De fato, vivemos em uma era de globalização, com o aumento e integração das economias nacionais, apresentando relevantes impactos ao redor do globo? Ou vivemos em uma era de máximo proveito egoístico e antiglobalização? Os discursos colocados em pauta pelas grandes multinacionais pela “tributação da automação” constituem preocupação real com o bem-estar da classe de trabalhadores que perderão seus empregos em virtude das suas respectivas substituições pelos robôs ou trata-se na verdade do “bom e velho” lobby ou tentativa de evitar o “the rise of 'tax shaming”? É possível acabar com a guerra fiscal internacional? Em caso afirmativo, a guerra fiscal internacional chegará ao fim através de uma regulação global, pela adoção de medidas unilaterais por cada jurisdição? Ou antes, far-se-á necessário uma mudança de mentalidade dos atores envolvidos? E, dentro perspectiva, é utopia pensar num consenso global?
Longe de compreender que todos possuem a mesma base ou partem do mesmo lugar, é sabidamente conhecido, que a sociedade vem em longa escala sofrendo intensas modificações nas últimas décadas, passando de uma economia industrial para uma economia informacional, a chamada 4ª Revolução Industrial. Uma nova realidade absolutamente volátil, incerta e dinâmica, na qual ocorre diariamente a explosão de incontáveis e inimagináveis novas tecnologias, sendo lançadas e pivotadas MVP – Minimum Viable Product diariamente, com o intuito de inserir novos “produtos / serviços” no mercado a velocidade da luz. Por exemplos: as transações com criptoativos, blockchain, software as service (SaaS), as empresas tech (agritech, fintech, legaltech, adtech, healthtech e assim por diante), os marketplaces, cloud computing, impressão 3D, nanotecnologia, IoT – Internet das Coisas, economia dos dados e do processo de migração para uma economia baseada em serviços e funcionalidades, com bens intangíveis, representando o grande componente de valor das empresas, substituindo-se a presença física pela presença digitais economicamente relevantes.
Trata-se de uma total transição da “velha economia” para a “nova economia”, na qual os grandes players do mercado que, por exemplo, se tornaram dependentes do desenvolvimento de ativos intangíveis, do uso de dados dos usuários das plataformas para tomadas de decisões, da necessidade de ganhar escala, de aumentar produtividade, reduzirem seus custos, se tornarem mais eficientes, passaram a se beneficiar das “lacunas” legislativas, dos tratamentos legislativos conferidos pelos diferentes países (mismatches), para transferirem seus resultados a jurisdições com regras de tributação mais favoráveis, com baixa ou nenhuma tributação, o que é facilitado pela intensa mobilidade do capital e dos meios de produção, o que, em muitas hipóteses, tem sido considerado como planejamento abusivo / agressivo, combatido no âmbito da OCDE.
É certo que com o surgimento desses novos modelos de negócios surgidos nessa nova economia representa um grande desafio para os obsoletos sistemas tributários atuais que foram desenhados em uma economia tradicional, não marcada por toda essa volatilidade, incerteza e dinamicidade. Isso porque, existia, por exemplo: (i) presença física delimitada; (ii) regulação dos negócios transnacionais; (iii) limites fronteiriços, e (iv) tangibilidade dos bens, razão pela qual as regras de tributação não conseguiram acompanhar toda essa mudança, o que impõe a adoção de estratégias para que seja impedido um colapso geral em diversas jurisdições.
Nesse contexto, visando atacar formas de planejamento tributário agressivo, em desconexão com as atividades econômicas correlatas, utilizadas no sistema tributário internacional, com o objetivo de combater o agravamento da erosão da base tributária e transferência artificial de lucros, e, também, diante da incapacidade dos tradicionais sistemas tributários alcançarem, em tempo oportuno e adequado, as novas realidades econômicas, em 2013 a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) desenvolveu com o apoio do G-20, 15 planos de ação do Projeto BEPS. No fundo todas as 15 ações e pilares do BEPS visam estabelecer mecanismos, com o objetivo de impedir as duas polarizações, de um lado, a dupla tributação; e de outro lado, a dupla não tributação, o que é louvável, de certa perspectiva, na medida em que a luta contra a Erosão da Base Tributária e a Transferência de Lucros Tributáveis – BEPS interfere em todo o globo, prejudicando toda gama de diferentes pessoas de direito: governos, contribuintes e sociedade.
Embora, o objetivo central do Projeto BESP, seja combater a erosão da base tributária, tal fenômeno, não pode ser atribuível somente a condutas dos contribuintes que se valem das oportunidades para reduzirem os tributos devidos em operações transnacionais, na medida em que estas ocorrem na maior parte das vezes, de atos de decisão legislativa dos diversos Estados que deliberadamente oferecem incentivos fiscais dos mais variados, ou ainda, da ausência de uma adequada interação normativa entre a variedade de regras tributárias determinadas por cada jurisdição, que não apenas poderá resultar numa dupla tributação, mas também em uma dupla não tributação de determinados rendimentos pelos países envolvidos.
Nesse jogo de interesses econômicos, no qual, aparentemente, predominam os interesses dos mais organizados, com maior poder de pressão política, para que sejam promovidas mudanças significativas em prol do todo, é necessária a determinação de estratégias e uma boa organização das regras. Nesse espeque, registra-se que regular não pode ser confundido com atuação excessiva, desmesurada ou abusiva, ao invés, disso o objetivo deve ser de organizar o mercado competitivo, estimular a inovação, proteger as empresas menores ou evitar que sejam engolidas, mas sem massacrar as empresas, prioritariamente, tecnológicas, pois elas não são as grandes vilãs do planeta, nada obstante, devam contribuir com o estabelecimento de um sistema tributário, no qual cada um paga a sua parcela justa de tributos.
Sob tal perspectiva, afirma-se que as multinacionais, beneficiam-se do mercado consumidor, todavia, o mercado consumidor e o Estado, também, se beneficiam das empresas de tecnologia, haja vista todo o desenvolvimento ocorrido nas últimas décadas. Imaginem, no cenário nacional, ainda que de maneira simplória, “um mundo” em plena pandemia do COVID-19, sem os marketplaces (Amazon, Mercado Livre, B2W e muitas outras), sem as funcionalidades do Google, sem as redes sociais e meios de comunicação, sem o comércio eletrônico, sem o sistema de Delivery, entre tantas e tantas outras, sem as quais um mundo de isolamento seria muito mais insustentável do aquele que se apresenta hoje.
Em “sistema global” no qual não é privilegiado o diálogo promissor, realista e imprescindível entre todos os atores, o globo inteiro perde.
Com efeito, os avanços tecnológicos apresentam diversos aspectos positivos (difusão mais rápida da informação, crescimento econômico, mudança de paradigmas, fortalecimento da globalização, etc.), não sendo sequer possível imaginar, no atual estágio das coisas e da evolução da sociedade, que estes sejam freados ou boicotados de qualquer maneira, porém, é preciso lembrar que o caminho da evolução também é tortuoso, trazendo aspectos negativos, entre eles, o impacto do avanço da tecnologia sobre o mercado de trabalho e a possibilidade de desemprego em massa como consequência da expansão da automação nas fábricas e no setor de serviços, o que tem levado empresários a defender a intervenção dos Estados através da tributação, como forma de mitigar ou reduzir os impactos negativos. Essa ideia é defendida no âmbito da OCDE, com apoio do G-20, mas também por empresários da área da tecnologia (Será?). Seja como for o bilionário e cofundador da cofundador da Microsoft Bill Gates comentou, em entrevista para o site Quartz, sobre a ideia de se tributar a automação, dizendo que “Certamente haverá algum tipo de imposto relacionado à automação. Hoje, um trabalhador que receba, digamos, US$ 50 mil em uma fábrica, paga impostos sobre a renda, paga contribuição social, essas coisas. Se um robô começa a desempenhar a mesma função, seria natural se pensar que ele seria tributado em um patamar semelhante", afirmou o empresário [1]. Na mesma linha, o bilionário da tecnologia Elon Musk também já se manifestou a favor do imposto, sob o argumento de que os recursos poderiam ser canalizados para a Saúde e Educação ou mesmo garantir uma renda mínima para todos os cidadãos.
Em vista dessa argumentação a única coisa que se apresenta como efetiva é a de que precisam ser estabelecidas estratégias para que o sistema tributário global se adeque a nova realidade, a essa nova economia. E quais seriam essas estratégias? Acreditamos que antes de discutir a eventual necessidade / adequação de extinção do “imposto corporativo”, a eventual necessidade / adequadação de instituição de DST’s, mudança de regulação doméstica, estabelecimento de instrumentos multilaterais, seria necessário alcançar consenso acerca das estratégias a serem adotadas e que estas sejam estabelecidas de maneira transparente, coerente e com substância (pilares do BEPS), com a cooperação mútua entre os governos.
Por falar em estratégias adentramos a questão da guerra fiscal internacional que como qualquer outra guerra deveria objetivar a paz. A guerra é um dos assuntos mais importantes do Estado. É o campo onde, a vida e a morte são determinadas. É o caminho da sobrevivência ou da desgraça de um Estado. Assim, o Estado deve examinar com muita atenção este assunto antes de buscar a guerra [2].
O trecho acima foi extraído do livro A Arte da Guerra (chinês: 孫子; pinyin: sūn zĭ bīng fǎ, literalmente "Estratégia Militar de Sun Tzu"), é um tratado militar escrito durante o século IV a.C. pelo estrategista conhecido como Sun Tzu. O tratado é composto por treze capítulos, cada qual abordando um aspecto da estratégia de guerra, de modo a compor um panorama de todos os eventos e estratégias que devem ser abordados em um combate racional[3], tratando-se de livro amplamente utilizado no mundo dos negócios, haja vista as estratégias que podem ser aplicadas no mercado competitivo.
E qual o objetivo de firmar essa analogia e utilizar suas metáforas para o mundo do BEPS? A principal razão é demonstrar as seguintes proposições: i) o objetivo precípuo de qualquer guerra (inclusive, a fiscal nacional ou internacional), deve ser buscar a paz; e ii) para prever o resultado da guerra, devemos analisar e comparar as nossas próprias condições, e as do inimigo, baseada em cinco fatores. Os cinco fatores são os seguintes: caminho, clima, terreno, comando e doutrina.
Na guerra quem conduz os soldados para a batalha deve estar familiarizado com estes cinco fatores. Quem os compreende pode alcançar a vitória. Quem não os compreende será derrotado. E no âmbito da OCDE, do Projeto BEPS, será que se antes mesmo de serem estabelecidas recomendações, diretrizes, tratados, se fossem considerados os cincos fatores (caminho, clima, terreno, comando e doutrina), não estaríamos mais próximos do “consenso”? Acabar com a guerra fiscal internacional? E, assim, conseguiríamos alcançar a vitória não em favor de um grupo de indivíduos ou das jurisdições desenvolvidas, mas sim em favor do Globo?
Como proposto nas primeiras linhas desse artigo, sem nenhuma pretensão exaustiva, ou ainda, de trazer conceitos técnicos-jurídicos já amplamente debatidos pela mais diversa gama de profissionais, busca-se, dentro dessa realidade da “economia digital”, trazer elementos para confirmar a proposição e/ou ainda, pelo menos, para gerar a reflexão, de que o principal desafio a ser enfrentado pelos atores (Governos, Contribuintes, Sociedade) mais do que firmar instrumentos bilaterais, uma regulação fiscal global, é antes de mais nada a busca efetiva pelo consenso razoável entre os países envolvidos nesta temática, a mudança de mentalidade, a efetiva conscientização, levando-se em consideração os diferentes níveis de desenvolvimento e capacidade de cada uma das jurisdições.
Mestranda em Direito Tributário pela FGV Direito SP, com MBA em Gestão Tributária pela Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuariais e Financeiras – FIPECAFI. Advogada em São Paulo.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUZA, Tatiane Moreira de. Economia digital: Como acabar com a guerra fiscal internacional? O principal desafio é regulatório ou comportamental? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 ago 2021, 04:32. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57125/economia-digital-como-acabar-com-a-guerra-fiscal-internacional-o-principal-desafio-regulatrio-ou-comportamental. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Roberto Rodrigues de Morais
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