido, primeiramente ou paralelamente, o direito à moradia. Este é o pressuposto, em verdade, daqueles, para o seu exercício de forma plena. Além disso, o cunho psíquico referente ao direito à moradia também poderá envolver o reflexo deste direito. Não há uma moradia adequada e condigna, se ela não é exercida de forma tranquila e saudável, sem interferências do alheio que, por vezes, poderá atingir o direito ao segredo doméstico ou à intimidade.[21]
Por meio da Emenda Constitucional n. 26, o direito à digna moradia figurou como um direito social constitucional.
Sérgio Ferraz elenca que a sistemática da interpretação dos mandamentos constitucionais da dignidade da pessoa humana, da erradicação da pobreza, da redução das desigualdades sociais, do direito à saúde e à segurança permite reconhecer que o direito à moradia já seria elemento constitucional social.[22]
Ainda há enorme dificuldade em dar efetividade a esse direito social tão importante. A razão desse direito, por ainda possuir conteúdo incerto, possibilita margem a uma série de discussões que dependem da interpretação aferida de sua aplicabilidade. Nesse sentido, a Organização das Nações Unidas (ONU), em seu Comentário Geral n. 4[23], por intermédio de seu Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, propõe a criação de uma definição, elencando sete componentes que denotam garantia eficaz ao direito à moradia; entre eles, a posse com tutela de segurança jurídica, a habitabilidade, a disponibilidade de serviços e infraestrutura, o custo acessível da moradia, a acessibilidade, a localização, bem como a necessária adequação cultural.
2. A finalidade da regularização fundiária
É nevrálgico o questionamento da finalidade do direito à regularização fundiária e, nesse sentido, mister inclusive o questionamento a respeito da finalidade do próprio direito.
Ihering elucida que há um positivismo imbricado no Direito que o torna inimigo mortal da própria Ciência do Direito, levando o Direito a um processo mecanizado e que somente é possível de aplicação com uma grande quantidade de pressupostos jurídicos fora da realidade social.[24]
O sentido teórico do Direito comumente o leva a uma irracionalidade da realidade social, deixando de captar as realidades e necessidades sociais, distanciando-se de uma aplicação inclusive mais próxima da realidade social. O Direito que o legislador criou a respeito do instituto da regularização fundiária em tese partiu da necessidade do próprio povo, e é função do legislador tomar como parâmetro as necessidades do povo. Não é possível o afastamento de circunstâncias históricas para expressar o sentimento de necessidade que a regularização fundiária apresenta à sociedade, principalmente àquela parcela mais vulnerável econômica e socialmente.[25] A concreção do direito fundamental à digna moradia deve prevalecer quando da confecção legislativa (e por sinal, primeiramente no debate jurídico que em tese deveria haver para a produção legislativa) o que é notória a sua quase ausência ou mesmo inexistência no processo legislativo brasileiro.
A história da regularização fundiária está ligada à própria história de subdesenvolvimento da população brasileira. A população que ocupa os parcelamentos irregulares, geralmente hipossuficiente ou discriminada socialmente, nunca é o objetivo da finalidade da criação do legislador.[26] A vocação da legislação atinente à regularização fundiária e inclusive da própria Ciência em regra deveriam consistir em tutelar urbanisticamente e socialmente os ocupantes que vivem no próprio parcelamento irregular, e inclusive tutelar o mínimo de seus direitos e garantias fundamentais.
Thomas Kuhn, já apontado anteriormente no início deste artigo, defende que é necessário a quebra do paradigma (regras aceitas e previamente acordadas em uma comunidade científica) para que a novidade científica – geralmente tomada por certa resistência -, rompa a dificuldade e forneça uma melhor expectativa para a comunidade jurídica.[27]
O paradigma referente à regularização fundiária se funda na própria discriminação que há quando se fala em regularizar um loteamento irregular. A alegação de que a área ocupada foi “invadida” pelos ocupantes, não merece tutela jurídica, de que o Estado é conivente com a situação irregular, muitas das vezes é fundada em uma falácia revestida de bom senso e moral pelos críticos. Entretanto, há o esquecimento dos direitos e garantias fundamentais da população que vive nos parcelamentos irregulares (precariedade e ausência do mínimo de elementos de ordem urbanística no parcelamento, tal como energia elétrica, água potável, tratamento sanitário).
É notório que a situação de irregularidade fundiária que assola o Brasil atualmente seria bem diferente se houvesse uma análise do ponto de vista histórico de como essa situação irregular se formou ao longo do tempo. Verificando a história, muito bem poderíamos avaliar melhor os fatos e as suas consequências. De todo modo, enquanto passamos pelo desenvolvimento da história, tal fato ainda não é história para nós.
Com um paralelo de cunho econômico, é defensável que a regularização fundiária gera consideráveis benefícios à coletividade, inclusive de ordem econômica. O autor Hernando de Soto analisou os reflexos positivos das políticas públicas, que devem ser de antemão previstos. No que tange à regularização fundiária, Soto aduz que o legislador procurou conferir nítida segurança jurídica aos ocupantes, principalmente dos grandes centros urbanos, além da ínsita necessidade de melhoria dos aspectos ambientais e urbanísticos (garantia imediata da regularização fundiária). Hernando de Soto defende que a regularização fundiária implementada gera positivo impacto à sociedade, principalmente um potencial crescimento econômico.
Pela obra intitulada O mistério do capital, Hernando de Soto expõe a causa de os países em desenvolvimento não se desenvolverem economicamente tal como os países já desenvolvidos. O autor formou uma equipe de economistas que se dirigiram in loco às periferias dos grandes centros e verificaram a forma pela qual o processo produtivo é encarado nesses centros. Os pesquisadores foram surpreendidos com a intensa atividade econômica desenvolvida nas periferias, e surpreenderam-se ainda mais positivamente com a característica empreendedora das pessoas, situação pela qual concluíram que não é a falta de empreendedorismo a causa de subdesenvolvimento econômico dos países pobres. Conjugada com o empreendedorismo, constataram que a informalidade também impera nessas regiões dos países em desenvolvimento, situação essa de informalismo que, pela visão do autor, a regularização fundiária impacta profundamente, uma vez que a situação informal, além de extremamente prejudicial ao desenvolvimento econômico dos países, limita a possibilidade de crescimento econômico dos negócios.[28]
Hayek elucida que há um objetivo social (propósito comum) que deve imperar na construção de uma sociedade. Esse objetivo social pode ser nomeado inclusive como bem comum ou interesse comum e que em regra não é necessário um esforço hercúleo para que se defina o que vem a ser o bem comum, uma vez que aí impera um critério subjetivo de cada cidadão.[29]
Em suma, é necessário que haja uma aproximação da realidade social quanto à regularização fundiária. O rigorismo, o formalismo excessivo legal que barra a real implementação das políticas públicas e do próprio procedimento extrajudicial que ainda tende a imperar devem ser de uma vez por todos afastados para que a regularização fundiária seja realmente implantada.
CONCLUSÃO
A regularização fundiária necessariamente contempla e deverá contemplar grandes áreas ocupadas por população carente, visando levar ao menos infraestrutura básica e, em via reflexa, titular a situação dominial dos posseiros. Entretanto, a estrutura quase inflexível do universo registral em certa parte inibe o esforço público.
A organização urbana das grandes cidades deve passar necessariamente pela regularização dos parcelamentos clandestinos, irregulares e até mesmo atingir os parcelamentos inacabados. Não há como fugir dessa realidade social.
A regularização fundiária é um forte instrumento alternativo juridicamente para tutelar as moradias irregulares no Brasil. Até certo ponto é louvável a iniciativa do poder público, que tende a enfrentar a questão. Conforme esposado na presente dissertação, com todo o escorço legislativo, atualmente a pujante Lei 13.465/2017 objetiva mudar o paradigma do instituto da regularização fundiária, pois facilita em grande partida aspectos formais e extrínsecos que em nada colaboram com a efetivação do instituto.
No que se refere ao plano dos registros públicos, atualmente a formalidade excessiva ainda dificulta a efetivação da regularização fundiária. Embora os meios técnicos disponíveis ainda não sejam o mais desejável, a insegurança em levar adiante a regularização fundiária não está em tal desiderato.
Um melhor cadastro real informatizado, levantamento topográficos mais realistas e confiáveis tecnicamente, segurança e tecnicidade nas demarcações urbanística, tudo isso conjugado com o receito e zelo excessivo não assegura o direito real de propriedade principalmente àqueles mais desamparados social e juridicamente.
Para a implementação do instituto da regularização fundiária ainda falta bastante vontade e coragem. É necessário deixar o problema cultural e utilizar eficazmente os institutos que o extenso e robusto arcabouço jurídico já nos apresenta. O princípio norteador do texto constitucional é a própria dignidade da pessoa humana. Nossa Carta promete-nos bem-estar, desenvolvimento, igualdade e justiça.
Tenhamos em mente que, em que pese o beneficiado diretamente com a regularização fundiária seja o hipossuficiente, é perfeitamente recomendável que se regularizem inclusive bairros e loteamentos atualmente ocupados por famílias de média e/ou alta renda, desde que cumpridos os requisitos legais atinentes à regularização fundiária de interesse específico.
Pela prática mercadológica e empresarial a qual vivenciamos atualmente, em que a competitividade e o lucro a qualquer preço dominam as nossas relações sociais, temos a indagação de que quais seriam as vantagens em regularizar um parcelamento irregular.
Com o intuito de efetivação e até mesmo operacionalização da regularização fundiária, é interessante convocar a juventude universitária para que possa atuar na concretização de tal instituto. Diversas razões recomendam que se pense e realmente aplique tal recomendação. A Universidade brasileira, assentada sobre os pilares do ensino, da pesquisa e da extensão, pode e deve contribuir consideravelmente para a efetivação real da regularização fundiária no Brasil.
Os universitários poderiam, v.g., elaborar o cadastro dos ocupantes das áreas destinadas à regularização fundiária, bem como promover conciliações. Parece-nos que essa atividade é mais relevante e útil em sua vida acadêmica em vez dos superados júris simulados ou Semanas Jurídicas.
Esse contato que particularmente o jovem poderia desenvolver ajudaria a ganhar real experiência com a realidade, conhecendo de perto a exclusão social.
Ao se falar em ocupações urbanas irregulares, há uma nítida incidência de negligência, com a preponderância do preconceito de forma criminalizada, e há de se considerar que indiretamente o próprio Estado negligenciou ao socorro dos ocupantes dos parcelamentos irregulares (e não confundamos ocupação com invasão, haja vista que a invasão não merece tutela jurídica da regularização fundiária). Aparentemente, se o Direito almeja constantemente a consagração das garantias fundamentais, percebemos que, no que tange aos ocupantes dos parcelamentos irregulares, esse escopo de garantia constitucional é colocado de lado.
A falta de total percepção do Estado brasileiro diante dos sintomas que os parcelamentos irregulares causam necessita urgentemente ser afastada do ideal das políticas públicas, principalmente das políticas públicas midiáticas, que, com a simples divulgação de entrega de matrículas dos parcelamentos agora regularizados aos seus ocupantes, entendem que cumpriram perfeita e totalmente o escopo da regularização fundiária, sem ao menos implantar ou concluir o minimamente aceitável de obras de infraestrutura urbana e proteção ambiental dos parcelamentos.
A regularização fundiária não deve visar à entrega de forma indiscriminada de espaços populares. Claramente ainda há nítida discrepância social no Brasil, discrepância essa que urge em erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades sociais, ponto nevrálgico para a incidência e concretização de políticas públicas voltadas à regularização fundiária, sobretudo de interesse social.
Com a utopia de todos os envolvidos levarem a sério o desafio proposto pela regularização fundiária, que por sinal seria um passo embrionário, seríamos capazes de implementar a vontade da lei. A soma de esforços, partilhas, inovação é revigorante e sonhar inclusive que o Brasil realmente vislumbrará um futuro depende de cada um de nós.
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[1] Pelo conceito de Vicente de Abreu Amadei, “regularização fundiária é categoria jurídica (i) diretiva, enquanto fim e direção da política de reengenharia rural e urbana, ou de saneamento dos males do campo e da cidade (v.g. art. 2º, XIV, EC); (ii) matriz, enquanto gênero de várias formas de regularizar, abarcando a multiplicidade dos aspectos de irregularidades prediais (da falta de titulação às graves desordens habitacionais, passando por deficiências de empreendimentos, de edificação, de parcelamento do solo, de uso e ocupação etc.); e (iii) procedimental, na medida em que abrange várias etapas, instrumentos e atos voltados à regularização singularmente considerada”. AMADEI, Vicente de Abreu; PEDROSO, Alberto Gentil de Almeida; MONTEIRO FILHO, Ralpho Waldo de Barros. Primeiras impressões sobre a Lei n. 13.465/2017. São Paulo: Arisp, 2017. p. 12.
[2] Essa mudança de paradigma foi sendo objeto de construção ao longo do tempo, e é muito pertinente a consideração de Thomas Kuhn a respeito, ao elucidar que “As revoluções políticas iniciam-se com um sentimento crescente, com frequência restrito a um segmento da comunidade política, de que as instituições existentes deixaram de responder adequadamente aos problemas postos por um meio de ajudarem em parte a criar. De forma muito semelhante, as revoluções científicas iniciam-se com um sentimento crescente, também seguidamente restrito a uma pequena subdivisão da comunidade científica, de que o paradigma existente deixou de funcionar adequadamente na exploração de um aspecto da natureza, cuja exploração de um aspecto fora anteriormente dirigida pelo paradigma”. KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. Trad. Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. 13. ed. São Paulo: Perspectiva, 2017. p. 178.
[3] Veja-se o disposto no art. 9º da Lei n. 13.465/2017: “Ficam instituídas no território nacional normas gerais e procedimentos aplicáveis à Regularização Fundiária Urbana (Reurb), a qual abrange medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais destinadas à incorporação dos núcleos urbanos informais ao ordenamento territorial urbano e à titulação de seus ocupantes” (grifo nosso).
[4] “(...) o legislador complementar deve se submeter aos desígnios do princípio da função social, assim como o aplicador do direito, que não pode realizar leitura jurídica válida, desprezando a sua carga axiológica, que confere prioridade ao coletivo quando em antagonismo com o individual”. SALLES, Venicio Antonio de Paula. Função social da propriedade. In: GUERRA, Alexandre; BENACCHIO, Marcelo (coord.). Direito imobiliário brasileiro: novas fronteiras na legalidade constitucional. São Paulo: Quartier Latin, 2011. p. 180.
[5] “Essas duas classificações são as principais, porque nelas também varia o regime jurídico ao qual cada espécie se submete: assim como o regime jurídico do imóvel rural é distinto do regime jurídico do imóvel urbano, a regularização fundiária aplicada a este ou aquele imóvel encerra igual distinção de regime jurídico; assim como o regime jurídico do bem público é diverso do regime jurídico do bem particular, a regularização aplicada a cada uma dessas categorias de bens apresenta, também, por congruência lógica, distintos regimes jurídicos”. AMADEI, Vicente de Abreu; PEDROSO, Alberto Gentil de Almeida; MONTEIRO FILHO, Ralpho Waldo de Barros. Primeiras impressões sobre a Lei n. 13.465/2017. São Paulo: Arisp, 2017. p. 13.
[6] “É o critério econômico-social (assentamento ocupado, predominantemente, por população de baixa renda), o norte maior que qualifica o núcleo urbano informal como apto à Reurb-S. Então, satisfeito esse pressuposto de fundo, ao qual se deve agregar o formal reconhecimento pela Administração Pública municipal, fica aberto o campo para o referido modo peculiar de regularização fundiária, a Reurb-S, com flexibilização de exigências, redução de custos, aplicação específica de instrumentos de regularização, enfim, diversos benefícios urbanísticos, ambientais, administrativos, registrários, econômicos e instrumentais”. AMADEI, Vicente de Abreu; PEDROSO, Alberto Gentil de Almeida; MONTEIRO FILHO, Ralpho Waldo de Barros. Primeiras impressões sobre a Lei n. 13.465/2017. São Paulo: Arisp, 2017. p. 16.
[7] Teori Zavascki colaciona que a função social não deve se restringir tão somente ao direito real de propriedade, e por critério axiológico, deve incidir principalmente na tutela da posse, haja vista que mesmo sem expressa previsão constitucional, igual tratamento deve ser conferido à posse, como pressuposto da concretização do direito de propriedade. ZAVASCKI, Teori Albino. A tutela da posse na Constituição e no novo Código Civil. Direito e Democracia, Canoas, v. 5, p. 11, jan./jun. 2004.
[8] “A Constituição de 1934, em seu art. 113, n. 17, consagrou o direito de propriedade, vinculando-o ao cumprimento do interesse social ou coletivo, mas deixou de delimitar ou esclarecer as bases e sentido imprimido ao interesse social. A efêmera Constituição não possibilitou a edição de legislação infraconstitucional que viesse a preencher o sentido da lei maior”. SALLES, Venicio. Função social da propriedade. In: NALINI, José Renato; LEVY, Wilson (coord.). Regularização fundiária. 2. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 75.
[9] “Em que pesem as tentativas anteriores, a efetiva construção das bases maiores da função social da propriedade ocorreu apenas com a edição da Constituição Cidadã de 1988, que, impulsionada pelo espírito de redemocratização, conferiu relevo à necessidade da organização dos centros urbanos. A função social da propriedade, reconhecida em primeiro lugar no capítulo dos direitos fundamentais que disciplina os direitos e garantias individuais e coletivas, foi concebida com grande força e contundência”. SALLES, Venicio. Função social da propriedade. In: NALINI, José Renato; LEVY, Wilson (coord.). Regularização fundiária. 2. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 76.
[10] Encontramos diversas disposições constitucionais a respeito da possibilidade de expropriação: “Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. [...] § 4º É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de: [...] III – desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais. Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei. [...] Art. 191. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinquenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade”.
[11] O próprio Estatuto da Cidade, em seu art. 2º, XIV, expõe que a regularização fundiária é paradigma que visa ao pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana.
[12] Antes da Constituição Federal de 1967, não havia expressamente disposição normativa atinente que visasse à propriedade dentro de um contexto social. Nesse prisma, o uso da propriedade era condicionado ao bem-estar social, tal como previa o art. 147 da Constituição Federal de 1946, e era vedado o exercício do direito à propriedade de forma contrária ao interesse social, tal como estabelecia o art. 113, 17, da Constituição Federal de 1934.
[13] SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981. p. 96.
[14] “Art. 186 [CF]. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I – aproveitamento racional e adequado; II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores”.
[15] ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de. Dos instrumentos da política urbana. Dos instrumentos em geral. Do parcelamento, edificação ou utilização compulsórios. Do IPTU progressivo no tempo. Da desapropriação com pagamento em títulos. In: ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de; MEDAUAR, Odete (coord.). Estatuto da Cidade – Lei n. 10.527, de 10.07.2001: comentários. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 61.
[16] SILVA, José Afonso. Aplicabilidade das normas constitucionais. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 172-174.
[17] “RECURSO ESPECIAL. DIREITO URBANÍSTICO. LOTEAMENTO IRREGULAR. MUNICÍPIO. PODER-DEVER DE REGULARIZAÇÃO. 1. O art. 40 da Lei 6.766/79 deve ser aplicado e interpretado à luz da Constituição Federal e da Carta Estadual. 2. A Municipalidade tem o dever e não a faculdade de regularizar o uso, no parcelamento e na ocupação do solo, para assegurar o respeito aos padrões urbanísticos e o bem-estar da população. 3. As administrações municipais possuem mecanismos de autotutela, podendo obstar a implantação imoderada de loteamentos clandestinos e irregulares, sem necessitarem recorrer a ordens judiciais para coibir os abusos decorrentes da especulação imobiliária por todo o País, encerrando uma verdadeira contraditio in terminis a Municipalidade opor-se a regularizar situações de fato já consolidadas. (...) 5. O Município tem o poder-dever de agir para que o loteamento urbano irregular passe a atender o regulamento específico para a sua constituição. 6. Se ao Município é imposta, ex lege, a obrigação de fazer, procede a pretensão deduzida na ação civil pública, cujo escopo é exatamente a imputação do facere, às expensas do violador da norma urbanístico-ambiental. 7. Recurso especial provido” (grifo nosso). STJ, 1ª T., REsp 448.216/SP, 2002/0084523-8, Rel. Min. Luiz Fux, j. 14.10.2003, DJ 17.11.2003, p. 204.
[18] “O poder de disposição, visto no sentido de escolha da destinação a ser dada ao bem, adquire uma relevância especial, principalmente pela sua atualidade, enquanto constitui a confluência entre o problema das situações estaticamente consideradas e a iniciativa econômica: o proprietário que se põe o problema da escolha da destinação a ser dada a um bem não é somente proprietário, mas é, o mais das vezes, também empresário”. PERLINGIERI, Pietro. Situações subjetivas patrimoniais – perfis de direito civil. Trad. Maria Cristina De Cicco. 3. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 223.
[19] “... a função social assume uma valência de princípio geral. A autonomia não é livre arbítrio; os atos e as atividades não somente não podem perseguir fins antissociais ou não sociais, mas, para terem reconhecimento jurídico, devem ser avaliáveis como conforme à razão pela qual o direito de propriedade foi garantido e reconhecido”. PERLINGIERI, Pietro. Situações subjetivas patrimoniais – perfis de direito civil. Trad. Maria Cristina De Cicco. 3. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 228.
[20] A moradia digna é insitamente ligada à função social da propriedade imobiliária. Tomás de Aquino apresenta o essencial a respeito da propriedade privada e a sua função social, no respondeo: “Relativamente às cousas exteriores tem o homem dois poderes. Um é o de administrá-las e distribuí-las. E quanto a esse, é-lhe lícito possuir cousas como próprias. O que é mesmo necessário à vida humana por três razões: – a primeira é que cada um é mais solícito em administrar o que a si só lhe pertence, do que o comum a todos ou a muitos. Porque, neste caso, cada qual, fugindo do trabalho, abandona a outrem o pertencente ao bem comum. Segundo, porque as cousas humanas são melhor tratadas, se cada um emprega os seus cuidados em administrar uma cousa determinada; pois se, ao contrário, cada qual administrasse indeterminadamente qualquer cousa, haveria confusão. Terceiro, porque, assim, cada um estando contente com o seu, melhor se conserva a paz entre os homens. O outro poder que tem o homem sobre as cousas exteriores é o uso delas. E quanto a este, o homem não deve ter as cousas exteriores como próprias, mas como comuns, de modo que cada um as comunique facilmente aos outros, quando delas tiverem necessidade”. AQUINO, Tomás de. Suma teológica. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2001. v. I. parte II. IIa, IIae, q.66, art. 2, resp.
[21] SOUZA, Sérgio Iglesias Nunes de. A distinção entre o direito à moradia e o direito de habitação. Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo, v. 13, p. 224-260, jan./jun. 2004.
[22] FERRAZ, Sérgio. Usucapião especial. In: DALLARI, Adilson de Abreu; FERRAZ, Sérgio (coord.). Estatuto da Cidade: comentários à Lei federal n. 10.257/2001. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 144.
[23] ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Comitê sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Comentário Geral n. 4. Sexta Sessão, 1991.
[24] “Este positivismo é o inimigo mortal da Ciência do Direito; pois a degrada em trabalho manual; e, depois, trava uma luta de vida ou morte com ela”. Ihering, Rudolf Van; tradução Hiltomar Martins Oliveira. É o direito uma ciência? 1 ed. São Paulo: Rideel, 2005, p.57
[25] “O Direito não é, em um primeiro momento, criado pelo legislador, mas que nasce e vive do povo, e o mister do legislador consiste em expressá-lo e modificá-lo na medida da opinião evolutiva do povo.” Ihering, Rudolf Van; tradução Hiltomar Martins Oliveira. É o direito uma ciência? 1 ed. São Paulo: Rideel, 2005, p.141
[26] Sete em cada dez brasileiros que moram em casa com algum tipo de inadequação são pretos ou pardos. No Brasil, 45,2 milhões de pessoas (21,6% da população total) residiam em 2019 em 14,2 milhões de domicílios com algum tipo de inadequação. Destes, 31,3 milhões eram de cor preta ou parda, ou seja, 69,2%, segundo o levantamento do IBGE. https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/11/no-pais-7-em-cada-10-que-moram-em-casas-com-algum-tipo-de-inadequacao-sao-pretos-ou-pardos.shtml Acesso em 13 abril 2021.
[27] “E o que é ainda mais importante: durante as revoluções, os cientistas veem coisas novas e diferentes quando, empregando instrumentos familiares, olham para os mesmos pontos já examinados anteriormente. É como se a comunidade profissional tivesse sido subitamente transportada para um novo planeta, onde objetos familiares são vistos sob uma luz diferente e a eles se apegam objetos desconhecidos.” KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas; tradução Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. 13 ed. São Paulo: Perspectiva, 2017, p.201
[28] SOTO, Hernando de. O mistério do capital. Trad. Zaida Maldonado. Rio de Janeiro: Record, 2001.
[29] HAYEK, F. A. O caminho da servidão. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010, págs.75-76
Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Franca-SP. Especialista em Direito Imobiliário pelo Centro Universitário UniAnchieta – Jundiaí-SP. Especialista em Direito Notarial e Registral Imobiliário pela Escola Paulista de Direito – São Paulo-SP. Mestre em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito (FADISP). Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito (FADISP). Substituto do 2º Oficial Registro de Imóveis de Campinas-SP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PIMENTA, MURILO HAKIME. Da regularização fundiária como meio de concreção da função social da propriedade. Por que regularizar? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 ago 2021, 04:57. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57105/da-regularizao-fundiria-como-meio-de-concreo-da-funo-social-da-propriedade-por-que-regularizar. Acesso em: 23 dez 2024.
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Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
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